auxilio emergencial

Alon Feuerwerker: Gastar e cortar

O fim do auxílio emergencial pago ao longo de 2020 por causa da pandemia é talvez a ameaça mais imediata à recuperação econômica ensaiada no final do ano passado. E a reinstalação de um auxílio emergencial com cara de permanente será sinal claro de fraqueza política do governo.

Daí que o ministro da Economia tenha aparecido hoje ao lado do presidente da República para defender que, se pensam em novas despesas, deem um jeito de cortar das já existentes (leia). E o presidente aproveitou para dizer que as reformas liberais vão andar, inclusive as privatizações.

Na luta de vida ou morte em torno do comando da Câmara dos Deputados, ninguém quer perder o apoio empresarial. Depois de definida essa refrega, o Congresso se verá às voltas com outro tipo de pressão, a popular. Se a economia sofrer nesta largada de 2021, essa pressão vai subir muito.

A economia depende de imunizar a população, já havia lembrado o ministro da Economia (leia). Se é assim, melhor ter cautela. Vamos esperar para ver que bicho dá na Câmara e como vai andar a vacinação. E mesmo se tudo der certo para o governo nas duas frentes ainda será um processo de, no mínimo, meses.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Bruno Carazza: Cheiro de reforma no ar

Não importa quem vença, Bolsonaro terá que mudar

Arthur Lira (PP) ou Baleia Rossi (MDB)? Simone Tebet (MDB) ou Rodrigo Pacheco (DEM)? A disputa para o comando da Câmara e do Senado entra na semana decisiva, e o envolvimento direto do presidente da República nas negociações comprova que tudo voltou ao normal na política brasileira.

A Lava-Jato abalou as estruturas do sistema partidário, e a eleição de Bolsonaro foi anunciada como o fim da “velha política”. Apenas dois anos depois, o presidencialismo de coalizão, explicado lá atrás, em 1988, por Sérgio Abranches, dita mais uma vez o ritmo de funcionamento da nossa instável democracia.

A partir da próxima segunda-feira a (01/02) o destino do país estará nas mãos de filhos de políticos tradicionais - Benedito de Lira, Wagner Rossi e Ramez Tebet. Pacheco, por sua vez, vem de uma família de proprietários de empresas de ônibus, um setor tradicionalmente dependente e credor de poderosos. Brasília girou, girou, e parou no mesmo lugar.

Também não é estranho que os quatro principais candidatos à presidência das Casas Legislativas venham de partidos herdeiros dos dois grandes blocos conservadores sob os quais se estruturou nosso sistema político desde a ditadura militar. Enquanto PP e DEM são filhos legítimos da Arena, o MDB de hoje, apesar de ter se despido do “P”, nunca deixou de ser o que restou de mais retrógrado da legenda original de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves.

Como um pêndulo, todos os presidentes brasileiros desde a redemocratização tiveram que recorrer aos filhotes da velha Arena ou do velho PMDB para se equilibrar no poder - embora nem todos tenham conseguido completar a travessia sem cair.

Sarney convocou, em diferentes momentos, caciques como Jorge Bornhausen, Hugo Napoleão e Prisco Viana (egressos da Arena) e Iris Rezende (PMDB) para tentar dar base de sustentação ao Plano Cruzado (1986), influenciar a nova Constituinte para obter um quinto ano de mandato (1987/1988) ou abafar uma CPI e um pedido de impeachment (1989).

Quando as denúncias de corrupção começaram a pipocar, no início de 1992, Collor, que se elegeu prometendo que “um novo tempo iria começar”, trouxe para seu governo raposas como Célio Borja, Affonso Camargo e Reinhold Stephanes. Tudo em vão.

Fernando Henrique se elegeu anunciando uma “aliança programática” do PSDB com o PFL (atual DEM). Porém, à medida em que as reformas emperravam, ou a sua popularidade afundava com as denúncias de compra de votos para a reeleição e as crises do Real, teve que ir fazendo concessões e abrigar em seu ministério figuras como Renan Calheiros (Ministro da Justiça), Eliseu Padilha (Transportes) e Ney Suassuna (Integração Nacional).

Lula e o PT também chegaram ao Planalto garantindo renovação, mas já ao fim do primeiro ano tiveram que aceitar Eunício Oliveira e Alfredo Nascimento. Veio o mensalão e embarcaram Saraiva Felipe, Hélio Costa, Márcio Fortes e Silas Rondeau e companhia limitada. No segundo mandato ainda se juntaram Carlos Lupi, Geddel Vieira Lima e Wagner Rossi - tudo em nome da governabilidade.

Dilma já iniciou seu mandato com um amplo ministério que mesclava petistas-raiz com uma ampla base onde cabiam Edison Lobão, Garibaldi Alves, Fernando Bezerra, Mário Negromonte, Carlos Lupi e Alfredo Nascimento. Quando sua popularidade despencou, teve que nomear Marcelo Crivella, Gilberto Kassab, Helder Barbalho, Armando Monteiro e Henrique Eduardo Alves. Nada disso impediu sua queda no início de 2016.

A história brasileira demonstra que crises econômicas, aprovação popular em baixa e dificuldades de sustentação no Congresso sempre forçam o presidente da República a ceder à “velha política” - representada tanto pelo Centrão quanto pelo “pemedebismo”, como diria Marcos Nobre, atual presidente do Cebrap e que por muito tempo ocupou este espaço.

Desde a posse, Bolsonaro mexeu pouco no seu time, na maioria das vezes motivado por intrigas internas (Bebianno, Santos Cruz, Abraham Weintraub e Marcelo Álvaro Antônio) ou desentendimentos com o ex-capitão (Mandetta e Moro). À exceção da nomeação de Fábio Faria, até hoje o presidente resistiu a abrir as portas de seu primeiro escalão para construir alianças partidárias.

Com índices de rejeição em alta e os colapsos na saúde e na economia, Bolsonaro certamente terá que engolir em seco e fazer como todos os seus antecessores para dissipar a tempestade perfeita que se forma no horizonte.

Olhando o ministério atual, há postos cativos de militares, evangélicos, olavistas, agronegócio e da predileção pessoal do presidente - além de Paulo Guedes, que anda bastante sumido ultimamente. Numa eventual reforma ministerial, pastas com grande orçamento em tempos de pandemia e de uma eventual terceira onda do auxílio-emergencial serão bastante cobiçadas pelo Centrão: Saúde, Educação e Cidadania.

Independentemente de quem vença as eleições para as presidências da Câmara e do Senado, Bolsonaro certamente sairá perdendo.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Sergio Lamucci: A volta do auxílio emergencial

Retorno faz sentido, com piora da pandemia e vacinação incerta

A volta do auxílio emergencial se torna cada vez mais provável, devido ao recrudescimento da pandemia e ao ritmo lento e incerto da vacinação contra a covid-19. A economia brasileira vai sofrer o golpe dessa combinação, devendo encolher no primeiro trimestre. O aumento do número de casos e mortes começa a levar a medidas mais fortes de restrições à mobilidade, como as anunciadas pelo governo de São Paulo na sexta-feira. As perspectivas para o mercado de trabalho, que já não eram das melhores, tendem a piorar, afetando o consumo das famílias. O quadro também é negativo para o investimento, dadas as incertezas sobre a vacinação e a possibilidade de que outros Estados e municípios adotem novas medidas de isolamento social, ainda que menos rigorosas do que as implementadas em março e abril do ano passado.

Com isso, as perspectivas para o crescimento em 2021 começaram a se deteriorar, e números na casa de 2% a 3% já aparecem em algumas estimativas de bancos e consultorias, apesar da elevada herança estatística que 2020 deixará para este ano. Nesse ambiente, cresce a pressão pela renovação do auxílio, uma medida que faz sentido, num ambiente de desemprego altíssimo. A volta do benefício, porém, precisa ser muito bem comunicada e acompanhada por medidas que indiquem o compromisso com a sustentabilidade fiscal, com reformas que enfrentem o aumento das despesas obrigatórias, como os gastos com pessoal.

O Ministério da Economia resiste ao retorno do auxílio, encerrado em dezembro. O risco é ser atropelado pelo Congresso e ver aprovado um benefício de valor mais alto, por um prazo longo e para um público mais amplo do que o recomendável num momento em que a dívida bruta é de quase 90% do PIB, enquanto a média dos emergentes é um pouco menor que 63% do PIB.

Na declaração da equipe do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao fim da missão que fez o raio-X da economia brasileira no ano passado, divulgada em outubro, ficou evidente o dilema para a política fiscal do país. O Fundo elogiou o compromisso do governo com o teto de gastos e ressaltou a importância do mecanismo. Ao mesmo tempo, afirmou que, se “a evolução das condições sanitárias, econômicas e sociais” fosse “pior do que o esperado pelas autoridades”, elas deveriam “estar preparadas a prestar mais apoio fiscal”.

O FMI sugeriu a realocação de recursos dentro do teto, para fortalecer a rede de proteção social de modo permanente. Essa teria sido a melhor solução, unificando programas sociais como o Bolsa Família, o abono salarial, o salário família e o seguro-defeso, conforme a proposta dos economistas Fernando Veloso, Marcos Mendes e Vinicius Botelho. Isso exigiria, porém, a disposição para tomar medidas corajosas e politicamente difíceis, algo que não faz parte do repertório do presidente Jair Bolsonaro.

O problema é que a pandemia não acabou com o ano-calendário, como tem dito o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto. Há uma segunda onda em curso, provavelmente mais grave que a primeira, o que também se observa em diversos outros países, com impactos sobre o ritmo de crescimento global no primeiro semestre. O dramático no Brasil é a atitude de Bolsonaro, que não reconhece a gravidade da doença, questiona a eficácia das vacinas e não planeja a imunização.

Com o recrudescimento da epidemia e as incertezas sobre a vacinação, retirar os estímulos fiscais abruptamente tende a levar a uma desaceleração expressiva da economia. Sem o auxílio, haverá uma queda de renda significativa dos grupos mais vulneráveis. Isso justifica mais apoio fiscal, como recomendado pelo próprio FMI, insuspeito de leniência fiscal. Além da volta do auxílio, podem ser necessários mais recursos para a saúde e para a compra de vacinas.

A questão é como fazer isso num país que tem de fato uma situação fiscal delicada. O comportamento do câmbio e das taxas de juros de longo prazo reflete a incerteza sobre a trajetória das contas públicas. A renovação do auxílio e eventuais novos gastos com saúde precisam ser comunicados com cuidado, ou o impacto sobre as condições financeiras vai dificultar ainda mais a retomada da atividade. Além disso, um câmbio muito desvalorizado colocará mais pressão sobre os preços, podendo exigir do Banco Central (BC) elevações mais fortes dos juros.

A situação exige uma sintonia fina. É preciso cautela ao retirar os estímulos fiscais, sem que isso seja visto como o fim do compromisso com o ajuste das contas públicas. Uma opção é usar a abertura de créditos extraordinários para financiar despesas como o auxílio. Salto observa que se trata de um instituto previsto na Constituição e que pode ser utilizado mesmo sem a presença do decreto do estado de calamidade pública, “como acontece em maior ou menor grau todo ano”. Segundo ele, o crédito extraordinário, desse modo, pode resolver a questão do teto, que limita o crescimento das despesas da União à inflação.

“O problema é que o déficit público previsto já é alto”, diz Salto. “Para o déficit, são necessárias outras medidas, ou pelo menos contas mostrando como ele seria afetado e como o país voltará, e em que prazo, à estabilidade da relação dívida/PIB.” Com isso, o crédito extraordinário poderia ser um caminho para a volta do auxílio, desde que acompanhado por outras medidas mostrando a sustentabilidade da dívida, como reformas que apontem para redução de gastos obrigatórios, caso das despesas com pessoal, avalia Salto, ressaltando que essa é uma das opções na mesa. “A falta de planejamento é um pecado mortal quando se está numa crise como esta. Em tempos normais, passa como um pecado venial, mas, no quadro atual, tudo muda de figura.”

O orçamento deste ano, ainda não aprovado, não tem espaço para mais gastos. O risco de paralisação dos serviços públicos já é elevado mesmo sem novas despesas, diz Salto. Para acomodar novos gastos, uma outra saída terá que ser adotada, além do corte de despesas discricionárias, como o custeio da máquina e os investimentos.

Os candidatos à presidência da Câmara e do Senado têm se mostrado a favor da volta do auxílio, em maior ou menor grau, indicando que ele deverá ser renovado. O benefício terá que ser menor que os R$ 600 que vigoraram de abril a agosto - de setembro a dezembro, o valor foi de R$ 300 -, e voltado a um grupo mais restrito. Em alguns meses, ele chegou a quase 68 milhões de pessoas. O prazo também não poderá ser dos mais longos.

Para que seja viável um auxílio por um período menor, porém, é fundamental que a vacinação deslanche. Sem isso, a economia não voltará à normalidade.


Adriana Fernandes: Jacaré econômico

Placar parcial no Congresso: 100% de apoio ao auxílio emergencial, 0% para o Ministério da Economia

É uma roda de ciranda a coleção de compromissos assumidos na área econômica pelos candidatos à presidência da Câmara e do Senado. Quatro dos quatro principais candidatos (os senadores Rodrigo Pacheco e Simone Tebet e os deputados Baleia Rossi e Arthur Lira) deram declarações de apoio à nova rodada do auxílio emergencial, que o ministro Paulo Guedes resiste em aceitar. Resultado até agora: 100% de apoio para o auxílio contra 0% para o Ministério da Economia.

Guedes, por sua vez, quer uma nova CPMF para financiar a desoneração da folha e aposta na vitória de Lira, que, no ano passado, indicou essa possibilidade “desde que com alíquota baixa” para criar empregos.

Contrário ao novo imposto, Baleia Rossi, que é autor da PEC 45 de reforma tributária, sai a campo e marca posição depois que reportagem do Estadão mostrou que o plano de Guedes para a recriação do imposto não morreu. “Meu adversário é pura metamorfose ambulante. Ele já quis CPMF. Depois, disse que não é bem assim.”

Pisando em ovos e com as redes sociais repercutindo negativamente o risco da volta da CPMF, Lira desconversa, finge esquecer o apoio dado há poucos meses, liga para Guedes e cobra explicações do ministro. O Ministério da Economia diz que “não tem nada disso” e tenta abafar o assunto. A recomendação é ninguém falar nada agora para não atrapalhar a eleição. Mas o tema volta com Pacheco, que afirma que “pode se discutir, criar a CPMF e desonerar a folha, é até aceitável desde que haja desoneração na outra ponta”.

Assim como Baleia não pode fechar as portas totalmente para o imposto sobre transações, porque tem também entre seus apoiadores defensores da desoneração dos salários, Lira tampouco quer afastar aqueles parlamentares que têm ojeriza à CPMF.

Baleia diz que a CPMF representa aumento de carga tributária. Governo e aliados tentam emplacar a narrativa de que a PEC 45, patrocinada pelo arqui-inimigo Rodrigo Maia, é que vai elevar o peso dos impostos. Bolsonaro pega carona e diz: “Se a reforma provocar aumento de tributos, é melhor deixar como está”. Resultado até agora: ninguém ganha, e a reforma tributária, que todos dizem querer 100%, fica ainda mais difícil e distante.

Se há uma pauta que revela como nunca a sinuca de bico desses acordos do plantão eleitoral é o das privatizações. No auge da briga com Maia, Guedes o acusou de bloquear o avanço das privatizações da Casa de Moeda e Eletrobrás, por causa de um acordo que ele teria feito com o PT para se reeleger presidente da Câmara.

Agora, o ministro assiste a Pacheco, o candidato do Planalto, ser apoiado pelo PT e detonar a privatização da Eletrobrás, a principal da lista de Guedes para 2021. A disfuncionalidade da aliança do PT na Câmara com Baleia, muito criticada por Guedes, e no Senado com Pacheco bloqueia os planos do ministro, independentemente do vencedor. Resultado até agora: chances mínimas de a privatização avançar.

Quando o assunto é teto de gastos, a maioria defende a sua manutenção com responsabilidade fiscal, mas só Pacheco pula a cerca e diz: “Teto de gastos não pode ficar intocado”. Indicadores do mercado desabam na mesma hora. Simone Tebet, sua concorrente na eleição, vai ao mercado no dia seguinte e propõe discutir mudanças na metodologia. Tebet, Baleia e Lira sabem que segurar o rojão para manter o teto não será fácil, com o Orçamento apertado para atender a tantos compromissos e à demanda do enfrentamento da covid-19.

Resultado até agora: teto balançando mais e gatilho quase acionado para a renovação do auxílio, com a queda de popularidade de Bolsonaro pelo desastre na condução da pandemia.

A equipe econômica tenta segurar até março a pressão. Mas tem gente graúda que aposta alto que o ministro vai fazer do limão uma limonada e aceitará a nova rodada, com a condicionante de que o Congresso aprove em um mês uma PEC com medidas de ajuste. Até lá, Guedes vai segurando a pressão com a promessa da sua ciranda econômica: antecipação de 13.º salário e abono, liberação de FGTS, adiamento de impostos...

Parlamentares podem até dizer que está tudo normal. Mas tem candidato vendendo como vantagem a promessa eleitoral de que “promessa com ele é cumprida”. Nenhum deles escapa da metamorfose ambulante de Raul Seixas. Tudo isso no caldeirão do impeachment. 

Com essa ciranda disforme, será trabalhoso dar rumo para a pauta econômica depois das eleições, porque ninguém sabe direito que bicho sairá dali. Será que é um jacaré?


Adriana Fernandes: A corrida política pelo auxílio

Congresso precisa retomar os trabalhos. A agenda do País é urgente demais para esperar

Cacique do MDB, o senador Renan Calheiros chamou pelas redes sociais de “pasmaceira que não resolve nada” o quadro atual em que problemas pendentes se acumulam exigindo resposta do Congresso para o plano de vacinação contra a covid-19, o auxílio emergencial e o Orçamento deste ano. 

A cobrança do senador e de um número cada vez maior de parlamentares é pelo fim do recesso parlamentar para o enfrentamento da situação de calamidade que passa o País e que não terminou com a virada de 2020 para 2021. Já há requerimento para uma convocação extraordinária do Congresso para discutir um novo decreto de calamidade e a prorrogação do auxílio.

Era de se esperar que isso de fato fosse acontecer para o Congresso acompanhar de perto e pressionar o governo a correr com as medidas necessárias nesse janeiro tenebroso.

Vamos lembrar que no início da pandemia o Congresso teve papel fundamental na aceleração da ação do governo Bolsonaro para a adoção das medidas que impediram um desastre ainda maior. Mais uma vez, porém, uma eleição está no caminho das decisões urgentes. 

Como aconteceu, no ano passado, na campanha eleitoral municipal, a eleição do Congresso empurra com a barriga os problemas. É por isso que o ano entrou sem uma solução para o fim do auxílio. O mês de fevereiro virou o novo mote da salvação. Mas é para depois da eleição, viu leitor!

De um lado, Renan, o presidente Rodrigo Maia, o candidato Baleia Rossi e tantos outros parlamentares da Câmara e do Senado que têm o interesse de acabar com recesso parlamentar por estratégia eleitoral para seus candidatos.  

Candidato à presidência da Câmara, Baleia Rossi já defendeu a prorrogação do auxílio emergencial e a convocação do Congresso para a aprovação das medidas.

Do outro lado, Jair BolsonaroDavi Alcolumbre, lideranças governistas, o candidato Arthur Lira e aliados não querem dar palco para os opositores.  Mas e daí? 

Daí que o presidente Bolsonaro já editou uma Medida Provisória que traz medidas excepcionais relativas à compra de vacinas, insumos, bens e serviços de logística e que trata do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação. Outras MPs podem ser adotadas e têm vigência imediata.

O governo federal também tenta impedir ações de combate à pandemia pelos Estados e municípios, como a de requisitar seringas e agulhas compradas pelo governo João Doria, destinadas à execução do plano estadual de imunização, o que já foi impedido pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), que está de plantão e deferiu medida cautelar solicitada pelo Estado de São Paulo.  

O cálculo político do primeiro grupo é o de que na data da eleição, no início de fevereiro, a pandemia estará mais forte e com a vacinação (na melhor das hipóteses) apenas começando. Essa piora da pandemia terá impacto na eleição.

No governo, a expectativa é que o seu candidato ganhe as eleições e lidere essa agenda. Por isso, prefere esperar para agir depois do resultado da eleição, no início de fevereiro.  

Baleia Rossi acenou com a prorrogação do auxílio. E Arthur Lira falou, logo em seguida, que é preciso cuidar dos mais pobres reorganizando os programas de renda mínima, “mas sem abrir mão da austeridade fiscal e do teto de gastos”.  

Lira disse que a “demagogia fiscal sempre custa caro para o País e em especial para os mais pobres”. O mais provável, porém, é que o discurso fiscalista de agora caia por terra daqui a pouco com os números do avanço da pandemia. Não vai demorar muito porque a pressão dos parlamentares e governadores é crescente também para o seu lado. 

Como na disputa política entre o presidente Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, pela vacina, a corrida pela prorrogação do auxílio e medidas urgentes para a vacinação vão dar o tom da campanha. Não tem como ser diferente. 

O mercado financeiro tem reagido às declarações de apoio à prorrogação do auxílio como um risco fiscal que piora os indicadores econômicos. A fala de Baleia em apoio ao benefício esta semana, no dia da formalização da sua candidatura à sucessão de Maia, causou apreensão. Fato comemorado pelo governo. Baleia, inclusive, já teve que fazer ajustes no seu discurso ao pregar também responsabilidade fiscal. Estranhamente houve uma inversão de papéis.

Não deve adiantar, porém, a reação do mercado. Chega uma hora que não dá para brigar com os acontecimentos.  É o mesmo script do início da pandemia. O auxílio deverá ser prorrogado e decretada nova calamidade. A questão agora é saber quem vai comandar essa agenda, controlar o seu alcance e timing: antes ou depois das eleições.

Independentemente dos interesses que cercam as eleições do Congresso, é preciso prontidão máxima que o controle da doença exige neste momento. Não só pelo auxílio, mas, sobretudo, pela vacinação dos brasileiros o mais rápido possível. O Congresso precisa retomar os trabalhos. Esse recesso é totalmente despropositado. A agenda é urgente demais pra esperar. O uso político que se pode fazer de uma convocação desse tipo é efeito colateral. Não se pode deixar de fazer a coisa certa por receio do efeito colateral. Porque aí significa o rabo abanando o cachorro.


Merval Pereira: Sem, sem

Com o fim do auxílio emergencial, cuja última parcela começou a ser paga ontem, poderemos ter uma noção mais clara do fenômeno de popularidade do presidente Jair Bolsonaro, que já chegou a um índice de 40% em setembro, e caiu este mês para 35%, sempre segundo o Ibope. Teremos, além da geração “nem, nem” - nem estuda, nem trabalha - teremos os “sem, sem”- sem emprego e sem auxílio.

O pico de popularidade aconteceu depois do pagamento da quinta parcela de R$ 600, e a queda chegou depois que o auxílio foi cortado pela metade. Mas essa queda ainda deixa Bolsonaro em situação melhor do que há um ano, quando sua popularidade era de 29%, a pior avaliação de um presidente da República no primeiro ano de governo desde 1994. Collor, eleito na primeira eleição direta do país depois do golpe militar, teve aprovação pior no primeiro ano de mandato.

Entre os cidadãos mais pobres o auxílio emergencial mostrou-se resiliente, com a aprovação dos eleitores com renda familiar até um salário mínimo subindo de 19%, em dezembro de 2019, para 35% na pesquisa de setembro, o que levou seu índice de avaliação positiva para 40% naquela ocasião. Os eleitores com menor grau de instrução deram um aumento consistente da popularidade do presidente.

Entre os com até a oitava série do ensino fundamental, a avaliação de ótimo ou bom foi de 25% para 44%, enquanto entre os pesquisados com até a quarta série cursada a aprovação subiu de 26% para 40%. Esses índices, porém, caíram nos últimos três meses, justamente quando o auxílio foi reduzido.

O fim das medidas extraordinárias que o governo decretou para combater a pandemia da COVID-19, que levaram o déficit do país a se elevar para cerca de R$ 700 bilhões, terá um impacto político presumivelmente grande para o presidente Bolsonaro, com consequências sociais graves. Já temos 14 milhões de desempregados, com mais os cerca de 40 milhões que deixarão de receber o auxílio, teremos em janeiro uma situação social muito delicada no país. Os inscritos no Bolsa Família continuarão a receber o benefício, que não será aumentado como chegou a anunciar o governo.

Com a economia que não sai do lugar, e a inflação aumentando, chegamos a uma combinação que pode ser explosiva. O problema é maior porque o governo está quebrado, não tem condições de manter o equilíbrio fiscal e voltar a pagar o auxílio emergencial, sem romper o teto de gastos. Depois que os governadores pressionaram o governo para que estendesse o auxílio emergencial por mais tempo, enquanto a pandemia persistir, a equipe econômica soltou uma nota ontem afirmando que não haverá prorrogação.

A pandemia não acaba, aumenta o número de mortes e de infectados, e o governo está atrasadíssimo com a vacinação. Ainda não entendeu que a vacinação massiva da população é que dará condição à economia de retomar um patamar de crescimento. Seria injusto dizer que o ministro da Economia Paulo Guedes não entendeu essa equação simples, mas ele já não tem o poder de decisão que presumia ter no início do governo.

Resta-lhe gastar a oratória farta para fora do governo, tentando criar situações favoráveis a seus pontos de vista. A nota oficial de ontem foi um exemplo dessa tentativa de barrar os governadores antes que eles convencessem o presidente a estender o auxílio emergencial. 

Não quer dizer que Bolsonaro não possa mudar de ideia a qualquer momento, se farejar que os índices de popularidade cairão mais ainda a partir de janeiro. Enquanto não pode usar o Tesouro a seu favor, o presidente tenta tergiversar, provocando polêmicas que desviem a atenção de seus fracassos, o maior deles a vacinação que já teve início em vários países vizinhos, até mesmo na Argentina, aqui do lado.

Quando se referiu ironicamente à tortura sofrida pela ex-presidente Dilma, pedindo um exame que prove as sequelas, Bolsonaro nada mais faz do que incensar seus apoiadores mais exaltados, mantendo aberta a porta da radicalização que já foi seu apoio político nos tempos em que pretendia dar um auto-golpe. Até jogar futebol, com direito a transmissão pela televisão estatal, Bolsonaro fez.

Quando diz que votaria até em Lula, mas nunca em João Doria, está ao mesmo tempo revelando o desejo in pectore de tê-lo como candidato, mas também deixa transparecer que seu verdadeiro adversário até o momento é Dória ou Moro, que também vem sendo atacado pelo ministro da Justiça mais submisso dos últimos tempos.


Miguel Nicolelis: Sem vacina, sem seringa, sem agulha e sem rumo

Sem uma ação coordenada de todo o país, envolvendo medidas sincronizadas de isolamento social, bloqueio sanitário das rodovias e uma campanha nacional de vacinação, o Brasil não conseguirá derrotar a covid-19

Apesar de assemelhar-se a um refrão de sucesso de carnavais passados, o título da minha última coluna de 2020 certamente não tem qualquer ambição de servir como inspiração para alguma futura marchinha carnavalesca. Pelo contrário, ao tentar reproduzir o estilo literário predileto do último astrofísico-poeta da humanidade, o persa Omar Khayan, que viveu entre os séculos XI e XII, esta quadra sem rima rica tem como propósito expor, de forma nua e crua, a situação trágica vivida pelo Brasil, depois de nove meses de uma pandemia que nunca esteve sob controle das autoridades governamentais e que ameaça atingir níveis ainda maiores de casos e óbitos nas próximas semanas.

Além dos quatro itens, que fazem parte da “Lista dos Sem”, como a batizei, eu poderia continuar enumerando outras várias razões que transformaram o Brasil num verdadeiro navio à deriva, uma nau “Sem capitão”; um barco gigantesco que, “Sem comando”, se contenta em vagar às cegas num vasto oceano viral, à mercê de ventos e correntes fatais, que ameaçam conduzir este nosso Titanic tupiniquim, depois da maior crise sanitária da nossa história, para dentro de um redemoinho que pode culminar na maior catástrofe socioeconômica jamais vivida abaixo da linha do equador.

O meu alarme decorre de uma simples análise de risco do cenário atual. Por exemplo, apesar de inúmeros avisos prévios, mesmo antes das festas de final e ano, o Brasil já sofre com uma nova explosão de casos e óbitos de covid-19. Esta escalada de casos, gerada pelo afrouxamento das medidas de isolamento social, abertura desenfreada do comércio e pelas aglomerações eleitorais, desencadeou uma segunda onda de superlotação hospitalar em todo país, com algumas capitais atingindo taxas de ocupação de leitos de UTI acima de 90%. Sem qualquer plano de comunicação de massa para alertar a população sobre os riscos que, em razão das aglomerações geradas no período das festas de final de ano, esta nação enfrentará uma explosão ainda maior de casos e óbitos, como ocorrido no período após o feriado de Ação de Graças nos Estados Unidos, quando o “Sem governo” ―ou seria (des)governo?― abandonou sua população à própria sorte. Não é à toa, portanto, que boa parte do país hoje se orienta através do último boato de Whatsapp a viralizar nas redes sociais. Acima de tudo, entre outros crimes lesa-pátria cometidos em 2020, há uma total falta de informações confiáveis e recomendações apropriadas para orientar a população em como proceder para se proteger contra o coronavírus, antes da chegada de uma vacina eficaz e segura.

Mas os absurdos não param aí. No país do “Sem a menor ideia”, técnicos do Tribunal de COntas da União (TCU), depois de minuciosa auditoria, concluíram que não existe planejamento estratégico minimamente aceitável para a distribuição de equipamentos de proteção, kits de testes, bem como de seringas e agulhas, e de vacinas ―até mesmo porque ninguém sabe qual ou quais serão usadas― para todo o território nacional. Se tudo isso não fosse o suficiente para gerar alarme em Pindorama, mesmo depois de vários países terem proibido todos os voos, de passageiros e de carga, oriundos do Reino Unido, para evitar a propagação de uma nova cepa mais contagiosa de SARS-CoV- 2, que provocou o estabelecimento de novo lockdown na Inglaterra, o espaço aéreo brasileiro continua aberto, e nossos aeroportos continuam não checando os passageiros, permitindo desta forma que diariamente novos casos de viajantes infectados possam entrar no Brasil, sem qualquer tipo de controle sanitário.

Diante desta situação dantesca, o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste publicou na última sexta-feira o seu Boletim de número 13. Nele, além da análise minuciosa da situação atual e futura de cada um dos Estados nordestinos, o comitê fez uma série de recomendações emergenciais para os nove governadores da região. Dentre elas, a mais urgente é a que os governadores nordestinos levem a seus colegas de todo o Brasil a proposta de criar, em caráter emergencial, uma Comissão Nacional de Vacinação, formada pelos principais especialistas na área, para atuar de forma independente do Ministério da Saúde e do Governo federal e criar um Plano Nacional de Imunização efetivo e seguro, a ser implementado em todo território nacional, através da ação conjunta de todos os Estados brasileiros. Esta proposta traz à luz do dia a verdade que ficou escondida em baixo do tapete durante todo o ano de 2020: sem uma ação coordenada de todo o país, envolvendo medidas sincronizadas de isolamento social, bloqueio sanitário das rodovias em todas as regiões do país, e uma campanha nacional de vacinação, o Brasil não conseguirá derrotar a covid-19 nem a curto prazo, nem a médio prazo. E o custo desta omissão será épico, em termos de centenas de milhares de vidas perdidas.

Depois de quase 200.000 mortes, não há mais nenhum tempo a perder se a sociedade brasileira deseja realmente evitar que no Natal de 2021 tenhamos mais de meio milhão de mortos como consequência daquela que já entrou para a história brasileira como a pandemia dos “Sem Noção”.

Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis


El País: Fim do auxílio emergencial deixa o Brasil entre o medo da pandemia e do desemprego em 2021

Segundo pesquisador, desemprego pode atingir 25 milhões de pessoas no país. “Como vou procurar emprego se a pandemia continua?”, questiona beneficiária do programa de ajuda do Governo

Heloísa Mendonça, El País

Não foi fácil atravessar o ano de 2020, mas o fim dele preocupa ainda mais a desempregada Bianca Duarte da Silva, de 25 anos. A partir de janeiro, ela fará parte do grupo de cerca de 67 milhões de brasileiros que deixarão de receber o auxílio emergencial, já que o benefício criado para minimizar os impactos econômicos da pandemia de covid-19 não foi prorrogado para 2021 pelo Governo de Jair Bolsonaro. Moradora de São Paulo, a desempregada já calcula o que precisará cortar no próximo ano. “Esse dinheiro ajudou muito nas despesas, na questão de alimentos e fraldas. Tenho um bebê e uma criança de 8 anos. Agora, dependemos todos de uma única renda, que é a do meu marido. Por conta da pandemia, não sei quando conseguirei procurar um emprego. Vai ficar apertado”, explica a jovem, que atuava antes como promotora de vendas, um exemplo da angústia vivida por essa parcela da população brasileira.

A equação para Bianca gerar mais renda não é fácil. Com as escolas e creches ainda fechadas, ela não tem com quem deixar os filhos para procurar um novo posto de trabalho e, ao mesmo tempo, está com medo do aumento dos casos de coronavírus na capital paulista. O ano terminou, mas a pandemia não. “Antes torcia para as escolas reabrirem, mas com o aumento de casos da doença colocaríamos todos em risco. O melhor seria mais parcelas do auxílio. Eu ainda tenho meu marido trabalhando. Mas e as tias dele que só vivem do auxílio, como vão fazer?”, lamenta. Hoje, 5% da população nacional vive apenas do benefício, segundo a última pesquisa PNAD Covid, do IBGE.

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A prorrogação desejada por Bianca e milhões que continuam sofrendo os impactos da crise sanitária já é, no entanto, carta fora do baralho para o Governo. “Auxílio é emergencial, o próprio nome diz: é emergencial. Não podemos ficar sinalizando em prorrogar e prorrogar e prorrogar”, afirmou o presidente Bolsonaro na última terça-feira (15). O presidente também ressaltou que não haverá oRenda Brasil, um novo programa que chegou a ser aventado durante este ano para substituir o auxílio emergencial. A expectativa era que o benefício fosse criado a partir da reformulação de vários programas sociais, mas ele não chegou a virar uma proposta nem no papel. “Quem falar em Renda Brasil, eu vou dar cartão vermelho, não tem mais conversa”, ressaltou o presidente. Segundo ele, a ideia é aumentar um pouquinho o Bolsa Família.

Além das famílias atingidas, o fim do auxílio emergencial, em um momento em que o país vê crescer novamente o número de casos de covid-19 e a economia está longe de sair da paralisia, também preocupa especialistas ouvidos pelo EL PAÍS. Os efeitos do benefício foram grandes e fizeram, inclusive, a pobreza diminuir no país, ainda que de forma temporária. Ela passou de 23% da população, em maio, para 20,9%. A extinção da transferência de renda pode, no entanto, causar um efeito contrário a partir do próximo ano. Caso o auxílio não tivesse sido oferecido desde abril, o índice de pobreza teria saltado para 36% durante a pandemia, segundo cálculos de Rogério Barbosa, professor do IESP-UERJ e pesquisador da USP. “A renda dos mais pobres de fato aumentou, mas essa melhora é ilusória. O dinheiro que chega é gasto imediatamente nas necessidades básicas, que se impõem. O auxílio não se converte em nenhum tipo de benefício duradouro. A real taxa de pobreza é quando você deixa de computar o auxílio”, pondera.

Queda de arrecadação e falência de pequenos negócios

Para o pesquisador, além da queda de renda da população, o fim do benefício irá afetar a arrecadação de Estados e municípios e também os pequenos comércios locais. O auxílio não tem apenas impacto sobre os pobres e vulneráveis que recebem, mas também no seu entorno, já que injeta recurso na economia. “O dinheiro recebido circula em comércios pequenos mantendo empregos e gera impostos no nível municipal e estadual. Claro que o auxílio não se paga ou volta para os cofres da União, mas vai para Estados e municípios de forma indireta. A pobreza pode chegar a 30% eventualmente se os negócios começarem a falir ainda mais e houver quebra generalizada”, explica.

O desafio da equipe econômica para decidir, nos últimos meses, sobre a continuidade do programa era encontrar uma fonte de financiamento que coubesse dentro da regra do teto ― que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação. Tarefa complexa para um orçamento engessado e em um momento que a saúde das contas públicas é uma das piores dos últimos anos, assim como a dívida do país, que pode chegar a 90% do PIB. As primeiras parcelas do auxílio no valor de 600 tiveram um custo de cerca de 51,5 bilhões de reais por mês. O valor caiu para a metade nos últimos meses do ano, quando a parcela do benefício foi reduzido em 50% (300 reais).

Na avaliação do economista Marcos Mendes, do Insper, se o país apresentar um aumento de despesa muita alto por um longo período certamente vão piorar as condições financeiras da economia. “E o que você eventualmente estará dando para a população mais pobre, você estará tirando por conta da deterioração econômica, com juros alto, inflação, estagnação”. Porém, o economista pondera que em uma situação de agravamento da pandemia não há como não dar assistência aos mais vulneráveis. “É uma situação bastante difícil porque a gente já gastou mais do que poderia em excesso e agora está faltando munição num eventual momento crítico da pandemia”.

Para Mendes, o ideal seria redirecionar os recursos atuais de política social para os 40% mais pobres da população. “Há dinheiro, mas ele é mal direcionado. Os programas precisam ser aperfeiçoados ao longo do tempo. O presidente interditou, no entanto, esse debate com o discurso populista, de que não iria tirar dinheiro de ninguém”, explica. Bolsonaro foi contra, por exemplo, qualquer mudança no abono salarial, uma espécie de 14º salário para quem ganha até dois salários mínimos. “Não podemos tirar dos pobres para entregar para os paupérrimos”, disse o presidente em agosto.

Já o pesquisador Rogério Barbosa defende que o momento atual de crise sanitária permite um endividamento do Estado. “Isso não é uma questão em outros países. A Inglaterra, por exemplo, está dizendo: ‘vamos endividar depois a gente paga. Não é um crescimento da dívida em condições normais, isso é uma precaução com respeito a consequências muito piores. Não estamos fazendo gastos estatais em tempos de bonança”, diz.

Embora o presidente insista que estamos hoje “no finalzinho da pandemia”, mesmo com o país voltando a registrar mais de 1.000 óbitos diários pela covid-19, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva afirmou em entrevista a esta jornal que não estamos fora de perigo, e que o auxílio emergencial deveria continuar em países como o Brasil. “Tirar esse salva-vidas prematuramente é um perigo em relação à pobreza e desigualdade. Retirar o apoio também prejudicaria a recuperação: até agora o que vemos é que os países que estão se recuperando de forma mais rápida têm em comum ter conseguido controlar a pandemia e ajudado as pessoas e as empresas”, afirmou ao jornalista Ignacio Fariza.

Desemprego pode ter salto

Os empregos podem ser outras vítimas da pandemia. A taxa de desemprego ― em 14,6%, no terceiro trimestre ― pode dar um salto com o fim da transferência do auxílio emergencial. Muitas pessoas que perderam seus postos de trabalho não voltaram a procurar outro por conta da pandemia e as regras de quarentena. É o que Barbosa denomina “desemprego oculto” pelo distanciamento social. “Elas estão desempregados, mas não estão na estatísticas. O desemprego oculto foi diminuindo ao longo dos meses, se transformando em desemprego real, mas se você computa os dois índices você possui um taxa de 25% de desemprego. Ainda que a taxa de ocupação esteja de fato se recuperando, o desemprego cresce em velocidade mais rápida do que a própria ocupação”, explica. Pelos cálculos do pesquisador, podemos chegar a ter 25 milhões de pessoas na fila do desemprego no país. E as taxas de pessoas buscando emprego serão maiores nos Estados do Norte e Nordeste.


Armando Castelar Pinheiro: Economia das narrativas

Três narrativas em 2021: desaceleração com o fim do auxílio, retomada com vacinação e choque temporário da inflação

De acordo com o dicionário Merriam-Webster, uma narrativa é “uma forma de apresentar ou compreender uma situação ou série de eventos que reflita e promova um particular ponto de vista ou um conjunto de valores específicos”. Essa definição está no instigante livro de Robert Shiller, “Narrative Economics” (Princeton University Press, 2019). Como indica o título, o livro é uma grande análise das narrativas econômicas, que expande a palestra proferida no encontro de 2017 da Associação Americana de Economia (bit.ly/38mq5SX). Nesta, o autor observa que o “cérebro humano tem sido sempre altamente sintonizado com narrativas, factuais ou não, para justificar ações em curso, mesmo ações tão básicas como gastos de consumo e investimentos. Histórias motivam e conectam atividades a valores e necessidades profundamente enraizadas”.

O objetivo de Shiller é construir um referencial teórico sobre como as narrativas influenciam o comportamento dos agentes econômicos e como isso, por sua vez, determina o que ocorre na economia. A obra que se encaixa, portanto, no campo mais amplo da Economia Comportamental, a cujos conceitos Shiller recorre em diferentes partes do livro. É o caso, por exemplo, do conceito de “framing”, que enfatiza a influência da forma como as coisas são apresentadas (“framed”) nas decisões tomadas pelos agentes econômicos.

De fato, uma narrativa nada mais é que uma forma de apresentar e organizar as informações que circulam em certa comunidade, sejam elas verdadeiras ou não. Ou, como define o próprio Shiller, “narrativas são construções humanas que são misturas de fato, emoção, interesse humano, e outros detalhes estranhos que formam uma impressão na mente humana”.

Ao contrário do que ocorre nos trabalhos mais tradicionais de Economia Comportamental, porém, o foco de Shiller é a macroeconomia e, em especial, os ciclos econômicos. Assim, como ele coloca, “uma proposição chave deste livro é que as flutuações econômicas são substancialmente impulsionadas pelo contágio de variantes simplificadas e facilmente transmissíveis de narrativas econômicas. (...) Como com as epidemias de doenças, nem todos ficam infectados. (...) Mas em uma epidemia histórica, para a maioria das pessoas a narrativa será fundamental para suas razões para fazer, ou não fazer, coisas que afetaram a economia”.

Assim, a estrutura de análise utilizada no livro é: surge uma narrativa econômica que organiza ou confirma ideias e sentimentos ou paixões que flutuam na sociedade. Essa narrativa em algum momento é expressa publicamente por uma celebridade e isso gera um surto semelhante ao de uma epidemia, fazendo a narrativa se espalhar e influir no comportamento de um número grande o suficiente de pessoas para afetar o que ocorre na economia.

O livro ilustra esse argumento com diferentes exemplos, incluindo bolhas e recessões. Mas a proposta central não é tanto identificar e analisar narrativas que ajudem a entender fenômenos históricos, mas sim propor que uma metodologia como essa ajudaria a prever o que vai ocorrer à frente. Ou seja, que ao pensar o futuro não devemos olhar apenas preços e restrições econômicas, mas também as narrativas que podem vir a moldar o comportamento dos agentes econômicos.

Pensando no Brasil, por exemplo, eu enxergo três narrativas que podem exercer esse tipo de influência em 2021. Uma é que o fim do Auxílio Emergencial levará a uma significativa desaceleração da economia. Essa narrativa já parece influenciar a confiança de consumidores e empresas, o que pode levar a uma profecia auto-realizável, se desencorajar compras e investimentos. O Congresso, porém, parou de discutir a extensão do Auxílio, o que diminuiu a frequência com que o tema aparece na imprensa e isso vai enfraquecer a propagação dessa narrativa.

Uma segunda narrativa, na direção contrária, é a da recuperação econômica que virá com a vacinação e o controle da pandemia. Esta ainda é, por ora, uma narrativa do mercado financeiro, mas ela deve se disseminar conforme a primavera chegue no Hemisfério Norte. Veremos muitas histórias de consumo e, penso, uma narrativa se desenvolverá de que é justificado “exagerar” no consumo no pós pandemia, em especial de serviços.

A terceira narrativa diz respeito à alta dos preços. O Banco Central (BC) tomou a dianteira, argumentando que os 6% de inflação esperados para meados de 2021 são um choque temporário. Esse é um exemplo de algo que Shiller não enfatiza, mas que é uma conclusão direta de sua análise: que a construção e disseminação de narrativas é uma forma como o governo pode fazer política pública. Ainda que pense que o BC está certo em propor essa narrativa, acredito que ele enfrentará uma forte corrente de narrativas contrárias, já iniciadas por celebridades do mercado financeiro, que reportam uma maior preocupação com o controle da inflação em 2021. Preocupação para a qual vão concorrer, no segundo semestre, as pressões advindas da retomada do setor de serviços.

2020 foi um ano muito difícil para todos. Que o Natal e 2021 nos tragam muita felicidade. Sem receio de exagerar!

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


Pedro Fernando Nery: Frente ampla

2021 pode registrar maior nível de desigualdade de renda vivido sob atual Constituição

Completaram 18 anos da aprovação, no Senado, do projeto de renda básica de Eduardo Suplicy. A versão aprovada foi na verdade um substitutivo de um senador do DEM – ainda PFL. É um dos casos pouco conhecidos da atuação do partido na política social, cujo resgate é interessante à medida que o partido ganha protagonismo e a natureza de sua plataforma é mais debatida. 

O DEM foi o partido que mais conquistou prefeituras nas eleições municipais que acabam de se encerrar, e na semana passada ajudou a consolidar um esforço de frente ampla reunindo diversos partidos de esquerda. Ao Estadão neste mês, o prefeito eleito Eduardo Paes – no DEM – argumentou que o espectro do partido seria bem amplo, se colocando como alguém mais à esquerda do que o seu conjunto.

No parecer do ex-senador Francelino Pereira favorável à renda básica, argumentou-se que o crescimento econômico sozinho é um caminho lento para a superação da miséria no Brasil. A pobreza seria mais sensível à desigualdade do que ao PIB. A nova transferência de renda iria ao encontro do propósito de que nenhum brasileiro tivesse vergonha de aparecer em público, parafraseando uma definição da Adam Smith sobre privação em A Riqueza das Nações.

Outra proposta do antigo PFL naqueles tempos era a de inserir na Constituição um fundo para a erradicação da pobreza, financiado por um imposto sobre grandes fortunas. De autoria de Antonio Carlos Magalhães, veio a se tornar a Emenda Constitucional nº 31, de 2000. O fundo chegou a ser utilizado, mas o imposto que seria a principal fonte de recursos nunca foi instituído. 

A proposta original previa ainda uma nova contribuição social progressiva e aumentos de impostos sobre bens e serviços de luxo: “A desigualdade na distribuição de renda no Brasil é a matriz dos problemas que assolam nossa sociedade” justificou ACM. Havia provavelmente um componente regional nas iniciativas: nessa legislatura do fundo baseado em grandes fortunas e da renda básica o PFL tinha 15 senadores apenas do Nordeste e do Norte.

Antes, em 98, no documento “Uma Política Social para o Brasil: A Proposta Liberal”, o Partido defendera que a criação de um programa de renda mínima deveria ser prioridade do governo. Naquele ano eleitoral, Eliane Cantanhêde registrou a competição entre PT e PFL pela paternidade das ideias que seriam precursores do Bolsa Escola (2001) e do Bolsa Família (2004). O PT operava nos anos 90 o Bolsa-Escola do Distrito Federal, e o PFL o Bolsa-Cidadã da Bahia (menos abrangente e com foco em crianças em áreas de sisal).

Ainda naqueles anos antes do governo Lula, conforme lembra o cientista político Murilo Medeiros, parlamentares do antigo DEM relataram a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas, que implementa o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e pessoas com deficiência na pobreza) e o Fundef (o antecessor do Fundeb). 

Mais recentemente, o novo Fundeb, deste ano, foi relatado por uma deputada demista. Em 2019, parlamentares do partido voltaram ao tema da renda básica, propondo benefícios universais a crianças (benefício universal infantil) ou a idosos e portadores de doenças graves (RBU) – durante a tramitação da reforma da Previdência. 

No final do ano passado, esta coluna se chamou Natal na miséria: contrastava o otimismo que havia para 2020 com os parcos ganhos econômicos para os mais pobres nos anos recentes. O ano foi virado de cabeça pra baixo: a economia em recessão pela covid e a pobreza em queda pelo auxílio emergencial. Com o seu fim em 31 de dezembro, a mesma preocupação da coluna do último Natal permanece e se acentua: o Bolsa Família só não é suficiente.

Dados compilados por Rozane Siqueira (UFPE), veiculados recentemente por Armínio Fraga, mostram tanto que o desafio brasileiro não é tão diferente do de outros países como que melhorar é possível. Diversos países europeus, incluindo até Alemanha e Finlândia, teriam uma desigualdade de renda quase brasileira não fosse a atuação do Estado tributando e distribuindo. O Brasil se distingue não só pelos níveis mais altos de desigualdade, mas por pouco mudar quando o Estado entra na jogada – se comparado ao que acontece nesses países.

O fim do auxílio e a continuada propagação do vírus podem nos levar em 2021 ao maior nível de desigualdade de renda vivido sob a atual Constituição. Uma frente ampla para aprofundar aquele pacto de 88 será bem-vinda e é esperançoso perceber que nas últimas décadas ideias para combater a desigualdade e reformar o Estado vieram da esquerda e da direita. Vale toda torcida.

* Doutor em Economia 


Pablo Ortellado: Se não agirmos, teremos 20 milhões de novos pobres

Fim do auxílio emergencial pode produzir catástrofe social; projetos de lei no Congresso apontam saída

Nesta semana acontecem os últimos pagamentos do auxílio emergencial. O benefício deixará de ser pago a 41 milhões de brasileiros, 15 milhões dos quais têm no auxílio a única fonte de renda. A expectativa é que 20 milhões de pessoas passem a viver abaixo da linha de pobreza.

Apesar da catástrofe social iminente, o governo Bolsonaro ainda não apresentou um programa social que possa conter essa drástica expansão da pobreza que vai engolir 10% da população brasileira.

A saída mais rápida, a renovação do auxílio emergencial, parece enterrada, tanto pelo governo Bolsonaro, como por Rodrigo Maia, ainda que o TCU tenha indicado que os restos a pagar do orçamento de guerra pudessem ser utilizados para essa finalidade sem o rompimento do teto de gastos em 2021.

No Congresso tramitam duas propostas para reformar as políticas de transferência de renda.

Na Câmara tramita o PL 6072/19 de autoria da deputada Tabata Amaral que reforma o Bolsa Família. O projeto recebeu há pouco um substitutivo do deputado Eduardo Barbosa que estabelece duas linhas de cortes, uma para pobreza (R$ 260 per capita) e outra para extrema pobreza (R$ 130 per capita) e pretende, com o valor base, tirar todas as famílias da extrema pobreza.

Além disso, o substitutivo cria valores adicionais por filho, sem limite por família, corrigindo uma notória deficiência do Bolsa Família. Seriam R$ 100 para cada criança até 5 anos e R$ 50 para cada criança ou adolescente entre 6 e 17 anos. A proposta busca investir na infância, sobretudo na primeira infância, equilibrando os esforços sociais que hoje estão concentrados nos cidadãos mais velhos. O substitutivo também prorroga o auxílio emergencial por nove meses com redução gradual do valor até equiparar com o valor desse novo bolsa família.

No Senado, tramita o PL 5343/20 de autoria do senador Tasso Jereissati a partir de proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas. O projeto também estabelece cortes de pobreza (R$ 250 per capita) e extrema pobreza (R$ 120 per capita) e reforma o Bolsa Família, estabelecendo um valor base mais simples orientado a acabar com a pobreza extrema.

Além disso cria dois outros benefícios que funcionam como uma poupança: um orientado a compensar as flutuações de renda dos informais e outro voltado aos estudantes, que poderiam sacar após a conclusão do ensino médio. O projeto estabelece fontes dos recursos (remanejadas do Bolsa Família, abono salarial e seguro defeso) e cria metas sociais de redução da pobreza que, se não forem cumpridas, podem suspender desonerações.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Cristiano Romero: Não há dinheiro para o auxílio emergencial?

Subsídios a grupos consumiram 21,37% da receita em 2019

O país se aproxima de mais uma tragédia anunciada _ o fim do pagamento do auxílio emergencial _ e o que mais se ouve em Brasília é que faltam recursos para bancar a despesa. Diante da pandemia, cujo número de casos e mortes voltou a crescer, trata-se de viabilizar ajuda humanitária a pelo menos 23 milhões de pessoas que, daqui a duas semanas, não terão mais direito a receber um centavo do governo federal.

O governo federal, com a ajuda do Congresso Nacional, reagiu rapidamente à primeira onda da pandemia. O Banco Central foi célere na garantia de liquidez para o sistema financeiro e as grandes empresas. Já centenas de milhares de pequenas e médias firmas sucumbiram, principalmente no setor de serviços, porque a ajuda _ modesta _ demorou a chegar e beneficiou a poucos. Dentro e fora do governo isso foi visto _ e defendido _ como algo inevitável.

Na economia informal, onde atua cerca de metade da força de trabalho do país, a ajuda poderia ter evitado o que se vê neste momento nos grandes centros urbanos: o aumento exponencial dos moradores de rua, cidadãos que se afastam de suas família por vergonha (de não ter emprego) e que não depositam mais nenhuma esperança na própria vida nem no país onde nasceram. Chegar até os informais teria sido muito mais fácil se o Ministério da Economia tivesse acolhido proposta do BC de alcançar esse público por meio das empresas de maquininha.

Trabalhadores que atuam na informalidade correm enorme de risco de mergulhar na miséria absoluta quando sobrevêm crises como a atual. Eles se tornam vulneráveis de forma muito rápida, justamente, por não gozarem dos benefícios assegurados aos trabalhadores regidos pela CLT. A pandemia paralisou subitamente o comércio em geral e colocou nas ruas milhões de pessoas. Estas sequer conhecem seus direitos porque, em geral, morrem antes de completar 65 anos, idade que assegura a brasileiros em situação de indigência requerer do Estado um salário mínimo mensal por meio do programa Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Os cidadãos que fazem das ruas sua morada em momentos como este são, aos olhos não das leis mas sim dos governantes, os invisíveis. Em São Paulo, os moradores de rua fazem parte da paisagem, para a maioria dos transeuntes, como se isso fosse obrigatório, uma espécie de lei da natureza que escolhe os mais fortes entre nós e almadiçoa os fracos, uma predestinação "social" de seres que, por "livre arbítrio", optaram por não estudar e, por essa razão, merecem estar ali, mais vulneráveis do qualquer um de nós à ação implacável do tempo e à violência que campeia nos grandes centros urbanos.

O titular desta coluna conversou com um mendigo que, empurrando uma carroça e acompanhado obedientemente por nove cachorros (a maioria, abandonada à própria sorte nas ruas, como seu "dono"), esperava na porta de uma restaurante caixas de papelão que asseguravam parte de seu sustento. Ele contou que seu destino mudou radicalmente após o advento do Plano Collor, em 1990. A indústria onde trabalhava, fabricante de tintas, não sobreviveu à recessão provocada pelo confisco.

Desempregado aos 26 anos, o rapaz, originário de Minas Gerais, tentou se recolocar no mercado de trabalho nos quatro anos seguintes. O que mais ouviu foi que não havia vagas e que ele já estava "velho" para ser contratado. Em 1994, o ano de lançamento do Plano Real, ele desistiu de procurar emprego e de morar de favor na casa de amigos e conhecidos. Tornou-se, então, habitante das ruas da então 3ª metrópole do mundo. Não deu mais notícia à família, afastou-se dos amigos, porque, para ele e a maioria dos trabalhadores, vergonhoso não é ganhar pouco, mas, não trabalhar.

Indagado sobre a existência do BPC, que a esta altura de sua vida poderia ser um alento para a sua sobrevivência, nosso entrevistado disse que nunca ouvira falar, duvidou de "tamanha bondade" do governo, mas, antes de assoviar para os cachorros e bater em retirada, fez uma pergunta: "Doutor, é preciso ter quantos anos para ganhar esse BP, como é que é mesmo, BPC?". "Sessenta e cinco." "Ah, doutor, eu tenho só 57", disse gargalhando o homem, cuja aparência remetia facilmemente a alguém com mais de 70 anos.

O auxílio emergencial destinado aos brasileiros em situação mais vulnerável nesta pandemia foi instituído em pouco tempo, embora caiba aqui observação: ao escolher o público do programa Bolsa Família (BF) _ cerca de 44 milhões de pessoas _ como o mais elegível, governo e parlamento agiram com um olhar mais na política do que no bem-estar da maioria. Os beneficiários do BF já recebiam seus pagamentos, ainda que a um valor (R$ 150 em média por pessoa) que realmente precisava ser reajustado.

O auxílio foi definido em R$ 600 para o período entre abril e agosto, e de R$ 300 de setembro a dezembro. Além do público do BF, outras 23 milhões de pessoas teriam acessado o auxílio. A partir de janeiro, o pessoal do BF volta a receber R$ 150 e os outros, nada.

Falta dinheiro? Leitor, quando lhe disserem isso, olhe os números do orçamento de perto. O que se vê é que, apenas no ano passado, a União deixou de arrecadar R$ 308 bilhões e, em 2020, R$ 320 bilhões em tributos e impostos federais (ver gráfico). Esta fortuna foi apropriada pelos grupos de interesse específico mais bem representados em Brasília, entre eles, a indústria automobilística, os grandes grupos privados de educação e saúde e as classes média e alta.