atores

Imagem: divulgação

Os manuscritos sobre a Guerra dos Palmares na Biblioteca Pública de Évora e Torre do Tombo  

Sionei Ricardo Leão, autor e jornalista*

Dois manuscritos produzidos para narrar o que aconteceu no século 17 referente aos mocambos que compuseram o Quilombo dos Palmares permanecem entre as mais significativas referências para se ter informações, de um determinado ponto de vista, sobre o que foi o quotidiano daquelas povoações que desafiaram o poder colonial e, por esse motivo, foram perseguidas e destruídas a mando da então metrópole, Portugal.  

Ambos são pérolas no que se refere a cotejar em que medida os palmarinos se destacaram na organização social, política, religiosa, militar e agrícola. Os textos servem ainda de testemunho do temor, admiração e incômodo que a vida nos mocambos e a capital, Macaco, provocavam nos governantes que estavam em Portugal e na então colônia, o Brasil. Daí, para serem perseguidos, atacados e destruídos – o que se deu cabalmente em fevereiro de 1694 –, terem se tornado uma prioridade ao sistema político vigente, que se sentiu ameaçado pelos libertos. 

As versões consideradas originais têm uma só fonte. Elas são oriundas de um texto, uma crônica, escrita no segundo semestre de 1678 – cujo nome do autor é desconhecido. Apesar de anônimo, tudo se inclina, e quanto a isso há pouca controvérsia, que o manuscrito foi redigido em Pernambuco por algum escriba a serviço de dom Pedro de Almeida, governador da província. 

O propósito do manuscrito é narrar e bajular sobre o feito da província em obter um acordo de paz junto aos palmarinos, após várias investidas militares lideradas por Fernão Carrilho, sob o jugo do governador de Pernambuco, dom Pedro de Almeida. Um dos vários trechos impactantes do texto diz respeito a impressão que os pernambucanos tiveram do governante de Palmares, Ganga Zumba. 

Veja, a seguir, galeria:

Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
previous arrow
next arrow
 
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
Imagem: divulgação
previous arrow
next arrow

 “Toda forma de guerra se acha neles, com todos os cabos maiores e inferiores, assim para o sucesso das pelejas, como para a assistência do rei. Reconhecem-se todos obedientes a um, que se chama o Ganga Zumba, que quer dizer senhor grande. A este tem, e veneram por seu rei e senhor, assim os naturais dos palmares como os vindos de fora. Tem palácio capaz da sua família que é grande e assistido de todas as guardas e oficiais que costumam ter as casas reais. Tratam a ele com todos os respeitos de rei, e com todas as cerimônias de senhor. Os que chegam a sua presença põem o joelho no chão e batem as palmas das mãos, sinal do seu reconhecimento e protestação da sua excelência. Falam lhe por majestade. Obedecem-lhe por admiração. Habita na cidade real, que chamam Macaco”.  

Apesar de elaborado no século 17, o manuscrito passou a ser conhecido publicamente muito tempo depois, praticamente depois de dois séculos. Em 1859, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicou “Relação das guerras aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678”. O nome utilizado foi obra do conselheiro Antônio de Menezes de Vasconcellos de Drummond, que atuou como uma espécie de editor do documento. Na verdade, estudiosos avaliam que a transcrição não foi de toda fiel aos originais depositados em Évora e na Torre do Tombo.

O conselheiro Drummond, à época sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fez parte da elite intelectual e política do Segundo Reinado. Foi um dos fundadores e redatores do jornal O Tamoyo. Maçom de grande reputação, redigiu vários textos sobre o tema da história. Também contribuiu no jornal La France Chrétienne, além de figurar entre os membros fixos do Journal de Voyages.

Diplomata do Império, serviu como cônsul geral na Prússia. Teve responsabilidade de negócios do Brasil na Sardenha, em Roma e na Toscana. Notabilizou-se como o ministro residente e ministro plenipotenciário em Portugal. Drummond era, portanto, um literato e, também, uma pessoa com grande conhecimento internacional.  

Seja por todas essas credenciais do conselheiro Drummond, seja pelo valor do documento, o manuscrito passou a se tornar uma referência para os estudos sobre Palmares no século 19. O arquivo contou com novo impacto 17 anos mais tarde por intermédio de outra personalidade do mesmo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Desta vez, no ano de 1876, coube a Pedro Paulino da Fonseca uma nova atenção ao manuscrito. Ele publicou uma versão sob o título “Memória dos feitos que se deram durante os primeiros anos de guerra com os negros quilombolas dos Palmares, seu destroço e paz aceita em junho de 1678”.

A historiadora Silvia Hunold Lara, em texto apresentado em 2008, descreve que a iniciativa de Fonseca é uma recriação do texto escrito em 1678. Portanto, deve ser lido como outra obra, em lugar de uma rigorosa reprodução. 

A comparação entre o manuscrito de Évora e o texto de Fonseca confirma que ele não só acrescentou dados e alterou frases, como completou o texto, já que o manuscrito de Évora não possui título e está incompleto. Apesar de acompanhar de perto o documento, Fonseca é aqui, inequivocamente, o autor do texto. Não obstante, é fácil encontrar na bibliografia sobre Palmares quem use o texto publicado em 1859 pelo conselheiro Drummond e o de Paulino da Fonseca como se fossem fontes equivalentes ou de mesma natureza.

Importa ressaltar que, a partir dessas duas fontes, muitas análises e citações foram feitas ao manuscrito por estudiosos que não se reportaram aos originais sob a guarda de Évora ou da Torre do Tombo. Drummond e Fonseca, cada qual a sua maneira, não foram precisos ou se ativeram a um rigor acadêmico quanto à fidelidade aos originais dos documentos. 

No mesmo artigo de 2008, Silvia Hunold Lara informa que até aquele ano tinha conhecimento de sete versões diferentes da crônica:

  • O manuscrito de Évora, cuja letra é do século XVII;  
  • A cópia existente na Torre do Tombo, que também não pôde ser até agora localizada; 
  • Duas versões delas publicadas por Décio Freitas, que afirma transcrever cópias guardadas pelo Arquivo Histórico Ultramarino e pela Biblioteca Nacional de Lisboa que, apesar de vários esforços e tentativas, não foram localizadas nesses arquivos; 
  • A cópia (do século XIX) da Biblioteca Nacional; 
  • A versão publicada pelo conselheiro Drummond em 1859; 
  • A versão recriada por Pedro Paulino da Fonseca, publicada em 1879.

Em correspondência oficial com o Arquivo de Évora, recebi e-mail do instituto, assinado por João Mora, responsável pelo serviço de reservados, explicando ser muito difícil em 200 anos saber com exatidão quem teve acesso ao manuscrito. Apesar disso, enviou uma relação de nomes de 14 pessoas que assinaram um “códice” para pesquisas no arquivo, mas sem poder afirmar se elas tinham, ou não, interesse na crônica histórica. 

Évora também informou que o instituto não tem certeza sobre o autor do manuscrito, sequer sobre a proveniência antes da chegada ao arquivo. A biblioteca confidenciou inclusive estar muito interessada no conteúdo do trabalho que estava me propondo a fazer sobre o documento. 

Ao longo desses meses voltado para um estudo dos originais dos manuscritos, veio a público o lançamento, em 2022, do livro Guerra contra Palmares – o manuscrito de 1678 – da já citada historiadora Silvia Hunold Lara em parceria com o filólogo Phablo Roberto Marchis, ambos pesquisadores das Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Até então, tanto a versão de Évora quanto a da Torre do Tombo permaneciam inéditas no Brasil. 

Na obra, os autores atribuem a autoria do manuscrito que renomeiam como “Relação da ruína dos Palmares” a Antônio da Silva, vigário da matriz do Recife de 1658 a 1697. A publicação conta também com 14 documentos inéditos sobre a história dos mocambos palmarinos, produzidos entre 1671 e 1691 em Pernambuco e Lisboa.

O manuscrito teve por propósito ser um panfleto para ressaltar os feitos militares de Fernão de Carrilho na gestão do governador Pedro de Almeida contra os palmarinos, muitas das vezes descritos como bárbaros. São classificados como inimigos soberbos responsáveis por danos consideráveis a fazendas e povoados da capitania.

Este era o estado em que achou o Palmares D. Pedro de Almeida, quando tomou posse do Governo destas Capitanias de Pernambuco, e com os clamores do perigo e a queixa da insolência dos negros era geralmente lamentada de todos os moradores, logo tratou de acudir ao remédio daqueles povos, e de conquistar a soberba daqueles inimigos.

Apesar dessas intenções de valorizar os militares e o governador em detrimento dos palmarinos, na narrativa sobressai o oposto por intermédio da leitura do manuscrito. Os detalhes sobre a organização política, a farta produção agrícola, as manufaturas de todo tipo como peças de vestuário e as tantas edificações encontradas nos mocambos protagonizam o texto, apesar do objeto ser o inverso. 

São grandemente trabalhadores, singularmente prevenidos. Plantam todos os legumes da terra, de cujos frutos reservam celeiros para o tempo das guerras e do inverno.  O seu principal sustento é o milho grosso. Dele fazem várias iguarias. As caças os ajudam muito porque são aqueles matos delas abundantes.

É instigante recorrer a essa altura aos conceitos de Jacques Derrida expressos na obra Mal de arquivo – uma impressão Freudiana (2001). Nesse texto, o filósofo discorre sobre o poder político e o direito de fazer representar a lei pela prática de se decidir o que se depositar no lugar da casa oficinal ou funcional destinada a preservar a memória conveniente ao escrutínio das autoridades que ele chama de arcontes. 

Derrida disserta que esses arcontes eram responsáveis pela segurança física do depósito e do suporte. Cabia também a eles o direito e a competência hermenêutica, pois tinham o poder de interpretar os arquivos. Foi assim, nesta domiciliação, nesta obtenção consensual de domicílio, que os arquivos nasceram, escreve Derrida. 

Metaforicamente, os “arcontes”, no caso do manuscrito sobre Palmares, nos legaram informações que a guisa dos interesses da atualidade se prestam a uma interpretação no sentido totalmente oposto do ideário que propiciou a escrita e a preservação dessa crônica histórica. 

Recorro ainda a outro ícone da historiografia para grassar a relevância do manuscrito. Nesse caso, as ideias de Carlos Ginzburg, reconhecido como um dos pioneiros do estudo da micro-história. Essa vertente é considerada uma das mais importantes correntes do século 20. Pode ser caracterizada como método em que o pesquisador prioriza a “microanálise” de elementos do passado histórico em nível de escala reduzido, tendo como alvo aspectos culturais, econômicos e sociais.

No clássico sobre micro-história mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História (1990), Ginzburg se vale de um estudo do método do crítico de arte italiano Giovanni Morelli, que escreveu uma série de artigos sobre pintura entre os anos de 1874 e 1876 para se reportar e afirmar que no século 19 emergiu nas ciências humanas um modelo epistemológico (paradigma). 

O método de Morelli, de acordo com Ginzburg, consistia em distinguir os originais das cópias sem se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto, mais facilmente imitáveis, dos quadros. Pelo contrário, examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. 

Num dos tomos de seu estudo, Ginzburg remete a uma analogia a respeito da missão de se fazer história com as habilidades que o ser humano exerceu por milênios enquanto caçador. 

Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas.

Logo a intenção de Ginzburg com a nova epistemologia, o paradigma indiciário, é de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados margais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, baixos, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano.

Uma das máximas que podem ser utilizadas para interpretarmos ao que quer chegar Ginzburg com o paradigma está contida na afirmação dele próprio sobre o conhecimento histórico ser indireto, indiciário e conjetural. Daí retornarmos ao tema do manuscrito, pois o documento se presta a nos fornecer uma visão de Palmares e seus habitantes na medida em que analisamos o conteúdo pelas pistas que o texto nos oferta. 

O manuscrito é uma fonte para reconhecermos a complexidade, a influência e o grau civilizatório que os invasores encontravam a cada investida nos mocambos que compuseram Palmares. Os habitantes dos mocambos não nos deixaram testemunhos escritos das suas experiências quotidianas, dos projetos que certamente esboçaram e dos esforços, martírios e privações a que tiveram que se submeter. 

Décio Freitas autor de Palmares: A Guerra dos Escravos, obra que se tornou referência no tema, na oportunidade de uma série de entrevistas de cunho histórico feitas pela Folha de São Paulo em 2000, respondeu a jornalista Marilene Felinto. 

Folha - O sr. acha possível encontrar, por meio da arqueologia, resquícios do quilombo?
Freitas - Eu não tenho muita fé nisso, porque Palmares era um tipo de sociedade muito precária, em termos materiais. Eles usaram pedras nas fortificações do Macaco, mas o restante eram mocambos de madeira. Então, eu não vejo possibilidade de novas descobertas por meio de escavações.

Em 2019, como servidor da Fundação Cultural Palmares, visitei a Serra da Barriga, onde se celebra anualmente a memória daqueles homens e mulheres resistentes ao jugo colonial. Contrasta a imagem que se tem hoje da região, na maior parte coberta por florestas em comparação com as descrições da pujança, complexidade e organização que os mocambos tiveram no século 17, pois praticamente não restam vestígios do que ocorreu ali. O Parque Memorial Quilombo dos Palmares em Alagoas é ícone para compreendermos como pode se retirar materialmente da memória uma presença tão importante e marcante, naquele caso por meio de uma violência armada. 

Por todas essas razões, as versões dos manuscritos sob a guarda dos arquivos de Évora e da Torre do Tombo permanecem como preciosas informações sobre uma das mais destacadas resistências ao sistema escravista no Brasil, reconhecidamente, que Palmares ameaçou, enfrentou e infelizmente acabou por ser vítima da perseguição e fúria da metrópole e da colônia no século 17. 

Aliás, ao longo desse estudo, pude ter acesso a vários outros documentos inéditos que têm a ver com Palmares e outros momentos desse passado, que espero em futuro não muito distante dar conhecimento público por meio de outros trabalhos. A bem da verdade, um variado conjunto de preciosidades semelhantes aguardam por pesquisadores em arquivos europeus, brasileiros e africanos sobre a história da diáspora negra. 

Sobre o autor

* Sionei Ricardo Leão é jornalista e autor de Kamba’Race – Afrodescendências no Exército Brasileiro (2021), publicado pela editora da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).