Barack Obama

Folha de S. Paulo: O Brasil ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica, diz Obama

Em entrevista à Folha, ex-presidente americano afirma esperar que trauma eleitoral recente leve a uma política diferente

Sérgio Dávila, Folha de S. Paulo

Dez dias depois de Joe Biden ver seu nome confirmado como o próximo presidente dos EUA, é a vez de seu ex-chefe, Barack Obama, roubar a cena. Nesta terça (17), dia do lançamento mundial de “Uma Terra Prometida” (Companhia das Letras), detalhes do primeiro volume de suas memórias na Casa Branca tomaram o mundo.

Folha enviou nove blocos de perguntas (com 12 questões no total) por escrito ao democrata no dia 5 de novembro. Ele se comprometeu a responder ao menos cinco delas e pediu que todas fossem ancoradas no livro, condições aceitas pelo jornal.

Na segunda (16) à noite, chegaram suas respostas.

O sr. escreve na apresentação de seu livro que a democracia em seu país parece estar à beira do precipício uma crise enraizada no embate entre duas visões opostas do que são os EUA e do que deveriam ser. O sr. acha que, pelos acontecimentos de hoje [5/11], com a vitória de seu ex-vice-presidente, o precipício fica mais longe? Você tem razão: a divisão entre o que a América é e o que a América deveria ser é um tema importante no livro, mas também existe outro conjunto concorrente de visões para nosso país. Há uma visão mais inclusiva e uma visão mais tribal. As duas interagem constantemente, e assistimos a essa interação acontecendo não apenas nos últimos quatro anos, nem nos oito anos que os antecederam, mas ao longo de nossa história. A pergunta permanece: quem vai vencer essa disputa de ideias?

Tenho fé em que a visão generosa e acolhedora do nosso país sairá por cima. E conservei meu otimismo, mesmo ao longo dos últimos quatro anos. Porque, ao mesmo tempo em que vimos nossos piores impulsos revelados, também testemunhamos o que podemos ser quando mostramos nosso lado melhor, quando americanos saíram às ruas em número sem precedente para protestar contra a separação de famílias, a violência armada, a brutalidade policial e mais.

É isso que me dá esperança especial em relação à próxima geração. Sua convicção do valor igual de todas as pessoas é inata, natural. Para Malia, Sasha [suas filhas de 22 e 19 anos, respectivamente], e seus amigos, nossas diferenças são algo a ser festejado. Para eles, isso é evidente.

Este livro é sobretudo para esses jovens. É um convite para mais uma vez reformarem o mundo e, com trabalho árduo, determinação e uma grande dose de imaginação, criarem uma América que finalmente se alinhe com o que existe de melhor dentro de nós.

O sr. descreve com detalhes o processo que o levou a escolher Joe Biden para ser seu vice-presidente. Dezenove anos mais velho que o sr., não parecia um candidato natural a concorrer a sua sucessão em 2016, tanto que não foi Hillary Clinton foi a escolhida. O sr. antevia então, no momento de sua escolha para vice, que ele um dia viria a ser presidente dos EUA? Admito: quando comecei minha busca por um vice-presidente, eu não fazia ideia que acabaria por encontrar um irmão. Joe e eu não temos muito em comum, à primeira vista. Temos origens diferentes, somos de gerações distintas. Mas em muito pouco tempo comecei a admirar sua resiliência, sua empatia e seu engajamento em tratar cada pessoa que ele encontra com respeito e dignidade. Joe vive segundo o preceito que seus pais lhe ensinaram: “Ninguém é melhor que você, Joe, mas você não é melhor que ninguém”.

Essa empatia, essa honradez, a crença de que todos têm valor —isso é quem Joe é. E foi por isso que durante oito anos eu quis que ele fosse o último na sala comigo sempre que eu precisava tomar uma decisão importante.

Ele me fez um presidente melhor. E sei que ele nos tornará um país melhor.

Numa passagem interessante, o sr. descreve o efeito do envolvimento da ex-primeira-dama Michelle Obama numa escola de ensino médio para meninas em Londres. Segundo estudos de um economista, após as visitas, as meninas melhoraram seu desempenho escolar. O sr. nunca a encorajou a seguir carreira política? Nunca discutiram isso a sério, como uma possibilidade de segundo ato para ela? Bem, não, porque isso não vai acontecer. Michelle já deixou isso muito claro. Mas não direi que me surpreendi ao ver que um estudo confirma a ideia de que a presença dela inspira as pessoas a realizar seu potencial. Porque convivo com os benefícios disso desde que ela e eu nos conhecemos, mais de três décadas atrás.

Como mostra o livro, não há dúvida de que Michelle não apenas me fez um presidente melhor, mas também uma pessoa melhor. Não há ninguém mais brilhante que ela, ninguém mais divertido, ninguém mais sábio. Há uma razão por que tantas pessoas gravitam em direção a Michelle. (E há uma razão por que, não importa quantas vezes ela diga não, as pessoas não param de perguntar se ela vai se candidatar a um cargo político algum dia!)

O sr. narra uma visita a uma das favelas no Rio de Janeiro e conjectura sobre o efeito que pode ter tido nos meninos e meninas negras que o observavam de suas casas num país de racismo profundamente enraizado, ainda que com frequência negado. Não muitos anos depois, o movimento Black Lives Matter explodiu nos EUA, com reflexos no mundo inteiro, inclusive no Brasil. O sr. anteviu que a tensão racial desaguaria num movimento desse tipo? Teria feito algo diferente nesta questão durante seu mandato? O racismo está entre nós desde muito antes mesmo de sermos um país, e nunca tive qualquer ilusão de que minha Presidência pudesse de alguma maneira tornar nosso país pós-racista. Eu esperava que ela pudesse inspirar crianças, quer fossem crianças das favelas na periferia do Rio ou crianças do South Side de Chicago, mas também sabia que elas precisavam de mais do que apenas inspiração. Elas precisam de escolas e habitação de boa qualidade, ar e água limpos, empregos quando se formam, e mais.

E, embora tenhamos feito progresso sobre muitos desses pontos, também é fato que, se você analisar a luta pela justiça ao longo de nossa história, ela tende a avançar dois passos e então retroceder um, algo que vivenciamos mais uma vez nos últimos anos.

Mas acredito que estamos indo no rumo certo. E sei que a resposta vai vir desses jovens, cujo ativismo no verão deste ano não poderia ter sido mais importante.

Sinto orgulho enorme do engajamento deles com a desobediência civil. Porque, ao longo de nossa história, o protesto pacífico e o ativismo resoluto têm sido a única maneira de fazer o sistema político prestar atenção às comunidades marginalizadas. E espero que elas usem esta oportunidade, com os olhos do mundo voltados a elas, para traduzir seu ativismo em leis e política públicas que precisamos para construir um país mais inclusivo.1 21

O sr. descreve seu encontro com o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, dizendo que a visita dele ao Salão Oval causou boa impressão. Depois, ao falar dos Brics numa reunião do G20 em Londres, o sr. o elogia e a seus programas sociais, mas escreve: “Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão de Tammany Hall [uma organização política nova-iorquina da virada do século 18 para 19 associada a corrupção e abuso do poder], e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”. Qual Lula sobreviveu em sua memória? Aquele que o sr. um dia disse “Ele é o cara!” ou o “chefão”? Minhas interações com Lula aconteceram na maioria anos antes de seus problemas com a Justiça, de modo que minhas recordações dele são moldadas pelo tempo em que ele era uma presença dominante na política brasileira e uma figura influente no palco mundial.

O que ficou claro para mim era que ele e Dilma simbolizavam algo importante para muitos brasileiros —a ideia de que eles estavam representados nos mais altos níveis do governo e que o governo seguia políticas que beneficiavam as massas maiores de pessoas. Não há como negar o dom que Lula possuía de se conectar com as pessoas e o progresso que foi feito nesse período para tirar pessoas da pobreza.

Mas, como escrevi, sempre havia rumores girando em torno dele sobre clientelismo, e está claro que o Brasil ainda tem problemas profundos com a corrupção sistêmica.

Minha esperança é que o trauma político recente possa levar a um tipo diferente de política e que uma nova geração de brasileiros possa liderar nesse caminho.


Merval Pereira: Relações carnais

Acompanhei de Nova York a eleição em 2008 que fez de Barack Obama o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Me lembro da festa nas ruas, do clima de esperança que a eleição de Obama transmitiu. O candidato republicano, John McCain, um herói de guerra, teve comportamento exemplar durante a campanha.

Oito anos depois, com a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton, Obama fez um belíssimo discurso, uma aula de democracia. “Esta é a natureza da democracia. Às vezes é duvidosa e barulhenta, muitas vezes não é inspiradora. Quando o povo vota e perdemos a eleição, aprendemos com nossos erros, fazemos reflexões. E voltamos ao jogo. O importante é que sigamos em frente, com a presunção de boa-fé dos nossos cidadãos. (…) Vou fazer tudo para que o próximo presidente tenha sucesso, porque, no final, estamos no mesmo time”.

Nada parecido espera-se para esta eleição de hoje, que o mundo inteiro acompanha com tanta ou mais expectativa de quando o primeiro negro foi eleito presidente dos Estados Unidos. Quebrou-se ali simbolicamente uma barreira racial, embora na prática o racismo continue sendo um dos maiores dramas da maior potência mundial, causa de assassinatos que, de tempos em tempos, horrorizam o mundo e indignam a comunidade negra, que se sente ameaçada e perseguida pela polícia.

Hoje, mais do que em 2008, está em jogo a própria democracia americana, com o presidente Donald Trump ameaçando não reconhecer uma provável vitória de Joe Biden, o candidato democrata que foi vice de Barack Obama. Uma derrota de Trump terá reflexos na política de meio-ambiente internacional, na política de direitos humanos, na própria economia mundial.

Biden, se apoiado por uma maioria na Câmara e no Senado, uma possibilidade, fará uma reorientação da política econômica, com aumento de impostos, regulação antitruste e controle de preços dos medicamentos. O setor de energias não renováveis seria também afetado pela nova política verde do governo americano. Ambos os candidatos anunciam, pacotes de estímulos econômicos de cerca de US$ 2 trilhões, por volta de 10% do PIB americano, o que faz os analistas preverem boas perspectivas para a economia americana.

Mas o cenário mais provável, segundo analistas dos meios financeiros, é a vitória de Biden com a persistência da divisão do Congresso, com republicanos mantendo a maioria do Senado e os democratas na Câmara. Uma vitória de Biden terá efeito imediato na política externa brasileira. Ou damos uma guinada para nos adequar à nova era americana, que terá o meio-ambiente e as energias renováveis como pontos prioritários, ou estaremos mais isolados ainda no planeta.

Muito se falou sobre as proximidades entre a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos, em 2008, e a de Lula em 2002, e o próprio ex-presidente brasileiro via semelhanças na trajetória de vida dos dois. Eleger um operário no Brasil teve quase o mesmo significado para nós que eleger o primeiro presidente negro nos Estados Unidos. Além de ter chamado Lula de “o cara”, porém, nada mais aconteceu na relação pessoal entre os dois.

Se a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação, se não de amizade, também especial, nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique.

A suposta “relação carnal” entre o presidente Bolsonaro e Trump não tem trazido vantagens para o país, ao contrário. Estamos isolados, assim como os Estados Unidos estão perdendo a liderança moral do mundo ocidental. Os vídeos com tapumes sendo colocados nas principais avenidas das principais cidades do país para evitar saques e quebradeiras em protesto contra o resultado da eleição, mostram que a democracia americana corre perigo se esse tipo de político como Trump continuar dando as cartas.

Da mesma maneira nós, no Brasil, também corremos sério risco de vermos nossa democracia subjugada pelo espírito autoritário do presidente Bolsonaro. Com uma vantagem para os americanos: têm instituições democráticas mais sólidas e perenes.

A parecença de Trump com Bolsonaro é um fato, tanto ideológica quanto de mau comportamento. Uma derrota de Trump será um freio no autoritarismo de Bolsonaro. O contrário exacerbará a tendência autoritária da extrema-direita no mundo.


Daniel Rei Coronato: As novas bandeiras do progressismo mundial

O mundo acompanhou atônito aos acontecimentos vindos das urnas nos mais diversos países e contextos durantes os últimos meses. Combinações explosivas de ressentimento coletivo, sensação de ameaça, empobrecimento sistemático de amplas parcelas da população – além de fatores pouco mensuráveis como o aparente mal-estar das sociedades contemporâneas – desembocaram em resultados que contrariaram expectativas e interpretações correntes. Ainda é pouco compreensível a existência de uma interconexão entre esses fenômenos, assim como suas consequências e repercussões.

Para as frações progressistas, no entanto, é tempo de reflexão. Desde que conquistaram o poder em países importantes na América do Sul, Europa e Estados Unidos – com o discurso de transformação encabeçado por Barack Obama –, passaram a perder sistematicamente força de interlocução. Sofreram sérios reveses, acenando para um esgotamento atrelado a sua capacidade limitada de responder aos anseios dos descontentes que procuram mudança. O enredo singular de cada caso desembocou em uma situação de incredulidade generalizada, perdendo apoio de setores historicamente alinhados e não conquistando apoiadores nas fileiras adversárias.

Crises econômicas e a tortuosa marcha da globalização apresentaram cartas com que a social-democracia e a esquerda democrática tiveram dificuldades para lidar. Assumindo uma gestão macroeconômica de perfil mais liberal, internalizando a sua semântica e retórica ancoradas no eixo fiscal, aparentaram agir como agentes do establishment à serviço da minoria endinheirada. Em alguns casos a vitória da esquerda significou a intensificação de políticas recessivas, patrocinando reformas que diminuíam o bem-estar dos trabalhadores. A defesa sistemática da inserção nas cadeias internacionais de produção, em prol do ganho de competitividade, também colaborou para essa percepção, alimentando o discurso nativista e nacionalista.

A gravidade dos temas globais e o vácuo de projetos transformadores, no entanto, impõem que sejam repensados os eixos centrais do que significaria um progressismo global.  Em razão da intensidade das transformações e da metabolização de diversos movimentos sociais, especialmente após a grande crise de 2008, parte dessa agenda já está sendo construída à revelia das organizações partidárias. De maneira ainda dispersa, sinalizam pautas e bandeiras para uma reinserção virtuosa das alas progressistas no debate público, gravitando em torno de três ideias centrais: igualdade, privacidade e Estado.

Igualdade

O conceito de igualdade é amplo, ocupando espaço considerável nas disputas políticas e intelectuais acerca do seu significado. No debate público dos últimos anos esteve especialmente atrelada ao aumento das assimetrias de renda, deterioração das oportunidades de trabalho e estudo nas sociedades de mercado. Mesmo que nunca tenha perdido sua relevância, foi com o movimento Occupy Wall Street e as ações de contestação na zona do euro que voltou ao primeiro plano nos anos recentes. Sob o lema de “Nós somos os 99%”, passaram a denunciar sistematicamente o fato de a minoria dos 1% mais abonados concentrar sozinha uma riqueza desproporcional, beneficiando-se de um sistema tributário e político que intensifica seu poder, garantindo a propagação dessa situação.

A discussão passou a ganhar viés mais programático na esteira de embates intelectuais como entre o francês Thomas Piketty e o grego Yanis Varoufakis, e a emergência de políticos como o senador democrata Bernie Sanders nos Estados Unidos. Em geral, responsabilizaram a “financeirização” e a mudança da geografia na produção industrial, que teriam juntas representado um processo de cisão no modelo de acumulação. O motor de desenvolvimento amparado pelos complexos industriais e suas ramificações foi substituído por economias essencialmente de serviços, alterando a sociabilização e o grau de proteção social que a dinâmica anterior havia permitido para uma parcela importante da população.

As mudanças estruturais patrocinadas pela dobradinha Reagan-Thatcher desenvolveram uma dinâmica própria, ganhando mais força nos anos 1990 e no início da década seguinte. Como consequência, emergiram arranjos tributários mais condescendentes com os afortunados, a diminuição de alíquotas sobre herança e a desregulamentação do setor financeiro, facilitando assim o trânsito internacional de divisas e promovendo as soluções de evasão nos paraísos fiscais. Com essa conjunção de fatores a concentração de riqueza se intensificou.

Em paralelo, o Estado reduziu os aparatos de proteção social, restringindo seu raio de ação. Esse processo aconteceu de maneira diversa no tempo e em cada canto do globo, no entanto, quando o sistema financeiro começou a apresentar seus primeiros sinais de colapso, notou-se uma convergência nessa direção, inclusive nos ambientes de maior igualdade. As reformas apresentadas pelas classes políticas como solução se tornaram imediatamente impopulares porque além de dolorosas, não socializavam as perdas entre as mais diferentes esferas da população.

Nos Estados Unidos a situação foi mais grave, já que o modelo de recuperação impetrado pelo governo Bush salvou a maior parte do sistema financeiro com um plano bilionário de recuperação que não exigia contrapartidas que levassem à superação das causas geradoras daquela situação. O sistema de bônus pagos aos executivos das empresas responsáveis pelo caos econômico foi mantido, gerando consternação em uma massa endividada pelo excesso de liquidez e desempregada, por vezes atolada em financiamentos impagáveis de hipotecas ou créditos educacionais para o custeio do ensino superior.

Para as forças progressistas essa é uma questão central. A luta pela retomada de direitos trabalhistas e estruturação de uma lógica tributária devem vir acompanhadas pela pauta de regularização do financeiro e fiscalização dos paraísos fiscais. Essa não é uma bandeira difusa: em cada país ela se materializou de maneira concreta, afetando os mais diversos estratos sociais. Ela deverá vir acompanhada de um projeto de desenvolvimento que não se restrinja apenas a repartir melhor a renda, atendendo também a reformas que priorizem um modelo social. Nesse contexto, será fundamental repensar o papel dos acordos internacionais de comércio, saindo do binômio atual entre demonizados e aplaudidos sem critério, para projetar cadeias internacionais que promovam o desenvolvimento ao invés de reforçarem distorções ainda mais intensas na divisão internacional do trabalho.

Privacidade

Possivelmente, há alguns anos, a introdução da privacidade entre os temas progressistas produzisse  estranhamento. Historicamente, o sigilo de correspondência e informações pessoais e a regulação dos diversos meios de comunicação integraram uma pauta ligada à montagem dos Estados democráticos, e fundamental para a sua existência. Tal pauta tornou-se um direito garantido, como no caso brasileiro, pela constituição federal. Encampado geralmente por grupos liberais e conservadores, entrou definitivamente no radar por força das transformações tecnológicas e dos escândalos sucessivos envolvendo vigilância sistemática por parte de Estados e empresas.

A existência de aparatos estatais que pretendem controlar, cuidar e espionar a população não é novidade, apresentando versões em praticamente  todos os regimes de governos, incluindo as democracias. As justificativas variaram a depender do contexto em que está inserido, porém, usualmente eles se legitimaram no combate à alguma ameaça – interna, externa ou ambos – que colocaria em risco o meio de vida ou a própria existência do Estado.

Com o desenvolvimento da tecnologia da informação se especulou como esse poder, então potencial, poderia ser usado para criar um sistema quase perfeito de monitoramento, já que a quase totalidade dos processos passaram a depender integralmente de alguma rede computadorizada. Suspeitas de que algo dessa natureza pudesse já estar ocorrendo começaram a ganhar força após os primeiros esforços de contra-inteligência promovidos pelo governo americano para eliminar a possibilidade de um novo 11 de setembro.

As antigas teorias da conspiração se mostraram verdadeiras com as revelações de Edward Snowden. O ex-agente da CIA desnudou um universo assustador de agências estatais e terceirizadas a serviço do governo americano e aliados, atuando com capacidade de acesso a qualquer informação, de qualquer pessoa do mundo, conectada a algum sistema integrado. Chamou também atenção o fato de diversas empresas de tecnologia e informação agirem em cumplicidade com o governo, também se beneficiando desses metadados, sendo capazes de gerar conhecimentos inimagináveis algumas décadas atrás sobre o comportamento do consumidor. Além disso, o padrão exposto por Snowden de vigilância mostrava o uso político desses instrumentos por parte dos Estados Unidos, espionando governos teoricamente amigos e empresas estrangeiras em disputa com suas correspondentes nacionais.

O pesadelo orwelliano assustou até os incrédulos e levantou uma gigantesca discussão sobre os limites desse tipo de ação por parte de empresas e instituições a serviço do governo. Questionamentos envolvendo a jurisdição, a ética e os desdobramentos futuros produziram uma geração inteira de ativistas defensores dos direitos de privacidade. De modo geral afirmam que com a mudança nas tecnologias, o domínio da informação será mais importante do que qualquer estrutura física de poder, representando a nova fronteira não só da guerra como da produção.

A defesa da privacidade e a democratização no controle dessas informações se converteram em uma pauta global de primeira importância, pois permeia a defesa do cidadão contra a possibilidade permanente de abusos autoritários por parte dos Estados, além de restringir o uso das informações pessoais por empresas sem o consentimento expresso ou o acompanhamento da sociedade. Dela se poderá abrir espaço para o debate de temas ainda incipientes que em breve devem monopolizar as atenções, como inteligência artificial, uso de drones para fins militares e outros da mesma dimensão.

Estado

O indomável processo de construção de sistemas de integração, acordos comerciais e organizações supranacionais parecia condicionar a vitória de um sistema internacional liberal. No embate de valores, o império do mercado aparentava ter triunfado sobre as hostes do Estado, convertendo-se no principal agente de ação e transformação. No entanto, a crença geral no esfacelamento do Estado e das fronteiras nacionais parece ter perdido força nesses últimos anos em razão da solução encontrada para os desafios impostos pela conjuntura, com o recrudescimento de medidas isolacionistas e protecionistas.

O desmonte de parte dos aparelhos de bem-estar social na Europa e em menor grau nos Estados Unidos, além das dificuldades encontradas na América Latina para a criação de um sistema minimamente viável socialmente, criaram uma geração de descontentes e desprotegidos. A diminuição das perspectivas dos mais jovens – em alguns países espremidos entre o desemprego e a precarização -, a desregulamentação do mundo do trabalho e a força do mundo informacional pressionam o sistema político por ação transformadora e criação de novos espaços de representação, paradoxalmente ampliando a importância da esfera estatal.

A volta do protagonismo do Estado parece ser também um ponto de concordância para a maioria dos movimentos sociais que entendem que ele ainda seria a única força capaz de dar proteção à sociedade e promover o progresso social. A multiplicação e a consequente pulverização das demandas dos diversos setores da sociedade levaram a uma excessiva fragmentação das pautas, enfraquecendo-as de maneira geral. Atomizadas, presas aos seus lugares de fala, as bandeiras ligadas aos direitos humanos, à ecologia, às minorias e às distintas frações de trabalhadores passaram a ter dificuldades para dar sustentação aos importantes avanços obtidos ao longo do tempo. Seus avanços mais notáveis foram na esfera do Estado, seja sob a forma de conquista de direitos, seja em termos de políticas públicas e desenho organizacional.  Mesmo com diversas outras promessas, entre elas o associativismo típico do terceiro setor, não surgiu nenhuma outra força de organização capaz de substituí-lo em suas funções.

Parece haver certo consenso entre as alas progressistas de que o Estado deve prover educação, saúde e um sistema mais equilibrado de tributação, atuando com medidas anticíclicas em eventuais processos de desestruturação e esfriamento profundo da atividade econômica. No entanto, não parece apenas uma defesa do antigo modelo de bem-estar social ou do desenvolvimentismo experimentado com êxito parcial na América Latina. O que se espera é um Estado capaz de defender a multiplicidade de atores sociais garantindo a eles um ambiente mais igualitário, justo e simétrico sem que as liberdades estejam ameaçadas e a máquina pública fique artificialmente inflacionada.  A maior ou menor intervenção nas atividades econômicas dependerá das características e do contexto em que o Estado está inserido. Mas nenhum Estado poderá se privar de democratizar o modelo decisório levando em consideração a transmutação tecnológica e a gigantesca pauta de demandas hoje existentes (*).

*   - Doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e professor de Relações Internacionais.


Fonte: neai-unesp.org/