bernardo mello franco

Bernardo Mello Franco: Os valores de Guedes

Paulo Guedes perdeu a aura de superministro, mas continua a ser o homem certo para o cargo que ocupa. Nenhum outro economista espelharia tão bem os valores e princípios do bolsonarismo. Ou a ausência deles.

Em dois anos e quatro meses no poder, Guedes já ofendeu mulheres, servidores públicos e pobres em geral. A lista de insultos voltou a crescer na terça-feira, em reunião do Conselho de Saúde Complementar.

Sem saber que estava sendo gravado, o ministro disse que “o chinês inventou o vírus, e a vacina dele é menos efetiva do que a americana”. A frase criou um novo atrito diplomático com o maior parceiro comercial do Brasil.

Guedes também reclamou do envelhecimento da população, um fato que deveria ser comemorado. “Todo mundo quer viver cem anos”, resmungou, acrescentando que não haveria como atender a todos no setor público.

A queixa revela desprezo pelos idosos mais pobres e insensibilidade com o morticínio no país. Um estudo de Harvard mostrou que a pandemia reduziu a expectativa de vida dos brasileiros em quase dois anos.

O ministro não pode culpar a câmera indiscreta pelo seu festival de preconceitos. Em eventos públicos, ele já fez coisas como chamar servidores de “parasitas” e dizer que a primeira-dama da França “é feia mesmo”.

Em outra palestra, apontou o que via como efeito indesejado do dólar baixo: “Empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada”. Ele sugeriu que as trabalhadoras deveriam se contentar com passeios mais modestos: “Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu”.

Na reunião de terça, Guedes reclamou que o Fies bancou a faculdade de “filho de porteiro” que tirou zero no vestibular. A história é inverossímil porque o programa exige nota mínima para conceder bolsas. Mas a mentira não é o pior da fala ministerial.

Em novembro, o jornal “El País” entrevistou Gabriella Juvenal Figueiredo, mestranda em história da arte na Espanha. Filha de um porteiro e uma doméstica, ela relatou uma vida de discriminação por estudar entre jovens da elite. “Infelizmente, tive de aprender a sobreviver ao lado dessas pessoas que te olham por cima do ombro”, disse.

Ao contar o que enfrentou, Gabriella resumiu os valores de Guedes.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/os-valores-de-guedes.html


Bernardo Mello Franco: O primeiro milagre da CPI

A CPI da Covid já produziu seu primeiro milagre: transformou Flávio Bolsonaro num defensor do isolamento social. Ontem o senador tentou convencer os colegas a deixar a investigação para depois. “Por que não esperar todo mundo se vacinar?”, sugeriu.

A preocupação tardia com a doença não foi a única surpresa do discurso. Com a pele bronzeada pelas férias no Ceará, o primeiro-filho atacou o presidente do Senado, o relator da CPI e até a bancada feminina. O falatório não virou votos para o governo, mas escancarou o desespero do clã presidencial.

Pelo que se viu ontem, a família tem motivos para temer a comissão. Na sessão inaugural, a tropa bolsonarista levou um baile. Flávio ainda foi obrigado a engolir uma descompostura da senadora Eliziane Gama. Ela avisou que ali não era lugar para chute na porta e ironia machista. Só faltou dizer que o Zero Um não estava em Rio das Pedras.

Quando a reunião começou, os governistas se agarraram à liminar que impedia Renan Calheiros de assumir a relatoria. Foi uma tática desastrada. Como se previa, a decisão foi derrubada rapidamente. O senador se sentou na cadeira e desceu a lenha no Planalto.

“Vamos dar um basta aos suplícios, à inépcia e aos infames”, discursou. Ele atacou o negacionismo e prometeu “apontar culpados”. Num recado a Jair Bolsonaro, citou os genocidas Augusto Pinochet e Slobodan Molosevic. “O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes, e eles devem ser punidos”, arrematou.

Renan também criticou a entrega do Ministério da Saúde ao general Eduardo Pazuello, que no domingo passeava sem máscara num shopping de Manaus. “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa”, disse.

O emedebista não se limitou à retórica: de cara, apresentou 11 requerimentos. A lista inclui a convocação de quatro ministros da Saúde, a requisição de documentos e o compartilhamento do inquérito das fake news.

No dia em que a comissão entrou em campo, Bolsonaro usou cinco palavras para defender seu desempenho na pandemia. “Eu não errei em nada”, garantiu. O capitão vai precisar de outro milagre para convencer a CPI.


Bernardo Mello Franco: Um país na escuridão

O governo alegou falta de verbas e cancelou o Censo de 2021. A pesquisa estava programada para 2020, mas foi adiada por causa da pandemia. Agora arrisca não acontecer nem em 2022, devido a cortes sucessivos no orçamento do IBGE.

A decisão condena o Brasil a um apagão estatístico. Não chega a ser uma surpresa. Os burocratas do bolsonarismo sempre desprezaram fatos e dados confiáveis. Preferem acreditar nas suas próprias versões.

No segundo mês de governo, o ministro Paulo Guedes reclamou que o questionário do Censo seria muito longo. “Se perguntar demais, você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber”, declarou. A frase espantou técnicos que o ouviam pela primeira vez. Era só um sinal do que estava por vir.

A pretexto de economizar, Guedes ordenou a redução do levantamento previsto para o ano seguinte. Ao justificar o corte, disse que o Censo fazia 360 perguntas. Na verdade, a última pesquisa básica fez 49. O ministro insistiu na tese. “Custa muito caro e tem muita coisa que não é tão importante”, decretou.

A ordem para mutilar o questionário abriu uma crise no IBGE. Técnicos avisaram que a medida comprometeria a qualidade do Censo. A presidente Susana Cordeiro Guerra não quis saber. Acatou a ordem do chefe e demitiu dois diretores que contestavam o corte.

No mês passado, foi a vez de Susana pedir o boné. Estava contrariada com a aprovação do Orçamento sem as verbas necessárias para organizar o Censo. Ela sabia que a pesquisa seria cancelada, mas não quis reconhecer o fiasco. Preferiu atribuir a saída a “motivos pessoais”.

Os ataques ao IBGE começaram logo após a eleição de Jair Bolsonaro. Em novembro de 2018, o capitão afirmou que os dados sobre o desemprego eram “uma farsa”. Cinco meses depois, disse que o índice só servia para “enganar a população”.

O negacionismo também atingiu outros órgãos federais. Quando o desmatamento da Amazônia começou a disparar, o presidente acusou o Inpe de divulgar “números mentirosos”. Seu diretor, o cientista Ricardo Galvão, foi demitido e chamado de “mau brasileiro”.

Na pandemia, o Ministério da Saúde comandou uma operação para maquiar os dados de mortos pela Covid. Os veículos de comunicação tiveram que montar um consórcio para apurar a real dimensão da tragédia.

Como alertaram oito ex-presidentes do IBGE, o cancelamento do Censo põe o Brasil num pequeno clube de países há mais de 11 anos sem uma pesquisa nacional. Nos casos de Líbia, Afeganistão e Haiti, o problema é consequência de guerras e terremotos. No Brasil, a causa é o desgoverno.

O apagão estatístico vai comprometer a formulação e a execução de políticas públicas. Causará prejuízos à saúde, à educação, ao transporte e à moradia. Deixará o país sem informações essenciais para planejar sua reconstrução pós-pandemia.

Para Bolsonaro, o cancelamento da pesquisa pode ter uma utilidade. Os dados jogariam luz sobre o tamanho da destruição promovida nos últimos anos. Sem conhecê-los, o eleitor terá que ir às urnas na escuridão.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro vende um Brasil imaginário na Cúpula do Clima

Jair Bolsonaro tentou vender um Brasil imaginário na Cúpula de Líderes sobre o Clima. Nas palavras do presidente, o país está “na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global”. Nem parecia o chefe do governo que mutilou a fiscalização ambiental e permitiu o avanço do desmatamento da Amazônia.

Na defensiva, Bolsonaro sustentou que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta e promoveu uma “revolução verde” no campo. Se tudo vai bem, o mundo estaria perdendo tempo ao se preocupar conosco.

O capitão abusou da boa-fé dos estrangeiros. Sem corar, ele disse ter determinado o “fortalecimento dos órgãos ambientais”. Na vida real, seu governo pilota uma operação de desmonte, executada pelo ministro Ricardo Salles.

No início da semana, mais de 400 servidores do Ibama denunciaram que as atividades de fiscalização estão paralisadas. Eles explicaram que uma nova instrução normativa inviabilizou a aplicação de multas aos infratores.

É verdade que houve uma mudança de estilo na fala de Bolsonaro. No passado recente, ele ameaçou abandonar o Acordo de Paris, espalhou mentiras contra o movimento ambientalista e declarou que poderia trocar a saliva pela pólvora se Joe Biden chegasse à Casa Branca.

Ontem o capitão se disse “aberto à cooperação internacional” e adotou um tom dócil ao se dirigir ao novo presidente americano. Para seu azar, o democrata já havia deixado a reunião quando ele começou a rastejar diante da câmera.

A distância entre o discurso e a prática não foi o único problema que impediu o presidente de ser levado a sério. Numa reunião em que diversos líderes prometeram sacrifícios para reduzir as emissões de gases poluentes, Bolsonaro estendeu o pires e pediu dinheiro.

“Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata”, afirmou.

Só faltou apresentar a conta de US$ 1 bilhão em troca da preservação da Amazônia, como fez na véspera o ministro Salles.


Bernardo Mello Franco: Os estribos do general

O novo ministro da Defesa está empenhado em agradar o chefe. Walter Braga Netto estreou no cargo com uma exaltação ao golpe de 1964. Em seguida, passou a usar cerimônias militares para endossar o discurso do capitão.

Ontem o general aproveitou a troca de comando do Exército para fazer mais um comício bolsonarista. Às vésperas da Cúpula do Clima, ele tentou rebater as críticas da comunidade internacional pela devastação da Amazônia. “Os brasileiros que estão presentes na região sabem que a floresta continua de pé”, afirmou.

A patriotada não apaga o que as imagens de satélite mostram ao mundo. Ao analisá-las, o Imazon constatou que o desmatamento em março foi o maior para o mês nos últimos dez anos.

Com o governo pressionado pela abertura da CPI da Covid, Braga Netto disse que “é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros”. A frase sugere que a eleição deu um salvo-conduto ao presidente, como se ele não precisasse prestar contas à sociedade e ao Congresso.

O ministro também afirmou que o Brasil passa por um período de “intensa comoção e incertezas, que colocam a prova a maturidade, a independência e a harmonia das instituições”.

Faltou lembrar que os ataques ao equilíbrio entre os poderes partem do Planalto. Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar ministros do Supremo e acionou sua milícia digital para intimidar os senadores que pretendem investigá-lo na CPI.

O general arrematou o discurso com uma advertência pouco sutil. Disse que as Forças Armadas estão “prontas” e “sempre atentas à conjuntura nacional”. A conversa casa com a retórica golpista do capitão, que tem ameaçado adversários políticos com o que ele chama de “meu Exército”.

Braga Netto assumiu a Defesa no momento em que o presidente cobrava mais manifestações de apoio dos militares. Sua primeira medida foi derrubar o general Edson Pujol, que tentava controlar a exploração política da tropa.

Ontem o ministro se despediu do ex-comandante com um bordão da caserna: “Que nossos estribos se choquem em cavalgadas futuras”.


Bernardo Mello Franco: Moraes expôs o método da República de Curitiba

O Supremo Tribunal Federal confirmou, por 8 votos a 3, a anulação das condenações de Lula. A corte concluiu que a 13ª Vara de Curitiba não tinha competência legal para julgar o ex-presidente. Isso equivale a dizer que sua prisão foi resultado de um processo irregular.

Lula vive em São Bernardo do Campo e foi acusado de receber vantagens de empreiteiras em Guarujá e Atibaia. Os três municípios ficam no Estado de São Paulo. No entanto, os casos foram levados para o Paraná, onde Sergio Moro pontificava nos julgamentos da Lava-Jato.

Na quinta-feira, o ministro Alexandre de Moraes disse que a transferência das ações violou o princípio do juiz natural. A Constituição afirma que “ninguém pode ser processado ou sentenciado senão pela autoridade competente”, definida por regras do Código de Processo Penal. “O juiz não pode escolher a causa que quer julgar”, resumiu o ministro.

Moraes expôs o método da República de Curitiba para driblar a lei e escolher réus, transformando-se numa espécie de “juízo universal” do país. “Em todas as denúncias, o MP jogava o nome da Petrobras e pedia a prevenção da 13ª Vara”, disse. O artifício deu poderes quase ilimitados ao juiz e aos procuradores da força-tarefa.

No caso de Lula, Moraes observou que o MP nunca provou a conexão entre os desvios na Petrobras e as obras no sítio no tríplex. “A partir do genérico, sem nenhuma ligação com fatos específicos, se acusou e se denunciou o ex-presidente”, criticou. A defesa repetia isso desde 2016, mas o Supremo levou cinco anos para declarar que o processo foi ilegal.

A transferência das ações para Curitiba foi o primeiro ato de um vale-tudo judicial contra Lula. O Supremo participou do baile ao retardar o julgamento de ações que questionavam se era permitido prender um réu sem condenação definitiva. A manobra permitiu a prisão do petista às vésperas da eleição presidencial de 2018.

“Se essa inversão não tivesse sido feita, a história do Brasil poderia ter sido diferente”, disse na quarta-feira o ministro Ricardo Lewandowski. “Foi uma opção que o Supremo fez e que teve consequências muito sérias”, acrescentou. A principal consequência atende pelo nome de Jair Bolsonaro.

A propaganda enganosa

O general Augusto Heleno divulgou na sexta um vídeo que exalta a “Nova Funai”. A propaganda diz que a entidade ouve os povos indígenas e defende o meio ambiente. No mesmo dia, uma audiência promovida pela OAB empilhou críticas ao discurso chapa-branca.

 “A Funai foi tomada por setores do agronegócio que imprimem uma política totalmente contrária à defesa dos direitos dos povos indígenas”, afirmou o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário, Antônio Eduardo Oliveira.

A deputada Joenia Wapichana diz que a “Nova Funai” deixou de cumprir sua tarefa mais importante: a demarcação de terras indígenas. Ela também reclama da omissão diante do avanço do garimpo ilegal na Amazônia. “A situação é muito preocupante. E a Funai só atende o lado que está de acordo com as ideias do governo”, acusa.


Bernardo Mello Franco: Plano de desmonte

No início da pandemia, Ricardo Salles expôs um plano para desmontar o sistema de proteção ao meio ambiente. Segundo ele, era preciso aproveitar as atenções voltadas para o coronavírus e “ir passando a boiada”. O ministro pode ser acusado de muita coisa, menos de não fazer o que prometeu.

Desde a célebre reunião de abril de 2020, Salles revogou normas de licenciamento, perseguiu servidores e se aliou abertamente aos devastadores da Amazônia. O resultado foi o maior desmatamento da floresta em dez anos, de acordo com os dados do Imazon.

Encorajado pelo chefe, o ministro continuou a tabelar com os algozes da floresta. Em março, ele se solidarizou com os alvos da maior apreensão de madeira da história do Brasil. A atitude revoltou os investigadores que comandaram a operação. “Na Polícia Federal não vai passar boiada”, reagiu o superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva.

O delegado não se limitou a protestar. Apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma notícia-crime contra Salles e o senador Telmário Mota. O documento acusa a dupla de advocacia administrativa, participação em organização criminosa e infração contra a lei de crimes ambientais.

Para Saraiva, o chefe do Ministério do Meio Ambiente atacou a PF “de forma parcial e tendenciosa, comportando-se como verdadeiro advogado da causa madeireira”. A descrição também serve para ilustrar as relações do ministro com grileiros de terra e garimpeiros ilegais.

A ousadia de Salles mostra que ele não age sozinho: cumpre tarefas combinadas com Jair Bolsonaro. Ontem o presidente deu mais um sinal de apoio à devastação. Em vez de demitir o ministro, mandou afastar o superintendente da PF que o acusou.

Saraiva fez o que o procurador Augusto Aras se recusa a fazer: denunciou o desmonte ambiental e tentou laçar a boiada de Salles. O Congresso também tem sido cúmplice do ataque à Amazônia. Agora, o Supremo tem uma chance de frear as motosserras.

A Corte ainda ganhou novos elementos para o inquérito que apura a interferência do presidente na PF. A investigação completa um ano no próximo dia 28. Ao derrubar o superintendente, Bolsonaro escancarou, mais uma vez, o plano de capturar a polícia para defender seu grupo político.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro está com medo

Jair Bolsonaro está com medo. O capitão sabe que a CPI da Covid pode se tornar uma ameaça ao seu mandato. Por isso, descontrolou-se quando o Supremo mandou o Senado instalar a comissão.

Na sexta-feira, o presidente vociferou contra o ministro Luís Roberto Barroso. Acusou-o de fazer “politicalha”, “militância” e “jogada casada” com a oposição. Faltou dizer que o juiz se limitou a aplicar a lei.

Barroso anotou que a comissão parlamentar de inquérito é um direito da minoria. O Supremo reconheceu isso quando contrariou o governo Lula e determinou a abertura das CPIs dos Bingos e do Apagão Aéreo.

No sábado, Bolsonaro passou do protesto à conspiração. Em conversa com o senador Jorge Kajuru, sugeriu retaliar a Corte com uma ofensiva para destituir ministros. “Tem que fazer do limão uma limonada”, justificou.

No mesmo telefonema, ele disse que desejava “sair na porrada” com o senador Randolfe Rodrigues. Um presidente que ameaça bater no líder da oposição parece avacalhação demais até para o Brasil de 2021.

No desespero, o governo ainda tentou desviar o foco da investigação para mirar em governadores e prefeitos. A ideia esbarrou num detalhe: o Senado não pode invadir o terreno de Assembleias e Câmaras. A comissão se limitará a apurar o destino de repasses federais a estados e municípios.

Bolsonaro sabe o que fez e deixou de fazer para que o Brasil se transformasse no epicentro da pandemia. Agora a CPI poderá identificar suas digitais na falta de vacinas, na sabotagem às medidas sanitárias e na morte de pacientes por falta de oxigênio.

No melhor cenário para o capitão, a investigação ampliará seu desgaste às vésperas da campanha. No pior, ajudará a responsabilizá-lo criminalmente pelo morticínio.

Ontem o senador Fernando Collor escancarou os riscos que o presidente passou a correr. “Temos que ter consciência do momento em que vivemos”, discursou. “Falo isso como alguém que já passou e viveu episódios dramáticos da vida nacional.”

No caso dele, a CPI deu em impeachment.


Bernardo Mello Franco: No governo Bolsonaro, o revolucionário é ser normal

Ao tomar posse, o chanceler Carlos Alberto França prometeu correr atrás de vacinas, valorizar o multilateralismo e apoiar o combate às mudanças climáticas. Tudo o que o Itamaraty se recusou a fazer na primeira metade do governo Bolsonaro.

O novo ministro afirmou que o diplomata deve agir como um construtor de pontes. Seu antecessor se empenhou na tarefa de dinamitá-las.

Em dois anos e três meses, Ernesto Araújo conseguiu se indispor com a China, a Índia, a Alemanha, as Nações Unidas e os EUA pós-Trump. Ele também hostilizou nosso principal vizinho. Horas depois da eleição na Argentina, tuitou que “forças do mal” celebravam a vitória de Alberto Fernández.

França lembrou que o Brasil sempre foi um ator relevante nos fóruns internacionais. Não precisou dizer que esse patrimônio foi desprezado por Ernesto. Na gestão passada, o Itamaraty renegou suas tradições e fez uma opção pelo isolamento. O país levará tempo para reparar o estrago.

Ontem o novo chanceler se limitou a fazer uma menção protocolar ao antecessor. Sem criticá-lo, indicou uma guinada para uma política externa movida pelo pragmatismo e pela racionalidade. O discurso sinalizou um Itamaraty com mais Rio Branco e menos Olavo de Carvalho.

A questão agora é saber se Bolsonaro e seus filhos darão aval à mudança. Até aqui, os auxiliares que não abraçaram o radicalismo do chefe tiveram vida curta na Esplanada.

Nomeado por um negacionista, França informou que vai procurar governos e laboratórios para mapear as vacinas disponíveis. Uma tarefa essencial, negligenciada durante o reinado de Ernesto.

O ex-chanceler tomou posse com uma performance histriônica, em que prometeu “libertar o Itamaraty” e repetiu chavões de extrema direita. Seu sucessor estreou com um falatório sóbrio e salpicado de platitudes. França só chamou a atenção porque fez um discurso normal. No Brasil de 2021, um ministro normal é quase um revolucionário.

+++

Ao ultrapassar as 4 mil mortes diárias pela Covid, o país dá novo sentido à frase de Oswald de Andrade: “O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus”.


Bernardo Mello Franco: A corrupção de Moro

A Segunda Turma do Supremo concluiu que Sergio Moro violou o dever da imparcialidade ao condenar o ex-presidente Lula. A decisão esvazia o mito que começou a ser inflado em 2014, quando o ex-juiz emergiu à frente da Lava-Jato. A pretexto de combater a corrupção, ele fez política com a toga e corrompeu o sistema judicial.

Nos últimos sete anos, Moro e a Lava-Jato se tornaram personagens centrais da vida brasileira. A República de Curitiba implodiu os partidos tradicionais e deu impulso ao impeachment de Dilma Rousseff. Dois anos depois, ajudou um populista de extrema direita a vestir a faixa presidencial.

Jair Bolsonaro passou a campanha de 2018 fazendo juras à Lava-Jato. Nem precisava. A operação prendeu e tirou de campo seu principal concorrente. Às vésperas do primeiro turno, ainda divulgou uma delação para beneficiá-lo.

Antes de subir a rampa, o capitão ofereceu a Moro o cargo de ministro da Justiça. O juiz abandonou a carreira e correu para se juntar ao novo governo. Quando ele rasgou a fantasia, sua atuação política já estava mais do que escancarada. Bastava querer ver.

Ontem a ministra Cármen Lúcia lembrou que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, garantiu a todos um julgamento justo e imparcial. Processos inquisitoriais, em que o juiz se confunde com a acusação, atentam contra as bases da democracia.

A professora Eloísa Machado de Almeida, da FGV Direito SP, diz que o Supremo demorou a reconhecer a suspeição de Moro. “Era inevitável que o tribunal fizesse isso, depois de chancelar por tanto tempo os erros e abusos da Lava-Jato”, afirma.

Ela considera que a operação está “pagando por seus deméritos”. “Muita gente séria avisou que isso iria acontecer. Os fatos levam a crer que Moro não estava fazendo Justiça. Ele foi um juiz parcial, que direcionou os processos por interesse próprio”, sentencia.

A decisão do Supremo reforça os sinais de uma mudança de ventos no país. A ministra Cármen Lúcia, que costumava endossar as condenações de Curitiba, alterou o voto para reconhecer a suspeição de Moro. À noite, panelas que já bateram contra Lula abafaram o pronunciamento de Bolsonaro.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro é tetra

Jair Bolsonaro é tetra. Eleito com discurso moralista, o presidente já tinha três filhos sob investigação. Agora vê o quarto, Jair Renan, entrar na mira da Polícia Federal.

Aos 22 anos, o caçula da família virou alvo de inquérito por suspeita de tráfico de influência. Ele tem usado o sobrenome para abrir portas em Brasília. Circula com empresários, recebe presentes e se reúne com autoridades fora da agenda oficial.

Em agosto passado, o Zero Quatro esteve com o secretário especial da Cultura, Mario Frias. O jovem disse ter tratado de interesses do setor de games. Dois meses depois, seu pai reduziu as alíquotas do IPI sobre jogos eletrônicos. Na contramão do aperto fiscal, a União abriu mão de arrecadar cerca de R$ 80 milhões até 2022.

Em novembro, Jair Renan levou empresários ao gabinete do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. O grupo queria apresentar um projeto de habitação popular a ser financiado pelo governo. A pasta informou que o Zero Quatro esteve no encontro “na qualidade de ouvinte”.

Ao que tudo indica, um ouvinte bem remunerado. Reportagem do GLOBO revelou que a empresa presenteou Jair Renan com um carro elétrico avaliado em R$ 90 mil. A firma ainda doou placas de granito para o escritório da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, registrada em nome do caçula do presidente.

A troca de favores também marcou a inauguração do negócio de Jair Renan. A “Folha de S.Paulo” mostrou que a Astronauta Filmes registrou a festa sem cobrar pelo serviço. Em 2020, a produtora recebeu ao menos R$ 1,4 milhão dos cofres federais.

O advogado do clã, Frederick Wassef, nega qualquer irregularidade. No ano passado, ele negou ter escondido Fabrício Queiroz na sua chácara em Atibaia.

A abertura de inquérito na PF faz de Jair Renan o quarto filho do presidente sob investigação. Flávio Bolsonaro, o Zero Um, já foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Carlos, o Zero Dois, é suspeito de reproduzir o esquema da rachadinha na Câmara Municipal. Eduardo, o Zero Três, é alvo de uma apuração preliminar da Procuradoria-Geral da República pela compra de imóveis com dinheiro vivo.

Os quatro casos têm a marca do patriarca da família. Bolsonaro ensinou os filhos mais velhos a transformar a atividade parlamentar num negócio lucrativo. Em 28 anos na Câmara, ele também nomeou funcionários fantasmas e engordou o patrimônio com transações em espécie. No caso de Jair Renan, a lição foi pelo exemplo. O caçula ainda não entrou na política, mas já ganha dinheiro com o nome do pai.

O mundo de Guedes

É comovente o esforço de Paulo Guedes para se eximir de responsabilidade pela combinação de inflação, recessão e aumento da pobreza. Em entrevista ao jornal espanhol “El Mundo”, o ministro culpou a oposição pelo derretimento da moeda brasileira. Disse que há uma campanha orquestrada para manchar a imagem do país no exterior. No Chile de Pinochet, onde ele viveu nos anos 80, o governo não precisava se preocupar com essas coisas.


Bernardo Mello Franco: Estado de intimidação

A PM de Brasília prendeu cinco manifestantes que abriram uma faixa contra o presidente na Praça dos Três Poderes. A notícia remete aos anos de chumbo, quando os militares perseguiam quem ousasse contestar a ditadura. Aconteceu ontem, sob o governo de Jair Bolsonaro.

A escalada autoritária é liderada pelo Planalto. O ministro da Justiça, André Mendonça, ressuscitou a Lei de Segurança Nacional para enquadrar os críticos do chefe. Já mandou a Polícia Federal instaurar inquéritos contra jornalistas, advogados e até cartunistas.

Agora o exemplo do pastor inspira bolsonaristas nas polícias civis e militares. Num país governado por um fã do AI-5, há sempre um guarda da esquina disposto a rasgar a Constituição.

O professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, considera que o Brasil já vive sob um “estado de intimidação”. “O objetivo das investidas policialescas é gerar um clima de medo e autocensura. É uma forma de repressão preventiva”, define.

A crônica dos abusos só aumenta. No Rio Grande do Sul, professores foram processados por criticar o presidente. No Rio de Janeiro, pesquisadores foram intimados por denunciar o desmonte da Casa de Rui Barbosa.

No Tocantins, o ministro Mendonça mandou a PF investigar um sociólogo que pede impeachment de Bolsonaro. Seu crime foi escrever, num outdoor, que o capitão “não vale um pequi roído”. O pequi ainda não foi ouvido para se defender da comparação.

Os manifestantes de Brasília foram enquadrados na LSN porque chamaram o presidente de “genocida”. Três dias antes, o youtuber Felipe Neto foi convocado a depor pelo mesmo motivo. Em ambos os casos, recorre-se a uma lei da ditadura para sufocar a liberdade de expressão na democracia.

“A LSN está sendo usada para perseguir quem critica o governo. Isso é um abuso de autoridade e um ataque ao Estado democrático de direito”, diz o advogado Augusto de Arruda Botelho. Ele ajudou a fundar o grupo Cala a Boca Já Morreu, que vai oferecer defesa gratuita a novas vítimas da caça às bruxas.

Enquanto o Supremo não varre o entulho autoritário da LSN, o bolsonarismo continua a cultuar a tirania. A Justiça Federal acaba de autorizar o Exército a festejar o 57º aniversário do golpe de 1964. Se a decisão não for reformada, os militares poderão praticar o esporte preferido do seu comandante em chefe.