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Bernardo Mello Franco: O candidato de Bolsonaro

O candidato de Jair Bolsonaro largou na frente na corrida pela presidência da Câmara. Líder do PP, Arthur Lira se lançou com o apoio do governo e de mais oito partidos. O grupo reúne um número sugestivo de deputados: 171.

Lira tem muito em comum com a família Bolsonaro. Segundo a Procuradoria-Geral da República, ele comandou um esquema de rachadinha na Assembleia Legislativa de Alagoas. As investigações apontaram o desvio de R$ 500 mil por mês para o bolso do parlamentar.

O caso veio à tona na semana passada em reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo”. Numa curiosa coincidência, o juiz Carlos Henrique Pita Duarte absolveu o deputado no mesmo dia em que a notícia foi publicada. O Ministério Público classificou a decisão como um “grave erro judicial” e anunciou que vai recorrer. Lira se diz inocente.

O aliado do Planalto ainda é réu em duas ações no Supremo. Numa delas, é acusado de receber propina para influir na Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU). Na outra, é apontado como integrante de uma quadrilha que saqueava dinheiro da Petrobras.

Com esse currículo, o parlamentar se cacifou para chefiar o centrão. O grupo foi organizado pelo ex-deputado Eduardo Cunha para arrancar cargos e verbas do governo Dilma Rousseff. Depois rompeu com a petista, apoiou o impeachment e ascendeu ao centro do poder com Michel Temer.

Lira e Bolsonaro viraram amigos de infância em abril, quando o líder do PP começava a articular sua candidatura ao comando da Câmara. A aliança foi selada com um vídeo em que o deputado descreve os filhos como “grandes fãs” do presidente. Agora o governo promete milhões de incentivos para quem votar nele.

Antes de subir a rampa, o capitão não ostentava muito apreço pelo centrão. Na campanha de 2018, ele definiu o grupo como “a nata do que há de pior no Brasil”. O general Augusto Heleno classificou a turma como a “materialização da impunidade”. “Se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão”, cantarolou, na convenção do PSL. No samba original, gravado por Bezerra da Silva, o termo “centrão” dá lugar a “ladrão”.


Vera Magalhães: Acossado pela vacina

Bolsonaro enfrenta pressão pelo boicote que promoveu à imunização

As imagens das primeiras pessoas, na maioria idosos sorridentes e esperançosos, sendo vacinadas no Reino Unido emocionaram quem assistiu televisão neste início de semana, e a chegada do tão esperado imunizante trouxe a cobrança que seria inevitável: e nós, e o Brasil?

Nós somos governados por Jair Bolsonaro, e esta é a razão pela qual o País está hoje lá atrás na corrida global pela vacinação contra o novo coronavírus.

O presidente negacionista está sentindo agora o resultado de seu negacionismo desde o início da pandemia: Bolsonaro é hoje um líder acossado pelos cidadãos, ávidos pela vacina, e pelos políticos, que também sentem a cobrança da população de seus Estados. E ela vai crescer e ganhar as ruas.

A imprensa sempre alertou que não adiantava o presidente se comportar como um antivax irresponsável e liberar sua tropa inconsequente, capitaneada por deputados como Bia Kicis, para vomitar sandices nas redes sociais, como aquela segundo a qual vacinas podem alterar o DNA das pessoas. Quando as vacinas começassem a ser ministradas mundo afora a omissão do governo federal ficaria patente.

Mas o que colocou fogo no pavio da pressão sobre Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o titubeante e suarento general Eduardo Pazuello, foi o movimento, também político, do governador de São Paulo, João Doria Jr., de fixar uma data para o início da imunização no Estado com a Coronavac (que ainda não apresentou os estudos de fase 3, que comprovam a eficácia, e até agora não tem aprovação nem da Anvisa nem de agências internacionais).

Diante da data de 25 de janeiro, governadores de todos os Estados foram a Brasília cobrar do ministro um plano que não deixe as demais unidades da federação de fora.

Com sua franqueza crua, o prefeito Alexandre Kalil (PSD), reeleito em primeiro turno em Belo Horizonte, vaticinou em entrevista recente ao Roda Viva que Bolsonaro não teria como negar o acesso dos brasileiros à vacina quando ela chegasse, qualquer que fosse ela, mesmo a “chinesa” Coronavac: “Isso é crime! É impeachment!”.

É o medo do impeachment e de uma queda ainda maior na popularidade que justifica a corrida desengonçada do presidente, de Pazuello e do entorno dantesco por mostrar iniciativa na busca por uma vacina — até agora vale qualquer uma, menos a do Butantan.

Bolsonaro e os filhos, que incentivavam a criminosa pregação antivacina, agora defendem a imunização em suas redes sociais. Sumiram cloroquina, invermectina e outros embustes que eles e até o dublê de ministro da Ciência e astronauta tentaram enfiar goela abaixo de incautos. E com os quais torraram bilhões de dinheiro público em estudos inócuos e compras injustificáveis. Todo esse show de horrores não tem até aqui nenhuma responsabilização judicial.

Mas agora o cerco se fecha. O STF e o Congresso devem adotar medidas nos próximos dias aumentando a pressão sobre o Ministério da Saúde e a Anvisa. Governadores farão fila no Supremo cobrando o dispositivo da “Lei Covid-19” (13.979) para que vacinas sejam validadas pela Anvisa imediatamente, se já tiverem aprovação de uma de quatro grandes agências internacionais.

O prazo de fevereiro para a aprovação das vacinas que o “especialista em logística” (sic) Pazuello deu será encurtado por ele e por Bolsonaro em novas declarações atabalhoadas.

Vacina é uma conquista da civilização. A jornada da Ciência para criar e aprovar em tempo recorde imunizantes com diferentes tecnologias para o novo coronavírus é mais um capítulo emocionante dessa epopeia.

Que no caminho entre o nós e a vacina esteja um governante que tem profundo descaso pela vida é mais um dos infortúnios que o Brasil tem de enfrentar por ter, em 2018, votado majoritariamente em alguém inepto para presidi-lo.


Correio Braziliense: Selic deve permanecer em 2% por mais um ano, dizem economistas

Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central se reúne nesta terça (8/12) e quarta-feira (9), e o consenso do mercado é que a taxa básica de juros será mantida

Israel Medeiros*

O Banco Central (BC) deverá manter a taxa básica de juros (Selic) em 2% pelo menos até o fim do ano. A última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) acontece nesta terça (8/12) e quarta-feira (9), e a dúvida é até quando esse patamar histórico permanecerá. De acordo com analistas de mercado ouvidos pelo Boletim Focus, produzido pelo próprio BC e divulgado na última segunda (7), a expectativa é de que a taxa salte para 3% no segundo semestre de 2021, diante de um cenário de recuperação econômica.

inflação prevista pelos analistas para este ano é de 4,21% — valor acima da meta central inflacionária, que é de 4% para 2020, e maior do que os 3,54% previstos na semana passada no mesmo relatório. Na reta final do ano, a inflação tem avançado, impulsionada pelo alto valor dos alimentos.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em novembro, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) avançou 0,89% e já acumula uma alta de 4,21% nos últimos 12 meses — sendo 3,13%, apenas de janeiro a novembro.

Para José Luis Oreiro, professor de economia da Universidade de Brasília, a alta da inflação não justifica uma alta na taxa de juros, uma vez que os efeitos inflacionários causados pela pandemia foram extraordinários, e a tendência é de que os preços diminuam no primeiro semestre de 2021, quando o desemprego deverá estar elevado.

“A inflação que vimos foi um efeito combinado da desvalorização no câmbio e, também, devido ao aumento do preço dos alimentos. Isso ocorreu por causa da pandemia. Os eventos são não recorrentes e sobre isso a taxa de juros não pode fazer muita coisa. Ela deve permanecer baixa porque, em 2021, o desemprego vai estar alto”, comenta o economista.

Outro fator que contribui para uma inflação mais baixa e manutenção da Selic, segundo Oreiro, é o fim do auxílio emergencial, que deve ocorrer este mês. “Isso aumenta a pressão desinflacionária. Porque se, além do auxílio emergencial, houver alta de juros, haverá uma nova recessão. Em 2021, provavelmente, não haverá mais auxílio. Nesse cenário, não existe nenhuma razão para sugerir uma elevação da taxa de juros”, pontua.

Ele também lembra que a recuperação econômica tem sido satisfatória, ao mencionar o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) no terceiro trimestre de 2020, divulgado pelo IBGE na última semana. O resultado foi 7,7% melhor que o do trimestre anterior.

Próximo a zero

O professor revela, contudo, preocupação com o crescimento econômico brasileiro para o próximo ano. “Para 2020, o resultado vai ser melhor do que a gente esperava, em maio. Graças ao auxílio emergencial, à injeção fiscal, a economia vai ter um desempenho melhor do que o esperado. Mas o ano de 2021 é muito incerto. As pessoas saíram do mercado de trabalho e vão retornar, só que agora com uma redução do ritmo fiscal. Eu estou muito preocupado com a contração fiscal. Não descarto a economia crescer próximo a zero no próximo ano. Acho que no apagar das luzes, vão estender o auxílio emergencial. Porque se não estender, a situação será bem complexa”, avalia.

Otimismo

Ivo Chermont, economista-chefe do Quantitas, crê que a taxa básica de juros deve permanecer intacta durante todo o ano de 2021. Para ele, a inflação registrada no fim deste ano deverá diminuir nos próximos meses. “A gente acredita que a inflação é mais temporária, porque teve essa demanda dos alimentos e pressão de preços de bens. Esse descompasso entre demanda e oferta fez com que os bens subissem de preço. Quando o preço diminui, isso se equilibra e volta ao normal, é natural que a inflação volte para um patamar mais suave. Eu estou relativamente tranquilo com a inflação, e o BC não vai ter pressa de subir os juros. Ainda temos muito desemprego”, afirma.

Abaixo da meta

Já Marcelo Kfoury, coordenador do Centro Macro Brasil da Fundação Getulio Vargas, vê uma tendência de normalização dos juros no segundo semestre de 2021, como previsto pelo Boletim Focus. “É bem provável que isso ocorra. Nos próximos seis meses, o mercado não vê alta nos juros. Mesmo com a inflação de 2020 subindo, para 2021, a projeção ainda está bem abaixo da meta, porque ainda há muita capacidade ociosa na economia. Espera-se que suba para 3% na segunda metade de 2021, mas acho que pode subir até mais, porque está em um nível baixo há muito tempo”, avalia o especialista.

Ele acredita, também, que há espaço para uma queda do dólar, caso uma melhora fiscal ocorra nos próximos meses. “Ano que vem, nós veremos como está a disposição do governo para manter a questão fiscal. Não haverá mais Orçamento de Guerra. Aparentemente, o governo desistiu de criar uma extensão do auxílio emergencial. E há coisas a serem votadas para diminuir riscos, como reforma tributária e o Pacto Federativo”, completa


Pedro Cafardo: Populismo e terrorismo na polarização fiscal

Paulo Guedes é cobrado por não cumprir promessas

Dilma Rousseff deve estar rindo e não à toa. Ela foi acusada em 2015 de cometer estelionato eleitoral, com certa razão, e agora assiste de camarote o pessoal do atual governo provar do mesmo veneno. O ministro da Economia, Paulo Guedes, vem sendo ferozmente criticado por executivos do mercado financeiro por não articular um plano para resolver a questão fiscal.

O próprio presidente do Banco Central fez, dias atrás, cobrança indireta a Guedes, dizendo que o país precisa de um plano que dê clara percepção aos investidores de que está preocupado com a “trajetória da dívida”.

A expressão acima não está entre aspas por acaso. Ela é fundamental no pensamento fiscalista dominante, diariamente repetido por economistas. Considera-se que, com a dívida bruta se aproximando de 100% do PIB, o país enfrentará um período dramático, porque perderá a confiança dos investidores e, sem esses recursos, não terá como reativar a economia.

O economista André Lara Resende, um dos pais do Plano Real, discorda dessa opinião quase consensual no universo financeiro. Ele considera a preocupação com a confiança dos investidores infundada, porque em várias ocasiões na história, principalmente após guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas maiores que o PIB. E mesmo em situações normais, muitos mantêm até hoje esse nível, entre eles Estados Unidos, Itália e Japão.

Lara Resende é impiedoso ao contestar esse terrorismo fiscal, como dizem alguns críticos. “A pergunta mais complicada de ser respondida é: por que hoje no Brasil a opinião dos economistas que aparecem na imprensa, assim como a da própria imprensa, regrediu para o que era a ortodoxia do século XIX na Inglaterra? A chamada ‘Visão do Tesouro’, que sustentava a necessidade de sempre equilibrar as contas públicas, depois duramente criticada por Keynes, deixou de ser levada a sério”, disse o economista em entrevista ao “Estadão”.

O argumento de Lara Resende é que, desde que não siga uma trajetória explosiva, a dívida pública pode crescer e se estabilizar assim que passar a crise. O que pode preocupar é a dívida externa, mas nesse quesito o país vai muito bem, porque tem reservas cambiais de quase 30% do PIB, cerca de US$ 350 bilhões. A insolvência externa, esta sim, quebra um país, daí a célebre frase do ex-ministro Mário Henrique Simonsen: “A inflação aleija, mas o câmbio mata”.

Toda essa divagação sobre a questão fiscal é para dizer que Paulo Guedes, um fiscalista confesso, está agora sendo criticado por inoperância exatamente nessa área. A ponto de se espalhar a ideia de que ele deixou de ser o fiel da balança do governo, segundo dizem reservadamente executivos de bancos e investidores institucionais diariamente ouvidos pelo Valor. Sua eventual saída, portanto, não mais representaria uma ruptura na visão agora dominante no mercado. Mas o mercado quer um substituto que tenha compromisso com a agenda da responsabilidade fiscal, ou “Visão do Tesouro” do século XIX.

No fundo, o mercado faz com a equipe econômica de hoje o mesmo que a oposição fez em 2015 com o governo Dilma. Acusa-o de prometer uma coisa e fazer outra. Durante a campanha para a eleição de 2014, na qual superou Aécio Neves (PSDB) por poucos votos, Dilma garantiu que não haveria arrocho às custas dos mais pobres e que benefícios trabalhistas não seriam reduzidos. “Nem que a vaca tussa”, disse. Reeleita, porém, nem foi preciso a vaca tossir. Ela logo elevou impostos sobre gasolina, operações financeiras e cosméticos. E mudou normas trabalhistas, entre outras, o seguro-desemprego. Também vetou a correção da tabela do Imposto de Renda, o que atingiu em cheio a classe média. A oposição considerou essas medidas estelionato eleitoral, até porque Dilma nomeou para o Ministério da Fazenda um economista fiscalista radical, Joaquim Levy, conhecido como “mão de tesoura”.

Guedes estaria cometendo estelionato eleitoral pela razão oposta. Durante a campanha de Bolsonaro, ele prometeu adotar uma política econômica ultraliberal, com rigorosa austeridade fiscal, corte implacável de gastos, forte contenção de salários, demissão de servidores públicos e privatização de estatais. Seja lá como for, por razões políticas ou pela crise sanitária, Guedes não entregou o prometido nos dois primeiros anos de governo, com exceção da decantada reforma da Previdência. E a continuidade da pandemia indica que o “Posto Ipiranga” não conseguirá entregar muito mais em 2021. Mas o mercado quer sangue.

Estão em choque o populismo e o terrorismo fiscal, ambos altamente danosos.

Mudando completamente de assunto, observe o símbolo acima. Você está cansado de vê-lo por aí, em estacionamentos. Mas, algo o incomoda? Se não, provavelmente não é idoso. O leitor Humberto Viana Guimarães é. Ele leu coluna neste espaço, meses atrás, com o título “Clichês que aborrecem e eufemismos inócuos” e diz ter se divertido muito. E também fez uma observação sobre o preconceito exalado por esse símbolo. O assunto veio à baila porque as denúncias de violência contra idosos aumentaram 72% durante a pandemia. Foram de 62 mil no país de janeiro a setembro.

Guimarães irrita-se com esse símbolo que identifica vagas para idosos em estacionamentos, sempre de um velho curvado, com uma bengala na mão. Diz que tem 70 anos, postura correta, não usa bengala e faz diariamente três horas de exercícios físicos.

Ele tem razão. Um senhor naquelas condições provavelmente não estaria dirigindo um carro e não precisaria da vaga. A placa indica flagrante preconceito.

Tramita há anos no Congresso um projeto de lei que proíbe o uso de símbolo pejorativo de idoso. Mas será que isso precisaria de lei?


João Gabriel de Lima: Piketty, Paulo Guedes e os nomes dos bois

Expurgada das siglas, discussão tributária pode ser fascinante, além de essencial

Talvez não seja o caso de convidar Thomas Piketty, herói da esquerda mundial desde que publicou o livro O Capital no Século XXI, e Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro, para a mesma mesa de bar. Se a mesa for de debates é outra coisa. Em 2014, os dois participaram de um evento na Universidade de São Paulo. Piketty viera ao Brasil lançar o livro que o tornou famoso. Paulo Guedes nem sonhava (pensando bem, sonhava sim) em ser ministro da Economia.

Em um momento do debate, Piketty, naquele inglês charmoso (e às vezes incompreensível) de que só os franceses são capazes, defendeu apaixonadamente a cobrança de um imposto sobre heranças. Em sua vez de falar, Paulo Guedes endossou a tese. O esquerdista e o liberal concordaram mais que discordaram, surpreendendo a plateia.

Lembrei-me do episódio neste momento em que o Brasil discute orçamento e uma reforma tributária. A conversa exclui a maior parte dos cidadãos por causa da linguagem excessivamente técnica, um emaranhado de números e siglas. O debate poderia ser mais inclusivo se os contendores, sem abrir mão da complexidade dos temas, dessem nomes aos bois (o economista Bernard Appy, colunista do Estadão e ex-integrante do governo Lula, é uma exceção por sua clareza. Ele é o personagem do minipodcast da semana).

Os cidadãos de um país entregam parte de seu dinheiro aos governos – o nome disso é imposto. Os políticos decidem onde o dinheiro será utilizado – isso se chama orçamento. Tais políticos são escolhidos pelos cidadãos, de forma a agir de acordo com o pensamento da sociedade – a isso se chama democracia.

Como o dinheiro dos cidadãos não cobre todas as despesas, é necessário fazer escolhas – isso se chama conflito distributivo. Os cidadãos preferem que seu dinheiro seja investido em hospitais ou na JBS de Joesley Batista? Gostariam que os recursos financiassem escolas ou aposentadorias de juízes e desembargadores?

No Brasil, seria pedagógico se esses conflitos ficassem mais claros para todos. Em Portugal, onde moro, os debates sobre orçamento e tributos são assunto recorrente nos telejornais. A isso se chama cidadania.

Se falta dinheiro, seria o caso de cobrar mais dos cidadãos? Se sim, todos concordam – e aí entra a conversa entre Piketty e Paulo Guedes – que os ricos devem pagar mais. Quanto dinheiro, no entanto, seria possível gerar com impostos sobre heranças ou dividendos? No Brasil, tem-se como certo que tal valor resolveria todos os problemas. Falta aquilo que se chama matemática – um ponto fraco em nosso debate público.

Expurgada das siglas, a discussão tributária pode ser fascinante, além de essencial. Se Piketty e Paulo Guedes conseguem conversar sobre o assunto, por que não nós? Estive algumas vezes com Paulo Guedes como jornalista. Anos depois do debate na USP, entrevistei Piketty no palco, no âmbito do projeto “Fronteiras do Pensamento” – e a conversa, ótima, evoluiu para um jantar com seus editores brasileiros.

A impressão que guardo dos dois: Guedes e Piketty adoram debater com quem pensa diferente (mesmo que alguns no governo chamem impropriamente de “detratores” os que discordam, legitimamente, do ministro da Economia). Na falta do debate inteligente, os fracos de argumentação preferem se recolher em bolhas, esquerdas de um lado, direitas do outro. A isso se chama obtusidade – termo difícil de conciliar, na mesma frase, com a palavra democracia.


Miguel Reale Júnior: Cegueira deliberada

Fazer de conta que não há racismo não é daltonismo, é imensa hipocrisia

João Alberto Silveira Freitas, negro de 40 anos, soldador, foi massacrado por dois seguranças, um deles policial militar fazendo bico numa loja do Carrefour em Porto Alegre. Caído ao chão, João foi espancado e esmagado até morrer asfixiado, sob a supervisão de fiscal do supermercado. É tristemente reiterada a violência praticada contra pessoas negras pelas autoridades, no caso, os “seguranças” particulares fardados.

A exclusão do exercício de direitos da população negra, vítima de discriminação ao longo da História, traz à tona a constatação do racismo estrutural vigente no Brasil. Com o racismo instala-se a inferiorização do outro, que se considera diverso, não se lhe atribuindo a possibilidade de estar “entre nós”, gozar dos mesmos direitos. É uma manifestação cultural, fruto do sistema social, político e econômico, presente no comportamento cotidiano produtor da diminuição de determinadas pessoas por causa de sua cor, orientação sexual, etnia, religião.

O racismo em razão da cor da pele é fato inconteste na História e na realidade social e econômica de hoje. Os brancos privilegiados, como eu, têm o dever maior de primeiramente reconhecer a existência do racismo: dizer o contrário perpetua a odiosa discriminação.

Durante séculos, pretos eram tratados como coisas. Segundo Jacob Gorender, o escravizado era propriedade privada de outro indivíduo, trabalhava sob coação física e o produto de seu trabalho pertencia ao dono (A Escravidão Reabilitada, São Paulo: Ática, 1991, pág. 87). Reduzido ficticiamente o homem a objeto de propriedade de outro homem, como dizia Perdigão Malheiros, o escravo era vendido como semovente, alugado, doado, dado em penhor, separado de seus parentes e sua mulher, pois o “escravo não tinha família”, não se casava, apenas se unia, sem exercer pátrio poder sobre seus filhos. A pena de açoites, proibida pela Constituição imperial, era, todavia, prevista no artigo 60 do Código Criminal para os escravos.

Reconhecia-se o direito do senhor de pôr o escravo que perdera a perna a esmolar na rua, ficando, porém, o proprietário com o resultado da caridade prestada ao preto deficiente físico. Autorizava-se que moças pretas fossem a mando do senhor se prostituir, ficando o resultado do comércio carnal em poder do seu dono.

O Tribunal da Relação de Fortaleza, em 24/2/1887, decidiu que “a favor de escravo não tem lugar o recurso de Habeas-corpus por não ser cidadão e ter restrictos os direitos criminaes e civis…”.

O Ministério Público de Pernambuco, em nome da escravizada Honorata, de 13 anos, pessoa miserável, propôs ação penal contra o senhor que a estuprara. A condenação de primeira instância foi revista, pois Honorata era miserável, mas não pessoa.

Essa exclusão de pretos da possibilidade de vida digna, em todos os planos, estendeu-se no tempo, porque a Abolição, sem medidas de auxílio ao escravizado liberto, tornou-o um miserável na sociedade competitiva.

A desvantagem persiste. O Observatório Afro-Brasileiro, com base em estudo do IBGE de 2000, destaca que de todo o rendimento, somando salários, aposentadorias, programas de renda mínima e aplicações financeiras, 74,1% ficam com os brancos. A população negra (pretos e pardos), quase 60% dos brasileiros, tem apenas um quarto dos resultados econômicos (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2011200315.htm).

No estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE, de 2019, há significativa constatação: “Enquanto as mulheres receberam 78,7% do valor dos rendimentos dos homens, em 2018, as pessoas de cor ou raça preta ou parda receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca. O diferencial por cor ou raça é explicado por fatores como segregação ocupacional, menores oportunidades educacionais e recebimento de remunerações inferiores em ocupações semelhantes” (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf). Em suma, as pessoas negras receberam ainda menos do que as já discriminadas mulheres.

São inaceitáveis as declarações do presidente da República e do vice. Disse Bolsonaro: “Somos um povo miscigenado. Brancos, negros e índios edificaram o corpo e espírito de um povo rico e maravilhoso. Foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo. Contudo há quem queira destruí-la. E colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças. Sempre mascarados de lutas por direitos, igualdade ou justiça social. Tudo em busca de poder”. O vice negou veementemente haver racismo no Brasil.

Como diz Sueli Carneiro, o argumento da miscigenação dá suporte ao mito da democracia racial na medida em que o intercurso sexual seria o indicativo de nossa tolerância sexual, omitindo-se o estupro colonial (Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, pág. 55).

Fazer de conta que não há racismo é imensa hipocrisia, especialmente quando se acusa quem aponta a verdade como destruidor da “simpatia” brasileira. Não é daltonismo, é cegueira deliberada.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Vinicius Torres Freire: Ano Novo, PIB melhor e mais miséria

Não haverá auxílios em 2021, economia pode resistir e prestígio de Bolsonaro azedar

As notícias mais importantes em dia de PIB foram a certidão de óbito do auxílio emergencial, que passará desta para a pior em janeiro de 2021, diz o governo, e o enorme aumento da taxa de poupança.

Sem auxílios ou “Renda Brasil”, Jair Bolsonaro fará um arrocho de gastos por inércia, sem recorrer a mudanças constitucionais, por ora (corte de salários de servidores, em saúde e educação, INSS, abono salarial etc.). Assim, mais gente ficará mais pobre ou mais miserável no início do ano que vem. Mas não haveria tumulto financeiro por causa de gambiarras “fura teto”, sururu que prejudicaria a despiora da economia em 2021, embora essa dita tranquilidade também não garanta que a recuperação do crescimento continue.

Os economistas da Secretaria de Política Econômica de Paulo Guedes escreveram o seguinte, em nota sobre o PIB: “A forte recuperação da atividade, do emprego formal e do crédito, aliadas ao aumento da taxa de poupança, pavimentam o caminho para que a economia brasileira continue avançando no primeiro semestre de 2021 sem a necessidade de auxílios governamentais”.

Rodrigo Maia, presidente da Câmara, disse que não votaria extensão do período de calamidade e de auxílio emergencial. Bolsonaro diz de novo que a conversa de “Renda Brasil” está morta. No mais, o Congresso está paralisado, em especial por causa da eleição do comando da Câmara.

Muito economista diz que a poupança acumulada na pandemia pode sustentar o consumo no início de 2021. Não quer dizer que todo mundo tenha algum dinheiro guardado, claro, mas que, no conjunto do país se ganhou mais do que se consumiu desde meados do ano, grosso modo. Essa poupança poderia compensar o fim dos auxílios e a insuficiência da renda do trabalho. Essa é a tese.

Se vai acontecer, são outros novecentos. Pessoas e empresas podem não gastar ainda por cautela (epidemia persistente, medo de desemprego etc.). Não sabemos.

Quanto ao emprego, nem por milagre serão recuperados os 9 milhões de postos de trabalho perdidos na epidemia _quer dizer, não até o final do primeiro trimestre de 2021. As pessoas com menos chance de conseguir trabalho são as que tendem a depender de emprego informal, as que mais sofreram nesta crise (sem carteira assinada, “por conta própria” sem CNPJ, o popular bico).

O arrocho por inércia, sem “reformas”, impediria a deterioração das condições financeiras (juros, dólar etc.). Além disso, a melhora nas condições financeiras no mundo já causou algum alívio por aqui. Vacinas e a solução da crise eleitoral americana ajudaram.

Mais dinheiro vai para os fundos que aplicam em países emergentes. Por tabela, parte dessa dinheirama pinga no Brasil. O dólar ficou mais barato, as taxas de juros no atacadão de dinheiro caíram, a Bolsa está animada.

Logo, não é desarrazoado especular que a economia pode evitar uma recaída no início de 2021, “tudo mais constante”, mesmo que mais gente seja largada na pobreza e na miséria. Sim, é horrível. É o que se pretende demonstrar.

Mesmo na hipótese de despiora branda, o cenário mais comum para 2021, o prestígio do governo pode azedar mais, porém. O desemprego vai crescer até pelo menos o fim do primeiro trimestre. A inflação continuará a subir até meados do ano, chegando a uns 5,5% anuais. Milhões de pessoas que perderão o auxílio estarão entre desamparadas e iradas, mesmo aquelas que ficarão com os R$ 200 mensais médios do Bolsa Família.A economia pode ir “bem”, não ter recaída, mas o povo mais miúdo vai levar um tombo.


Fernando Abrucio: O que fica para 2022 e o que falta ainda jogar

Se algo novo vier, seu sucesso dependerá de entender que houve uma mudança no clima político do país

O jogo político presidencial começou com as eleições de 2020, seja por causa da ascensão de uma nova agenda, seja por suas consequências, pois os atores políticos não serão mais os mesmos na segunda parte do mandato do presidente Bolsonaro, incluindo o próprio. Mas ainda falta definir os jogadores e as táticas que vão vigorar no campeonato nacional do sistema político. Por ora, não dá para saber quem estará efetivamente em campo, nem quem vai liderar e chegar ao segundo turno. Muita coisa pode acontecer. De todo modo, alguns sinais foram dados e quem souber interpretá-los melhor terá vantagens na próxima disputa.

As eleições municipais deixaram, basicamente, três legados que vão influenciar os próximos dois anos da política brasileira, com possíveis impactos sobre a disputa presidencial. O primeiro legado é o mais importante: houve uma mudança no clima de opinião. O humor político que se iniciou em 2016 e teve seu auge em 2018, baseado na visão antipolítica, na proeminência da luta contra a corrupção e no discurso bélico como forma de garantir a segurança pública, perdeu a hegemonia no discurso dos políticos e a efetividade para conseguir votos em 2020.

Em substituição a esse clima de opinião, surgiram pelo menos três grandes referências que ganharam força agora e têm tudo para se estabelecer como tendências majoritárias no caminho para o pleito presidencial. A primeira é uma aversão ao bolsonarismo como forma extremista de se fazer política em todas as suas dimensões; a segunda é a ascensão da questão social como a dominante na agenda pública; e a terceira é a volta da política como algo positivo e necessário para articular grupos, interesses e valores.

Os eleitores demonstraram cansaço do modelo bolsonarista, com seu negacionismo em relação à ciência, sua forma de comunicação baseada em fake news e na polarização, sua lógica de só reclamar dos outros e não apresentar soluções. O clima de ódio como instrumento eleitoral não só perdeu força, como tendeu a ser rechaçado. Esse modelo que Bolsonaro abraçou, ademais, tende a ser bombardeado pelas mudanças no cenário internacional. Será muito difícil ser trumpista em 2022 e ganhar as eleições.

A tendência política mais importante que emergiu das eleições de 2020 é a ascensão da questão social ao centro da agenda política, que dominou a campanha dos vencedores - os de esquerda, os de centro e os de centro-direita. A pandemia foi fundamental neste processo, ao escancarar uma desigualdade imensa, aumentando a consciência do país sobre a centralidade desse tema. Mas a longa estagnação econômica e a organização da sociedade contra os diversos tipos de injustiça também têm um papel relevante na mudança do humor político.

Como não deve haver um crescimento econômico relevante até a eleição presidencial, mantendo-se provavelmente um desemprego alto, o presidente Bolsonaro ficará marcado pela pauperização da população. A emergência da questão social vem, ainda, da eclosão de episódios como os de George Floyd e do assassinato de João Alberto, que modificaram a percepção da temática racial não só de forma difusa, mas também nas elites sociais. E outras manifestações da desigualdade, como a educacional e a de gênero, vão ser cada vez mais abordadas até 2022. E Bolsonaro não se preparou para essa mudança no clima político - na verdade, ele tem uma noção preconceituosa das origens e formas de propagação da desigualdade, como revelam seus vários discursos ao longo da vida.

A transformação do clima de opinião completa-se com a recuperação da política como forma de juntar grupos partidários e sociais em torno de compromissos com a coletividade. Esse ponto se coloca como antípoda da polarização e do ódio entre adversários. É bem provável que a arte do diálogo e, sobretudo, a capacidade de articular os diferentes ganhem força nos próximos dois anos, de tal modo que não se sabe se haverá uma frente ampla ou “frentes progressistas” e de centro contra o bolsonarismo, porém, é nítido que o candidato que conseguir convencer a sociedade que ele representa múltiplos atores e expressar isso no universo de seus apoiadores terá mais chances de vencer a disputa presidencial.

A recuperação da política também envolve construir propostas e candidaturas mais orgânicas com setores sociais e grupos técnicos. A ideia do “salvador da pátria” que tem um “posto Ipiranga” não se sustenta mais, particularmente porque ela não é capaz de dar conta dos problemas do país. As pessoas querem soluções práticas para suas vidas, o que envolve conversas com a sociedade e políticas públicas bem definidas.

Bolsonaro representa o contrário dessa tendência de dar maior organicidade à política. De um lado, ele reduziu a participação social institucionalizada e retirou o papel da Presidência da República de ser uma mesa de diálogo e negociação com os diversos grupos (como FHC e Lula faziam). De outro, houve um enfraquecimento da profissionalização das políticas públicas, seja com a escolha de gente desconhecida e amadora para comandar os setores, seja com o desprezo das evidências cientificas como bússola das decisões governamentais.

A mudança no clima de opinião é o principal legado de 2020 para 2022. No entanto, há outros dois efeitos da eleição municipal que deverão ter um impacto também relevante. Um é o fracasso do bolsonarismo em seu formato atual. A maioria dos candidatos que o presidente apoiou acabou perdendo a disputa, não porque ele seja um pé-frio, mas porque a sua proposta de governo não entregou o que havia prometido e não dá conta dos desafios surgidos no meio do caminho. Ou Bolsonaro muda o seu estilo de governança, colocando as políticas públicas na frente da ideologia, ou então seus próximos dois anos serão muito difíceis, comprometendo a reeleição.

O terceiro e último legado da eleição municipal é a consolidação do isolamento petista. Mais do que uma derrota, o que 2020 revelou é a impossibilidade de o PT ter a mesma hegemonia na esquerda e na sociedade que teve por mais de dez anos. Se Lula conseguir se viabilizar juridicamente como um candidato presidencial, ele ainda terá uma força não desprezível, que pode ficar entre 20% e 30% dos votos. E se o percentual alcançado levar o Partido dos Trabalhadores ao segundo turno, o resto já se sabe: será muito difícil juntar outros para esse projeto político.

Uma saída para o PT seria abdicar, pelo menos por ora, de seu papel hegemônico, procurando construir uma aliança mais ampla. Será que o partido está preparado para isso? Ou melhor, será que Lula, um dos maiores líderes populares da história do país, conseguiria vestir esse figurino? Tal qual foi dito para o caso de Bolsonaro, fica ao petismo o desafio: é mudar ou caminhar para o fracasso em 2022.

Terminada a contagem dos votos, já se quer saber quem será o favorito para 2022 e com quem ele estará aliado. Eis aqui algo que está muito longe de ser definido. Há muito jogo pela frente, com quatro grandes incógnitas. A primeira diz respeito ao desempenho dos governantes nos próximos dois anos. É provável que a segunda parte do mandato de Bolsonaro seja bem mais difícil do que a primeira, com impactos sobre sua popularidade. Mas os outros possíveis concorrentes também apoiam governos no plano subnacional. Doria, por exemplo, tem baixíssimas taxas de aprovação em seu Estado, e é muito cedo para saber se será capaz de mudar esse cenário. Os partidos de centro e centro-direita, os que mais cresceram nas eleições municipais, agora terão a responsabilidade de fornecer soluções à população. Se fracassarem, o povo pode procurar outras alternativas.

De todo modo, o jogo dos governos, nacional e subnacionais, ainda está sendo jogado. Todos os principais partidos e a maioria dos presidenciáveis têm uma vitrine para ser responsabilizada pelos eleitores. Neste sentido, o desempenho das políticas públicas até 2022 vai ser um elemento importante de comparação na definição do voto.

Uma segunda incógnita, e das bem grandes, relaciona-se às alianças entre os partidos. Haverá muita conversa, mas o destino das legendas e de possíveis parcerias só serão definidos mais para o final de 2021, porque os partidos vão esperar até o último minuto para escolher seu caminho, especialmente aqueles que provavelmente não tenham candidato presidencial, mas que serão peças centrais na eleição em termos de vice e, sobretudo, de arranjos para as governadorias e Congresso Nacional.

Um terceiro ponto diz respeito ao papel das principais lideranças políticas. Bolsonaro, Ciro, Doria, Huck e Lula, além dos líderes dos partidos do centro que provavelmente não terão a cabeça da chapa (como ACM Neto e Kassab), serão decisivos. O quanto serão capazes de ultrapassar o seu próprio autointeresse e enxergar um caminho coletivo melhor? Eis a pergunta de um milhão de dólares.

Por fim, muitos fatos e novidades podem mudar o rumo da política nacional. Quem diria que uma pandemia marcaria o mandato de Bolsonaro? Será que não há algum presidenciável que não estamos prestando atenção? Seria ele o prefeito Kalil ou um líder carismático em gestação? O imponderável existe na política e não podemos ignorar os caprichos do destino. Mas se algo novo vier, seu sucesso dependerá de entender que houve uma mudança no clima político do país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro ignora Covid, mas seu governo está confinado na incompetência

Congresso para por disputa política, governo inexiste na Economia, na Saúde e na Educação

A geringonça do “parlamentarismo branco” deu a impressão de que havia algum governo do país em 2019, embora não houvesse governo propriamente dito. A Câmara dos Deputados, sob comando de Rodrigo Maia (DEM), aprovou parte das tais “reformas”, derrubou alguns papeluchos autoritários de Jair Bolsonaro e fez “notas de repúdio”.

A geringonça pifou. Não há mais nem impressão de governo do país, pois o Executivo não faz muito além de destruir ou ser levado pela burocracia estatal.

Não há governo na Economia. Há um clandestino na Educação que levou uma nas fuças na primeira decisão inepta que tomou (decretar a volta das aulas nas universidades federais).

A ordenança de Bolsonaro que toma conta do almoxarifado da Saúde, o general pisado pelo capitão, foi nesta terça-feira ao Congresso dar mais mostras de como trata o repique da epidemia com leviandade. “Ah, ele diz que vai comprar vacina”. Se não dissesse, o que deveria ser feito? Colocar o governo em um camburão, imediatamente?

Desde o final do ano passado, confrontado com a necessidade de tomar decisões sobre o gasto público e reformas divisivas, como a tributária ou privatizações, Bolsonaro para variar fugiu da responsabilidade. Foi para o ralo até a fantasia de programa econômico pregada por esse Ministério da Economia balofo, paquidérmico, incompetente e cúmplice do bolsonarismo.

Para nenhuma surpresa, Bolsonaro está colocando dinamite na máquina emperrada do Congresso. Entrou na disputa pelo comando de Câmara e Senado. Ainda que vença, não terá maiorias estáveis e deixará raivas sentidas. Até lideranças do centrão preteridas pelo capitão já se irritam em público.

Os conflitos dificultam a tramitação de projetos importantes. Até agora não foi votada nem a “prévia” do Orçamento, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), um atraso raro, nessa dimensão, e típico de momentos políticos disfuncionais. É improvável que o Congresso não vote a LDO até o final do ano. Caso não vote, o governo fecha, não pode gastar.

A geringonça entrou em pane em meados deste ano, quando Bolsonaro se viu ameaçado de impeachment e aumentou o risco de que filhos e empresários amigos fossem para a cadeia. Juntou-se ao centrão e montou uma coalizão bastante para evitar que lhe cortassem a cabeça, mas não para muito mais.

O que havia de governo do país, goste-se ou não do que havia, começou a se esfumaçar. Era um governo da Câmara, governo possível e muito limitado de um corpo legislativo no presidencialismo.

Era também um estratagema de contenção de danos maiores, para o que o Congresso teve apoio do Supremo. Mas era uma gambiarra que tolerou a presença de Bolsonaro, movida a jeitinhos ou malversação das capacidades dos Poderes.

A gambiarra continua. Como se sabe, os líderes políticos do Supremo e alguns do Congresso tentam burlar a Constituição a fim de permitir a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Por trás dos panos, dizem que a reeleição permitiria a “contenção” de Bolsonaro (isto é, a tolerância de seus crimes de responsabilidade menores e o controle dos maiores, sob ameaça de impeachment).

A isto chegamos. Bolsonaro é desgoverno e campanha permanente para desacreditar instituições e a sanidade (vide seu plano de, desde já, desmoralizar a honestidade da eleição e negar até declarações oficialmente gravadas, caso da gripezinha). A geringonça pifou e sabe-se lá o que vai ser o Congresso de 2021: pode ser muito pior. A tentativa alegada de remediar o desastre é uma mutreta constitucional.


Ligia Bahia: A PPP pró-pobres e pretos

Instituições de saúde onde pobres e negros só entram como serviçais não devem ser financiadas com dinheiro público

Falso positivo é o registro de um fenômeno que parece ser, mas não é. Quando se trata de testes, refere-se a uma alteração ou doença que não existe. Na política, indica relações causais errôneas, das quais derivam ações supostamente favoráveis. Falsos positivos não são mentiras, expressam limites na coincidência entre essência e aparência. Resultado laboratorial positivo não é necessariamente diagnóstico, depende. Para que um teste seja bom, seu valor preditivo deve ser alto, não basta detectar os positivos; é necessário discernir os negativos.

Atos governamentais são falsos positivos quando proposições supostamente favoráveis à maioria iludem. Como convicções, interesses, crenças e vontades se misturam nas formulações de programas públicos, a identificação de políticas falsas nem sempre é imediata. Enquanto as descaradamente espúrias, como a ameaça de trocar ministro da Saúde quando o número de casos e óbitos aumenta, são perceptíveis, as retóricas do tipo “não tem outra saída” passam como verídicas.

Esse é o caso das Parcerias Público-Privadas (PPPs), anunciadas como solução para reorganizar o SUS. Seus defensores consideram que a substituição de instituições públicas — morosas e vazadas por más práticas — por organizações privadas produtivas e incorruptíveis pouparia os orçamentos governamentais e modernizaria o SUS. PPP é uma denominação propositalmente vaga. Ficam na terra, os contratos do público com o privado, o repasse regular de recursos financeiros do primeiro para o segundo. Vão para o ar, os nunca atingidos choque de gestão, eficiência e probidade.

Como se trata do que já é (nunca faltou no Brasil transferência do fundo público da saúde para o setor privado), a parceria refere-se a um plus, uma ajeitadinha para incluir novos itens nos acordos vigentes. A verificação da veracidade dos efeitos benéficos das PPPs comprovaria uma proporção elevada de falsos positivos. A transferência de verbas e atribuições públicas para o setor privado, sob premissas equivocadas sobre a origem dos problemas de saúde, não reduz desigualdades, embora pareça promissora à expansão do empresariamento.

A Covid-19 revelou com nitidez que a privação e o racismo abreviam a vida. Portanto, o país precisa de uma outra PPP, a Pró-Pobres e Pretos, que compreenda quais são os riscos à saúde e expresse objetivamente a destinação dos recursos públicos para poupar vidas e assegurar longevidade. Instituições de saúde em que pobres e negros mal põem os pés, só entram como serviçais, não devem ser financiadas com orçamentos públicos diretos ou indiretos.

Atender com dignidade, realizar diagnósticos precoces e tratamentos adequados para os segmentos populacionais que moram em favelas e periferias — sem a segregação do hospital para rico ou do SUS — é parâmetro obrigatório para qualquer PPP civilizada. Em 2019, a presença de estudantes de Medicina pretos e pardos ou de famílias de baixa renda era muito maior nas faculdades públicas (36%) do que nas privadas (23%). As cotas sociais e raciais no ensino superior público, isoladamente, são insuficientes para alterar o padrão desigual no acesso à formação médica.

Muitos prefeitos eleitos incluíram PPPs em suas plataformas. O recrudescimento do número de casos e mortes pelo novo coronavírus tem sido encarado como janela de oportunidades. Empresários passaram a falar em “digitalização do SUS” e telemedicina, misturando cartão, prontuário, pacote de informações eletrônicas e consultas remotas. O combo de produtos promete tirar o SUS da indigência analógica. Mas a PPP verdadeira, duradoura e sustentável seria a vinculação do SUS a centros computacionais universitários, financiados por entes públicos e empresas privadas inovadoras.

Sem abordar a redução das disparidades sociais estruturais, as PPPs não se coadunam com o SUS. Trabalhar junto, com a participação ativa dos segmentos populacionais vulneráveis, é desejável, desde que a meta seja a prevenção de sofrimentos evitáveis. Muito difícil dar certo, mas conta a favor ser uma política autêntica. Prioridades imediatas para a saúde são um Natal sem fome e sem mais perdas de familiares e amigos. Uma PPP verdadeiro positivo tem como tarefas a ampliação do auxílio de renda, o apoio, sem vacilação, ao controle da transmissão da pandemia e a reorganização de serviços de saúde para salvar os vivos.


Vera Magalhães: Eleitor rejeita 2º turno de 2018

Bolsonarismo e lulopetismo são as forças mais derrotadas nas eleições municipais

Dois anos depois, o eleitor do Brasil mostra ter virado a página da polarização que levou ao segundo turno entre Jair Bolsonaro e o PT, em 2018. O mapa que sai das urnas não tem, no comando das capitais, nenhum bolsonarista-raiz e nenhum petista, e isso não é pouca coisa, nem é incidental. Tanto o presidente quanto Lula e o PT acharam que bastava manter o script de dois anos atrás que os resultados se repetiriam. O presidente montou seu circo nas redes sociais, liberou a tropa para plantar fake news, fez pouco caso da necessidade de um partido organizado e escolheu a esmo candidatos para chamar de seus em todo o País, com base quase sempre numa identificação ideológica rasa. Usou e abusou de recursos públicos para bombá-los. Foi fragorosamente derrotado.

Lula e o PT acharam que 2020 seria a forra de 2016 e 2018. Finalmente o eleitorado reconheceria que a Lava Jato foi uma farsa, o impeachment de Dilma Rousseff, um golpe, e a condenação e prisão de Lula uma jogada para dar vitória a Bolsonaro, com a cumplicidade da imprensa. Ficou falando sozinho e foi superado por outras legendas de esquerda, que já saem das urnas avisando: não vai dar para querer cantar de galo hegemônico para 2022.

E se esses foram os grandes derrotados, quem vence? Os grandes partidos de centro e centro-direita, aquele mainstream humilhado nas urnas em 2018, curiosamente. DEM, PSDB e PSD tiveram importantes vitórias nas capitais mais relevantes, e o MDB deu uma boa desidratada, mas manteve sua capilaridade nacional e agora vê o Progressistas lhe fazer sombra nas cidades pequenas e médias.

Na direita, a implosão do PSL e o envelhecimento precoce do Novo deram espaço a siglas como o Patriota, que será disputado entre bolsonaristas e MBL. E a esquerda pós-Lula? Viverá discreta corrida entre Ciro Gomes e Guilherme Boulos pelo protagonismo. O primeiro construiu boas alianças com PSB e até o DEM e fincou bandeira no Nordeste. O segundo é a ave mais vistosa da esquerda, case de sucesso em renovação de discurso e identificação com os jovens, tendo mostrado caminho exitoso nas pautas sociais sem precisar passar pano na corrupção petista nem pagar tributo a Lula.


Míriam Leitão: Visão de Mansueto sobre o risco fiscal

Muitos riscos rondam a economia do Brasil, segundo o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Ele acha desejável haver ideias diferentes para resolver o problema das contas públicas, mas defende que haja clareza no diagnóstico. Alerta que não temos margem para errar. O déficit fiscal este ano vai ser de 17% do PIB, incluindo os juros. Quase 70% da dívida está atrelada a juros de curto prazo. Por enquanto, “respiramos”, diz ele, porque a Selic está baixa. Mas a inflação está subindo e os juros futuros refletem a falta de confiança. “Se a gente não der os sinais certos, quando os juros subirem teremos um baita problema”. Ele defende um grande debate nacional sobre as renúncias tributárias, mas é contra novos impostos:

— Já temos carga tributária elevada, o espaço não é o mesmo dos anos 90. O governo federal perdeu dois pontos do PIB de arrecadação em relação ao que era entre 2011 e 2013. É a perda das crises. Não se sabe quanto disso pode ser recuperado. Em um país com carga tão alta, vamos ter que rever renúncias tributárias. Mas para isso tem que começar o debate hoje, como foi na Previdência. Um dos grandes benefícios da Previdência foi que passamos três anos discutindo e isso permitiu a sua aprovação.

Ele avisa que não é fácil eliminar subsídios, por isso será preciso se preparar para esse debate. Cada subsídio, cada renúncia fiscal, tem seus defensores. Subestimar as dificuldades nesse tema é o caminho do fracasso.Mansueto defende o teto de gastos, como sempre, mas faz uma avaliação preocupante. O orçamento de 2021 está no Congresso e no vermelho. Depois de cinco anos de teto de gastos, o Brasil estará no ano que vem com um rombo maior do que estava antes e o plano original era zerar o desequilíbrio em cinco anos, chegando em 2026, quando o teto fará 10 anos, com superávit de 2,5% do PIB.— Para ter o que foi programado, nós teríamos que fazer em cinco anos um ajuste que estava previsto para 10 anos. Se a gente “apenas” cumprir o teto, que já é difícil, vamos chegar em 2026 ainda com déficit. Mais seis anos com déficit é uma situação de muito risco — diz ele.

Que risco? O da quebra da confiança de que o governo pode pagar a dívida pública. Em 2002, com a turbulência prévia da eleição de Lula, a dívida líquida chegou a 60% do PIB. Depois da posse, o dólar caiu, o governo cumpriu superávits e em 2013 ela era de 30% do PIB. Esse ajuste se perdeu. A dívida líquida bateu em 55% no ano passado. Pelas projeções do Ministério da Economia este ano vai para 65% e em 2028 estará em 87%. A bruta vai para 98%.— O Brasil até 2013 tinha resolvido seu problema fiscal. Implodiu isso em poucos anos. Teve dois anos de recessão e agora a pandemia. Se a gente não mudar esse cenário, mesmo cumprindo o teto de gastos, esse país não vai ter espaço fiscal para nenhuma contingência, recessão ou crise. Em 2015 o ministro Joaquim Levy propôs o debate sobre a revisão dos benefícios tributários. Cinco anos depois, o debate não andou. No governo Temer o gasto com o Simples foi até ampliado, quando se elevou o faturamento das empresas que podiam se enquadrar.Esse debate é árido. Há benefícios que claramente precisam acabar. Até eles ficam. Veja o caso do fim da isenção fiscal para fundos exclusivos, aqueles formados por pessoas muito ricas. Em vez de serem cotistas, eles foram fundos só para si. Por incrível que pareça esse investidor não paga imposto. Temer propôs acabar com essa isenção, o que geraria R$ 6 bilhões de receita, mas foi derrotado no Congresso.

Para piorar o ambiente de déficit e dívida crescentes, a inflação subiu.

— Há seis meses, a expectativa de inflação para este ano era de 2%. Hoje está em 3,8%. A do ano que vem também subiu. Isso pode levar a um aumento dos juros que vai impactar a dívida toda concentrada no curto prazo. A curva dos juros (futuros) expõe o tamanho da incerteza sobre como o Brasil vai resolver o problema. E não é daqui a quatro, cinco anos. As pessoas querem clareza para os próximos seis meses.

Mansueto lembra que na democracia as soluções são encontradas no debate. Diz que é natural, e desejável, que cada corrente de pensamento defenda a sua ideia sobre como resolver esse nó fiscal. Mas faz um alerta.

— É legal ter propostas diferentes, mas não pode haver disparidade sobre o diagnóstico. Não temos margem para erro daqui pra frente.