angela merkel

Cláudio de Oliveira: Política de alto nível na Alemanha. E no Brasil?

Na foto estampada nos jornais de hoje, Angela Merkel, atual primeira-ministra da Alemanha, recebe flores de Olof Scholz, que possivelmente a sucederá no cargo. Detalhe: Scholz é do partido adversário ao de Merkel.

Ela é da União Democrata-Cristã, a CDU, um partido liberal-democrático, de centro-direita, que desde o pós-guerra rivaliza com o SPD, o Partido Social-democrata Alemão, partido de Scholz, de centro-esquerda, agremiação que Karl Marx ajudou a fundar ainda no século XIX.

O SPD nunca abraçou totalmente as ideias revolucionárias de Marx. A maioria dos seus dirigentes sempre preferiu o reformismo de seus fundadores, como Ferdinand Lassale. Mas essa é outra história.

O importante a destacar é que apesar de rivais, CDU e SPD governaram juntos a Alemanha em diversas ocasiões na chamada “Grosse Koalition” (Grande Coalizão), quando os dois maiores partidos do país se juntam por não conseguirem separadamente a maioria. Caso dos dois últimos governos de Merkel, nos quais Scholz foi escolhido ministro da economia.

Mesmo quando a CDU estava no governo e o SPD na oposição, ou vice-versa, ambos os partidos foram capazes de dialogar para chegar a acordos que beneficiaram a Alemanha.

Esse diálogo certamente foi favorecido pela maturidade dos partidos democráticos da Alemanha, que aprenderam com seus erros das décadas de 1920 e 1930, quando não foram capazes de se unir para impedir a ascensão do Partido Nazista de Adolf Hitler.

Diálogo também propiciado pelo sistema político-partidário e eleitoral alemão, baseado no parlamentarismo, que obriga ao entendimento entre os partidos para obtenção da maioria necessária à formação de um governo.

O social-democrata Scholz venceu a eleição parlamentar, pois o seu SPD obteve o maior número de deputados. E vai liderar um governo com os Verdes e o Partido dos Democratas Livres, de centro. Assim, o partido de Scholz desalojará do governo o partido de Merkel.

Mas, esse fato não impede a convivência civilizada desses dois grandes partidos democráticos da Alemanha. As flores de Scholz para Merkel é um gesto de quem valoriza a democracia e o pluripartidarismo.

No Brasil, tivemos uma rara transmissão civilizada de governo em 2002, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso organizou legalmente um gabinete de transição com membros de sua equipe e de assessores do então presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva.

Infelizmente, essa oportunidade de diálogo foi desperdiçada. O PSDB foi para a oposição e o PT preferiu formar seu governo com o PMDB de José Sarney e partidos do Centrão.

A visão curta dos grandes partidos brasileiros e o personalismo, fortalecido no regime presidencialista, levaram a disputa entre os dois dos principais partidos responsáveis pela democratização do Brasil, processo que culminou com a Constituição de 1988. Na disputa, PSDB e PT aliaram-se a forças políticas conservadores e do atraso.

O que estamos vivendo no Brasil de hoje é o resultado amargo dessa disputa. Que o bom exemplo dos partidos democráticos da Alemanha ilumine o caminho do Brasil.

*jornalista e cartunista e autor dos livros Era uma vez em Praga – Um brasileiro na Revolução de Veludo e Lênin, Martov. A Revolução Russa e o Brasil, entre outros.

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/11/claudio-de-oliveira-politica-de-alto.html


Luiz Carlos Azedo: Ao comparar Merkel a Ortega, Lula baixou a guarda para Moro

Todo o sucesso de seu périplo pela Europa foi zerado pela declaração infeliz

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou a guarda para seus adversários ao comparar a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, ao presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, ao em entrevista ao prestigiado jornal espanhol El País. Todo o sucesso de seu périplo pela Europa, no qual se encontrou com as principais lideranças do continente, para efeito da sua narrativa de campanha eleitoral, foi zerado pela declaração infeliz.

Lula começou bem: “Todo político que começa a se achar imprescindível ou insubstituível, começa a virar um pequeno ditador. Por isso, eu sou favorável à alternância de poder”, afirmou. No meio do caminho, pisou na bola: “Posso ser contra, mas não posso ficar interferindo nas decisões de um povo. Nós temos de defender a autodeterminação dos povos. Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder, e o Daniel Ortega não?”

Lula foi contestado pela entrevistadora, que lembrou ao petista que Merkel não mandava prender seus opositores, como Ortega. Lula ainda tentou consertar, mas o estrago já estava feito. Merkel governou a Alemanha por 16 anos, num regime parlamentarista, no qual dependia de resultados eleitorais e das alianças no Congresso para se manter no cargo. Ortega se reelegeu, pela quarta vez sucessiva, depois de mandar prender sete candidatos de oposição e inventar candidatos laranjas.

As alianças de Lula na América Latina, principalmente com Nicolás Maduro, na Venezuela, e Daniel Ortega, na Nicarágua, além da defesa do regime comunista em Cuba, são pontos fracos da candidatura de Lula, porque sinalizam falta de compromisso com a democracia representativa. Provocado por jornalistas, o petista levantou suspeitas sobre suas intenções: “Não é só em Cuba que protestos são proibidos. No mundo inteiro protestos são proibidos. Greves são proibidas. A polícia bate em muita gente, no mundo inteiro, a polícia é muito violenta”, argumentou.

Existe muita ambiguidade nas posições do PT em relação à democracia representativa. O partido fez autocrítica pela esquerda em relação ao governo da presidente Dilma Rousseff, que foi afastada pelo impeachment, o que os petistas classificam como um “golpe de Estado”. Na resolução que analisou as razões do impeachment, o PT defende posições do tipo: não controlamos a mídia, fizemos concessões demais aos aliados do Centrão e à oposição, erramos nas indicações para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Essa postura abre espaço para todos os adversários, não somente ao presidente Jair Bolsonaro. Já vinha sendo atacada pelo candidato do PDT, Ciro Gomes, que representa uma barreira à ampliação das alianças petistas em direção ao centro político. Mas são a narrativa contrária à Operação Lava-Jato e a falta de autocrítica em relação ao escândalo da Petrobras que revelam uma nova ameaça: a pré-candidatura do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. O ex-ministro criticou Lula: “É muito preocupante que não tenhamos clareza nas credenciais democráticas de um candidato à Presidência da República.”

A jornada do herói

O ex-juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, que comandou a Lava-Jato e condenou Lula, voltou dos Estados Unidos, onde trabalhava como consultor num grande escritório de advocacia, e entrou na cena eleitoral com muita força. Moro avança na faixa dos indecisos para ocupar espaços desejados por outros candidatos: o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM); o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); a senadora Simone Tebet (MDB-MS); e o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS) se enrolaram nas prévias do PSDB e disputam uma partida de soma zero.

No hemisfério das paixões políticas, houve uma mudança de cenário. O choque principal da eleição era entre dois políticos carismáticos com passagens pelo poder, que permitem comparações objetivas sobre suas realizações passadas, e candidatos que se esforçavam por trazer a disputa para o terreno da racionalidade de propostas exequíveis de futuro. Moro pôs em cena o mito da jornada do herói, cujo padrão é aquele da odisseia grega de Ulysses. O herói se aventura de um mundo familiar para terras estranhas e, às vezes, ameaçadoras: a passagem pelo deserto, a tempestade no oceano ou a travessia da floresta escura. Com isso, atrai aqueles que estão se sentindo perdidos e desorientados, mas que podem mudar de vida e se beneficiar se aventurando a segui-lo, por não terem quase nada a perder.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ao-comparar-merkel-a-ortega-lula-baixou-a-guarda-para-moro/

RPD || Gianluca Fiocco: Da pandemia se sai pela esquerda?

Alemanha teve eleições com resultado histórico, que favorece a causa europeísta

Gianluca Fiocco / RPD Online

A recente votação na Alemanha marcou, de alguma forma, o fim de uma era. Angela Merkel, cuja chancelaria caracterizou fortemente o cenário alemão e europeu por 16 anos, não se candidatou. Seu afastamento representou sério problema sobretudo para seu partido, o CDU, que ficou órfão de sua presença carismática e estabilizadora. Mas todo o sistema partidário, desprovido de líderes minimamente comparáveis ​​a sua estatura, sofreu com o fechamento desse ciclo. 

Podemos considerar históricos os resultados que saíram das urnas: pela primeira vez desde o pós-guerra, as duas colunas tradicionais da política alemã – a socialdemocrata e a democrata-cristã – ficaram ambas abaixo de 30%. A ligeira prevalência do SPD (25,7% dos votos) conduziu as negociações para a formação de uma coligação que está sendo chamada de "semáforo" – vermelha, amarela e verde, respectivamente, dos socialdemocratas, liberais (11,5) e do partido ecológico do Grünen (14,8). As negociações foram anunciadas, porém não são fáceis, e seu fracasso também recolocaria a CDU no jogo. 

Em todo caso, o debate antes e depois das eleições favoreceu a causa europeísta. A capacidade de Merkel de colocar a UE em novos caminhos, realçando seu perfil, foi especialmente enfatizada. Com exceção dos partidos mais extremistas (a eleição foi particularmente ruim para a esquerda do Linke, mas também para a direita ultranacionalista do AFD, que seguiu o mesmo ritmo), todos os candidatos se perfilaram para assegurar as responsabilidades alemãs na Europa e a centralidade da dimensão europeia nas grandes escolhas da Alemanha. Também a anunciada intenção de reunir no programa do futuro governo as questões sociais, as necessidades de estabilidade financeira e os objetivos da transição ecológica (com a meta de abandonar o carvão até 2030) representa um dos desafios políticos que hoje está diante de toda a Europa, como "potência civil" capaz de representar um modelo de desenvolvimento equitativo e sustentável. 

Uma das primeiras atitudes de Merkel após as eleições foi visitar Roma, onde encontrou Mario Draghi e o Papa Francisco. Foi uma iniciativa significativa já que a própria conexão Merkel-Draghi se revelou fundamental para o lançamento das políticas de auxílio do Banco Central Europeu que têm salvaguardado o euro e a solidez da UE. 

A Itália também vivenciou eleições, embora apenas em nível local. Cidades importantes como Roma e Turim estiveram envolvidas. Ao contrário da Alemanha, onde o sistema partidário mostrou sua vitalidade e o nível de participação dos cidadãos foi alto, o voto italiano mostrou um difuso descontentamento com a dimensão administrativa e rachaduras gritantes na relação entre os cidadãos e as forças políticas. Um observador autorizado como Sabino Cassese chegou à amarga conclusão de que "todos perderam. Perderam as forças políticas que tiveram de encontrar seu candidato fora delas, porque dentro delas não foram capazes de selecionar e formar uma classe dirigente. Perderam as classes políticas locais porque os eleitores nas eleições municipais diminuíram na última década mais do que o dobro em relação às últimas eleições gerais. Perderam os vencedores dos segundos-turnos porque só conseguiram o apoio de um quarto ou um quinto do eleitorado". 

Se nos anos noventa a eleição direta de prefeitos encarnou na Itália a ideia de renovação das instituições, mais próximas das necessidades das pessoas, agora parece evidenciar as dificuldades dos partidos em manter raízes efetivas na sociedade. Este é um sinal de alerta a ser levado em conta frente às futuras eleições para a renovação do Parlamento. Os dados estatísticos dos últimos anos indicam que existe um interesse pelas questões políticas em comparação com os dados de muitos parceiros europeus, mas a confiança nos mecanismos e no valor da participação na vida política tem caído. 

Os resultados da Itália premiaram claramente a centro-esquerda, ao passo que a direita (tanto a Lega, no governo, quanto Fratelli d’Italia, na oposição) sofreu duro golpe. Nestes casos, é difícil, talvez impossível, estabelecer em que medida os fatores locais ou nacionais favoreceram o êxito. Talvez não seja tão forçado dizer que fatores europeus também pesaram: a associação da direita com os chamados soberanistas (embora bastante moderados na versão italiana) não rendeu, e até se mostrou negativa, nesse momento em que o apoio da UE aparece como uma esperança de sair da crise sanitária, econômica e social desencadeada pela pandemia. Os fundos europeus extraordinários da Next Generation EU permitiram o lançamento do ambicioso “Plano Nacional de Recuperação e Retomada”, que é gerido por uma figura intimamente ligada ao plano pró-europeu, como Mario Draghi. O Partido Democrático (PD) foi visto como o defensor mais consistente desse plano, e seus candidatos se beneficiaram dele. 

A aposta europeísta expressa precisamente a forte conexão entre os votos da Alemanha e da Itália. Em ambos os países, as questões europeias têm influenciado as escolhas dos eleitores de uma forma que parece demonstrar confiança generalizada no papel que a UE vem desempenhando na segurança e no bem-estar dos seus cidadãos. Como observou o historiador Sandro Guerrieri, “a União Europeia funciona quando se encontram soluções que representam um valor agregado às políticas e linhas de conduta dos governos individuais”. O atual esforço de recuperação é um desses momentos e pode ser decisivo para uma retomada do europeísmo de cunho social e progressista. “Da pandemia se sai pela esquerda”, declarou o secretário do PD, Enrico Letta, comentando o novo equilíbrio político alemão. Se o novo chanceler for realmente uma expressão da aliança vermelho-amarelo-verde, essa perspectiva certamente ganhará impulso. 

*Tradução de Alberto Aggio


Saiba mais sobre o autor
Gianluca Fiocco é professor e pesquisador de História Contemporânea vinculado a Universidade Roma2, “Tor Vergata”. É também membro do Conselho de Direção Científica da Fundação Gramsci de Roma. Dentre as suas publicações está Togliatti, il realismo della política, Roma: Carocci, 2018.


Mathias Alencastro: Três lições da Alemanha

Sucessão de Merkel mostra caminhos para democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita

Mathias Alencastro / Folha de S. Paulo

Terminou a campanha eleitoral na Alemanha e, pela primeira vez, o partido que sair na frente terá de encontrar pelo menos dois outros aliados para formar o governo. O processo de formação de um novo governo deve se prolongar por alguns meses, mas um cenário de impasse a longo prazo, como nas vizinhas Holanda e Bélgica, parece descartado.

popularidade de Olaf Scholz, apontado em todas as sondagens como o mais preparado para assumir o cargo, assim como o desejo de alternância depois de 16 anos de governo CDU, confere um ascendente à SPD nas negociações com potenciais aliados. O resultado do pleito também traz ensinamentos para todas as democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita.

A primeira é a resiliência da centro-esquerda. A SPD defendeu o programa mais progressista das últimas décadas, mas apresentou um candidato sóbrio e pragmático, que foi vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças nos últimos anos.

pandemia, que muitos esperavam ser um prato cheio para os populistas, acabou reforçando as credenciais dos candidatos versados na administração do Estado. Dada como morta depois da debacle do Partido Socialista francês em 2017, a centro-esquerda está voltando a contar na Europa, com governos da Península Ibérica à Escandinávia, passando agora, provavelmente, pela Alemanha.

A segunda é a dificuldade da direita tradicional diante da emergência da extrema direita. A toda-poderosa CDU não conseguiu recuperar o eleitorado perdido para a AfD, que se manteve acima dos 10% e consolidou sua presença em nível regional. Exceção feita ao Reino Unido, onde Boris Johnson conseguiu federar as direitas em torno do brexit, o campo conservador parece irremediavelmente dividido nas democracias liberais.

Muito se fala do drama da renovação da esquerda, mas a origem da crise de governabilidade europeia tem sua origem no outro lado do espectro ideológico.

A terceira dinâmica é a emergência da crise climática como tema de campanha. De acordo com todos os cenários, os Verdes devem se afirmar como a terceira maior força política e regressar ao governo, depois da experiência bem-sucedida dos anos 1998-2005 liderada pelo lendário Joschka Fischer, àquela altura ministro das Relações Exteriores.

Vencedor destacado na população abaixo de 50 anos, o partido está bem posicionado para encabeçar o governo nos próximos dez anos.

Para o Brasil especificamente, o surgimento da SPD e dos Verdes deve reforçar o ativismo internacional nas questões democráticas e ambientais da Alemanha, sempre muito contida nos tempos de Merkel.

Martin Schultz, um dos principais quadros da SPD e forte candidato a assumir uma pasta ministerial em uma eventual coalizão liderada pelo partido, foi até Curitiba para encontrar o ex-presidente Lula na cadeia. Quanto aos delinquentes neonazistas que Bolsonaro recebeu no Alvorada, eles continuarão sendo irrelevantes no futuro Parlamento.

Esses pequenos sinais também devem ser levados em conta na hora de especular sobre a reação da comunidade internacional em caso de contestação do resultado das presidenciais brasileiras em 2022.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2021/09/tres-licoes-tiradas-da-eleicao-da-alemanha.shtml


Joaquim Falcão: Vai dar tempo

Angela Merkel decide consultando cientistas alemães

Sempre que o presidente Trump aparece na televisão, está acompanhado de médicos e cientistas. Ele fala e depois cede para eles o microfone. O primeiro-ministro Boris Johnson decide com ajuda dos cientistas do Imperial College. Quando informado, muda, inclusive, sua política. Cede aos cientistas. Antes contra, agora a favor da quarentena.

O governador João Doria está sempre acompanhado de grandes médicos e cientistas. Angela Merkel decide consultando cientistas alemães. Aqui mesmo, no início, o presidente Bolsonaro aparecia acompanhado do entusiasmado e confiante ministro Mandetta. Agora nem tanto.

O que significa este visível ritual, união entre poder político e conhecimento científico?

A autoridade constitucional máxima da nação, seja primeiro-ministro ou presidente, qualquer uma, diz aos telespectadores mais ou menos o seguinte: “Eu sou a autoridade política e legal máxima de meu país. A última palavra é minha. Mas estou baseando esta autoridade máxima na ciência”.

A aplicação da Constituição não é apenas pacto ou arena de interesses sociais competitivos. Que ganham ou perdem a cada interpretação do Supremo. Ou nova lei do Congresso.

Como dizia o professor Portella Nunes, da Academia Nacional de Medicina: ao interpretar a vida temos que partir sempre de uma verdade básica.

Os cientistas são como legisladores também. A Ciência inspira a aplicação da Constituição.

O problema é que a Ciência não tem um só rumo certo e eficiente. Nem hoje sabe com exatidão para onde nos mandar. Nos salvar.

Não existe ainda o tratamento, os remédios, a vacina redentora. Que faria da verdade básica a verdade completa. Ainda que efêmera. O que fazer então? Seguir quem e para onde?

Existe claro vácuo. Que não pode ser apropriado pela anticiência, pelas trevas da ignorância. Solta no ar do voluntarismo autoritário.

Disse o Prêmio Nobel Jacques Monod: o acaso da evolução do mundo cria as necessidades. Como enfrentar novo acaso?

Primeiro. Se precisamos de isolamento social, precisamos também de união científica. É o que corre nível mundial. Cientistas, professores e alunos juntos.

No Brasil o Sírio-Libanês, LACC, Einstein, Hcor e dezenas de universidades, laboratórios privados têm se unido para trocar informações, bancos de dados, novos softwares e algoritmos. Uns com os outros. Fundação Oswaldo Cruz no Rio sempre à frente.

Imaginar e experimentar todas as hipóteses possíveis. Mesmo nesta época onde a Ciência avança tanto como arte combinatória, quanto pelas hipóteses dedutíveis. Descobrir é experimentar.

Estranho, porém, é que nos trilhões de dólares que os governos estão distribuindo esta prioridade não esteja explícita: reforçar as instituições públicas e privadas, seus projetos e seu pessoal.

Sem eles teremos vida precária. Nem mesmo vida econômica, alerta o presidente Sarney: sem comprador e vendedor. Fim.

Nosso ministro de Ciência e Tecnologia, o astronauta Marcos Pontes, precisa defender seu setor. Com a coragem que tem, tanto na Terra como nos céus.

Segundo. A vacina é igualitária. Não é discriminatória, como a economia, a política, o Direito e a educação. Cura um, cura todos. Não distribui privilégios. O acesso é que não pode ser desigual.

Terceiro. A verdade básica produzida pela ciência a inspirar a Constituição não é verdade absoluta e final. Estática. É o último conhecimento disponível que mais nos aproxima da verdade. No caso, da cura. Da vacina.

Diz, faz décadas, o professor Cláudio Souto, jurista do Recife. Toda Constituição deveria estabelecer que a interpretação judicial e a criação legislativa deveriam estar de acordo, partir do conhecimento científico disponível.

Esta conjugação desideologizante da política, da administração pública e do Direito e sobretudo da Constituição já tem inspirado decisões judiciais igualitárias.

Sobre gênero, raça, aborto, transplante de medula, pena de morte e tanto mais.

Com ajuda da Matemática e da Estatística, o último conhecimento científico global testado é: o isolamento social contribui sim para o combate ao vírus.

Confiar na Ciência, no exercício do poder político, jurídico e econômico.

Vai dar tempo.

*Joaquim Falcão é professor de Direito Constitucional