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El País: Antipolítica sai de cena com centro-direita fortalecida e prefeitos pró-ciência reeleitos no 1º turno

Pandemia elevou abstenção, mas eleitores saíram de máscara para votar em 5.567 cidades brasileiras. Atraso na divulgação dos resultados alimenta teorias conspiratórias de fraudes

Carla Jiménez e Aiuri Rebello, El País

A direita foi deslocada em direção ao centro e a antipolítica perdeu adeptos. A esquerda ganhou fôlego importante em algumas capitais e nas Câmaras de Vereadores e os partidos do Centrão foram os grandes vencedores, através das legendas de sempre: MDB, PP, PSD e DEM. O resultado do primeiro turno das eleições nas capitais do Brasil neste ano ―marcado pelo atraso na divulgação e uma tentativa de ataque hacker no sistema do Tribunal Superior Eleitoral― mostra um refluxo na onda populista da direita que varreu o país em 2018 com a vitória de Jair Bolsonaro. Candidatos desse espectro político, que teve nomes fortes e votações expressivas nas eleições de 2016 e 2018, não tiveram sucesso e saíram derrotados do primeiro turno —como mostram os candidatos apoiados pelo presidente. Seu filho, Carlos Bolsonaro, conseguiu se reeleger como vereador no Rio de Janeiro, mas sua votação foi menor do que há quatro anos. Conquistou 70.000 votos, menos que os 136.000 de 2016, quando foi o vereador mais votado da cidade. Agora teve a segunda melhor votação, atrás de um psolista, Tarcísio Motta.

Na polarização do coronavírus, ganharam em primeiro turno ou passaram para segundo turno em importantes capitais os postulantes que apostaram na ciência, em contraponto ao presidente Bolsonaro. É o caso de Alexandre Kalil, do PSD, em Belo Horizonte, que foi reeleito com 63,3% dos votos, Bruno Reis (DEM), em Salvador, com 64,2% (vice de ACM Neto, que condicionou a volta do tradicional Carnaval se houver vacina contra a covid-19 em fevereiro) e Rafael Greca (DEM), em Curitiba, também reeleito com 59,74%. O atual prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), que foi diligente na gestão da pandemia na cidade, garantiu a liderança nas pesquisas e passou para o segundo turno, que será disputado com Guilherme Boulous, do PSOL.

Um total de 147,9 milhões de brasileiros estavam aptos a votar neste domingo em 5.567 cidades ―Macapá, capital do Amapá, teve o primeiro turno adiado devido ao apagão que atinge o Estado há semanas. A pandemia, porém, levou a uma abstenção de 23,14% segundo dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral. Quatro anos atrás esse índice foi de 17,5%. Mas as ruas do Brasil ficaram cheias de eleitores de máscaras saindo de casa para votar num dos momentos mais emblemáticos do país, que ultrapassou 165.000 mortes por covid-19, e um presidente que reforça crises diariamente. Algo está diferente no Brasil de 2020 e, no dia 29 de novembro (data do segundo turno), vai ficar mais claro para onde os ventos políticos vão soprar.

Em São Paulo, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) concorreu à prefeitura seguindo a mesma receita de 2018, com um discurso liberal e antiesquerda, mas não vingou. Se em 2018 ela foi a deputada federal mais votada da história do Estado de São Paulo, ao alcançar um milhão de votos ―289.404 só da capital paulista— na disputa municipal ela ficou com 1,84% das cédulas, ou 98.239 votos. Seu rompimento com Bolsonaro poderia ser apontado como um fator que tenha influenciado esse resultado. Mas o deputado Celso Russomanno (Republicanos) fez o oposto e tampouco teve sucesso. Russomanno saiu de favorito ao cargo de prefeito no início da campanha, mas caiu para um minguado quarto lugar, logo depois de vincular seu nome ao de Bolsonaro. “Russomanno assumiu o padrinho e pagou o preço, como Jilmar Tatto também assumiu (Lula) e pagou também. Já Bruno Covas não assumiu [o governador] João Doria e não pagou o preço”, admitiu Elsinho Mouco, marqueteiro da campanha de Russomanno, em entrevista ao jornal O Globo.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez campanha para Tatto em São Paulo, mas o candidato petista obteve só 8,65% dos votos, ficando atrás até do deputado estadual Arthur Do Val (Patriotas), com 9,78%. Tatto, porém, saiu de 1% das pesquisas eleitorais, enquanto Russomanno chegou a ter 29% no início da campanha, e fechou a disputa com 10,5% ―derrotado, declarou apoio a Boulos no segundo turno. Covas foi ao segundo turno como favorito mantendo distância de Doria, que tem alta rejeição na capital. Logrou reforçar sua posição ao fechar uma aliança de centro direita entre diversas siglas.

No Rio, porém, o atual prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) que tenta a reeleição, conseguiu chegar ao segundo turno, depois de ter mostrado publicamente sua aliança com Bolsonaro. Crivella teve 21,9% dos votos, atrás do ex-prefeito da cidade Eduardo Paes (DEM), que alcançou 37,01% dos votos. O prefeito corria o risco de ficar em terceiro, numa disputa acirrada com a Delegada Martha Rocha (PDT) e Benedita da Silva (PT). Mas conseguiu crescer na reta final. Terá de reverter uma rejeição de 60% na cidade para lograr a reeleição.

O pleito mostrou ainda jovens lideranças de partidos da esquerda ofuscando a hegemonia do Partido dos Trabalhadores (PT) e entraram na disputa pelo segundo turno em capitais importantes, com Boulos em São Paulo e Manuela D'Ávila (PCdoB) em Porto Alegre. As vitórias simbólicas no primeiro turno não chegam a representar tendência nacional. O pleito deste ano mostrou um eleitor refratário a surpresas e que preferiu apostar em nomes conhecidos da política tradicional. A figura de outsiders ou “gestores” que tiveram sucesso em 2016 não tiveram destaque no primeiro turno nos principais colégios eleitorais. Em compensação, candidaturas de mulheres transgênero garantiram sucesso para se eleger vereadoras, caso da professora Duda Salabert, a mais votada da história de Belo Horizonte. Em São Paulo, a Erika Hilton (PSOL) e Thammy Miranda (PL) se tornaram as primeiras trans eleitas para a Câmara de Vereadores.

No Nordeste, o PT não conquistou nenhuma capital, mas tem em Marília Arraes sua chance de garantir uma vitória em Recife, capital de Pernambuco. Ela enfrenta no segundo turno o primo, João Campos (PSDB), filho de Eduardo Campos —que morreu em plena campanha presidencial num acidente aéreo em 2014. O partido do ex-presidente Lula obteve 140 vitórias no primeiro turno, mas ficou fora por primeira vez, desde 1988, de um pleito em São Paulo.

No inicio da madrugada de segunda-feira (16), já com a maioria das urnas apuradas Brasil afora, o velho MDB celebrava 746 prefeituras conquistadas na eleição. Também o centrista Partido Social Democrático (PSD) era um dos grandes vencedores da eleição com 627 prefeituras nas cidades médias e pequenas. Essa capilaridade pelo território podem fazer destes partidos aliados importantes para as eleições presidenciais de 2022.

No sábado, o presidente Jair Bolsonaro publicou em suas redes sociais uma lista de candidaturas que apoiava Brasil afora. Nas capitais, além de Russomanno e Crivella, o presidente também indicou voto em Delegada Patrícia (Podemos) em Recife, Capitão Wagner (Pros) em Fortaleza, e Bruno Engler (PRTB) em Belo Horizonte. Apenas Wagner passou ao segundo turno das eleições. A postagem do presidente foi apagada na manhã deste domingo.

Na noite do primeiro turno, postagens questionando a regularidade do pleito e sugerindo fraude no sistema de apuração invadiram as redes de bolsonaristas derrotados, que emularam Donald Trump numa tentativa de desacreditar as eleições. O presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, acabou levando a anticampanha na esportiva. “Evidentemente não tenho controle sobre o imaginário das pessoas. Mas objetivamente, foi preservada a segurança e a integridade do sistema, os dados são confiáveis e conferíveis pelos boletins das urnas”, disse ele, como relata o repórter em Brasília, Afonso Benites. Uma falha em um hardware do supercomputador que totaliza os votos atrasou a divulgação dos resultados em três horas, o que abriu brecha para as teorias conspiratórias.


Evandro Milet: Educação é a maior das obras de infraestrutura, só que invisível

Uma mãe com um filho doente vai correr para um posto de saúde ou para um hospital. Esse desespero se reflete na pressão nos políticos e nas pesquisas eleitorais que apontam a saúde como o maior problema nas cidades. Se as mães tivessem a real consciência da importância da educação para o futuro do filho correriam para a porta das escolas quando percebessem notas baixas, filhos matando aulas, escolas depredadas ou professores sem preparo. Da mesma forma, pressionariam os políticos e fariam questão de marcar presença em reuniões de pais nas escolas. Muitos, infelizmente, entendem a escola apenas pela merenda oferecida, ou para tirar a criança da rua, o que não é desprezível na situação brasileira, mas é muito, muito pouco.

O resultado da educação não tem a visibilidade de uma bela obra de infraestrutura como uma rodovia, uma ferrovia, uma hidrelétrica ou mesmo um viaduto. Fica mais invisível que uma obra de saneamento ou um problema ambiental. E nem se percebe como uma demanda imediata de um sistema de transporte, rede de iluminação ou de wifi.

Por essa invisibilidade e consequente falta de pressão, aparece pouco nos programas dos candidatos, porém, se infraestrutura significa o conjunto de elementos que estimula o desenvolvimento socioeconômico de uma região, educação é a mais importante delas. E a escuridão na educação do Brasil é maior que um apagão de energia.

Mesmo aqueles que percebem a importância da educação para o futuro dos filhos aceitam como satisfatório, por desconhecimento, um padrão, quando muito, apenas razoável quando comparado com padrões internacionais. A referência no Brasil ainda é Sobral no Ceará - o que é um avanço  extraordinário - mas não é Singapura ou Finlândia, a ponta da educação no mundo.

A má qualidade da educação implica na evasão alarmante, no baixíssimo nível de aprendizado e consequentemente em baixos salários, baixa produtividade e mesmo criminalidade e outras mazelas sociais. E os problemas não são esquerdização, ideologia de gênero, Paulo Freire, plantação de maconha, balbúrdia, banheiro unisex ou mamadeira de piroca. O problema é que as crianças não aprendem o que deveriam aprender na idade certa. Por quê? Municípios pequenos não conseguem administrar sua educação, diretores ainda são escolhidos por indicação política, salário baixo de professores não atrai muitos dos melhores para a carreira e faz com que tenham que atender várias escolas para completar salário, falta de formação dos professores, falta de escolas de tempo integral, falta de creches, escolas depredadas e falta de materiais didáticos padronizados para o professor e para o aluno.

As escolas particulares, frequentadas pela classe de renda mais alta, mantém uma qualidade muitas vezes de razoável padrão internacional. Mas também as escolas federais, públicas, como as escolas técnicas, tiveram resultado comparável com os melhores países na avaliação PISA, que mede o conhecimento em leitura, matemática e ciências em jovens de 15 anos. Mostra que é possível uma escola pública de qualidade. Por que não para todos? O que as escolas técnicas federais têm de diferente? Seria o fato de serem federalizadas? Um dos motivos é que mantém professores de dedicação exclusiva.

Uma grande campanha de conscientização da população, no estilo do "Agro é pop" na TV, "Educação importa", por exemplo, poderia ser o início de uma mobilização, que informasse e motivasse a população a desencadear uma pressão política para colocar a educação no lugar devido de prioridade nacional para se conseguir dar uma grande salto. Educação tem que estar no centro de um projeto de desenvolvimento.


Rubens Ricupero: A vitória de Joe Biden é uma boa notícia para o Brasil? Sim

Haverá espaço para relação construtiva, inclusive em meio ambiente e comércio

Para o Brasil, isto é, para o povo brasileiro, é bom. Para o governo Jair Bolsonaro, não tanto. Os leitores talvez não se lembrem da frase do general Juracy Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Pois bem, neste caso ele teria razão.

Basta pensar no aquecimento global. Se não fizer mais nada além de voltar ao Acordo do Clima de Paris, Joe Biden já terá feito um bem imenso ao mundo e, portanto, à parte que nos cabe no planeta comum.

Para o nosso povo, abandonado pelo próprio governo diante da Covid-19, é ótimo que o novo presidente tenha a intenção de prestigiar a ciência na luta contra a pandemia, regressar à Organização Mundial de Saúde e liderar o esforço mundial por uma vacina.

Também será excelente para os amantes da liberdade que Biden convoque, como anunciou, uma Cúpula em favor da Democracia para discutir o aumento do autoritarismo, a luta anticorrupção e os direitos humanos. Quem não vai gostar são os que defendem torturadores, os nostálgicos da ditadura e do AI-5, que querem fechar o Congresso e o Supremo. Para os democratas, a notícia traz alento e esperança.

Da mesma forma, só hipócritas obscurantistas lamentarão que o futuro governo dê impulso às políticas de promoção da igualdade da mulher, aceitação das mudanças sociais em comportamento sexual, diversidade e LGBT. Ao contrário, terá o aplauso de todos os que favorecem a emancipação individual e a evolução da consciência moral da humanidade.

Para o povo brasileiro, que partilha com o americano a herança racista da escravidão, a disposição de Biden de superar o racismo estrutural servirá de estímulo para enfrentarmos nossos fantasmas nessa área. O mesmo vale para a desigualdade crescente, incomparavelmente mais grave entre nós.

O interesse do Brasil nem sempre coincide com o do governo Bolsonaro. Exceto para quem crê que é bom para o país deixar a Amazônia e o Pantanal serem incinerados por grileiros, madeireiros ilegais, pecuaristas gananciosos. Ou permitir que garimpeiros envenenem rios e povos indígenas.

Não para se alinhar à agenda americana, e sim para realizar as genuínas aspirações de nosso povo, a eleição de Biden representa oportunidade de mudar, mais que ameaça. O próprio governo Bolsonaro, se tivesse um mínimo de bom senso, deveria aproveitar a ocasião para repensar a política externa e as orientações em meio ambiente e direitos humanos.

Da parte do democrata Biden, tudo indica que haverá espaço para relação construtiva com o Brasil, inclusive em meio ambiente e comércio. Do lado do governo brasileiro, os sinais não são animadores. A ameaça de recorrer à pólvora para rebater declarações sobre a Amazônia não vai tirar o sono do Pentágono. Mas revela a tamanha imaturidade de Bolsonaro, que provocará no exterior misto de espanto e galhofa.

A eleição de Biden completa o cerco de isolamento internacional de um governo já com péssimas relações com França, Alemanha, União Europeia, China e boa parte da América Latina. Diante disso, Bolsonaro tem duas saídas possíveis. Ou responde com equilíbrio e sensatez, começando por cumprir o dever de civilidade de felicitar o vitorioso na disputa americana, ou age como o fanático que redobra a aposta no erro.

Seja qual for a escolha do governo, o misto de alegria e alívio que saudou a vitória de Biden traz esperança de que se aproxima do fim a hora do poder das trevas nos Estados Unidos e, oxalá, no domínio do seu imitador nos trópicos. E isso é o melhor de tudo para o Brasil!

*Rubens Ricupero, diplomata, ex-embaixador do Brasil em Washington (1991-1993) e Roma (1995); ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (1993-1994 e 1994, governo Itamar)


Ascânio Seleme: Bolsonaro criminoso

Presidente mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte

A contabilidade passava de uma dúzia de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República quando ele deu uma freada por orientação do Centrão. Não porque não tivesse outras barbaridades para dizer, mais ameaças a proferir, novos crimes para cometer. Mas sim porque precisava dar uma envernizada no seu perfil para que o agrupamento mais fisiológico do Congresso pudesse dele se aproximar. Há dois dias, o escorpião venenoso não conseguiu se conter e voltou a seu estado natural de irresponsável maior da República. Desta vez, o alvo do seu atentado criminoso não foi o Congresso, o Supremo ou a democracia. Agora, ele preferiu golpear a saúde do povo brasileiro.

Além de festejar um hipotético fracasso da vacina que está sendo testada pelo Instituto Butantan, órgão do governo de São Paulo, onde identifica um inimigo na figura do governador, disse em rede social que ganhava mais uma sobre João Doria. E mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte, invalidez e anomalias. Foi um crime contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo que ocupa, previsto na lei do impeachment. Mas deste mato não sai cachorro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, único com poder para dar andamento a pedidos de afastamento do presidente, já sentou em cima de mais de 30. Se um novo ocorrer, vai ser aquecido sob a mesma pilha gorda.

Talvez o Tribunal de Contas da União possa identificar um outro crime, de interferência indevida do presidente numa agência reguladora, se tocar para valer a investigação solicitada pelo Ministério Público. Difícil não enxergar essa interferência diante do que se viu antes e logo depois da decisão da Anvisa de suspender as pesquisas do Butantan. Para começar, a nota noturna da Anvisa suspendendo os testes já apontava o caminho pelo qual transitaria o capitão logo em seguida. Ao afirmar que houve um evento adverso grave, e mesmo já sabendo se tratar de possível suicídio, listou o que podem ser esses eventos (morte, invalidez, anomalias), dando munição a Bolsonaro.

Todos os erros cometidos pela Anvisa parecem deliberados. 1) A agência não esperou nem sequer o amanhecer para tomar a decisão de suspender a pesquisa. 2) A Anvisa não aceitou a ponderação do Butantan sobre a morte do homem que testara a vacina por não a considerar formal (queria um boletim de ocorrência da polícia), ao contrário do Comitê Internacional Independente e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. 3) O contra-almirante Antônio Barra Torres, presidente da agência, disse não ser parceiro do Butantan. Patético. Os responsáveis pelos testes mereciam confiança, e o BO poderia se ver depois; claro que a Anvisa poderia esperar mais detalhes antes de suspender os testes. E, evidentemente, todos deveriam estar do mesmo lado contra a pandemia.

O contra-almirante e os dois subordinados que deram entrevista explicando a decisão apressada foram instrumentos do presidente. O que Bolsonaro queria era ter um ganho político sobre Doria na reta final da eleição municipal. Seu candidato a prefeito de São Paulo, Celso Russomanno, vai tão mal que talvez nem chegue ao segundo turno. Doria, por sua vez, torce para que ele avance e seja o adversário de Bruno Covas, para dar uma coça em Bolsonaro. As explicações da trinca da Anvisa, Barra Torres, Alessandra Bastos Soares e Gustavo Mendes, na entrevista de terça-feira foram ridículas. Mesmo sabendo desde a véspera que a morte não se devia à vacina, insistiram que o aspecto formal era inevitável. Não era. Tanto que recuaram 24 horas depois.

Sabia-se desde sempre que o contra-almirante era um bolsonarista sem máscaras. Nos bastidores da Anvisa comenta-se que o mandato da diretora Alessandra Bastos Soares vence em abril do ano que vem, e ela busca sua recondução para o cargo. Talvez isso explique a condescendência com decisão baseada em premissas tão frágeis. Sobre o papel do técnico Gustavo Mendes, que disse na entrevista estar falando em nome de todos os seus colegas sem apresentar procuração, sabe-se na Anvisa que ele é daqueles quadros em que os chefes podem sempre confiar.


Folha de S. Paulo: Centrão diz que é cedo para tratar de chapa Huck-Moro

Líderes parlamentares avaliam como ruim o 'timing' para encontro entre apresentador e ex-ministro

Danielle Brant e Renato Machado, da Folha de S. Paulo

construção de uma chapa à Presidência que reúna o apresentador Luciano Huck e o ex-ministro Sergio Moro é vista como embrionária por líderes de partidos de centro (entre eles siglas que formam o chamado centrão), para quem a dupla ainda precisaria de apoio no Congresso para se tornar viável.

Uma aliança entre os dois forjada para se contrapor ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 2022 começou a tomar forma após um almoço entre Huck e o ex-juiz da Lava Jato em Curitiba no final de outubro, como revelado pela Folha.

Logo que o encontro se tornou público, no entanto, a articulação foi bombardeada por importantes nomes de partidos do centro e centro-direita, entre eles o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que exerce forte influência na sigla.

À colunista Mônica Bergamo, da Folha, Maia afirmou na segunda-feira (9) que Moro era de extrema direita e descartou qualquer apoio a uma chapa composta pelo ex-juiz.

No mesmo dia, o deputado e o apresentador almoçaram no Rio de Janeiro. Segundo o colunista Lauro Jardim, Huck teria dito que sua "turma" era a do presidente da Câmara e lembrado que já se reuniu com outros nomes além de Moro, como os governadores do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB).

Por enquanto, Maia é voz praticamente isolada nas críticas públicas a uma chapa formada por Huck e por Moro.

Líderes e presidentes de partidos de centro no Congresso adotam cautela e avaliam que ainda é cedo para fazer qualquer análise sobre uma eventual aliança de ambos para se contrapor à tentativa de reeleição de Bolsonaro.

"Acho muito cedo para dizer se terão ou não nosso apoio", afirma o líder do Solidariedade na Câmara, deputado Zé Silva (MG). "Prestígio e fama não asseguram competência para fazer gestão pública com eficiência e eficácia."

O Solidariedade é um dos partidos que compõem o centrão, junto de PP, PL e Republicanos.

O senador Esperidião Amin (PP-SC), líder do bloco formado por senadores de PP, Republicanos e MDB, afirmou que a chapa Moro-Huck ainda se mostra uma "especulação sem qualquer consequência" e não "um projeto".

"Nós estamos em uma pandemia. Temos um período eleitoral que vai até o dia 29. Então eu nem tenho coragem de discutir a sucessão no Senado quando me perguntam, quanto mais 2022", disse.

"Não estou criticando quem queira discutir. [Mas] O Huck almoçar com o Rodrigo Maia. O Rodrigo Maia deveria estar preocupado em organizar a comissão do Orçamento", afirmou.

Congressistas também afirmaram que o "timing" do encontro entre Huck e Moro demonstra uma falta de conhecimento da política nacional, que avaliam ser um ponto negativo para a aliança.

Um senador, que não quis se identificar, disse que os dois foram ingênuos se consideraram que o encontro não seria descoberto ou então, caso soubessem que seria divulgado pela mídia, escolheram o momento errado para se reunirem, semanas antes do primeiro turno das eleições municipais —com a atenção de políticos e do público voltada para esse tema.

Além disso, nos bastidores, a interpretação é que, se quiserem se tornar uma chapa viável, ambos precisam buscar apoios partidários e evitar incorrer no que é visto como um equívoco de Bolsonaro: vencer a eleição sem uma base consolidada e, agora, depender do apoio de partidos do centrão para aprovar projetos de interesse do governo no Congresso.

Bolsonaro se elegeu pelo PSL, mas rompeu com o partido em novembro de 2019, em uma decisão que rachou a legenda e diluiu a rede de congressistas que respaldam os textos do Executivo.

Diante da ameaça de processos de impeachment, precisou recorrer à política do "toma lá dá cá" e oferecer cargos ao centrão —formado por partidos como PP, PL e Republicanos— em troca de votos.

"Eu sempre acho que, por trás de uma candidatura, tem que ter uma base partidária forte de sustentação, para não acontecer o que aconteceu com o Bolsonaro, que chega ao poder, criticou a vida inteira a política velha, a política do centrão, e hoje é ícone do centrão", disse o senador Otto Alencar (PSD-BA), líder da legenda.

Para não correrem risco de ficar sem base no Congresso, uma aliança entre Moro e Huck precisaria do apoio não só do centrão, mas de partidos com grandes bancadas, como MDB e DEM —que somam 63 deputados.

Os congressistas avaliam que alianças apenas eleitorais pouco contribuiriam para criar uma situação de governabilidade.

Por isso consideram que a época de "dois outsiders" na mesma chapa tenha se encerrado com a eleição de Bolsonaro. Acham mais viável uma chapa com uma figura de alta popularidade fora da política compondo com algum político de partido estabelecido.

A viabilidade da chapa também esbarra em alguns outros entraves.

Um deles é a interpretação de que Huck e Moro não representariam uma candidatura de centro, como argumentou o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), presidenciável que terminou em terceiro lugar na eleição de 2018.

"No dia em que [o governador de São Paulo, João] Doria, Huck e Moro forem de centro, eu sou de ultraesquerda, o que eu nunca fui", disse na segunda-feira.

O senador Otto Alencar também tem posição parecida, afirmando que Moro é uma figura política de direita.

"Se o Moro foi ser ministro de Bolsonaro é porque ele concorda com o Bolsonaro. Se a demissão mudou o juízo dele, aí é outra história", provocou o senador.

"Na minha opinião, ele [Moro] não tem nada que ver com centro. Eu, por exemplo, defendo uma posição de centro-social, centro-esquerda, uma posição bem organizada de finanças e trabalho para conter o déficit fiscal e investir tudo o que puder na educação, na saúde e ação social", disse Alencar.

Em setores do Congresso, o discurso anticorrupção de Moro abre portas, enquanto há dúvidas sobre quais pautas seriam prioritárias para Huck —para alguns, o apresentador é pouco liberal e inclinado a uma agenda social.

Mas o ex-ministro também tem rejeição mais forte, principalmente por deputados que criticam a forma como conduziu a Lava Jato.

A aproximação de Huck e Moro seria, na leitura de congressistas, um balão de ensaio para testar a recepção aos dois nomes. Nesse contexto, alguns interpretam a decisão de Huck de almoçar com Maia logo após as críticas do deputado ao ex-ministro como uma tentativa de reorganizar o apoio.

Assim, em vez de compor chapa com o ex-juiz, Huck poderia se filiar ao DEM. Isso abriria também caminho para uma aliança com Doria, o que eliminaria um dos argumentos que poderiam ser usados contra o discurso de que se trata de alternativa ao governo: o de que Moro, afinal, fez parte do governo Bolsonaro até abril deste ano.


Cristiano Romero: Paulo Guedes, liberal?

Ministro quer a volta da CPMF, o tributo mais antiliberal

Paulo Guedes chegou a Brasília com credencial de liberal formado pela Escola de Chicago. Na prática, o que se vê não se parece nada com o liberalismo de Milton Friedman, maior expoente daquela escola. Com a economia rodando à taxa básica de juros (Selic) em 2% ao ano, o ministro quer recriar a CPMF, tributo que funciona como uma espécie de confisco e do qual o país se viu livre em 2007, por decisão soberana do Congresso.

Por que confisco? Ora, porque a CPMF não taxa diretamente o ganho, a renda, o lucro, o valor agregado nem mesmo o consumo ou a produção, mas, sim, a passagem do dinheiro por uma conta bancária. Basta o sujeito depositar seu dinheiro num banco e já tem que pagar o tributo. É um imposto, na verdade, sobre dinheiro. E, mesmo quem não tem conta, paga indiretamente porque tudo o que compra tem o custo da CPMF embutido no valor.

A CPMF é um tributo regressivo, injusto, pois ricos e pobres pagam proporcionalmente a mesma coisa. Sua incidência em cascata onera toda a cadeia produtiva e, portanto, os preços. Onera, ainda, a formação da taxa de juros.

No momento em que o Banco Central (BC) aproveita a maré de juros historicamente baixos para estimular a competição no sistema de crédito, a CPFM seria mais uma cunha fiscal sobre a intermediação financeira, portanto, um contrassenso.

“Do ponto de vista econômico, a incidência de impostos sobre operações de captação de recursos e concessão de empréstimos constitui uma distorção introduzida pelo governo na livre formação de um preço, a taxa de juros. Por representar um ônus para o tomador, mas não um bônus para o poupador, a tributação desestimula tanto o investimento quanto a poupança”, dizem, no estudo “A Cunha Fiscal sobre a Intermediação Financeira”, Renato Fragelli, do Ibre-FGV, e Sérgio Mikio Koyama, do BC. “Trata-se, portanto, de um entrave à boa alocação inter-temporal de recursos na economia, com consequências de longo prazo sobre o crescimento econômico.”

A cunha fiscal imposta pela CPMF não é sobre o spread bancário, isto é, sobre a diferença entre a taxa de juros dos empréstimos e o custo de captação dos bancos. A CPMF é paga diretamente por quem toma um financiamento e também pelo investidor que compra um CDB emitido pelos bancos, logo, o tributo não está contido no spread.

Observe-se que a margem de lucro dos bancos em operações de crédito está dentro do spread, logo, a CPMF não alcança a rentabilidade das instituições financeiras, como apregoam alguns defensores desse tributo.

No estudo que fizeram para o Banco Central, Fragelli e Koyama identificaram sete impostos recolhidos ao longo da intermediação de recursos entre um poupador e um tomador de empréstimo bancário - isto, sem falar do recolhimento compulsório sobre depósitos à vista, prazo e poupança - hoje, respectivamente, 21%, 17% e 20%, percentuais bem menores do que os exigidos no passado.

“No grupo de impostos que tipicamente constituem uma distorção da atual estrutura tributária estão o PIS, Cofins e CPMF. Trata-se de tributos que não têm relação direta com o valor adicionado das empresas, pois, incidem (em cascata) sobre o faturamento das empresas. No caso da CPMF, a distorção é particularmente grave, pois ela só se faz presente quando a troca entre empresas dá origem a saques de conta corrente”, explicam os dois especialistas no estudo.

O liberalismo do ministro Paulo Guedes entorta também em temas como “o que fazer com o dinheiro levantado na venda de estatais”. Num país em desenvolvimento cuja dívida pública caminha para o equivalente a 100% do Produto Interno Bruto (PIB), Guedes defendeu que o dinheiro arrecadado com privatizações vá para o custeio de programas sociais. A ideia não era ruim antes apenas porque saía da cabeça de economistas de esquerda durante campanhas eleitorais.

Nota do redator: no primeiro mandato (2003-2006), o presidente Lula, entre outras medidas fiscais austeras, aumentou o superávit primário das contas públicas em 0,5% do PIB (num esforço fiscal nunca feito antes na história deste país); antecipou o pagamento da dívida com o FMI - nada mal para quem apregoava a realização de auditoria na dívida e suspensão de seu pagamento -, e aprovou mudanças na Constituição de 1988 para instituir a contribuição de aposentados do setor público à previdência e igualar as regras de aposentadoria do funcionalismo público federal com as do trabalhadores do setor privado.

Ora, a dívida existe e é crescente porque o gasto público não cabe dentro do orçamento, isto é, porque a despesa supera a arrecadação de tributos e impostos. Daí, a necessidade de ajuste fiscal. Digamos que todas as estatais fossem vendidas, e os recursos obtidos fossem destinados ao pagamento de programas sociais. O dinheiro seria suficiente para bancar no máximo um ano, se tanto, dessas despesas. Depois disso, o governo voltaria a se endividar.

Com a dívida voltando a crescer, a despesa com juros também cresce e o custo disso - a taxa de juros exigida pelo mercado para continuar financiando o Tesouro - tende a aumentar exponencialmente. O déficit público escala e, aí, não se tenha dúvida, Brasília, premida a reequilibrar o orçamento, cortará verbas onde é mais fácil fazer isso - dos programas sociais, afinal, pobre - a maioria da população - não tem representante no centro do poder.

De onde Guedes e sua equipe propuseram tirar dinheiro para custear o “Renda Brasil”? Do congelamento, por dois anos, das aposentadorias pagas pelo INSS a 35 milhões de brasileiros, sendo que 70% desse contingente recebe um salário mínimo (R$ 1.045,00) por mês.

A propósito, dinheiro de que privatizações? Desde que assumiu embalado por um discurso liberalizante nunca visto por aqui desde a chegada do navegador espanhol Vicente Pinzón à “Praia do Paraíso” (hoje, Cabo de Santo Agostinho, litoral pernambucano) em 1499, antes, portanto, do português Pedro Álvares Cabral, o atual governo não vendeu uma estatal sequer, para deleite das corporações, de seus fundos de pensão e das empresas privadas que lucram com a ineficiência do Estado.

Ora, a dívida existe e é crescente porque o gasto público não cabe dentro do orçamento, isto é, porque a despesa supera a arrecadação de tributos e impostos. Digamos que todas as estatais fossem vendidas e os recursos obtidos fossem destinados ao pagamento de programas sociais. O dinheiro seria suficiente para bancar no máximo um ano, se tanto, dessas despesas. Depois disso, o governo voltaria a se endividar. A propósito, que privatizações?


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro vai enfrentar furacão de problemas quando voltar das férias

Eleições nos EUA e aqui permitem que governo ignore o furacão de problemas que virá

Faz semanas, Jair Bolsonaro está em férias do seu desgoverno. Quer dizer, não tem sido nem ao menos obrigado a deixar de tomar decisões sobre assuntos cruciais ou ignorá-los, que é o seu padrão habitual de conduta.

O mundo está distraído pela situação horrorosa dos Estados Unidos e os parlamentares brasileiros estão ocupados com eleições municipais e de conchavos para a escolha do comando do Congresso em 2021 e de novos ministros. Nas votações que ainda acontecem, deputados e senadores fazem mais ou menos o que querem.

A folga vai acabar. A distração maior pode passar, caso os Estados Unidos não entrem em convulsão. Daqui a dois domingos, no dia 15, acaba a eleição municipal na maior parte do país, embora restem algumas segundas rodadas.

Então, haverá problemas a resolver, como o Orçamento de 2021; como manter (ou não) o teto de gastos, o auxílio para os muitos pobres extras que a calamidade econômica e sanitária deixará, para nem falar de uma política racional de vacinação, se houver vacina (mais improvável ainda é que haja razão). Há mais, mas passemos, por ora.

Nesta semana, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), disse o seguinte: “Neste momento pós-pandemia, o que vai ficar: uma dívida muito alta, uma pressão muito grande, um desemprego batendo recorde, a inflação voltando com força, o Orçamento público uma incógnita para todos nós. A gente não sabe o que o governo quer, o que o governo vai propor”.

Certo ou não, é o que Maia pensa e ouve de economistas e empresários maiores e mais preocupados com a desordem do governo.

Enquanto isso, Bolsonaro viaja, como de costume. No interior de Alagoas, elogiou Fernando Collor, outra amizade presidencial que agrega ao seu círculo, depois de Michel Temer. Do que tratou nesse minicomício? De paranoias e mistificações. Diz que vai apoiar uma emenda constitucional para obrigar a impressão de votos nas eleições; insinua que há uma conspiração no mundo com o objetivo de roubar as terras do Brasil.

No mais tardar a partir de dezembro, e já será muito tarde, Bolsonaro teria de tomar decisões duras: auxílio emergencial ou renda básica; algum meio de manter o teto de gastos e ao mesmo tempo arrumar recursos para que o governo ainda funcione, o que vai exigir algum conflito com servidores, por exemplo.

Pode também deixar o teto de gastos cair, sem mais, e partir para a ignorância, com tumulto financeiro e ruína progressiva. Pode ainda simplesmente fazer o arrocho mais cru, apaziguar os ânimos nos mercados, não fazer mais nada e tentar manter a popularidade restante no gogó e no delírio, com votos de papel e outras sandices e conversas lunáticas. Como se vê, as alternativas não soam bem.

Supondo que saia das suas férias eternas e tome alguma decisão mínima de governo, teria ainda de lidar com “reformas”. Nos subterrâneos, a tributária está se tornando uma disputa cada vez mais amarga entre setores empresariais, por exemplo, e o governo não tem plano algum por ora a não ser o imposto morto-vivo, a CPMF, segundo seu próprio criador, Paulo Guedes.

A política internacional (eleição nos EUA) pode causar ainda mais problema, assim como a polícia nacional (acusação de roubança contra Flávio Bolsonaro). Por ruins que sejam, a curto prazo são questões menores perto daquelas que Bolsonaro precisará, em tese, enfrentar e que envolvem economia, gasto público, a fome de milhões e seu prestígio. Mesmo que fizer o melhor possível (hum), vai sair queimado.


Bruno Boghossian: Bolsonaro tem peso nulo ou negativo nas eleições municipais até aqui

Agenda conservadora e exploração da máquina do governo não deram resultado para apadrinhados

Há um mês, Jair Bolsonaro desembarcou em Congonhas para uma sessão de fotos com Celso Russomanno (Republicanos), que liderava a corrida pela Prefeitura de São Paulo. O presidente declarou apoio ao "amigo de velha data", e os dois insinuaram que o candidato teria acesso privilegiado ao Palácio do Planalto se vencesse a disputa.

A aliança se mostrou desastrosa para a dupla por enquanto. Russomanno perdeu quase metade de seus pontos nas pesquisas de intenção de voto e viu dobrar seu índice de rejeição. Já Bolsonaro, que pretendia evitar desgastes nas eleições deste ano, ficou associado a um candidato que desabou da liderança e, agora, pode ficar fora do segundo turno.

O derretimento de Russomanno não é um efeito isolado do apoio de Bolsonaro —embora a avaliação do governo na capital paulista seja pior do que na média nacional. Ainda assim, a última rodada de pesquisas do Datafolha mostra que o presidente teve um peso nulo ou negativo nas disputas municipais até aqui.

No Rio, Bolsonaro não conseguiu impulsionar Marcelo Crivella (Republicanos). Na semana passada, o presidente deu uma declaração de apoio encabulada: “Se não quiser votar nele, fique tranquilo”. Depois, mergulhou na campanha e fez uma gravação com o candidato. Resultado: o prefeito ficou estagnado nas pesquisas, com rejeição acima de 50%.

O presidente pode até argumentar que entrou nas duas campanhas a contragosto, mas a história é diferente em Belo Horizonte. Por livre e espontânea vontade, Bolsonaro se aliou ao azarão Bruno Engler (PRTB), com quem tomou café na terça-feira (3). Mesmo com ajuda oficial, o candidato não passa dos 4%.

O desempenho de Engler expõe o fracasso de dois pontos da estratégia eleitoral do presidente: o apelo ao conservadorismo e a exploração da máquina do governo. Num vídeo gravado no mês passado, o candidato bateu bumbo para a agenda de direita, e Bolsonaro ofereceu ao apadrinhado uma “linha direta com a Presidência da República”.


Vera Magalhães: Ponte aérea eleitoral

Possível vitória de nomes de centro em São Paulo e no Rio é vista como ensaio para 2022

Há muitos pontos de contato nas corridas eleitorais em São Paulo e no Rio de Janeiro. E eles são importantes variáveis para a montagem das estratégias políticas para 2022. Sim, eu concordo com os cientistas políticos, historiadores e analistas de dados que alertam que as eleições municipais seguem dinâmicas e pautas locais, e não são necessariamente reflexo das eleições nacionais anteriores nem laboratórios para as seguintes.

Mas é impossível analisar alianças e dinâmicas de eleitorado neste ano sem ter como bagagem 2016 e 2018, por diferentes razões. E sim, algumas das decisões de agora terão reflexos para os próximos dois anos.

Hoje, São Paulo e Rio têm rigorosamente a mesma configuração nas pesquisas: candidatos de centro relativamente isolados na liderança (Bruno Covas na capital paulista e Eduardo Paes na fluminense); um candidato do bolsonarismo tentando se credenciar para o segundo turno, mas enfrentando dificuldades, e nomes da esquerda pulverizada disputando entre si e podendo ficar fora da disputa final justamente por essa “canibalização”.

Covas é tucano desde sempre. Vem de uma família política e adotou um discurso de centro e de defesa da política depois da debacle da mesma em 2018. Paes já percorreu todo o abecedário político e é um dos políticos mais pragmáticos de sua geração. Tem usado a derrota surpreendente que enfrentou em 2018 para jogar um “eu te disse” na cara do eleitor arrependido.

Os dois se prepararam para enfrentar expoentes da direita no segundo turno. Nas duas cidades, a possível vitória de nomes de um centro reabilitado contra a direita é vista como um laboratório importante para uma frente mais ampla em 2022, inclusive como ensaio de aproximação com siglas de centro-esquerda e de esquerda.

A dificuldade de os bolsonaristas Celso Russomanno e Marcelo Crivella irem ao segundo turno é de certo modo surpreendente, e pode fazer os líderes nas pesquisas terem de redirecionar o discurso no segundo turno, para atrair o eleitorado de direita caso eles sucumbam. E isso adiaria as conversas para a tal frente ampla.

As agruras de Russomanno e Crivella evidenciam: 1) o caráter frágil da tal recuperação da popularidade do presidente, 2) o risco do discurso e da conduta negacionistas em plena pandemia fora das redes sociais, e 3) o refluxo da onda de se eleger completos outsiders para funções administrativas importantes. Por fim, paulistanos e cariocas assistem à mesma diáspora de candidaturas de esquerda, num sinal de que também nesse campo não será simples a união de esforços contra Bolsonaro em 2022.

São pelo menos dois os candidatos ditos progressistas que avançam em São Paulo: Guilherme Boulos, do PSOL, e Márcio França, do PSB, que parece ter acertado a previsão de que repetiria o sprint final de 2018, na disputa ao governo do Estado. O problema é que o crescimento simultâneo deles pode ajudar Russomanno a prevalecer por pouco. A disputa tende a ficar embolada até o final. No Rio, os votos de Benedita da Silva (PT) podem ser os que faltarão para Marta Rocha (PDT) se habilitar a tirar a vaga do prefeito na final. O uso sem moderação das máquinas da prefeitura e da igreja pode levar um Crivella mesmo alquebrado ao segundo turno.

Esses todos são fenômenos que transcendem a pauta e a dinâmica municipais, ainda que a decisão de voto os leve em conta. Os aprendizados que caciques e partidos tirarão dos resultados não só nessas, mas em várias capitais emblemáticas (Fortaleza é um case nacional, também) indicará se o Brasil de fato começou a sair do transe lavajatista e revanchista com que foi às urnas em 2018 para caminhar para algo mais racional de agora em diante.


Michel Temer: Nova Constituição?

Não temos nenhuma desestruturação justificadora de uma nova Constituinte

O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, sempre se revelou extraordinário administrador, tanto que conduziu com perfeição o Ministério da Saúde no meu governo. É também um líder político que sempre faz propostas muito adequadas.

Nestes últimos dias, propôs a hipótese de nova Constituinte. Instado, pronuncio-me sobre o tema.

Primeiro é preciso saber exata e precisamente o que é uma Constituinte. Direi trivialidades que, na verdade, devem ser sempre repetidas. A Constituinte é a face visível de um Estado que será. Diferentemente, a Constituição é a face visível do que o Estado é. Indispensável a pergunta: quando se justifica uma Constituinte? Quando há uma ruptura do sistema jurídico constitucional.

Será que neste momento temos uma ruptura desse sistema ou podemos seguir adiante com a Constituição que teve a sabedoria de amalgamar os chamados direitos liberais com os direitos sociais? Veja-se, só para exemplificar, que o direito à livre-iniciativa, o prestigiamento da propriedade, os direitos individuais em capítulo que é o maior que se conhece no mundo, com 78 incisos no seu artigo 5.º, de maneira exemplificativa, já que o parágrafo 1.º do mesmo artigo estabelece que a enumeração dos direitos ali listados não exclui a invocação de outros derivados dos princípios constitucionais e dos tratados de direitos aprovados pelo Brasil. Portanto, os direitos liberais aí estão.

Por sua vez, há um capítulo com direitos sociais que trouxe para o texto constitucional, por exemplo, o direito dos trabalhadores.

O que antes se verificava apenas na legislação infraconstitucional o constituinte de 1988 trouxe para a Lei Magna. De fora parte direitos como aqueles em que a Constituição estabelece o direito à educação e à saúde como dever do Estado. Quando a Constituição garante o direito à alimentação, o direito à moradia, o que visa é a alimentar as pessoas e dar teto àqueles que têm dificuldades para obtê-lo.

Com isso quero ressaltar que a sabedoria do constituinte de 1988 tem sido produtiva, pois quando surgem problemas tais dizeres do texto constitucional resolvem essas questões ensejadoras de alguma dificuldade.

Por outro lado, saliento que o proponente da Constituinte pode ter razão relativamente a certos aspectos da Constituição federal.

Mas ela própria, Constituição, estabelece meios e modos para a sua modificação.

Mais uma obviedade: por meio da emenda à Constituição federal, ressalvadas as hipóteses previstas no artigo 60, parágrafo 4.º, da Carta Magna, ou seja, a intocabilidade da Federação, da separação de Poderes, dos direitos individuais e do voto direto secreto e universal com valor igual para todos. Tudo o mais pode ser objeto de emenda à Constituição, ou seja, de uma espécie de plástica que se faça naquela face visível que nós rotulamos como Estado.

Pode-se fazer plásticas na fisionomia do Estado por meio de emendas à Constituição federal. Só num caso extremo em que, digamos assim, o rosto inteiro estivesse desfigurado em razão de um acidente gravíssimo é que se poderia falar na recomposição completa daquela face. Assim também só a desestruturação total é que permitiria uma plástica jurídica completa a justificar novo Estado. Fora daí não há como cogitar-se de uma Constituinte. Portanto, sem embargo de concordarmos com algumas preocupações do deputado Ricardo Barros, o fato é que quando se pensa numa Constituinte, para dizer o óbvio, nunca se sabe o que vai acontecer ali adiante. Se há uma pequena desestruturação ensejadora de algumas modificações no texto constitucional, não é possível levar ao extremo modificando por inteiro a face do Estado. Algumas que o proponente indica podem ser objeto de emenda à Constituição.

Aliás, o que dá a chamada segurança jurídica é precisamente o rigoroso cumprimento da Constituição da República. O que não se pode é negar-lhe a aplicação. Aí, sim, é que há problemas para a governabilidade e, naturalmente, para a tranquilidade institucional do Estado brasileiro.

Não se pode, a esta altura, invocar o que está acontecendo no Chile. Lá, sabemos todos, a Constituição vigente ainda vem dos tempos da ditadura do presidente Pinochet. É muito diferente a situação do Brasil.

Nós saímos de um sistema concentrador e centralizador para uma Carta Constitucional democrática. Portanto, não estamos modificando regras de um eventual sistema centralizador e autoritário. Mas estaríamos modificando regras de um sistema que, no dizer do artigo 1.º da nossa Lei Maior, é o de um Estado Democrático de Direito, em que a ênfase da democracia vem ressaltada em vários pontos desse mesmo texto constitucional.

Assim, se necessária alguma plástica na Constituição federal, que se a faça por meio de emenda, já que não temos nenhuma desestruturação justificadora de uma nova Constituinte.

*Advogado, professor de Direito Constitucional, foi presidente da República


Bruno Boghossian: Bolsonaro escancara sua segunda onda de sabotagem no combate à pandemia

Divergência entre presidente e vice sobre vacina mostra busca por ganhos políticos individuais

Quando começou a atacar as medidas de distanciamento para conter o coronavírus, Jair Bolsonaro ainda tentava disfarçar suas motivações. O presidente queria transferir para seus adversários políticos a responsabilidade pelos efeitos da pandemia, mas fingia estar preocupado só com a economia.

A segunda onda de sabotagem oficial é mais escancarada. Bolsonaro não se esforça mais para manter as aparências. Integrantes do governo reconhecem, sem pudor, que a saúde pública é explorada pelo presidente apenas para alimentar sua rivalidade com outros atores.

Um sincero Hamilton Mourão admitiu o óbvio numa entrevista à revista Veja. “Essa questão da vacina é briga política com o Doria”, afirmou, em referência ao veto de Bolsonaro à compra de doses produzidas em parceria com o governo paulista.

O vice-presidente disse que não veria problema em tomar a vacina chinesa fabricada em São Paulo e que o governo federal pagaria pelo imunizante. “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai”, acrescentou.

Como se sabe, a lógica é um artigo em falta no Palácio do Planalto. Na véspera da publicação da entrevista, Bolsonaro havia descartado essa operação. E ainda debochou do tucano: “Eu, que sou governo, não vou comprar sua vacina também, não. Procura outro para pagar”.

O presidente e o vice raramente falam a mesma língua, mas a divergência específica sobre a compra da vacina mostra quem está em busca de ganhos políticos individuais.

A ação é descarada. Na última semana, o líder do governo na Câmara reconheceu que o objetivo era esvaziar o governador. “O Doria quer carimbar um tucano no vidrinho da vacina. Ele puxou o assunto para a política e agora ele vai ver as consequências disso”, disse Ricardo Barros (PP-PR) à Rádio Gaúcha.

Doria tenta mesmo tirar proveito político de um imunizante que ainda nem foi aprovado, e Bolsonaro trabalha para desacreditar a vacinação em geral. Enquanto isso, o país chega à marca de 160 mil mortos.


Fernando Henrique Cardoso: Tempestade e bonança

Do ponto de vista da economia, o que mais me preocupa é a relativa omissão do governo

A crer no que se sente e se lê nos jornais, pouco a pouco, a situação econômica do país está piorando. Será? Não tenho certeza, mas assim parece. Os sinais pipocam por todos os lados. Quase no final da semana passada os índices da Bolsa, para usar o jargão, “desabaram”, e o dólar foi a quase R$ 6.

No geral os críticos se queixam da morosidade das reformas no Congresso — a administrativa e, principalmente, a tributária — e da falta de compromissos do governo com a lei do “teto dos gastos”. Faltaria um claro compromisso com a austeridade.

De tanto baterem na mesma tecla os críticos que assim procedem, em geral jornalistas, empresários ou os que os seguem, parecem ser pessimistas. Mas é certo: sem compromissos claros do Executivo com o frear gastos e sem ação congressual mirando o futuro, a marcha da economia desanda. E isso parece estar acontecendo: a queda do valor do real e dos índices das Bolsas são indícios de que algo vai mal no reino da Dinamarca…

Além do mais, o Banco Central mantém os juros baixos. A taxa Selic foi definida pelo Copom em 2% para o ano, enquanto as próprias previsões “do mercado” (que nem sempre acerta…) para a inflação já passam de 3%.

É certo que em parte é graças aos juros baixos que muita gente se dispõe a comprar casas e apartamentos ou a fazer reformas. Assim, o mercado imobiliário e o de materiais de construção se mantêm ativos. E estes não são os únicos setores que prosperam: basta olhar as exportações para ver que os produtores agrícolas vão bem, obrigado.

Mas cuidado. Tal bonança provém, sobretudo, do mercado chinês, que compra sem parar nossos produtos do campo. E, ainda assim, há quem tema ver a pandemia nos levar a tratativas para importar e usar vacinas chinesas…. Tomara que os chineses (e não só eles) continuem consumindo nossos produtos e que produzam boas matérias-primas para as nossas vacinas.

Não escrevo isso para diminuir as preocupações com os sinais negativos que a economia apresenta, mas para, ao matizá-los com perspectivas menos sombrias, tentar entender o que ocorre.

Cabe repetir que estamos vivendo um mau momento: além dos sinais não alvissareiros emitidos por alguns setores da economia, existe um clima de pessimismo que deriva de preocupações com a saúde das pessoas. Desde a epidemia da “gripe espanhola”, que assustou a geração de meus pais logo depois da Primeira Grande Guerra, não se via uma crise sanitária de proporções tão amplas como a criada pela periculosidade do coronavírus: ele parece ser mais contagioso do que letal. Mesmo assim, barbas de molho: principalmente, mas sem exclusividade, os velhos (como eu) que se cuidem. As moléstias de que algumas pessoas são portadoras se agravam com o coronavírus e as pode levar à morte. Além do mais, parece que o vírus pode deixar sequelas em quem sobrevive.

As notícias que nos chegam da Europa e dos Estados Unidos sobre o crescimento da doença são alarmantes. Os próximos meses se afiguram sombrios. Quanto mais inerte o governo, mais necessária é a responsabilidade de cada um pelos gestos que nos protegem e protegem os outros. Ninguém pode fazer isso em nosso lugar. Seguir a orientação dos médicos, conversar com as pessoas em quem confiamos, manter a distância, usar as máscaras e lavar as mãos estão a alcance de todos. Não menos imperativo será assegurar o acesso de toda a população a vacinas seguras e eficientes, sem politizações mesquinhas. Se Trump perder a eleição como apontam as pesquisas, o fator determinante terá sido sua gestão desastrosa da pandemia.

Também do ponto de vista da economia, o que mais me preocupa é a relativa omissão do governo. Juros muito baixos e descontrole fiscal podem levar rapidamente à inflação. Só quem cuidou dela no passado sabe o quanto tal “vírus” é danoso: arrasa tudo e liquida em pouco tempo o salário dos pobres, mais do que a capacidade ou o “apetite” para investir, dos mais afortunados.

E é isso o que mais me preocupa. De intriga em intriga, o governo parece ser displicente diante de sinais que não deixam dormir os mais obcecados. Os responsáveis no governo pela economia não entendem o Congresso. Este funciona no ritmo das eleições que se aproximam. E governar implica em apontar caminhos que muitos se obstinam em não aceitar.

É difícil conciliar popularidade com sucesso econômico; a conciliação dos dois fatores nem sempre está nas mãos de quem governa. Mas a História cobrará dos governos o terem sido cúmplices se houver desvios de rumo. É por isso que governar não é fácil e depende tanto da sorte quanto da competência.

No fundo, vivemos e, pior, mansamente, o início de uma crise política. Com o que se preocupa quem tem nas mãos as rédeas do poder? Ao que parece, mais com o que lhe toca diretamente, como a reeleição, ou com os familiares, do que com os sinais de alarme que já estão soando fortes… Deus queira que as minhas sejam preocupações vãs.

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República