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Bernardo Mello Franco: Continuidade é morte

Na reta final do governo, José Sarney entregou o comando do antigo Inamps ao médico que atendia sua família. Ao se apresentar aos colegas, o escolhido arriscou um gracejo: “Sou um dos poucos brasileiros que já viram o presidente nu”. Na lógica do patrimonialismo, estava justificada a nomeação.

Jair Bolsonaro convidou Marcelo Queiroga a assumir o Ministério da Saúde. Qualquer médico seria melhor que o general Eduardo Pazuello, mas o indicado não tem qualquer experiência em gestão pública. Suas credenciais são outras: ele pediu votos para o capitão e é íntimo de Flávio, o primeiro-filho.

Queiroga deu as caras no dia em que o Brasil registrou novo recorde de mortes na pandemia: 2.798. Na primeira declaração pública, ele prometeu “continuidade”. “A política é do governo Bolsonaro. O ministro da Saúde executa a política do governo”, disse.

A gestão de Pazuello foi um desastre político e humanitário. Suas primeiras ações foram militarizar a pasta e maquiar números oficiais para esconder cadáveres. Ele se dizia especialista em logística, mas deixou faltar testes, medicamentos e até oxigênio nos hospitais.

O paraquedista admitiu que, ao ser nomeado, “não sabia nem o que era o SUS”. Não sabia, não quis saber e esnobou quem tentou aconselhá-lo. Em outro surto de sinceridade, ele reconheceu que só estava no cargo para cumprir ordens de Bolsonaro. “Um manda, o outro obedece”, explicou.

Quando Pazuello assumiu, o Brasil contava 14 mil mortos pela Covid. Ontem ultrapassou os 282 mil. O vírus está fora de controle, a vacinação se arrasta a conta-gotas, e o presidente insiste em sabotar as políticas de distanciamento social.

Queiroga será o quarto ministro da Saúde em um ano de pandemia. Henrique Mandetta e Nelson Teich saíram para não rasgar o diploma de médico. Pazuello fez o que fez, e a cardiologista Ludhmila Hajjar recusou o posto ao ver que não teria autonomia para trabalhar.

O amigo do Zero Um pode admirar o capitão, mas precisa mostrar que não será mais um pau-mandado. No cargo que ele vai ocupar, apostar na continuidade é selar um pacto com a morte.


Bernardo Mello Franco: O fantasma da polarização

A volta de Lula reabilitou um fantasma que assombrou a última corrida presidencial: a ideia de um país dividido entre dois extremos. Em 2018, a propaganda de Geraldo Alckmin martelou que era preciso evitar, a qualquer custo, a polarização entre Bolsonaro e PT. As duas forças foram apresentadas como “lados da mesma moeda: a do radicalismo”.

A retórica denunciava o desespero do tucano. O eleitorado do seu partido já havia aderido ao capitão, e ele terminou com menos de 5% dos votos. No segundo turno, os candidatos do PSDB esqueceram o discurso e correram para Bolsonaro. A carona ajudou a eleger João Doria e Eduardo Leite, que agora tentam se descolar da imagem do presidente.

A equivalência entre PT e Bolsonaro sempre foi conversa fiada. O partido de Lula tem muitos defeitos, mas nasceu na luta contra a ditadura e governou pelas regras da democracia. Quando Dilma Rousseff sofreu o impeachment, os petistas entregaram as chaves do palácio e foram para a oposição.

Bolsonaro é um antigo defensor do autoritarismo, da tortura e das milícias. Não moderou o discurso na campanha nem no governo, onde passou a flertar abertamente com um autogolpe.

Polarização não é sinônimo de duelo entre extremos. Como lembra o cientista político Cláudio Couto, PT e PSDB polarizaram seis disputas presidenciais sem que nenhum deles fosse extremista. O professor diz o óbvio. Mesmo assim, há quem insista na falsa simetria.

A deputada Joice Hasselmann, ex-líder de Bolsonaro, agora se apresenta como adversária do “bolsopetismo”. O termo não quer dizer nada, mas virou moda em rodas conservadoras. Na falta de um candidato competitivo, apela-se ao fantasma de 2018.

O retorno de Lula mostrou que não era difícil polarizar com um presidente que nega a ciência e debocha das vítimas da pandemia. Para o petista, bastou aparecer de máscara, defender a vacina e informar que a Terra não é plana.

OS TRÊS PATETAS

Na semana em que o Brasil superou a marca de duas mil mortes diárias pela Covid, os filhos do presidente se destacaram pelas seguintes ações:

Flávio, o Zero Um, comparou medidas para conter a pandemia ao massacre de judeus no Holocausto.

Carlos, o Zero Dois, deu chilique na Câmara Municipal e chamou um colega de “canalha” e “cabeça de balão”.

Eduardo, o Zero Três, divulgou o desenho de um Zé Gotinha miliciano, armado com um fuzil.

HELIO E A FRENTE AMPLA

Com a morte de Helio Fernandes, vai-se uma parte da História do Brasil no século XX. O jornalista resistiu a seguidos apelos para publicar suas memórias. Deixou um único livro, “Recordações de um desterrado em Fernando de Noronha”, além de milhares de artigos no baú da “Tribuna da Imprensa”.

Helio respirava política e trabalhou pela reconciliação de JK e Lacerda quando os dois rivais, que apoiaram o golpe de 1964, viram-se na mira da ditadura que ajudaram a instalar.

A primeira reunião da Frente Ampla ocorreu na casa do jornalista, no Rio, em 22 de agosto de 1966. O movimento foi sufocado pelos militares, e JK e Lacerda morreram sem ver a redemocratização do país. Helio morreu na mesma casa, na madrugada de quarta, aos 100 anos.


Bernardo Mello Franco: Eleição sem tapetão

A anulação das sentenças de Sergio Moro recoloca Lula no centro da corrida ao Planalto. É um lugar que ele ocupa desde 1989, quando os brasileiros recuperaram o direito de votar para presidente.

Lula perdeu três eleições, venceu outras duas e foi impedido de concorrer pela sexta vez em 2018. A um mês e meio das urnas, ele liderava a disputa com 39% das intenções de voto. O segundo colocado, Jair Bolsonaro, aparecia com 19% no Datafolha.

Nove dias depois, o Tribunal Superior Eleitoral barrou a candidatura do petista com base na Lei da Ficha Limpa. Bolsonaro assumiu a ponta e se elegeu com o pé nas costas, sem ir a debates e sem apresentar um plano de governo.

Nesta segunda-feira, o Supremo reconheceu que a condenação que afastou Lula das urnas foi irregular. O ex-presidente saiu do jogo pela caneta de um juiz que não tinha competência legal para julgá-lo.

Assim que a eleição terminou, o doutor abandonou a toga e se juntou à equipe do candidato vencedor. Sua adesão ao governo escancarou a utilização da Justiça como instrumento de um projeto de poder.

Ontem o ministro Gilmar Mendes perguntou qual país democrático aceitaria como ministro da Justiça o ex-juiz que afastou o principal adversário do presidente eleito. O Brasil aceitou.

A anulação das sentenças de Moro não repara o que ocorreu em 2018, mas abre caminho para uma eleição com menos interferência judicial em 2022. É uma boa notícia para uma democracia ameaçada por surtos autoritários.

A volta de Lula ao palanque ainda inspira muitas dúvidas. A primeira é se o ex-presidente vai endurecer o discurso ou retomar o figurino conciliador que o levou ao poder. A segunda é se ainda haverá espaço para uma candidatura competitiva na geleia geral que se intitula como “centro”.

Por enquanto, o único fato concreto é que Bolsonaro ganhou um adversário forte. Pesquisa divulgada no domingo pelo Ipec mostrou que o ex-presidente é, neste momento, o único político a superar o capitão em potencial de votos para 2022.

Quem embarcar na tese de que a candidatura Lula ajuda Bolsonaro arrisca comprar gato por lebre — ou pagar por vacina e levar cloroquina.


Bernardo Mello Franco: A mansão de Flávio Bolsonaro e a profecia de Dom Bosco

Na noite de 30 de agosto de 1883, o padre italiano Giovanni Bosco sonhou que fazia uma viagem pela América do Sul. Entre os paralelos 15 e 20, ele vislumbrou uma “enseada bastante longa e larga, que partia de um ponto onde se formava um lago”. Uma voz divina assoprava em seu ouvido: “Quando vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível”.

Dom Bosco morreu em 1888, virou santo em 1934 e inspirou os fundadores de Brasília em 1960. A cidade foi erguida entre as coordenadas geográficas do sonho e à beira de um lago artificial, o Paranoá. O sacerdote se tornou onipresente no Planalto Central: batiza igreja, colégio, farmácia e pizzaria. Agora seu santo nome também está associado aos negócios da família presidencial.

Flávio Bolsonaro virou morador do Setor de Mansões Dom Bosco, uma das áreas mais valorizadas da capital. O senador comprou uma casa de 1.100 m² de área construída, com quatro suítes, oito vagas de garagem, piso de mármore e piscina aquecida. Com salário líquido de R$ 24 mil, ele arrematou o imóvel por R$ 6 milhões.

A mansão é o mais novo símbolo do enriquecimento dos Bolsonaro na política. Quando disputou sua primeira eleição, em 2002, o primeiro-filho declarava como único bem um Gol 1.0. Cinco mandatos depois, ele pilota um Volvo XC e acaba de adquirir seu 20º imóvel em 16 anos.

A casa também simboliza a crença da família na impunidade. Em novembro, o Ministério Público do Rio denunciou o senador por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele fechou o negócio dois meses depois, às vésperas de o Superior Tribunal de Justiça julgar seus recursos contra a investigação.

Seguindo a tradição da família, a transação está encoberta por mistérios. O Zero Um registrou a compra do imóvel na cidade-satélite de Brazlândia, a 58 quilômetros da mansão. O cartório atropelou a Lei de Registro Público e tarjou a escritura pública para ocultar seus dados patrimoniais. O Banco de Brasília (BRB), ligado ao governo do Distrito Federal, financiou parte da operação com juros abaixo do mercado.

Irritado com a descoberta da mansão, Flávio atacou a imprensa e negou irregularidades. Ele disse ter comprado o imóvel com o valor da venda de um apartamento e de uma franquia da Kopenhagen, apontada pelo MP como fachada para lavar dinheiro. “Tá tudo redondinho, dentro da lei e sem problema nenhum”, afirmou, em vídeo divulgado nas redes sociais.

Eleito com a promessa de combater a corrupção, o presidente ainda não falou sobre a casa milionária. Há poucos dias, ele abandonou uma entrevista para não responder sobre as manobras do herdeiro no STJ.

Depois de 138 anos, os Bolsonaro dão novo significado à profecia de Dom Bosco. Ao se instalar entre os paralelos 15 e 20, o clã passou a ostentar uma riqueza inconcebível. A diferença está no detalhe: em vez de leite e mel, a mina do primeiro-filho faz jorrar chocolate.


Bernardo Mello Franco: Chega de mimimi

Nem a morte de 261 mil brasileiros é capaz de extrair alguma humanidade de Jair Bolsonaro. No pior momento da pandemia, o capitão voltou a ostentar desprezo pelo sofrimento alheio. “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, debochou ontem, em Goiás.

As duas frases sintetizam a visão do presidente sobre a tragédia. Nas palavras dele, os esforços para conter a doença não passam de “frescura”. Quem usa máscara tem “medinho do vírus”. Quem respeita as regras de distanciamento é “frouxo” e “covarde”.

Obcecado por afirmar sua masculinidade, o capitão diz que é preciso enfrentar o vírus “como homem, não como moleque”. “Tem que deixar de ser um país de maricas!”, esbravejou, em outro comício contra o isolamento social.

Com o termo “mimimi”, o presidente tenta desmerecer as críticas a seu comportamento irresponsável. A gíria foi adotada pela militância bolsonarista para ironizar minorias e grupos oprimidos. Quem protesta contra o racismo é “vitimista”. Quem contesta a homofobia é “mimizento”.

Por essa lógica, também é “mimimi” reclamar de um governo que ignora a ciência, deixa pacientes sem oxigênio e sabota a negociação de vacinas. Ontem o capitão chamou de “idiota” quem reivindica a compra de imunizantes para todos. “Só se for na casa da tua mãe!”, acrescentou.

A pergunta “Vão ficar chorando até quando?” expõe Bolsonaro em estado puro: um político que despreza a vida e celebra a morte.

Em 28 anos no Congresso, ele se notabilizou por exaltar torturadores e dizer que a ditadura “matou pouco”. Quando a Justiça ordenou buscas por ossadas de desaparecidos no Araguaia, enfeitou o gabinete com um adesivo que dizia “Quem procura osso é cachorro”. Agora, ele achincalha os parentes das vítimas da Covid-19.

Bolsonaro não vai mudar. Enquanto permanecer no cargo, continuará a atentar contra a saúde pública e a desrespeitar as famílias enlutadas.

Hoje completa um mês o pedido de impeachment apresentado por médicos como Gonzalo Vecina e José Gomes Temporão. O documento lista dezenas de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente na pandemia. Pressionar a Câmara a aceitá-lo é uma forma de transformar a indignação em ação. 


Bernardo Mello Franco: O levante dos governadores

Depois de atirar contra o Congresso, o Judiciário e a imprensa, Jair Bolsonaro voltou a culpar os governadores pelo descontrole da pandemia. No domingo, o presidente atiçou sua matilha virtual com números distorcidos. O ministro Fábio Faria completou o serviço. Tuitou que os estados tiveram “tempo e dinheiro sobrando” para conter a tragédia.

As contas do capitão estavam turbinadas. Ele somou repasses obrigatórios, verbas do Fundeb e até royalties do petróleo destinados aos estados. Num dos truques de ilusionismo, Bolsonaro disse aos eleitores que o Espírito Santo recebeu R$ 16,1 bilhões de Brasília. Os repasses extraordinários não passaram de 10% disso, esclareceu o governador Renato Casagrande.

Além de não entregar as vacinas prometidas, a União deixou de financiar cerca de nove mil leitos de UTI desde dezembro, segundo os secretários de Saúde. O dinheiro sumiu no momento em que os hospitais voltaram a lotar. No fim de semana, a ministra Rosa Weber ordenou a liberação dos repasses a três estados. Ainda é pouco para desarmar a sabotagem em escala nacional.

A provocação de Bolsonaro é tosca, mas aumentou a pressão sobre os governadores. Ontem dois deles se deixaram envolver num bate-boca rasteiro. Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, acusou Ronaldo Caiado, de Goiás, de ter “problemas psiquiátricos”. Ouviu de volta que “só pensa em negociatas”. Ambos são aliados do Planalto.

A estratégia de dividir para conquistar ajudou Bolsonaro a vestir a faixa. Ao exagerar na dose, ele arrisca enfrentar um levante inédito. Diante de uma oposição inerte, os governadores começaram a ensaiar uma união para enquadrar o Planalto.

Na segunda, 19 deles acusaram o presidente de fabricar “informação distorcida” para “atacar governos locais”. Entre os signatários da carta, estão três bolsonaristas. O texto foi redigido pelo gaúcho Eduardo Leite, que votou no capitão e agora diz que ele “despreza a sua gente”.


Elio Gaspari: Gilmar fará uma Lava-Jato na Lava-Jato

Ministro do STF levará, nas próximas semanas, o julgamento da suspeição do juiz Sergio Moro para a mesa da Segunda Turma

Nas próximas semanas, o ministro Gilmar Mendes levará para a mesa da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal o julgamento da suspeição do juiz Sergio Moro no processo da Lava Jato. São pedras cantadas a exposição da parcialidade do doutor e a promiscuidade de suas relações com o Ministério Público. O ministro deu uma pista do que vem por aí ao lembrar que irá além do que chama de “questão Lula”: Será algo “muito maior.”

Põe maior nisso. Gilmar tem assessores passando o pente-fino nas mensagens trocadas em Curitiba. Desde junho de 2019, quando o site “Intercept Brasil” levou ao ar os primeiros grampos dos sete terabytes capturados, eles têm aparecido de forma explosiva, porém desordenada. Colocados em ordem cronológica e contextualizados, revelam a extensão das malfeitorias blindadas pela mística da Operação Lava-Jato.

A última novidade saída dos grampos foi um episódio ocorrido em 25 de janeiro de 2016. Nele, é mencionada a delegada da Polícia Federal Erika Marena, que integrava a equipe. Nas palavras do procurador Deltan Dallagnol: “Ela entendeu que era um pedido nosso e lavrou termo de depoimento como se tivesse ouvido o cara, com escrivão e tudo, quando não ouviu nada. (...) Se o colaborador e a defesa revelarem como foi o procedimento, a Erika pode sair muito queimada nessa... Pode dar falsidade contra ela... Isso que me preocupa”.

Dallagnol propôs um remendo:“Combinar com ela de ela nos provocar diante das notícias do jornal para reinquiri-lo ou algo parecido. Podemos conversar com ela e ver qual estratégia ela prefere. (...) Se não fizermos algo, cairemos em descrédito”.

Havia sido simulado um depoimento que não tinha acontecido, e o caso seria resolvido ricocheteando-se uma notícia que seria plantada na imprensa.

No início de 2016, o juiz Moro ordenava operações irregulares de busca e apreensão:

“Russo deferiu uma busca que não foi pedida por ninguém… hahahah. Kkkkk”, escreveu um delegado da PF.

“Como assim?!”, respondeu uma delegada.

“Normal… deixa quieto…Vou ajeitar…kkkk”.

O depoimento mencionado pela delegada Erika era uma das muitas peças da colaboração do lobista Fernando Moura, um amigo do comissário José Dirceu. Ele havia sido preso, negociara um acordo, mas vinha se desdizendo. Numa audiência, tratando de um caso de corrupção explícita na Petrobras, Moura perguntou ao juiz: “Assinei isso? Devem ter preenchido um pouco a mais do que eu tinha falado.”

Estava feia a coisa. A delegada já havia dado sua versão para o depoimento que não aconteceu: “Usaram meu nome no cabeçalho, mas não tomei e não participei de nenhum termo. Se ele está se desdizendo, infelizmente não haverá gravações.”

Os procuradores negociavam o que um deles chamou de “terceirização dos depoimentos”. (Ganha uma vacina de vento quem souber o que é isso.) O devido processo legal não era devido, nem processo, muito menos legal. Criminalistas veteranos lembram que esse tipo de “depoimento” era prática comum para rábulas bem relacionados com escrivães.

Um procurador exclamou: “Erramos !!” Outro, Júlio Noronha, resolveu a questão com um xeque-mate: Fernando Moura deveria ser “exemplarmente punido, inclusive com prisão — ou o instituto (da delação premiada) sofrerá um abalo”.

Assim, a discrepância foi varrida para baixo do tapete em 2016, e a turma da Lava-Jato pagará a conta em 2021.

O pente-fino da equipe de Gilmar Mendes poderá responder à sua grande pergunta:

“Como nós chegamos até aqui? (...) O que nós fizemos de errado para que institucionalmente produzíssemos isso que se produziu. (...) Sabiam que estavam fazendo uma coisa errada, mas fizeram”.

Um reitor na ficha da delegada

Em maio de 2016, a delegada Erika Marena teve 1.065 votos entre seus pares para substituir o diretor da Polícia Federal. Com a fama da turma de Curitiba, Marena foi retratada pela atriz Flávia Alessandra no filme “A Lei é Para Todos”. Afinal, foi ela quem deu o nome fantasia à operação.

Na manhã de 14 de setembro de 2017, uma semana depois da estreia do filme, a delegada mobilizou 105 policiais e prendeu espetacularmente o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, e outros quatro professores.

Erika Marena acusou-o durante uma entrevista coletiva de obstruir as investigações que apuravam um desvio de R$ 80 milhões do programa de ensino a distância. Depois de ter dormido na cadeia, o reitor foi libertado por uma juíza. Não podia pisar no campus da universidade, em cuja vizinhança vivia. Passadas duas semanas, Cancellier publicou um artigo falando da “humilhação e do vexame” a que havia sido submetido e, no dia 2 de outubro, atirou-se do sétimo andar de um shopping de Florianópolis.

Faço porque posso

Depois do voto de Gilmar Mendes sobre a suspeição de Moro, a turma da Lava-Jato responderá pelas tramoias que armou contra ministros do Superior Tribunal de Justiça.

Um sai, o outro fica

A diplomacia bolsonarista dá resultados parecidos como de um canhão que só atira pela culatra.

Yossi Shelley, embaixador de Israel e queridinho da família do capitão, foi levado de volta. Exibido e atrevido, suas asas já haviam sido cortadas pela chancelaria de Tel Aviv.

Já o embaixador da China, Yang Wanming, igualmente atrevido, teve sua retirada pedida pelo governo brasileiro e foi mantido no posto por Beijing.

General da logística

O general Eduardo Pazuello foi colocado no Ministério da Saúde porque é um craque da logística.

Estando no cargo, uma partida de vacinas que deveriam ter ido para Manaus acabaram no Amapá. A distância entre a capital do Amazonas e Macapá é de mil quilômetros.

Atribuir a lambança a Pazuello seria injusto, até porque, com seu temperamento, virou saco de pancadas por bobagens alheias.

Mesmo assim, ele deveria refletir. O que aconteceria a um oficial que, no Dia “D”, mandasse um suprimento destinado à Normandia e ele fosse parar em Copenhague, na Dinamarca?

Capitão Galtieri

Uma víbora chama o presidente Bolsonaro de “Capitão Galtieri”.

O general Leopoldo Galtieri presidia a Argentina e era um tipo espetaculoso. Em 1982, teve uma ideia: invadir as Ilhas Malvinas, colônia inglesa perdida no Atlântico. Negou a lógica da ciência militar e foi humilhado por Margaret Thatcher, que desceu com a frota e botou suas tropas para correr.

Ao contrário de Galtieri, Bolsonaro é abstêmio.

250 mil mortos

A “gripezinha” estava no “finalzinho” e a segunda onda era “conversinha”.


Bernardo Mello Franco: Impunidade parlamentar - Lira recuou, mas não desistiu

Por duas semanas seguidas, os deputados esticaram o trabalho e se reuniram para votar numa sexta-feira. O surto de produtividade nada teve a ver com a pandemia. O objetivo era despachar o aloprado Daniel Silveira e evitar novas prisões de parlamentares.

Assim que a cabeça do bolsonarista foi entregue, a Câmara passou a discutir a chamada PEC da Imunidade. A proposta muda a Constituição para reforçar a blindagem de deputados e senadores. Com a regra atual, prender um congressista é muito difícil. Com a nova, passaria a ser uma missão impossível.

O articulador da ideia foi o novo presidente da Câmara, Arthur Lira. Em defesa da mudança, ele disse que “proteger o mandato é garantir que os parlamentares possam enfrentar interesses econômicos poderosos ou votar leis contra organizações criminosas perigosas”.

O deputado não é conhecido por contrariar empresários ou combater quadrilhas. Ele responde a duas ações no Supremo, por corrupção passiva e organização criminosa.

Discípulo de Eduardo Cunha, Lira se inspirou no mestre e tramou uma aprovação a toque de caixa. Na terça, seus aliados começaram a recolher assinaturas para apresentar a proposta; na quinta, o texto estava pronto para votação em plenário.

Pelo rito tradicional, toda PEC precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça e por uma comissão especial. O presidente da Câmara pulou as duas etapas, mas não conseguiu consumar o tratoraço.

Na sexta, o deputado admitiu, a contragosto, que não tinha os 308 votos necessários para mudar a Constituição. Ele se disse “muito triste e preocupado”, com as críticas à emenda. “Essa não merece ser chamada PEC da Imunidade. Deveria ser chamada PEC da Democracia”, reclamou. Lira foi generoso com a própria obra. Outros parlamentares preferiram acrescentar um P, rebatizando-a de PEC da Impunidade.

O chefe do Centrão usou um argumento fajuto para proteger os colegas na mira da polícia. A Constituição afirma que os congressistas são invioláveis por “opiniões, palavras e votos”. O texto foi redigido para defender a democracia e o livre exercício dos mandatos. Não pode ser usado como escudo para a prática de crimes.

Se a proposta de Lira já estivesse em vigor, o deputado Daniel Silveira não teria sido preso e a deputada Flordelis não teria sido afastada por ordem da Justiça. Ela é acusada de mandar matar o marido, executado com 30 tiros em Niterói.

A pastora foi denunciada por homicídio triplamente qualificado, associação criminosa, falsidade ideológica, uso de documento falso e tentativa de homicídio por envenenamento. Ela se tornou ré há seis meses, mas escapou da prisão preventiva graças à imunidade parlamentar.

O marido de Flordelis foi assassinado em junho de 2019. O Conselho de Ética da Câmara só instalou um processo disciplinar contra ela na terça passada, como parte do teatro para justificar a votação da PEC. Lira foi obrigado a recuar, mas já deixou claro que não desistiu.


Bernardo Mello Franco: O caminho do Capitólio

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.

Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.

O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.

Velhas novidades

O Partido Novo se diz liberal, mas não perde uma chance de lustrar as botas do capitão. Das 24 legendas na Câmara, foi a única a votar unida contra a prisão de Daniel Silveira.

O deputado Marcel van Hattem ousou comparar o bolsonarista ao ex-deputado Márcio Moreira Alves. Um defende a ditadura e queria surrar ministros do Supremo; o outro denunciou as torturas e foi cassado pelo AI-5.

Van Hattem foi o campeão de votos do Novo em 2018 e se tornou o primeiro líder da sigla em Brasília.


Bernardo Mello Franco: Bolsonarismo tenta usar armas da democracia para matá-la

Na denúncia apresentada ao Supremo, a Procuradoria-Geral da República descreve Daniel Silveira como “um ex-soldado da Polícia Militar do Rio, instituição na qual se notabilizou pelo mau comportamento”. O deputado fez da indisciplina um trampolim para trocar o quartel pelo palanque. Não é sua única semelhança com Jair Bolsonaro.

A exemplo do capitão, o ex-soldado usa a misoginia para se promover. Bolsonaro atraiu holofotes quando chamou uma colega de “vagabunda” e disse que ela “não merecia” ser estuprada. Silveira se projetou ao vandalizar uma homenagem a Marielle Franco, vereadora executada pela milícia.

Os dois descobriram que a truculência pode render votos. O mau militar enfileirou sete mandatos até chegar ao Planalto. O mau policial foi premiado com uma cadeira na Câmara.

O caso do deputado marombado impõe um teste à democracia brasileira. Desde que subiu a rampa com Bolsonaro, a extrema direita mantém as instituições sob ataque permanente. Agora surgiu uma oportunidade de frear a escalada autoritária.

Na Quarta-feira de Cinzas, o Supremo esqueceu as divisões internas e manteve a prisão de Silveira por 11 a 0. Hoje será a vez de a Câmara decidir o futuro do extremista.

O bolsonarismo não disfarça. Seu projeto envolve o aliciamento das polícias, a cooptação do Legislativo e a submissão do Judiciário. O deputado Eduardo Bolsonaro já havia sugerido fechar o Supremo com “um soldado e um cabo”. Silveira propôs uma solução mais violenta: espancar, cassar e prender os ministros da Corte.

Os golpistas tentam usar as armas da democracia para matá-la. O ex-PM evoca a imunidade parlamentar para defender a ditadura. Exalta o AI-5, mas quer liberdade de expressão para conspirar. Por ironia, ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, um entulho autoritário do regime dos generais.

A Câmara tem sido conivente com a pregação fascista desde 1999, quando um deputado exaltou a ditadura e defendeu o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na época, os parlamentares optaram por deixar o extremista falando sozinho. A experiência mostra que a omissão foi um erro grave. Agora o Congresso pode começar a repará-lo.


Bernardo Mello Franco: Gilmar e Fachin no baile de máscaras do Supremo

O carnaval foi cancelado, mas o Supremo manteve viva a tradição do baile de máscaras. Na terça-feira gorda, o ministro Gilmar Mendes voltou a se exibir em nova fantasia. Ex-integrante do Bloco da Lava-Jato, ele agora desfila na ala dos críticos da operação.

Em entrevista à BBC News Brasil, Gilmar disse que a força-tarefa de Curitiba virou “movimento político” e “tinha candidato” na última eleição presidencial. Faz sentido, mas parece que ele demorou a notar.

Por muito tempo, o ministro elogiou os métodos de Moro, Dallagnol & cia. Em setembro de 2015, ele disse que a operação salvou o Brasil de virar uma “cleptocracia”. “A Lava-Jato estragou tudo”, comemorou.

Seis meses depois, Gilmar barrou a nomeação de Lula para a Casa Civil com base num grampo divulgado ilegalmente por Moro. A liminar invadiu atribuição do Executivo e deu o empurrão final para o impeachment.

Consumada a queda de Dilma Rousseff, o ministro passou a enxergar abusos na Lava-Jato. Em entrevista recente, ele apontou um “jogo de promiscuidade” entre juiz e procuradores. Curiosamente, não viu problema em seus 43 telefonemas com Aécio Neves quando o tucano era investigado por corrupção.

Com a fantasia de garantista, Gilmar reciclou a imagem e virou herói de setores da esquerda. A amnésia faz parte da folia, mas a Lava-Jato é a mesma de outros carnavais. Quem mudou foi o supremo ministro.

Na segunda-feira, Edson Fachin brilhou como destaque no baile de máscaras. Em nota, ele afirmou que a pressão de militares sobre o Supremo é “intolerável e inaceitável”. O ministro tem razão, mas está atrasado.

Quando o general Villas Bôas emparedou o tribunal com uma ameaça de golpe, às vésperas da eleição de 2018, Fachin silenciou. Quase três anos depois, desperta para a interferência “gravíssima” dos quartéis.

A esta altura, o protesto não tem qualquer efeito prático. Só serve como tentativa de retocar a biografia do ministro. Ainda assim, ele virou alvo de novo deboche do general


Bernardo Mello Franco: CPI do Coronavírus, o primeiro teste de Pacheco no Senado

Depois do Carnaval, Rodrigo Pacheco passará pelo primeiro teste na presidência do Senado. Terá que decidir se abre uma CPI para investigar a omissão do governo federal no combate à pandemia. Há dez dias ele cozinha o requerimento apresentado pelo oposicionista Randolfe Rodrigues. Na próxima quinta-feira, precisará anunciar um veredito.

Pacheco foi ungido numa articulação exótica, que uniu Planalto, centrão e partidos de esquerda. Como as velhas raposas mineiras, negociou com todos e não se comprometeu com ninguém. Agora seu discurso de independência começará a ser confrontado com a prática.

Ao adiar a decisão sobre a CPI, o senador deu tempo ao governo para retirar assinaturas de apoio. Os dias se passaram e o requerimento continua com 32 autógrafos, cinco a mais que o necessário. Na quinta passada, o general Pazuello tentou convencer o Senado a deixar a ideia de lado. Seus argumentos foram considerados toscos até pela bancada bolsonarista.

Se instalada, a CPI do Coronavírus terá farto material de trabalho. O ponto de partida será o colapso dos hospitais em Manaus. O Ministério da Saúde foi avisado de que faltaria oxigênio, mas cruzou os braços e deixou que pacientes morressem sufocados.

Dias antes da tragédia, aliados do capitão festejaram a suspensão de um lockdown que havia sido decretado pelo governo do Amazonas. O deputado Eduardo Bolsonaro foi um dos mais empolgados com o recuo, apontado como uma das causas da tragédia.

Pazuello já prestou depoimento à Polícia Federal sobre a omissão do ministério na crise. No entanto, há forte desconfiança no Congresso sobre a autonomia da PF para investigar o caso.

O Senado também poderá apurar a negligência na negociação de vacinas e o desperdício de dinheiro com a produção de cloroquina, apresentada por Bolsonaro como remédio milagroso. No mês passado, Pazuello lançou um aplicativo oficial que indicava a substância a pacientes desavisados. Agora ele tenta negar sua participação na farsa do “tratamento precoce”, fartamente registrada em áudio e vídeo.

No ritmo atual, o Brasil terminará o mês com mais de 250 mil vítimas do coronavírus. A lista inclui dois senadores: Arolde de Oliveira e José Maranhão. Eles morreram em hospitais de ponta, longe do inferno da rede pública de Manaus.

‘Tem que manter isso, viu?’

Citado na coluna de sexta, o ex-presidente Michel Temer pede para registrar que o TRF-1 formou maioria, em agosto de 2020, para absolvê-lo da denúncia por obstrução de Justiça no caso Joesley Batista.

A Procuradoria-Geral da República acusou o emedebista de participar de uma trama para comprar o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha. Em 2019, Temer já havia sido absolvido em primeira instância.

“Estou limpando a minha área. As ações que foram motivadas por aquele rapaz estão sendo todas derrubadas”,  o ex-presidente, evitando citar o nome do dono da JBS.