arthur lira

A reforma vale-tudo de Lira

Vera Magalhães / O Globo

Política quase nunca é feita de boas intenções. Ela é praticada em bases bem mais pragmáticas que isso. A falta de apoio do Congresso à obsessão de Jair Bolsonaro pelo voto impresso, portanto, não se deve a nenhuma consciência por parte dos parlamentares de que é preciso zelar pela democracia, mas ao fato de eles considerarem essa cruzada uma bobagem e saberem que a urna eletrônica é segura — afinal, foram eleitos por ela.

Assim sendo, melhor gastar tempo, energia e conchavos com as próprias prioridades, em vez de se engajar na de Bolsonaro.

Eis que no minuto 1 da volta do recesso se materializa na Câmara, pronto para ser enfiado goela abaixo da sociedade, um calhamaço de mais de 900 artigos revogando toda a legislação eleitoral e, sob o pretexto de unificar tudo num Código Eleitoral, aproveitando para passar um tratoraço na fiscalização do uso de dinheiro público para campanhas e para o custeio dos partidos e para censurar as pesquisas, entre outras atrocidades.

O projeto patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e assinado por uma correligionária, a deputada Margarete Coelho (PP-PI), é mais um exemplo de um expediente que vai se tornando corriqueiro na Câmara sob o comando do deputado alagoano: os projetos surgem do nada e são rapidamente votados, para que não dê tempo de a imprensa denunciar todos os seus aspectos e de a sociedade se articular.

É, também, uma mostra de por que Lira se mantém impávido segurando qualquer pedido de impeachment de Bolsonaro, não importa o que ele faça: ele já comanda uma fatia expressiva do Orçamento, colocou dois aliados no Planalto e vai aprovando medidas (fundão eleitoral, mudança na lei de improbidade administrativa e, agora, o Código Eleitoral do vale-tudo) de sua agenda pessoal sem ser importunado pelo Executivo. Manda na pauta da Câmara, a despeito do gasto sem precedentes feito pelo governo Bolsonaro (e o fim da mamata?) com agrados ao Centrão.

A reforma na legislação eleitoral proposta pela porta-voz de Lira usa do mesmo negacionismo propalado por Bolsonaro em relação às urnas eletrônicas para censurar a divulgação de pesquisas às vésperas do pleito. Quer que institutos divulguem uma tabela de acertos (!) em levantamentos anteriores, ignorando a obviedade estatística de que pesquisas são fluidas, mostram tendências e que, principalmente no Brasil, algumas eleições apresentam curvas que se modificam às vésperas das eleições.

Em relação aos gastos dos cada vez mais fornidos fundos públicos, o partidário e o eleitoral, a regra na reforma de Lira é o libera geral: até transporte de eleitor passará a ser passível apenas de multa.

Mecanismos para garantir equidade na distribuição desses mesmos recursos, como a determinação de que mulheres e negros sejam contemplados de forma proporcional, vão para as cucuias.

A Justiça Eleitoral perderá mecanismos para aprovar resoluções que disciplinem as eleições e terá menos tempo para analisar prestações de contas de campanha. E ainda cabe muita bizarrice em 372 páginas feitas sob medida para perpetuar os mesmos, graças a muito dinheiro público, e para impedir renovação de fato na política.

A presença de Arthur Lira no comando da Câmara é um desses legados deletérios do bolsonarismo para as instituições. Sob seu comando, ainda que haja soluços pragmáticos, como a reação às ameaças de Braga Netto ou o enterro da PEC do voto impresso, eles sempre se darão sob a lógica de que há outra agenda, igualmente contrária ao interesse público e ao aprimoramento do processo democrático, à espreita.

Pobre do país que tem de se fiar num Congresso comandado por interesses desse tipo para (quem sabe) frear os pendores golpistas de um presidente da República disposto a tudo para se manter no poder.


Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/reforma-vale-tudo-de-lira.html


Congresso quer alterar todo o sistema político e eleitoral do país

São seis frentes que tramitam separadamente e tratam de temas como pesquisas eleitorais, voto impresso, cotas e distritão

Ranier Bragon e Danielle Brant / Folha de S. Paulo

Com a volta esta semana dos trabalhos no Congresso, a Câmara dos Deputados pretende votar propostas que visam alterar praticamente toda a legislação eleitoral e política do país, em uma reforma que, se entrar em vigor, será a maior da história desde a Constituição de 1988.

O Senado já aprovou antes do recesso um minipacote que, agora, aguarda análise dos deputados.

Entenda os principais pontos de cada uma das seis frentes de debate no Congresso, o estágio da tramitação de cada uma delas e o que pode mudar em relação ao que vigora hoje em dia.


1 - REVOGAÇÃO DE TODA A LEGISLAÇÃO ELEITORAL ORDINÁRIA E CONSOLIDAÇÃO DAS REGRAS EM UM ÚNICO CÓDIGO

O que é: projeto de lei complementar debatido por um grupo de parlamentares e relatado pela deputada Margarete Coelho (PP-PI), uma das principais aliadas de Lira

Estágio de tramitação: texto está pronto para ser votado no plenário da Câmara

Próximos passos: caso seja aprovado, segue para votação no Senado. Para valer nas eleições de 2022, tem que estar aprovado e sancionado pelo presidente da República até o início de outubro, a um ano da disputa

Alguns dos principais pontos:


2 - ALTERAÇÕES NAS REGRAS ELEITORAIS ESTABELECIDAS NA CONSTITUIÇÃO

O que é: proposta de emenda à Constituição relatada pela deputada Renata Abreu (Podemos-SP)

Estágio de tramitação: texto está pronto para ser votado na comissão especial da Câmara

Próximos passos: caso seja aprovado, segue para votação no plenário, onde precisa do apoio de ao menos 308 dos 513 deputados. Para valer nas eleições de 2022, tem que passar ainda pelo Senado e ser ser promulgado até o início de outubro, a um ano da disputa

Alguns dos principais pontos:


3 - VOTO IMPRESSO

O que é: proposta de emenda à Constituição relatada pelo deputado Filipe Barros (PSL-PR)

Estágio de tramitação: texto está pronto para ser votado na comissão especial da Câmara

Próximos passos: caso seja aprovado, segue para votação no plenário, onde precisa do apoio de ao menos 308 dos 513 deputados. Para valer nas eleições de 2022, tem que passar ainda pelo Senado e ser ser promulgado até o início de outubro, a um ano da disputa

Principal ponto:

Estabelece a impressão do voto dado pelo eleitor na urna eletrônica. O projeto obriga a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, que seriam depositadas em uma urna, de forma automática e sem contato manual


4 - ​MINIRREFORMA ELEITORAL DO SENADO

O que é: projetos sobre temas eleitorais, já aprovados pelo Senado

Estágio de tramitação: Aguardam votação pela Câmara

Próximos passos: caso sejam aprovados pelos deputados sem alteração, vão à sanção presidencial. Caso sejam alterados, voltam para análise do Senado. Para valer nas eleições de 2022, têm que estar sancionados até o início de outubro, a um ano da disputa

Alguns dos principais pontos:


5 - FUNDO ELEITORAL

O que é: previsão de gasto de dinheiro público na campanha de 2022, inserida na Lei de Diretrizes Orçamentárias

Estágio de tramitação: Aguarda sanção ou veto do presidente Jair Bolsonaro

Próximos passos: independentemente da decisão de Bolsonaro agora, valor final só será definido na discussão pelo Congresso do Orçamento-2022, a partir de setembro.

Principal ponto:

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Deputados e senadores aprovaram a LDO com dispositivo que quase triplica o valor do Fundo Eleitoral para as eleições de 2022, indo para R$ 5,7 bilhões. O fundo é a principal fonte de financiamento dos candidatos. Há tentativa de acordo para que o valor fique em torno de R$ 4 bilhões


6 - ​SEMIPRESIDENCIALISMO

O que é: texto ainda indefinido
Estágio de tramitação: nova proposta de emenda à Constituição pode ser apresentada ou pode ser usado texto já protocolado no ano passado pelo deputado Samuel Moreira (PSDB-SP).

Próximos passos: medida precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado em dois turnos de votação em cada Casa, com o apoio de ao menos 60% dos parlamentares.

Principal ponto:

Espécie de parlamentarismo, mas com a manutenção de mais poder na mão do presidente. O presidente da República, eleito pelo voto direto, é o chefe de Estado, comandante Supremo das Forças Armadas e tem o poder de dissolver o Congresso Nacional em casos extremos, convocando novas eleições, entre outras funções. Ele é responsável por indicar o primeiro-ministro, que é quem governará, de fato, juntamente com o Conselho de Ministros. O gabinete cai e é substituído caso perca apoio no Congresso.

O modelo é defendido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e pelo ex-presidente Michel Temer (MDB). O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), manifestou inclinação favorável à medida, para valer a partir de 2026. Oposição no Congresso é contra.


Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/congresso-quer-alterar-todo-o-sistema-politico-e-eleitoral-do-pais-entenda-principais-pontos.shtml


'Confio na Justiça Eleitoral, confio no sistema', diz Arthur Lira

Presidente da Câmara dos Deputados defende manutenção do calendário eleitoral

Raphael Di Cunto / Valor Econômico

BRASÍLIA - O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou ontem que é completamente comprometido com a democracia no país e que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, já desmentiu qualquer ameaça à realização das eleições em 2022 se não for aprovada a proposta de emenda constitucional (PEC) do voto impresso.

“[Eu] Não precisava ser claro [ao negar o caso nas redes sociais] porque o próprio ministro, em nota oficial, desmentiu o acontecido. Eu não participei da conversa”, disse Lira, em entrevista à GloboNews. “O ministro deixou claro que não fez e, naquele momento, a mim, de maneira muito coerente, não cabia tocar fogo num momento de recesso. Cabe, sim, tratar do que interessa: teremos sempre a eleição como forma de escolher nossos dirigentes no Brasil”, reforçou.

O jornal “O Estado de S. Paulo” publicou na semana passada que um presidente de partido levou a Lira, no começo de julho, uma ameaça feita pelo ministro da Defesa, ao lado dos comandantes das Forças Armadas, de que não ocorreriam eleições em 2022 se a PEC que exige a impressão de um comprovante do voto para futura auditagem não fosse aprovada pelo Congresso. Braga Netto negou em nota a ameaça e disse que não se comunica com presidentes dos Poderes através de intermediários, mas defendeu o debate “legítimo” sobre a PEC. Lira respondeu a matéria nas redes sociais e não negou que tenha ouvido a ameaça, mas defendeu que o julgamento dos eleitores sobre os políticos ocorrerá nas urnas.

Ontem o presidente da Câmara não fez comentários específicos sobre a defesa de Braga Netto do voto impresso, mas, em outro trecho da entrevista, quando comentava sobre a reforma eleitoral e dizia que não influenciaria na decisão dos deputados sobre o tema, o presidente da Câmara afirmou que “muitas pessoas opinam muito sem poder opinar porque deveriam se restringir ao seu mister constitucional”.

“Não entro nessa briga de dizer que o sistema não é confiável, mas, por confiável que seja, não vejo nenhum problema em ter regras de auditagem se parte da população e dos parlamentares pede esse debate”, afirmou Lira. “Mas repito: confio na Justiça Eleitoral, confio no sistema pelo qual fui eleito oito vezes.”

A votação da PEC deve ocorrer na comissão especial no dia 5 de agosto e a tendência é pela rejeição após presidentes de 11 partidos se reunirem com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e defenderem a confiabilidade das urnas eletrônicas. Aliados do presidente Jair Bolsonaro marcaram manifestações no dia 1º de agosto a favor da PEC. Lira disse ontem que os partidos decidirão democraticamente e que, independentemente do resultado, “ocorrerão eleições em outubro de 2022, de 2024 e 2026”.

Ele afirmou que a nomeação do presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), para ministro-chefe da Casa Civil “demonstra que o caminho” escolhido por Bolsonaro “é o do diálogo e não há nenhum risco à democracia”. Na opinião dele, o aliado conseguirá melhorar a articulação política do governo com o Congresso, o Judiciário e até internamente, com “mais firmeza nas proposições em que o governo tem que demonstrar unidade” e uma negociação mais efetiva no Senado.

O presidente da Câmara voltou a defender que não há condições políticas e sociais para abertura de processo de impeachment contra Bolsonaro e afirmou que as propostas da oposição que repassam ao plenário o poder de decidir sobre a instauração do processo são “casuísmo”. “Casuísmo é isso, é ficar discutindo situação de querer mudar uma regra quando já existe e persiste há vários anos”, afirmou, citando que presidentes da Câmara do PT e do PSDB seguraram processos contra seus governos.

Segundo Lira, a Câmara começará a analisar na primeira semana de agosto os projetos de reforma do Imposto de Renda, privatização dos Correios e reforma eleitoral. Se a PEC que muda o sistema de eleição para deputado for rejeitada, serão votados projetos para valorizar o voto em mulheres e reservar vagas para elas no Legislativo.


Paulo Fábio Dantas Neto: O PSDB e o centro – Entre a grande e a pequena política

Comentei, na semana passada, duas visões pessimistas de formadores de opinião não alinhados aos campos pré-eleitorais representados, hoje, pelo presidente Bolsonaro e pelo ex-presidente Lula.  De um lado, políticos e analistas próximos ao que se pode chamar de centro liberal-democrático e à centro-esquerda acham inevitável recorrer ao segundo para evitar a reeleição do primeiro. Supõem, inclusive, que esse será também o caminho da parte do chamado “centrão” menos aquinhoada pela distribuição de recursos políticos coordenada pelo deputado Artur Lira. No limite, poderia ser o caminho do próprio Lira, caso a imagem do presidente encaminhe-se mesmo ao derretimento eleitoral. De outro lado, raros políticos e diversos analistas situados à esquerda do PT acham também inevitável a polarização eleitoral entre extrema-direita e esquerda convencional e admitem apoio crítico a essa última. Mas negam às eleições um papel decisivo no enfrentamento da extrema-direita, que deve ser visto como luta continuada a ser travada num terreno bem além da política institucional. Essa última visão é mais ideológica do que propriamente política e dela não tratarei hoje. Mas da primeira, sim. Partirei da percepção mencionada acima, passarei, em seguida, a uma mirada no campo político da centro-direita (onde estão governistas, independentes e oposicionistas), para concluir a análise com foco no PSDB.

No modo de ver as coisas dos que se querem realistas quando, no centro democrático e na centro-esquerda, aceitam como definitiva a bipolarização hoje fotografada por pesquisas, subjaz certa preocupação em não se atrasar para o embarque no navio lulista, apresentado como uma espécie de arca de Noé. Afinal, a eleição presidencial não é solteira e estão em jogo mandatos de governador e senador, o que recomenda atenção imediata à formação de coalizões nos estados. Além disso, o espectro de gente do centrão costeando o alambrado da arca também recomenda agilidade aos candidatos a deputado ainda não alinhados. Porém, noves fora essa compreensível ansiedade pragmática, se bem analisados os argumentos públicos usados nesse campo, fica curioso ver admitir-se que Bolsonaro pode derreter e, ao mesmo tempo, justificar-se o apoio antecipado a Lula como se fosse um imperativo democrático pois, sem ele no segundo turno, a reeleição seria praticamente certa. Vejo motivos para avaliar como imprudente o pragmatismo implícito nessa confusa conduta proativa.

Antecipei, na coluna passada (A política entre universos paralelos”, de 08.05), que “na mão oposta à das previsões fatalistas, penso estar se configurando, no universo da política sistêmica, uma aceleração de movimentos de convergência para oferecer, às forças que se despregam, ou podem se despregar, do combo bolsonarista, uma alternativa eleitoral que não as afaste do eleitorado afim ao seu posicionamento político”. Chamei esse campo de liberal, ou centro-direita. Agora tentarei ser mais explícito.

Na adjetivação ideológica que usei se inclui o antipetismo. Fora dessa adjetivação (mas próximo a ela, especialmente na pauta econômica) vinha estando um conservadorismo social básico que convive de forma tensa com uma visão liberal dos costumes e das relações sociais. Esses movimentos convergentes têm conexões empresariais economicamente relevantes, mas também uma crescente aceitação numa classe média e de trabalhadores mais jovens do setor privado menos tradicional. Seu peso eleitoral tem se mostrado grande, desde 2014, em eleições nacionais, estaduais e municipais.

Forçando um pouco a mão, diria que esse campo tende a uma polarização de novo tipo com a percepção da esquerda mais enraizada no eleitorado, que é a do PT, a qual, graças a Lula, não deverá perder a sua posição hegemônica até 2022. Por contraste, no campo oposto à esquerda, do qual estou falando, não há predomínio partidário claro, mas nota-se, há mais de uma década, movimentos de capacitação do DEM para ocupar esse lugar. A escassa maturidade do processo não permite afirmar que 2022 será o do salto a esse patamar. Mas não deve passar despercebido que o DEM dispõe, para uma eventual composição na eleição presidencial, de quadros para o caso de uma articulação que se dirija ao centro, tangenciando mesmo a centro-esquerda, ou para uma solução dissidente do esquema governista, que eventualmente possa herdar boa parte do espólio bolsonarista, em caso de derretimento da popularidade do chefe

Independentemente das suas preferências políticas, quem se preocupa com a saúde da democracia será levado a saudar o surgimento de uma opção de centro-direita capaz de deslocar Bolsonaro da posição de polo. Isso, inclusive, induziria Lula a disputar o centro também pela via do discurso político, em vez de apenas semear cunhas nos bastidores enquanto fala como salvador da pátria e propagandeia seu paraíso passado. A busca, por atores da centro-direita, de uma opção não governista alternativa à de Lula fará bem ao país, ganhem ou percam a eleição para ele. O PSD de Kassab – autêntico ator de pequena política – tanto pode ficar nela e cumprir o papel de dissidente do centrão embarcado na arca de Noé, quanto o de aliado do DEM na busca dessa opção de centro-direita, que, sem deixar de ser filha da pequena política, poderá ir além e apontar uma saída que considere seu umbigo, mas não se resuma a ele. Como a política não é a seara do mero desejo, é bom ponderar que, enquanto a fortuna eleitoral de Bolsonaro não se definir, possibilidades de uma articulação como essa dar certo não ficarão explícitas.

A conservação ou o desgaste do capital eleitoral do presidente é, assim, a variável central a determinar maior ou menor largueza do horizonte do chamado centro. É óbvio que se essa variável decisiva se comportar na direção da reanimação de Bolsonaro (em linha com a agitação crescente no seu universo político paralelo dos comícios, lives, marchas, inaugurações e provocações) a resultante é a confirmação das versões fatalistas que apontam para a polarização entre ele e Lula. Mas em caso da variável tomar a direção oposta, indo do atual desgaste à erosão e dela à evaporação eleitoral do mito, cabe uma reflexão sobre o timing. Quanto mais cedo um desgaste irreversível se der, mais os agentes políticos próximos ao palácio (como o PSD e outras áreas do centrão) e um partido independente, como o DEM, tendem a ser o centro de gravidade de uma opção competitiva que procure se apresentar como centrista, assim como fará Lula na centro-esquerda. Quanto mais o desgaste de Bolsonaro for incremental – como tem sido – mais espaço haverá para uma solução política mais ampla, que aponte a uma candidatura de fato centrista e frentista, com um candidato de perfil liberal democrático e um programa de viés social-democrático. Nessa hipótese, a possível repercussão sobre o script de Lula seria a de levá-lo a prestar mais atenção na sua retaguarda à esquerda, que poderá ser fustigada por um candidato de centro menos marcado com o carimbo “eles”, tão ao gosto do petismo para ter conforto. Nesse enquadramento analítico pode-se discutir agora o possível papel do PSDB, partido de larga história e presente estreito.

Faz tempo – a rigor desde que Fernando Henrique Cardoso deixou o governo e o PT o ocupou e lá se vão quase vinte anos – que o PSDB se desloca cada vez mais ao campo liberal em economia e ao da centro-direita em política. Isso em termos práticos, não programáticos. Desse modo, não é estranho que não disponha, nesse momento, de um nome com perfil sequer aproximado ao da origem do partido. O nome que de fato está à sua disposição tem perfil diverso.

A desconfortável performance do governador João Dória, em pesquisas dentro do seu estado, parece estar levando a que desista de vez da reeleição e a apostar numa fuga para a frente. No seu estilo fortemente obstinado e autocentrado de fazer política, desafia a má vontade do partido e segue buscando a indicação para a candidatura presidencial, como quem trabalha com a linha do menor desgaste para a sua imagem. Essa conduta é possível não só pela obstinação, ou pelo fato de dispor de recursos de persuasão e pressão inerentes a quem governa São Paulo. Resulta também do cada vez mais claro fato de que não há no partido nome para concorrer com o seu. Sem discutir aqui méritos pessoais do governador Eduardo Leite ou do senador Tasso Jereissati, uma observação realista da cena não pode desconsiderar que são políticos com mandatos a renovar em 2022. Desistir de uma reeleição provável em seus estados para embarcar numa empreitada presidencial é uma decisão incomum no mundo real da política, a menos que haja largo conforto nas previsões de chances de vitória, o que não é bem o caso.

Nessas condições não se pode ver como animadora, para o PSDB, a perspectiva das prévias marcadas para outubro. Caso ocorram mesmo, dificilmente cumprirão o papel de derrotar João Dória. A opção, para evitar o nome do governador – objetivo que une em coalizão de veto praticamente todas as lideranças históricas do partido (por menos próximas e apaziguadas que estejam elas entre si) -, só pode ser a de propor uma política nacional de alianças diferente da que tem seguido desde quando foi, em 2002, deslocado para a oposição. Em resumo, não ter candidato e tornar-se centro fiador de uma frente. Para construir uma canoa dessa é preciso paus de boa cepa que têm sido queimados nas fumaças que emanam do ninho tucano. De há muito tem-se a impressão incômoda de que ali o ex-presidente Fernando Henrique prega no deserto. Mas os fragmentos históricos ainda podem influir, se vencerem as idiossincrasias que os dispersam e prodigamente dilapidam o capital político da legenda. Ao menos eleitoralmente, esse capital continua relevante, como ficou claro nas eleições municipais de 2020. O que tem faltado é liderança de grande política, capaz de sintonizar os interesses do partido com os do país.

Nas três eleições presidenciais seguintes à derrota de 2002 (em 2006, 2010 e 2014) o PSDB foi o polo que reuniu, em segundos turnos, as oposições ao PT. Em 2018 não foi capaz de trocar os pneus em plena viagem. Desertou do papel político que assumira como núcleo articulador do impeachment de Dilma Rousseff. Em vez de se apresentar ao eleitorado como principal força política responsável pelo governo de transição, procurou desvincular sua imagem daquele governo, tática malsucedida diante da óbvia e gritante coincidência entre as suas pautas e as daquele. O drible de corpo cobrou seu preço nas urnas, não obstante a dignidade do seu candidato. As três derrotas acumuladas, a saída do PT do governo e a intensa pressão da lava jato sobre o conjunto da política “tradicional”, fazendo emergir o bolsonarismo, somaram-se a essa miopia política para levar à perda da antiga condição de polo. O PSDB dilui-se, hoje, numa nuvem mais ou menos invertebrada que tenta se identificar como centro. De incontestada segunda via tornou-se uma entre as incertas opções de uma terceira.

Lucidez e alguma humildade não fariam mal e ajudariam aquele partido a ler corretamente a situação. Relativos êxitos em eleições municipais não fabricam candidaturas presidenciais competitivas. O palanque aí é plebiscitário e impõe requisitos de carisma ausentes hoje no plantel tucano. Mas olhando ao redor é possível achar um parceiro que possua um quadro que os atenda. Aqui não cabe fulanizar a análise, que não pode querer ensinar pai nosso a vigário. O ponto que trago tem a ver com virtudes do PSDB, não com suas fragilidades. É inegável que, além de quadros políticos estaduais e municipais, o partido ainda se conserva como referência nacional importante do eleitorado do centro democrático também pelo fato de ter, no seu entorno, gente capaz de formular ideias compatíveis com a qualidade da democracia política, mas também com o momento mundial de ênfase em redirecionamento de matrizes e objetivos econômicos e de reestruturação dos estados nacionais para mobilizar investimento robusto em políticas sociais. A sintonia do ideário formal do partido com essas exigências mundiais gritantemente inadiáveis para superar a crise nacional ficam evidentes na leitura do documento “Brasil pós-pandemia: uma proposta de reconstrução do futuro”, disponível no site do Instituto Teotônio Vilela.

Antes que apressados protestem, digo que não estou cogitando que um partido político qualquer possa se contentar com um papel formulador próprio de centros de debate intelectual. Trata-se é de encontrar vocalizadores politicamente viáveis para fazer suas melhores ideias influírem sobre decisões do eleitorado e de governo. E o modo prático de sintonizar um partido que disponha dessa possibilidade com as demandas da sociedade e do eleitorado é apostar numa política de alianças compatível com o fato de que valores da primeira e necessidades do segundo convergem, no momento, para um ideário social democrático que dorme nas prateleiras internas do partido. Tirá-las dali para que trafeguem na política (na grande e na pequena) só pode ser obra de grande política, capaz de ler que o eleitorado destinatário tem votado de modo relevante na centro-direita.

O que será mais realista? Inventar um quadro que pretenda reverter essa tendencia do eleitorado ou oferecer à centro-direita o programa social-democrático de que ela necessita, nessa conjuntura social e sanitária crítica, para sustentar sua sintonia embaixo? Sem esforço, os leitores entenderão que me refiro a uma virtual repactuação entre PSDB e DEM, com provável capacidade de atrair também o MDB, dissuadindo-o de um vôo solo. Ao contrário de 1993/94, o contexto 2021/22 pede orientação social do Estado, em vez de liberalismo econômico. Ao contrário do eleitorado de 1994, o viés da atitude do eleitor é a centro-direita, em vez de centro-esquerda. No tempo em que uma frente da centro-direita à centro-esquerda fez FHC presidente, o PFL forneceu o programa econômico e o PSDB entrou com o quadro político capaz de realizá-lo nas circunstâncias daquele momento. Quem duvidar disso leia o projeto detalhado que o partido antecessor do DEM preparou para a abortada revisão constitucional de 1993 e confira com o que o governo FHC aprovou no Congresso, ou adotou no Executivo, nos anos subsequentes. A conclusão inescapável será a de que ideias podem, sim, conversar com a política prática. Aquele arranjo vitorioso esteve longe de ser mera obra de pequena política.

Os dados do mundo real estão a sugerir aos atores de centro e de centro-direita a inversão dos termos de 1994 para produzir concertação análoga. Nenhum partido pode elaborar com mais agilidade e profundidade que o PSDB um programa em sintonia fina com um olhar “baideniano” sobre o Brasil e o mundo. Com amplitude capaz de agregar segmentos da centro-esquerda e lhes garantir lugar numa composição política para a chapa presidencial e/ou para as soluções estaduais. Por outro lado, nenhum partido está, objetivamente, mais bem postado que o DEM, no espectro político-eleitoral, para sediar a face externa dessa possível agregação, porque é aquele que pode, com a sua posição, tirar o continuísmo de tempo, ou seja, do segundo turno nessa eleição. Eventos na contramão da agregação – como a recente captura do vice-governador de São Paulo pela tática pré-eleitoral do governador – podem ocorrer a todo momento e precisarão ser enquadrados, digo melhor, neutralizados, em sua miudeza, por uma perspectiva estratégica. Seria muito bom para o Brasil. Já se será o melhor possível para o Brasil é assunto para os eleitores decidirem em 2022. Afinal, a esquerda também estará no jogo, com força, legitimidade e, espera-se, com proposições críveis e perspectiva estratégica.

Para concluir não custa relembrar a variável decisiva, que é a popularidade de Bolsonaro. Cooperar para derretê-la é questão de sobrevivência comum, nacional e social. Mas a escolha do método é questão em aberto. Quem quiser que se forme, como alternativa a ele e à esquerda, uma aliança mais conservadora, deve se apressar para tirá-lo do caminho logo e capturar dissidentes. Quem, dentro do espectro do chamado centro democrático, quiser apostar em solução mais ampla, capaz de sensibilizar também um eleitorado de centro-esquerda, precisará reunir grande e pequena política em vez de priorizar um tiro ao alvo imediato e cego contra o capitão. Precisará mais de uma ambiciosa paciência do que de espetáculos arrojados e projetos de heróis. Concertação demora, mas sua obra dura.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte:

Democracia Política e novo Reformismo


Paulo Fábio Dantas Neto: O PSDB e o centro – Entre a grande e a pequena política

Comentei, na semana passada, duas visões pessimistas de formadores de opinião não alinhados aos campos pré-eleitorais representados, hoje, pelo presidente Bolsonaro e pelo ex-presidente Lula.  De um lado, políticos e analistas próximos ao que se pode chamar de centro liberal-democrático e à centro-esquerda acham inevitável recorrer ao segundo para evitar a reeleição do primeiro. Supõem, inclusive, que esse será também o caminho da parte do chamado “centrão” menos aquinhoada pela distribuição de recursos políticos coordenada pelo deputado Artur Lira. No limite, poderia ser o caminho do próprio Lira, caso a imagem do presidente encaminhe-se mesmo ao derretimento eleitoral. De outro lado, raros políticos e diversos analistas situados à esquerda do PT acham também inevitável a polarização eleitoral entre extrema-direita e esquerda convencional e admitem apoio crítico a essa última. Mas negam às eleições um papel decisivo no enfrentamento da extrema-direita, que deve ser visto como luta continuada a ser travada num terreno bem além da política institucional. Essa última visão é mais ideológica do que propriamente política e dela não tratarei hoje. Mas da primeira, sim. Partirei da percepção mencionada acima, passarei, em seguida, a uma mirada no campo político da centro-direita (onde estão governistas, independentes e oposicionistas), para concluir a análise com foco no PSDB.

No modo de ver as coisas dos que se querem realistas quando, no centro democrático e na centro-esquerda, aceitam como definitiva a bipolarização hoje fotografada por pesquisas, subjaz certa preocupação em não se atrasar para o embarque no navio lulista, apresentado como uma espécie de arca de Noé. Afinal, a eleição presidencial não é solteira e estão em jogo mandatos de governador e senador, o que recomenda atenção imediata à formação de coalizões nos estados. Além disso, o espectro de gente do centrão costeando o alambrado da arca também recomenda agilidade aos candidatos a deputado ainda não alinhados. Porém, noves fora essa compreensível ansiedade pragmática, se bem analisados os argumentos públicos usados nesse campo, fica curioso ver admitir-se que Bolsonaro pode derreter e, ao mesmo tempo, justificar-se o apoio antecipado a Lula como se fosse um imperativo democrático pois, sem ele no segundo turno, a reeleição seria praticamente certa. Vejo motivos para avaliar como imprudente o pragmatismo implícito nessa confusa conduta proativa.

Antecipei, na coluna passada (A política entre universos paralelos”, de 08.05), que “na mão oposta à das previsões fatalistas, penso estar se configurando, no universo da política sistêmica, uma aceleração de movimentos de convergência para oferecer, às forças que se despregam, ou podem se despregar, do combo bolsonarista, uma alternativa eleitoral que não as afaste do eleitorado afim ao seu posicionamento político”. Chamei esse campo de liberal, ou centro-direita. Agora tentarei ser mais explícito.

Na adjetivação ideológica que usei se inclui o antipetismo. Fora dessa adjetivação (mas próximo a ela, especialmente na pauta econômica) vinha estando um conservadorismo social básico que convive de forma tensa com uma visão liberal dos costumes e das relações sociais. Esses movimentos convergentes têm conexões empresariais economicamente relevantes, mas também uma crescente aceitação numa classe média e de trabalhadores mais jovens do setor privado menos tradicional. Seu peso eleitoral tem se mostrado grande, desde 2014, em eleições nacionais, estaduais e municipais.

Forçando um pouco a mão, diria que esse campo tende a uma polarização de novo tipo com a percepção da esquerda mais enraizada no eleitorado, que é a do PT, a qual, graças a Lula, não deverá perder a sua posição hegemônica até 2022. Por contraste, no campo oposto à esquerda, do qual estou falando, não há predomínio partidário claro, mas nota-se, há mais de uma década, movimentos de capacitação do DEM para ocupar esse lugar. A escassa maturidade do processo não permite afirmar que 2022 será o do salto a esse patamar. Mas não deve passar despercebido que o DEM dispõe, para uma eventual composição na eleição presidencial, de quadros para o caso de uma articulação que se dirija ao centro, tangenciando mesmo a centro-esquerda, ou para uma solução dissidente do esquema governista, que eventualmente possa herdar boa parte do espólio bolsonarista, em caso de derretimento da popularidade do chefe

Independentemente das suas preferências políticas, quem se preocupa com a saúde da democracia será levado a saudar o surgimento de uma opção de centro-direita capaz de deslocar Bolsonaro da posição de polo. Isso, inclusive, induziria Lula a disputar o centro também pela via do discurso político, em vez de apenas semear cunhas nos bastidores enquanto fala como salvador da pátria e propagandeia seu paraíso passado. A busca, por atores da centro-direita, de uma opção não governista alternativa à de Lula fará bem ao país, ganhem ou percam a eleição para ele. O PSD de Kassab – autêntico ator de pequena política – tanto pode ficar nela e cumprir o papel de dissidente do centrão embarcado na arca de Noé, quanto o de aliado do DEM na busca dessa opção de centro-direita, que, sem deixar de ser filha da pequena política, poderá ir além e apontar uma saída que considere seu umbigo, mas não se resuma a ele. Como a política não é a seara do mero desejo, é bom ponderar que, enquanto a fortuna eleitoral de Bolsonaro não se definir, possibilidades de uma articulação como essa dar certo não ficarão explícitas.

A conservação ou o desgaste do capital eleitoral do presidente é, assim, a variável central a determinar maior ou menor largueza do horizonte do chamado centro. É óbvio que se essa variável decisiva se comportar na direção da reanimação de Bolsonaro (em linha com a agitação crescente no seu universo político paralelo dos comícios, lives, marchas, inaugurações e provocações) a resultante é a confirmação das versões fatalistas que apontam para a polarização entre ele e Lula. Mas em caso da variável tomar a direção oposta, indo do atual desgaste à erosão e dela à evaporação eleitoral do mito, cabe uma reflexão sobre o timing. Quanto mais cedo um desgaste irreversível se der, mais os agentes políticos próximos ao palácio (como o PSD e outras áreas do centrão) e um partido independente, como o DEM, tendem a ser o centro de gravidade de uma opção competitiva que procure se apresentar como centrista, assim como fará Lula na centro-esquerda. Quanto mais o desgaste de Bolsonaro for incremental – como tem sido – mais espaço haverá para uma solução política mais ampla, que aponte a uma candidatura de fato centrista e frentista, com um candidato de perfil liberal democrático e um programa de viés social-democrático. Nessa hipótese, a possível repercussão sobre o script de Lula seria a de levá-lo a prestar mais atenção na sua retaguarda à esquerda, que poderá ser fustigada por um candidato de centro menos marcado com o carimbo “eles”, tão ao gosto do petismo para ter conforto. Nesse enquadramento analítico pode-se discutir agora o possível papel do PSDB, partido de larga história e presente estreito.

Faz tempo – a rigor desde que Fernando Henrique Cardoso deixou o governo e o PT o ocupou e lá se vão quase vinte anos – que o PSDB se desloca cada vez mais ao campo liberal em economia e ao da centro-direita em política. Isso em termos práticos, não programáticos. Desse modo, não é estranho que não disponha, nesse momento, de um nome com perfil sequer aproximado ao da origem do partido. O nome que de fato está à sua disposição tem perfil diverso.

A desconfortável performance do governador João Dória, em pesquisas dentro do seu estado, parece estar levando a que desista de vez da reeleição e a apostar numa fuga para a frente. No seu estilo fortemente obstinado e autocentrado de fazer política, desafia a má vontade do partido e segue buscando a indicação para a candidatura presidencial, como quem trabalha com a linha do menor desgaste para a sua imagem. Essa conduta é possível não só pela obstinação, ou pelo fato de dispor de recursos de persuasão e pressão inerentes a quem governa São Paulo. Resulta também do cada vez mais claro fato de que não há no partido nome para concorrer com o seu. Sem discutir aqui méritos pessoais do governador Eduardo Leite ou do senador Tasso Jereissati, uma observação realista da cena não pode desconsiderar que são políticos com mandatos a renovar em 2022. Desistir de uma reeleição provável em seus estados para embarcar numa empreitada presidencial é uma decisão incomum no mundo real da política, a menos que haja largo conforto nas previsões de chances de vitória, o que não é bem o caso.

Nessas condições não se pode ver como animadora, para o PSDB, a perspectiva das prévias marcadas para outubro. Caso ocorram mesmo, dificilmente cumprirão o papel de derrotar João Dória. A opção, para evitar o nome do governador – objetivo que une em coalizão de veto praticamente todas as lideranças históricas do partido (por menos próximas e apaziguadas que estejam elas entre si) -, só pode ser a de propor uma política nacional de alianças diferente da que tem seguido desde quando foi, em 2002, deslocado para a oposição. Em resumo, não ter candidato e tornar-se centro fiador de uma frente. Para construir uma canoa dessa é preciso paus de boa cepa que têm sido queimados nas fumaças que emanam do ninho tucano. De há muito tem-se a impressão incômoda de que ali o ex-presidente Fernando Henrique prega no deserto. Mas os fragmentos históricos ainda podem influir, se vencerem as idiossincrasias que os dispersam e prodigamente dilapidam o capital político da legenda. Ao menos eleitoralmente, esse capital continua relevante, como ficou claro nas eleições municipais de 2020. O que tem faltado é liderança de grande política, capaz de sintonizar os interesses do partido com os do país.

Nas três eleições presidenciais seguintes à derrota de 2002 (em 2006, 2010 e 2014) o PSDB foi o polo que reuniu, em segundos turnos, as oposições ao PT. Em 2018 não foi capaz de trocar os pneus em plena viagem. Desertou do papel político que assumira como núcleo articulador do impeachment de Dilma Rousseff. Em vez de se apresentar ao eleitorado como principal força política responsável pelo governo de transição, procurou desvincular sua imagem daquele governo, tática malsucedida diante da óbvia e gritante coincidência entre as suas pautas e as daquele. O drible de corpo cobrou seu preço nas urnas, não obstante a dignidade do seu candidato. As três derrotas acumuladas, a saída do PT do governo e a intensa pressão da lava jato sobre o conjunto da política “tradicional”, fazendo emergir o bolsonarismo, somaram-se a essa miopia política para levar à perda da antiga condição de polo. O PSDB dilui-se, hoje, numa nuvem mais ou menos invertebrada que tenta se identificar como centro. De incontestada segunda via tornou-se uma entre as incertas opções de uma terceira.

Lucidez e alguma humildade não fariam mal e ajudariam aquele partido a ler corretamente a situação. Relativos êxitos em eleições municipais não fabricam candidaturas presidenciais competitivas. O palanque aí é plebiscitário e impõe requisitos de carisma ausentes hoje no plantel tucano. Mas olhando ao redor é possível achar um parceiro que possua um quadro que os atenda. Aqui não cabe fulanizar a análise, que não pode querer ensinar pai nosso a vigário. O ponto que trago tem a ver com virtudes do PSDB, não com suas fragilidades. É inegável que, além de quadros políticos estaduais e municipais, o partido ainda se conserva como referência nacional importante do eleitorado do centro democrático também pelo fato de ter, no seu entorno, gente capaz de formular ideias compatíveis com a qualidade da democracia política, mas também com o momento mundial de ênfase em redirecionamento de matrizes e objetivos econômicos e de reestruturação dos estados nacionais para mobilizar investimento robusto em políticas sociais. A sintonia do ideário formal do partido com essas exigências mundiais gritantemente inadiáveis para superar a crise nacional ficam evidentes na leitura do documento “Brasil pós-pandemia: uma proposta de reconstrução do futuro”, disponível no site do Instituto Teotônio Vilela.

Antes que apressados protestem, digo que não estou cogitando que um partido político qualquer possa se contentar com um papel formulador próprio de centros de debate intelectual. Trata-se é de encontrar vocalizadores politicamente viáveis para fazer suas melhores ideias influírem sobre decisões do eleitorado e de governo. E o modo prático de sintonizar um partido que disponha dessa possibilidade com as demandas da sociedade e do eleitorado é apostar numa política de alianças compatível com o fato de que valores da primeira e necessidades do segundo convergem, no momento, para um ideário social democrático que dorme nas prateleiras internas do partido. Tirá-las dali para que trafeguem na política (na grande e na pequena) só pode ser obra de grande política, capaz de ler que o eleitorado destinatário tem votado de modo relevante na centro-direita.

O que será mais realista? Inventar um quadro que pretenda reverter essa tendencia do eleitorado ou oferecer à centro-direita o programa social-democrático de que ela necessita, nessa conjuntura social e sanitária crítica, para sustentar sua sintonia embaixo? Sem esforço, os leitores entenderão que me refiro a uma virtual repactuação entre PSDB e DEM, com provável capacidade de atrair também o MDB, dissuadindo-o de um vôo solo. Ao contrário de 1993/94, o contexto 2021/22 pede orientação social do Estado, em vez de liberalismo econômico. Ao contrário do eleitorado de 1994, o viés da atitude do eleitor é a centro-direita, em vez de centro-esquerda. No tempo em que uma frente da centro-direita à centro-esquerda fez FHC presidente, o PFL forneceu o programa econômico e o PSDB entrou com o quadro político capaz de realizá-lo nas circunstâncias daquele momento. Quem duvidar disso leia o projeto detalhado que o partido antecessor do DEM preparou para a abortada revisão constitucional de 1993 e confira com o que o governo FHC aprovou no Congresso, ou adotou no Executivo, nos anos subsequentes. A conclusão inescapável será a de que ideias podem, sim, conversar com a política prática. Aquele arranjo vitorioso esteve longe de ser mera obra de pequena política.

Os dados do mundo real estão a sugerir aos atores de centro e de centro-direita a inversão dos termos de 1994 para produzir concertação análoga. Nenhum partido pode elaborar com mais agilidade e profundidade que o PSDB um programa em sintonia fina com um olhar “baideniano” sobre o Brasil e o mundo. Com amplitude capaz de agregar segmentos da centro-esquerda e lhes garantir lugar numa composição política para a chapa presidencial e/ou para as soluções estaduais. Por outro lado, nenhum partido está, objetivamente, mais bem postado que o DEM, no espectro político-eleitoral, para sediar a face externa dessa possível agregação, porque é aquele que pode, com a sua posição, tirar o continuísmo de tempo, ou seja, do segundo turno nessa eleição. Eventos na contramão da agregação – como a recente captura do vice-governador de São Paulo pela tática pré-eleitoral do governador – podem ocorrer a todo momento e precisarão ser enquadrados, digo melhor, neutralizados, em sua miudeza, por uma perspectiva estratégica. Seria muito bom para o Brasil. Já se será o melhor possível para o Brasil é assunto para os eleitores decidirem em 2022. Afinal, a esquerda também estará no jogo, com força, legitimidade e, espera-se, com proposições críveis e perspectiva estratégica.

Para concluir não custa relembrar a variável decisiva, que é a popularidade de Bolsonaro. Cooperar para derretê-la é questão de sobrevivência comum, nacional e social. Mas a escolha do método é questão em aberto. Quem quiser que se forme, como alternativa a ele e à esquerda, uma aliança mais conservadora, deve se apressar para tirá-lo do caminho logo e capturar dissidentes. Quem, dentro do espectro do chamado centro democrático, quiser apostar em solução mais ampla, capaz de sensibilizar também um eleitorado de centro-esquerda, precisará reunir grande e pequena política em vez de priorizar um tiro ao alvo imediato e cego contra o capitão. Precisará mais de uma ambiciosa paciência do que de espetáculos arrojados e projetos de heróis. Concertação demora, mas sua obra dura.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte:

Democracia Política e novo Reformismo


O Estado de S. Paulo: Câmara aprova projeto que flexibiliza regras de licenciamento ambiental

André Borges, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O projeto da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental foi aprovado na madrugada desta quinta-feira, 13, pelo plenário da Câmara dos Deputados. Com maioria na Casa, a bancada ruralista aprovou o texto substitutivo do Projeto de Lei 3.729, de 2004, relatado pelo deputado federal Neri Geller (Progressistas-MT), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.

A proposta do texto principal foi aprovada por 300 votos a favor, ante 122 contra. Nesta quinta-feira, 13, devem ser votados os destaques, como são conhecidas as mudanças específicas propostas pelas bancadas partidárias. Depois, o texto ainda precisa passar pelo Senado. Se os senadores fizerem mudanças no texto, o PL volta a ser debatido na Câmara, mas apenas sobre as eventuais alterações. Se não houver alterações e for aprovado no Senado, seguirá para sanção presidencial.

Entre as principais mudanças, está a dispensa de licença para projetos como obras de saneamento básico, manutenção em estradas e portos, distribuição de energia elétrica com baixa tensão, parte das atividades agropecuárias, entre outros. A nova modalidade também repassa a Estados a prerrogativa de analisar os empreendimentos que precisam de aval para liberação, cria uma espécie de licença autodeclatória para alguns casos e permite a unificação de etapas do licenciamento.

A aprovação causou indignação entre organizações ambientais, cientistas e especialistas no setor. O texto final foi encaminhado ao plenário sem ter passado por audiência pública. Não houve espaço para acatar nenhuma recomendação da ala ambiental, que alertou sobre vulnerabilidades no texto final. Especialistas no setor e juristas preveem ações judiciais, com desdobramentos no Supremo Tribunal Federal (STF), diante de possíveis inconstitucionalidades e descumprimentos de previsões da legislação ambiental.

Já a Frente Agropecuária defendeu o texto e culpou o modelo atual por obras paradas e excesso de burocracias. Disse ainda, ao longo do dia, que “o excesso de burocracia prejudica o setor produtivo e não garante a proteção ao meio ambiente”. Na Câmara, defensores da proposta como o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) também disseram que modelos semelhantes de licenciamento já são adotados em alguns Estados.

Ambientalistas tentaram tirar texto da pauta
Com 216 deputados e oito senadores, a Frente Parlamentar Ambientalista declarou “profunda indignação”. “É inadmissível que uma proposta como essa seja aprovada pela Câmara dos Deputados diante de tantos desastres ambientais vividos recentemente no país”, afirmou a Frente, em nota.

Os parlamentares ambientalistas afirmam que as tragédias de Mariana e Brumadinho (MG) deveriam ser exemplos da importância de debates aprofundados com a sociedade sobre o aprimoramento da ferramenta. “O meio ambiente e a vida dos povos indígenas e originários encontram-se, mais do que nunca, ameaçados pela política da ‘boiada livre’. Para a Frente, é “mais uma derrota do Brasil não somente em nível nacional, mas também internacional”. Coordenador do grupo, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) afirmou que se trata do fim do licenciamento ambiental no País e da “pior versão” da proposta ao longo de 17 anos de tramitação.

Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas da organização Observatório do Clima, afirma que a Câmara votou “a Lei da Não Licença e do Autolicenciamento”. “Somando-se as isenções de licença com o autolicenciamento em que foi transformada à licença por adesão e compromisso, sobra pouca coisa para licenciar. Consagra-se o ‘liberou geral’. Não é o licenciamento ambiental que trava os investimentos no País. É a falta de planejamento, a visão simplista de curto prazo, a busca por lucro fácil, a ignorância, a corrupção”, comenta. “O mundo debatendo a retomada econômica lastreada em uma perspectiva orientada para as questões ambientais e climáticas e a Câmara optando pelo retrocesso”, acrescenta Suely.

Desde a semana passada, quando veio à tona o texto final que seria apresentado pelo relator, centenas de organizações ambientais, especialistas no setor, acadêmicos e parlamentares se mobilizaram para tentar demover o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), da ideia de levar uma proposta ao plenário que não chegou a passar por audiência pública. Não houve negociação. Lira, que já havia assumido o compromisso de pautar o assunto apoiado pela Frente Agropecuária, confirmou que levaria a pauta adiante.

Neri Geller disse, durante a sessão plenária, que apresentou um relatório “equilibrado” e que não traz “uma única vírgula” que afronte o meio ambiente. Afirmou ainda que as regras hoje criam insegurança jurídica e provocam fuga de investimentos do Brasil. A FPA, da qual ele é vice-presidente, aponta excesso de burocracia no modelo atual e divulgou informações para declarar que o licenciamento ambiental é responsável pela paralisação de mais de 5 mil obras em todo o País, entre rodovias, hidrovias e ferrovias.

Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), porém, mostrou que o licenciamento ambiental não respondia por mais do que 1% das obras do País. Foram analisadas mais de 30 mil obras públicas financiadas com recursos federais. Menos de 200 projetos tinham paralisações associadas a dificuldades de obter licenciamento.

O próprio ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, chegou a afirmar, em entrevista ao Estadão, que o motivo das paralisações não é o licenciamento em si, mas a péssima qualidade dos estudos apresentados pelas empresas e órgãos do governo.

“É preciso fazer um mea-culpa sobre isso e reconhecer que não vínhamos fazendo a nossa parte tão bem quanto o necessário. Estávamos cobrando do órgão ambiental uma velocidade no licenciamento, mas deixávamos de fazer a nossa parte”, disse Freitas ao Estadão, em fevereiro. “Muitas vezes, o licenciamento trava por causa da baixa qualidade desses estudos. A gente estuda mal e, de repente, oferece um produto ruim para o órgão de meio ambiente analisar.”

Texto prevê dispensa de licença para parte das atividades econômicas

Uma das principais mudanças trazidas pelo PL diz respeito à dispensa expressa de licenças para cultivo de espécies de interesse agrícola, pecuária extensiva e semi-intensiva, além de pecuária intensiva de pequeno porte. Outros 13 tipos de atividades ficam isentas da obrigação de serem licenciadas. São projetos como obras de transmissão de energia elétrica; sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário; obras de manutenção de infraestrutura em instalações preexistentes, como estradas, além de dragagens (retirada de sedimentos) de rios; usinas de triagem de resíduos sólidos; pátios, estruturas e equipamentos para compostagem de resíduos orgânicos; e usinas de reciclagem de resíduos da construção civil.

Outra mudança criada pelo projeto de lei prevê o enfraquecimento de regras nacionais que hoje vigoram sobre o setor, repassando a governos estaduais e municípios a atribuição de definir qual tipo de empreendimento precisará de licença ambiental, além do tipo de processo do licenciamento que é aplicado em cada caso.

Entenda mais alguns impactos do projeto de lei:
Nacionalização de Licença por Adesão e Compromisso (LAC)

O texto propõe a adoção de licenças autodeclatarórias para todo o País. Esse instrumento da LAC já existe em alguns Estados, mas é aplicado apenas a determinados empreendimentos, e com conhecimento prévio da área ambiental e um termo de referência do que se pretende. A crítica é que, da forma como está estabelecida, a LAC será convertida em um licenciamento automático, com simples declaração pela internet, sendo submetida apenas a uma análise por amostragem.

Acesso irrestrito a terras indígenas e quilombolas em fase de estudo

O texto exclui da avaliação de impacto e da adoção de medidas preventivas as terras indígenas não homologadas e as terras quilombolas impactadas por empreendimentos. Hoje, a Constituição prevê que terras indígenas e quilombolas que estejam em fase de demarcação, ou seja, que ainda aguardam para serem tituladas, devem ser igualmente consideradas, como aquelas que já tiveram esses processos concluídos, com a homologação e titulação pelo governo.

Restrição a condicionantes sociais

O projeto limita profundamente o alcance de medidas de redução de impactos causados por projetos. Medidas como a instalação de escolas públicas e postos de saúde, que muitas vezes são incluídas em ações de mitigação e compensação, ficam mais restritas, limitando-se a temas especificamente ambientais, apesar de uma série de impactos sociais que é gerada por empreendimentos.

Enfraquecimento do ICMBio

O Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), órgão que hoje tem poder de veto a empreendimentos que venham a impactar as unidades de conservação federal, tem essa atribuição retirada, a partir do projeto de lei. O PL altera regras do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, acabando com o poder de veto do Instituto Chico Mendes, limitando sua atuação a uma posição consultiva. / COLABOROU EDUARDO GAYER

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,camara-aprova-projeto-que-afrouxa-regras-de-licenciamento-ambiental,70003713454


Fabio Graner: Reforma tributária exige debate, não tumulto

Ofuscado pelo tumulto gerado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, o relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) sobre a reforma tributária merece ser amplamente discutido pelo Congresso e pela sociedade. O texto mostra uma evolução importante em relação às PECs originais (45 e 110), porém, nasce com algumas lacunas que também precisam ser debatidas, entre elas não atacar a questão da baixa tributação sobre renda e patrimônio.

O substitutivo apenas tangencia o assunto ao reforçar na Constituição o princípio da progressividade fiscal, garantindo sua aplicação no imposto sobre heranças e doações (ITCMD) e no IPVA.

Ao Valor Ribeiro diz que não se trata de omissão. Como as duas PECs originais são centradas na tributação de consumo, seu relatório teve foco nisso, justifica. “Até porque muita coisa de renda pode ser por lei, infraconstitucional. Eu me referi à renda e patrimônio, reforcei o caráter de progressividade. Nós registramos isso e deixamos aberto para os parlamentares fazerem essa contribuição e, se todos entenderem que é devido, não serei eu que vou dizer que não é. Pelo contrário.”

O relator vai receber nos próximos dias sugestões para seu texto, que, pelo calendário da comissão, pode ter uma nova versão contemplando as contribuições no próximo dia 11.

A despeito de Lira ter anunciado a extinção das comissões, o relator mantém o tom diplomático e diz acreditar que seu texto conseguirá ser bem-sucedido no Congresso. “Eu vejo possibilidade de avançar. Os presidentes das duas casas, Rodrigo Pacheco [Senado] e Arthur Lira, disseram que a reforma tributária era prioridade. Reforma tributária é o que eu defendo. Ajustes tributários são outra coisa, não se tem impacto na economia como na reforma”, disse, em crítica indireta à tese de fatiamento do governo. “Eu defendo reforma ampla e confio na liderança dos presidentes para que esse tema possa avançar.”

Ribeiro destaca no relatório a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em duas fases, iniciando-se com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) do governo federal por dois anos e no terceiro ano incorporando o ICMS e o ISS. Esse desenho, admite, foi feito para atender a equipe econômica.

Ele disse ter recebido muitos retornos positivos. “Acho que é importante a mudança estrutural na tributação do consumo. Isso vai de fato transformar o país. Hoje acho que temos um texto para ser debatido. Temos uma legislação única que tributa o consumo e não mais bens e serviços de forma diferenciada”, afirmou.

Ex-secretário da Receita Federal, o professor da FGV Marcos Cintra elogiou o relatório, mesmo não sendo simpático à tese de um IVA nacional. Para ele, o texto corrigiu problemas de “falta de realismo” na PEC 45. “Ele manteve o que tinha de bom na PEC 45, crédito financeiro, tributação no destino, unificação administrativa, e tirou o que era irrealista, como a universalidade, ao abrir exceções para o Simples, Zona Franca de Manaus, autorizar regimes especiais e permitir alíquotas menores para setores como saúde e educação.”

Cintra, porém, elogia a decisão de Lira e avalia que, com extinção das comissões, a PEC 45 está morta e abriu-se espaço para a CBS e o Imposto de Renda avançarem na Câmara, pois não há necessidade de quórum constitucional. Além disso, avalia, o relatório de Ribeiro pode tramitar sem problemas no Senado e avançar no Congresso, se conseguir apoio.

Para o advogado Luiz Gustavo Bichara, sócio de escritório do mesmo nome, o substitutivo, “embora bem feito, parece ter acolhido pouquíssimas manifestações dos setores empresariais”. Ele cita que não foram acatadas algumas sugestões relativas à compensação de créditos tributários acumulados no passado e critica regra de que os novos créditos do IBS só existirão após a comprovação do pagamento do tributo na etapa anterior (fornecedor). “Eu diria que aqueles que pagam a conta não foram muito ouvidos. E isso é particularmente grave num momento em que a recuperação econômica nem começou ainda.”

Há muitos aspectos de mérito ainda a se analisar do texto. Porém, não podemos escapar da tentativa de entender o embate político que Lira trouxe para a luz do dia. O chefe da Câmara anunciou que a comissão mista estava extinta ainda durante a leitura do texto. Para além da descortesia política, o mais grave foi que ele adicionou incerteza sobre o destino de uma reforma absolutamente necessária e sobre a qual já repousa justificado ceticismo, diante de décadas de fracassos.

Seus aliados apontam que a intenção de Lira seria acelerar o processo reformista. Isso porque o tema agora foi para o plenário, o que daria a ele maior controle sobre seus próximos passos. Se isso for verdade, ganha força a tese de reforma fatiada sem mudanças imediatas na Constituição e que priorize a CBS e as mudanças no Imposto de Renda, como ainda defendem o governo e o próprio Lira.

Uma das questões importantes é saber se as ações mais recentes do parlamentar não deixam rastro de mágoa e contrariedade que inviabilizaria essa alternativa. Na terça mesmo ficou claro que sua decisão não foi bem recebida por boa parte dos seus pares.

O presidente do Senado se posicionou pela continuidade da comissão e parlamentares dela também reagiram, lembrando que a discussão no colegiado era parte de um acordo. Ontem, os secretários estaduais de Fazenda emitiram nota contra a extinção da comissão mista e defenderam a continuidade dos trabalhos. A decisão de Lira, segundo a nota, foi desrespeitosa.

Cientista político e sócio da Hold Assessoria Legislativa, André Cesar avalia que o presidente da Câmara agiu movido por interesse em retomar o protagonismo perdido com a CPI da Pandemia, por rivalidade política com o grupo do seu antecessor, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pelo sonho de aparecer para o mercado financeiro como grande artífice da reforma. Para ele, a atitude deixa sequelas que dificultam o avanço dessa reforma. “Ele não combinou com os russos e a coisa ficou mal construída”, disse, apontando risco de o Senado engavetar a reforma fatiada.

A dúvida que persiste é se a série histórica de fracassos da reforma tributária prevalecerá ou se, como na Previdência, a inércia será quebrada. Nessa disputa, construir pontes ajuda muito mais do que movimentos bruscos e imprevisíveis.

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/brasil/coluna/reforma-tributaria-exige-debate-nao-tumulto.ghtml


Everardo Maciel: Reforma tributária – Propostas subestimam impactos da tributação sobre preços

Não há nenhuma dúvida quanto à necessidade de reforma tributária, no Brasil, por várias razões, como a natureza intrinsecamente imperfeita de todos os sistemas tributários, as mudanças, cada vez mais rápidas e relevantes, nas circunstâncias econômicas e sociais, as controvérsias conceituais em razão de instabilidades na interpretação administrativa e na jurisprudência, a voracidade da burocracia tributária, etc.

Essa necessidade, todavia, não é exclusiva do Brasil. Alcança todos os países, não necessariamente ao mesmo tempo, nem com a mesma agenda de questões a solucionar.

Propostas de reforma tributária devem, precipuamente, delimitar seu objeto e eleger a forma de execução, dispensando chavões, dogmatismos, ilações insubsistentes, pretensões de recepcionar acriticamente experiências estrangeiras, estudos e pareceres encomendados por interesses privados. Além disso, devem ser precedidas de estudos, que exponham de forma clara os problemas que pretende enfrentar, as possíveis soluções e suas repercussões, a serem submetidas a debate aberto e transparente.

É como se fez no Brasil, em 1953, quando da elaboração do anteprojeto do Código Tributário Nacional.

Instituiu-se então uma comissão presidida pelo próprio ministro da FazendaOsvaldo Aranha, e integrada por qualificados tributaristas e servidores públicos, tendo como relator Rubens Gomes de Souza.

Durante nove meses, a Comissão fez inúmeras reuniões, produziu relatórios levados ao conhecimento público, examinou mais de mil sugestões, daí resultando um projeto de lei encaminhado para apreciação e aprovação pelo Congresso Nacional.

De igual modo, em 1965, foi constituída uma comissão para elaborar o anteprojeto de reforma da discriminação constitucional de rendas, presidida por Simões Lopes, presidente da Fundação Getúlio Vargas, e integrada por Rubens Gomes de Sousa, na condição de relator, e, entre outros, por Gerson Augusto da Silva, Gilberto de Ulhôa Canto e Mário Henrique Simonsen.

Essa Comissão, tomando por base estudos que remontam a 1963, elaborou o anteprojeto da Emenda Constitucional n.º 18, de 1965, que foi certamente a melhor reforma da tributação do consumo no Brasil.

Fica patente, em ambos os casos, que os projetos foram concebidos por especialistas, porém com efetiva participação do Estado, em nome da preservação do interesse público e da imparcialidade.

Espanha, em abril passado, adotou providência análoga, ao instituir comissão, integrada por tributaristas, economistas e servidores da Fazenda Pública, para analisar o sistema tributário espanhol e, até fevereiro de 2022, propor medidas visando a torná-lo mais eficiente no plano arrecadatório e mais eficaz no combate à pobreza, e, por fim, ajustá-lo ao contexto do século 21, especialmente no que concerne à atenção com a sustentabilidade e a economia digital.

Fatos recentes atestam que iniciativas tributárias movidas por mero voluntarismo, mesmo que lastreadas em teses razoáveis, podem resultar em custosas frustrações, em virtude da reação dos contribuintes.

Na França, em 2018, a elevação dos tributos incidentes sobre os combustíveis de origem fóssil gerou o movimento dos coletes amarelos (gilets jaunes, em francês), que promoveu uma trágica rebelião popular, com pessoas mortas, feridas e detidas, além de barricadas, saques e danos à propriedade pública.

No início desta semana, o governo colombiano se viu obrigado a retirar proposta de reforma tributária que, entre outras medidas, previa tributar, com uma alíquota uniforme de 19%, bens e serviços consumidos pela classe média e pelos pobres. A proposta provocou uma revolta, com 19 mortos e 700 feridos.

Esses fatos constituem um alerta para propostas de reforma tributária, no Brasil, que subestimam reações aos impactos da tributação sobre os preços, especialmente em tempos de pandemia.

Os contribuintes, dizia Maurício de Nassau em seu testamento político, são como carneiros, que se, entretanto, tosquiados até a dor se convertem em terríveis alimárias.

*Consultor Tributário, foi Secretário da Receita Federal (1995-2002)

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,propostas-de-reforma-tributaria-subestimam-reacoes-aos-impactos-da-tributacao-sobre-precos,70003705502


Vinicius Torres Freire: Reforma tributária mexe no bolso, mas pode morrer na praia poluída de Bolsonaro

Em uma reforma tributária que preste, alguns tipos de empresas vão pagar mais imposto, outras menos, assim como os consumidores de bens e serviços afetados. O objetivo é uniformizar o quanto possível o custo dos tributos. A uniformização de carga tributária por setor ou empresa e a simplificação de normas será tanto maior se incluir impostos centrais para estados (ICMS) e municípios (ISS). Quanto menos uniformizar e simplificar, menos a reforma vai prestar.

As contas dessas perdas e ganhos nem foram detalhadas, embora se estime que serviços como saúde, educação, telecomunicações e serviços profissionais (como advocacia e consultorias, a depender do regime: se não estão no Simples) devam pagar mais, seja na mudança parcial proposta pelo governo seja na mudança geral que vinha sendo analisada pela Comissão Mista do Congresso.

Com dinheiro na mesa, a discussão engrossa. Se houver rolo político anterior mesmo ao debate de quem paga a conta e quanto, o caldo engrossa e entorna. Voltou a entornar nas últimas três semanas e nesta terça-feira (4) escorreu pelo chão.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-SE), que entre outras coisas quer ser o líder-mor do governo no Parlamento, por ora deu fim à Comissão Mista que unificava projetos (de Câmara e Senado) de uma reforma ampla, geral, que trata de todos os impostos relevantes e inclui estados e municípios na mudança. Lira quer tocar a reforma de Paulo Guedes ou do governo, embora Jair Bolsonaro não tenha ideia do que se trata e tende a fazer alguma besteira assim que começar a ouvir queixas de setores afetados. Ainda mais se for relembrado de que, no fim do caminho da reforma de Guedes tem uma espécie de CPMF.

Em tese, o “imposto sobre transações” de Guedes, jamais explicado, serviria para reduzir impostos sobre a folha salarial de empresas, carga que seria redistribuída pela sociedade, em particular, diz gente do governo, sobre setores novos ou que pagam pouco de imposto. Na proposta original do governo, “fatiada”, também tem pedaços de reforma do IR da pessoa física, com redução geral de alíquota e fim de isenções para saúde e educação —justo, mas rolo na certa.

aversão a alguma CPMF pode acabar com a reforma do governo que não trata de PIS/Cofins. O assunto, então, estaria morto até 2023, pelo menos.

Lira deu seu tiro na reforma geral quando o parecer sobre a emenda constitucional, aliás bem razoável, era lido pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).

Guedes não quer a reforma geral. Quer aprovar a mudança e simplificação do PIS/Cofins, que vem de Michel Temer.

Embora ainda dê rolo (quem paga a conta), é de fato mais simples fazer essa mudança (em termos técnicos e legislativos). Tem também a vantagem de, talvez, mudar um pouco de assunto na política, dominado pela CPI da Covid. A cortina de fumaça deve ser furada, mas o governismo atropelado pela CPI não tem alternativa. Nem mesmo a ameaça dos comícios golpistas bolsonarianos do final de semana recebeu atenção.

Uniformizar impostos é necessário para que se tenha uma economia de mercado funcional. Impostos definem custos e, pois, podem distorcer investimentos. Trocando em miúdos bem simples e grossos, um investimento pode ser decidido não porque é rentável (com uso eficiente do capital), mas porque recebe algum favor (redução de impostos).

Jogar fora as emendas constitucionais da reforma tributária é desperdiçar um trabalho de anos. Mas tal reforma exige acordos sociais, econômicos e políticos complexos. Logo, não parece coisa de governo Bolsonaro.

Fonte:
Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/reforma-tributaria-mexe-no-bolso-mas-pode-morrer-na-praia-poluida-de-bolsonaro.shtml


Malu Gaspar: Toffoli manda Bolsonaro, Pacheco e Lira se explicarem sobre emendas "cheque em branco"

O ministro do Supremo Tribunal Federal José Dias Toffoli deu 10 dias a Jair Bolsonaro e os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, para enviar explicações sobre a ampliação de uma nova modalidade de desembolso das emendas parlamentares, as chamadas transferências especiais.

Os três foram notificados na última sexta-feira, como consequência de uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Novo e que foi distribuída para Toffoli. O Novo é crítico do instrumento de repasse. Jair Bolsonaro não era citado inicialmente na ação, mas Toffoli decidiu incluí-lo.

As transferências especiais foram criadas em 2019 pelo Congresso. São chamadas de "cheque em branco" porque, ao contrário do que acontece com os recursos enviados para estados e municípios por meio de emendas regulares, no caso delas não é preciso dizer em quê os recursos serão aplicados nem prestar contas aos órgãos federais de controle de seu uso.

 Basta o parlamentar indicar o nome da cidade que deve receber o dinheiro, e os recursos caem direto na conta da prefeitura, que também não precisa dizer o que fará com ele.

Criadas no final de 2019 com o propósito de facilitar o repasse da verba federal, em geral lento e burocrático, as transferências na prática criaram uma exceção à regra, adotada em toda a administração pública, pela qual o dinheiro para obras ou programas custeados com dinheiro da União é repassado a estados e prefeituras pelos ministérios ligados à aplicação das verbas e seu uso é fiscalizado pela Caixa.

 Elas foram estabelecidas por uma emenda constitucional que permitiu aos parlamentares repassar até metade de sua cota de emendas individuais por depósito direto. Em 2021, isso representará cerca de R$ 8 milhões por parlamentar. 

Conforme mostrou a coluna, essa verba ajudou a irrigar prefeituras comandadas por parentes de deputados no ano passado e contribuiu para a sua reeleição. Dos cinco municípios que mais receberam transferências especiais em 2020, em três o dinheiro foi repassado por um parlamentar que é parente do gestor local. Todos foram reeleitos.

Embora o mecanismo tenha sido criticado desde o início por órgãos de controle federais, por reduzir a possibilidade de fiscalização, no Orçamento de 2021, o relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias, Irajá Abreu (PSD-TO) decidiu estender, por conta própria, o uso do "cheque em branco" para as emendas coletivas de bancada, envolvendo uma fatia bem maior dos repasses federais: R$ 7,3 bilhões neste ano.

Pela regra, as emendas de bancada servem para custear projetos  maiores e são decididas de maneira coletiva entre os parlamentares de cada unidade federativa. Ao aplicar a elas o mesmo tratamento das emendas individuais, corre-se o risco de ampliar o uso de verba para atender a interesses paroquiais dos parlamentares em seus redutos eleitorais e deixar à míngua projetos mais relevantes. 

O texto de Irajá Abreu foi vetado por Jair Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelos congressistas no meio da votação do Orçamento de 2021, em 17 de março.

Para não atrasar ainda mais o Orçamento, que só acabou sendo votado no fim daquele mês, os líderes do governo no Congresso firmaram um acordo com parlamentares para que deixassem a conversão das emendas de bancada em transferências especiais para depois da sanção do texto orçamentário, o que ocorreu na semana passada.

Na ação impetrada no Supremo, o Partido Novo pede a revogação do "cheque em branco". O partido alega que a ampliação do uso das transferências promovida por Irajá Abreu é inconstitucional pois trata as emendas individuais e as de bancada, diferenciadas na lei, de maneira uniforme.

Os advogados do partido pedem ainda que a decisão seja proferida liminarmente, ou seja, rapidamente, uma vez que a aplicação das transferências especiais nas emendas de bancada está valendo e pode ser feita a qualquer momento. Somando-se o valor já autorizado a ser desembolsado neste ano em transferências especiais ao volume que desejam os parlamentares, o valor total do "cheque em branco" pode chegar a R$ 9,3 bilhões neste ano.

“Trata-se, portanto, de caso de extrema urgência, a fim de evitar a reorientação das emendas parlamentares de bancada rumo a um tipo de execução que não tem base constitucional”, afirma o Novo, em sua petição.

Após o prazo de 10 dias para esclarecimentos, Toffoli quer ouvir também a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da União antes de proferir sua decisão.


Hélio Schwartsman: O distritão como ameaça

Se fosse desenhar nossas instituições, proporia algo bem diferente do que temos

Como tem ocorrido nos últimos ciclos eleitorais, a Câmara ameaça aprovar uma reforma que inclua o distritão, um sistema de cômputo de votos em que todos os candidatos a deputado por um estado, inclusive os de uma mesma legenda, concorrem diretamente uns com os outros, debilitando ainda mais os partidos políticos, que já são fracos no Brasil.

É pouco provável que a iniciativa prospere. Mas, numa estratégia semelhante à do ministro que gosta de fazer passar a boiada, parlamentares acabam trocando a desistência do distritão pela aprovação de alguma outra medida de menor alcance que os beneficie. Todo mundo fica feliz. A massa crítica de eleitores e os políticos responsáveis porque evitaram o pior, e deputados que prosperam na balbúrdia partidária porque conseguiram arrancar uma vantagem.

Se eu fosse desenhar do nada as instituições políticas brasileiras, proporia algo bem diferente do que temos. Eu adotaria o parlamentarismo num sistema unicameral em que os representantes são escolhidos por voto distrital ou distrital misto.

A questão é que não estamos criando algo do nada. Ao contrário, estamos num país concreto com eleitores concretos, que, consultados, já disseram não ao parlamentarismo duas vezes nos últimos 60 anos. Mudanças enfiadas goela abaixo do cidadão, por mais bem desenhadas que sejam, tendem a não funcionar.

Nenhum sistema é perfeito, e todos podem ser aprimorados com mudanças incrementais. No Brasil, introduzimos timidamente duas delas na última reforma: o fim das coligações em eleições proporcionais e um arremedo de cláusula de barreira. Se dermos tempo para que produzam seus efeitos, o que já começou a ocorrer, em mais alguns ciclos observaremos a redução do número de partidos políticos, o que deve favorecer a formação de coalizões estáveis de governo. Meu receio é que seja justamente uma dessas medidas que deputados planejem reverter.


Ricardo Noblat: Lira ganha batalha do Orçamento, Pacheco perde a da CPI

Governo Bolsonaro compra brigas em muitas frentes

De tanto esticar a corda e bater o pé, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, ganhou a batalha do Orçamento da União para este ano, entregando aos colegas o que havia prometido – bilhões de reais para o pagamento de emendas parlamentares e a construção de obras em seus redutos eleitorais.

Na outra parte do prédio do Congresso onde repousa a cúpula emborcada do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente da Casa, celebra uma vitória de pirro – o adiamento por mais uma semana da instalação da CPI da Covid-19, que ele fez tudo para boicotar, e o governo Bolsonaro também.

Pacheco e o governo tinham motivos diferentes para não querer a CPI. Para o governo, a exposição dos seus muitos erros no combate à pandemia só lhe fará mal em um ano em que ele só colherá más notícias. Para Pacheco, a CPI o retira por 90 dias ou mais do centro do palco da política nacional, e isso doeria em qualquer um.

O eclipse mesmo que temporário será um tremendo incômodo para Pacheco, logo no momento em que seu nome começa a circular em rodas de partidos como uma boa aposta para disputar a eleição presidencial do próximo ano. Pacheco nega que será candidato. Mas nem Lula admite ainda que será.

Só obrigado pelo Supremo Tribunal Federal foi que Pacheco concordou com a criação da CPI. Pensava mais em si, no seu protagonismo ameaçado do que em simplesmente em ajudar ao governo. A esse faltou coordenação política para evitá-la. É o que sempre lhe falta. Amargará tristes meses pela frente.

Quanto mais Pacheco e o governo retardem a instalação da CPI, quanto mais o governo mobilizar seus devotos para atacá-la nas redes sociais, mais despertará a atenção em torno do que será descoberto por lá ou confirmado. O governo não teve força sequer para emplacar aliados na presidência ou na relatoria da CPI.

O presidente será o senador Omar Aziz (PSD-AM), tido como um político independente. Mesmo que não seja tão independente assim, ele representa o Estado que mais sofreu até aqui com a pandemia e aspira a governá-lo outra vez a partir de 2022. Pessoas morreram asfixiadas por falta de oxigênio no Amazonas.

Renan Calheiros (MDB-AL) será o relator, cargo tão ou mais importante do que o do presidente. Os bolsonaristas têm poupado Aziz e batido duro em Renan. A trajetória política de Renan mostra que quanto mais ele apanha, mais resiste à pancadaria e cresce. É cascudo, como se diz, e ai de quem duvidar.

O governo compra brigas em muitas frentes ao mesmo tempo. Quer mudar, por exemplo, a composição do Tribunal de Contas da União que lhe é desfavorável. Acenou para o ministro Raimundo Carreiro com uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. O ex-presidente José Sarney convenceu-o a não aceitar.

Sarney é do MDB de Renan. Ou melhor: Renan é do MDB de Sarney. Os dois fazem oposição a Bolsonaro e cultivam boas relações com Lula. O MDB irá de Lula se ele for candidato à vaga de Bolsonaro, ou irá com um candidato que o centro direita ainda não tem. Mas com Bolsonaro não haverá negócio.

Os Evangelhos, segundo Jair Messsias Bolsonaro

O pregador dos jardins do Palácio da Alvorada

A Bíblia não é o forte de Jair Bolsonaro. De resto, quase nada é o forte de quem nunca leu um livro. Talvez por isso, Bolsonaro enrolou-se ao citar a Bíblia em uma das pregações diárias que faz aos seus devotos nos jardins do Palácio da Alvorada.

Dessa vez, entre os devotos, havia um pastor evangélico e um padre da Igreja Católica que na ocasião rezou por ele e o abençoou. Os dois foram depois embora sem entender o que o presidente quis dizer quando a certa altura de sua pregação afirmou:

– Tem uma passagem bíblica quando Jesus dividiu o pão. Depois ele deu uma desaparecidinha, né?. Daí o povo foi atrás. Foi atrás para quê? Para mais benefícios pessoais. Fizeram a ligação com o PT dando bolsa isso, bolsa aquilo? É o ser humano que tá aí.

Se consultasse pelo menos a Wikipédia antes de falar, Bolsonaro ficaria sabendo que “A divisão dos pães e peixes” é o termo utilizado nos Evangelhos para referir-se a dois milagres de Jesus. No primeiro, ele teria alimentado 5 mil pessoas, no segundo 4 mil.

Não há relato de uma “desaparecidinha” depois dos milagres. Quanto a irem atrás de Jesus, as pessoas buscavam conforto espiritual e ensinamentos de um profeta que se dizia filho de Deus, não “benefícios pessoais” como pão e peixe de graça.

Daí porque ficou difícil para os que escutaram Bolsonaro fazer qualquer ligação com programas do tipo Bolsa Família, do PT. Quanto ao que ele disse sobre “é o ser humano que tá aí”, desmereceu os mais pobres que carecem de ajuda para sobreviver.

Dos pobres, Bolsonaro quer votos, apertos de mão, fotos e distância segura.