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Vaclav Smil: “Em cinco anos haverá escassez de água e alimentos”

Cientista pesquisa sobre energia há mais de 40 anos

Anatxu Zabalbeascoa / El País

Inquieto, atento e meticuloso, Vaclav Smil (Pilsen, Tchéquia, 1943) é a imagem viva de um sábio. Há 40 anos vem investigando o retorno energético. Seu saber poliédrico baseia-se em fatos e está reunido em livros como Energy in world history (“História da Energia no Mundo”) e Numbers don’t lie (“Os Números Não Mentem”, com o subtítulo “71 coisas que você precisa saber sobre o mundo”). Está tão acostumado à precisão dos dados que qualquer pergunta lhe parece generalista. Fala da sua casa, em Winnipeg (Canadá), onde chegou há quase meio século e vive com sua esposa, sem celular. Aposentado como professor de meio ambiente na Universidade de Manitoba, afirma que há no mundo mais progresso que retrocesso, “embora o retrocesso sempre esteja à espreita”.

Pergunta. Os economistas defendem o crescimento. Estão errados?

Resposta. Não. E sim. Muitos países precisam crescer. A questão é quais. Nos Estados Unidos, não precisam de mais advogados. Na Europa, sobram burocratas em Bruxelas. Mas o planeta tem um problema de suprimentos. Em cinco anos haverá escassez de água e alimentos. Devemos crescer na direção correta.

P. E não estamos fazendo isso.

R. Não precisamos que cresça o mercado de veranistas nas Seicheles. Precisamos que a Malásia e a Indonésia cresçam, mas não os Estados Unidos. E é fundamental aproveitar o crescimento para melhorar a equidade. Que o produto interno bruto aumente de maneira desigual não é bom, embora devamos assumir que uma sociedade perfeitamente igualitária jamais existirá.

P. A equação crescimento/felicidade nem sempre funciona.

R. Há duas formas de medir as coisas, inclusive as emoções. Objetivamente, indicadores como a taxa de suicídios, divórcios ou crimes violentos revelam infelicidade, porque, se você estiver bem, não se suicida, nem se divorcia, nem é violento. Mas também há indicadores subjetivos. Aí entram os indivíduos: as pessoas podem ser pobres e felizes. A maioria tem problemas e não se define como infeliz. Veja, ninguém é muito feliz no Afeganistão. Mas o índice de felicidade que resulta de comparar ambos os indicadores aponta que o crescimento não torna mais feliz. As pessoas na Bolívia são mais felizes que os japoneses ou os espanhóis. A felicidade e a renda per capitanão estão relacionadas.

P. As maiores economias do mundo exportam armas.

R. Sim. Estados Unidos, China, Espanha… inclusive o Canadá. É um mercado global. De onde você acha que o Talibã tirou as armas durante os últimos 20 anos? Não as produziram numa caverna, né?

P. Desarmar o mundo é uma utopia?

R. Por mais que fossem proibidas, o que não acontecerá, você acha que os proprietários as devolveriam?

P. O mundo vai depender das relações a serem estabelecidas com os países islâmicos?

R. Durante séculos houve fundamentalismo no catolicismo. Agora se dá no islamismo. Mas há muito islamismo moderado. E muito desconhecimento sobre o islamismo. Vejamos: qual é país do mundo com maior população muçulmana?

P. Não sei. O Irã?

R. Na Índia, os hindus são a população mais ampla. Mas os muçulmanos são a segunda. Por isso é um país islâmico maior que o Paquistão ou a Arábia Saudita.

P. O crescimento econômico está por trás da obesidade? Do câncer…?

R. Não há crescimento sem risco. E essas doenças são multifatoriais. Cada avanço acarreta um risco que precisa ser pesado. É absurdo tratar de medir o mundo em termos opostos. O bem e o mal são relativos.

P. Tudo é relativo, mas o senhor resume sua informação em números.

R. Sem dados não é possível tomar decisões. Mas, inclusive se você tiver os melhores números, deve considerar o imprevisível, o aspecto não numérico de cada decisão. É fácil reduzir emissões do CO2 na Dinamarca. Mas a Nigéria hoje vive como os dinamarqueses em 1850. O que se pode pedir a eles que reduzam?

P. Os países que precisam crescer podem ser advertidos sobre o perigo de crescer muito?

R. É como falar de câncer de pele a quem tem falta de iodo. Estamos numa economia global, mas não existe uma solução global igual para todos. O mundo ocidental esquece isso. O custo de reduzir as emissões não deve ser proporcional, e sim sob medida. Não é o mesmo crescer para sobreviver que para expandir a economia. Vejamos a Índia. Está prestes a ultrapassar a China como o país mais populoso do mundo [a ONU prevê que ocorrerá em 2027], entretanto consome um terço menos de energia.

Vaclav Smil vive no Canadá e foi professor de meio ambiente.
Vaclav Smil vive no Canadá e foi professor de meio ambiente. Foto: Tim Smith (Contacto)

P. A expansão da humanidade está chegando a seu fim?

R. Há quem não entenda que o crescimento perpétuo não existe. Vivemos em um planeta finito. Quase todos os países europeus já deixaram de crescer. Se não fosse pela imigração, legal e ilegal, a Europa não teria população suficiente para pagar as pensões.

P. Se a imigração for uma solução, por que é uma medida pouco popular?

R. Se a vida fosse parecida em ambos os lados do muro entre o México e os Estados Unidos, as pessoas não se deslocariam. A migração é o resultado da desigualdade: os pobres se mudam para países ricos para sobreviver. Faz parte da nossa natureza procurar comida para nossos filhos e fugir dos conflitos ou da opressão. Não quer imigração? Defenda a equidade. Pouquíssimos países se fecham como a Hungria. Entretanto, a época de portas abertas passou. Obama percebeu. Deve regular-se que o mundo seja um lugar mais equitativo.

P. O senhor chegou há 50 anos da Tchecoslováquia ao Canadá. Por quê?

R. Quem quer viver numa jaula comunista?

P. Explicando como mudou a sua maneira de se aquecer, o senhor percorre a história da energia.

R. Sim. Meu pai cortava troncos de abeto, e esse sistema tinha escassos 15% de eficácia. Nos Estados Unidos vivemos em um apartamento onde a calefação funcionava a óleo diesel – com 67% de eficácia. Passei meia vida no Canadá com gás natural. Nossa casa tem 97% de eficiência energética.

P. Como a conseguiu?

P. Isolando as paredes e com vidros triplos. Na Espanha, quase todas as janelas têm um único vidro. Nos países frios, costumam ter o dobro. Eu os deixo triplos.

P. Falando de energia, o senhor parece um psicólogo: “Se não controlar o declínio, sucumbe a ele”.

R. Claro. Saber lutar com a decadência é desejável. Mas nem todo mundo acha assim. Vejamos: a retirada do Afeganistão foi julgada na Europa como o declínio dos Estados Unidos. Mas é assim? Foi uma decisão livre: os Estados Unidos escolheram se retirar.

P. Frente à liberdade de se retirar está o egoísmo de ignorar.

R. Todo mundo sabe que os Estados Unidos cometeram erros, e entretanto continuam sendo a economia mais dinâmica do mundo. A China pode ser maior, mas há 1,412 bilhão de chineses, e apenas 331 milhões de norte-americanos. A renda per capita nos Estados Unidos é muito superior. Fala-se do declínio norte-americano e do apogeu chinês sem conhecimento. Sempre pergunto que posição a China ocupa no índice do PIB [per capita]. Você sabe?

R. Sei pelo seu livro: 82ª posição.

R. Não se pode medir a economia à margem da população. O dinamismo é fundamental para mantê-la viva. Sendo a típica europeia, você deve ter três celulares, certo?

P. Um.

R. Diga-me, onde foi inventado? Nos Estados Unidos. E os aviões modernos? A pesquisa e a criatividade antecedem à produção. Que os Estados Unidos se retirem do Afeganistão não quer dizer que estejam acabados. As pessoas gostam de simplificar.

P. O senhor demonstra com números que os Estados Unidos não são um país excepcional.

R. Claro. Ali é mais provável que os bebês morram. Se você busca evidência da excepcionalidade norte-americana, não a encontrará nos números, que é onde importa. A razão é que se é excepcional em algo, não em tudo.

P. Os Estados Unidos adotaram sua visionária Constituição: “Todos os homens são criados iguais”, enquanto o primeiro, o terceiro e o quarto presidentes eram proprietários de escravos.

P. Nos países islâmicos, a escravidão existia até ontem. Na Arábia Saudita, pode ser que inclusive agora. E há uma escravidão de fato: as pessoas trabalham trancadas em casas.

P. A democracia é uma utopia?

R. É imperfeita, mas me dê uma alternativa melhor. Vejamos: na Finlândia quase não há estrangeiros [7% da população]. O consenso social é mais fácil que nos Estados Unidos, com diversidade de raças e religiões. Vejamos na Espanha: todo mundo quer ser independente! País Basco, Catalunha, até Madri! É mais fácil governar a Finlândia. Os nórdicos deveriam ser excluídos das comparações internacionais. O mundo é um lugar que desmorona num dia e se arruma no dia seguinte.

P. Como lidar com a incerteza?

R. Nos anos oitenta escrevi um livro sobre o meio ambiente na China. Durante anos me perguntaram quando seria irrespirável. Sempre respondi o mesmo: não veremos isso. Está na condição humana dar um grande passo adiante e outro para trás. A poluição na China é uma das piores do mundo, mas o tratamento de águas melhorou. Quantas coisas melhoraram na Espanha desde a morte de Franco? Você me dirá que muitas, mas quantas pioraram?

P. Seu discurso de que o mundo se autorregula poderia ser utilizado pelos negacionistas da mudança climática.

R. Essa pergunta pertence ao passado. Nos últimos 50 anos deixamos para trás o descuido com o meio ambiente. Há leis, ministérios, sanções e educação.

P. Também há mais poluição.

R. Claro, mas a consciência existe. Inclusive nos países mais pobres. E gera resultados.

P. Quando pesquisa, como decide o que será importante e o que é irrelevante?

R. Pense no corpo humano: é mais importante um rim ou o fígado? É absurdo pensar que os problemas ambientais são mais importantes que os econômicos, porque tudo está relacionado, e só vamos solucioná-lo se entendermos isso. Aí as redes sociais são tóxicas: não entendem as conexões.

P. Usa o Google?

R. Quem não usa o Google? 90% do mercado é dele. Faz tempo que é uma ferramenta de mercado, e não tenho dúvidas: o Google tem o melhor algoritmo. Especialmente se você busca informação séria, e não idiotizantes vídeos do YouTube.

P. Quase todo mundo usa celular, e o senhor não. Por quê?

R. Não me interessam as estúpidas redes sociais. Por que teria que contar minha vida a gente que não conheço? Por que deveria fazer comentários sobre coisas que não sei? Olhe, quando a gente tem um problema no coração, precisa da opinião de um cardiologista. Não a de alguém sentado num quarto escuro.

P. Que os homens mais ricos do mundo subam em foguetes para explorar a biosfera é uma oportunidade para os humanos ou uma oportunidade de negócio?

R. Se as pessoas forem audazes, tudo é uma oportunidade de negócio. A pergunta é: a que preço e para quê.

P. O que é o progresso?

R. Ter a população infantil vacinada, nutrida, com uma expectativa de vida que passe dos 40 para os 80 anos e com educação e saúde garantidas pelo Estado. Aliás, a Espanha está no topo da expectativa de vida, com o Japão, apesar de hoje comer carne demais.

P. Quanto é carne demais?

R. Durante o franquismo comiam oito quilos por ano por pessoa. Agora, quase 200.

P. O senhor come carne?

R. Claro. Por que não comeria? Somos onívoros. Não temos o sistema digestivo dos herbívoros, como uma vaca ou um coala. A chave está no oni, que significa tudo. Implica variedade e não exceder-se em nada.

P. Surpreendeu-me saber que bebemos menos vinho que há um século.

R. O consumo baixou sobretudo no Mediterrâneo. Em seu país [a Espanha] se bebe mais cerveja que vinho. O mesmo quanto à dieta mediterrânea: eu cozinho com azeite de oliva, mas na Espanha o que mais se vende é o de girassol.

Vaclav Smil, o grande historiador da energia.
Vaclav Smil, o grande historiador da energia. Foto: Tim Smith

P. O senhor cozinha?

R. Todo dia. Para mim e para minha esposa.

P. Eu o imaginava submerso em suas leituras e com tempo para pouco mais.

R. Não aguentaria pesquisar se não tivesse uma vida organizada. Preparar o que se come mantém você saudável e desperto. Hoje comprei um bacalhau e vou fazer com batatas.

P. “O homem industrial não come batatas produzidas com energia solar, e sim batatas parcialmente produzidas com petróleo.” O senhor escreveu que sem a síntese de fertilizantes Haber-Bosch haveria fome generalizada.

R. Sem nitrogênio as plantas cresceriam menos e não haveria para todos. Os fertilizantes não servem só para aumentar fortunas; eles alimentam a população mundial.

P. Comer de forma saudável universalmente é uma tarefa impossível?

R. A saúde pública universal é tarefa impossível? É um desafio. É possível planejar melhor as safras e melhorar os fertilizantes. As vacas podem comer alfafa. Nós, não. Mas se só comemos vacas, temos que alimentá-las. Quase tudo no planeta é uma questão de equilíbrio.

P. O México continua sendo o país com mais sobrepeso?

R. Atualmente é a Arábia Saudita, com mais de 70% da população obesa.

P. Cerca de 12% da população está subnutrida. E 75% superalimentada. Por que o que é barato engorda tanto?

R. Porque tem gordura saturada e muito açúcar, que produz um efeito de saciedade com pouco gasto.

P. A epidemia de obesidade tem mais relação com a pobreza ou com os carros?

R. A resposta é multifatorial: a genética manda, a dieta ajuda, e o exercício ou a atividade compensam. A maioria das mulheres japonesas não faz exercícios. Mas elas são ativas.

P. Como o senhor se desloca por Winnipeg?

R. Aqui é muito difícil viver sem carro. O supermercado mais próximo está a cinco quilômetros.

P. A frugalidade é uma educação?

R. Voltamos ao mesmo: o que é pouco? Tem gente que acredita que três carros seja pouco, e há quem considere que um é muito. Além disso, a educação não é tudo. Tem gente educada e muito infeliz. Gente educada que comete crimes e desfalques financeiros. Gente educada se divorcia na mesma proporção que gente sem instrução. A alta educação só tem um resultado comprovável: maiores possibilidades de ganhar dinheiro. Mas nem esse dado é infalível, basta ver na quantidade de graduados que há na Espanha que se veem forçados a emigrar.

P. Diga-me se há pelo menos uma energia mais razoável.

R. Sim: o gás natural. Disponível em todo mundo, é a mais limpa das energias fósseis, que quando queimadas geram dióxido de carbono. Passará muito tempo até que possamos obter a eletricidade que necessitamos apenas de recursos sustentáveis como o vento e o sol. Enquanto isso, a mais eficaz é o gás. Não há discussão possível.

P. É um perigo que algumas energias – como o gás natural – estejam em poucas mãos?

R. Não. Durante muito tempo o mercado do gás permaneceu limitado porque não havia maneira fácil de transportá-lo. Mas uma vez construídos os gasodutos fica fácil. A Europa depende do gás do mar do Norte. E do russo. A Espanha importa do Qatar. Até o Canadá exporta para a Europa.

P. Com tanta informação, seus medos são globais ou pessoais?

R. O medo é pessoal. Por isso é quase impossível sentir o mesmo por uma criança que morre na África do que por um filho doente. Mas a informação nos recorda que o mundo é uma máquina complexa. Um risco termina onde outro começa. Pense na pandemia. O mundo é um lugar de risco.


Brasil precisa investir R$ 110 bi até 2035 para garantir acesso à água, diz ANA

Mananciais são vulneráveis em 44% das cidades, diz pesquisa. Agência aprova plano para recuperação dos principais reservatórios do país

O Globo e Agência Brasil

RIO - O Brasil precisa de um investimento total de R$ 110 bilhões até 2035 na infraestrutura de produção e distribuição de água para garantir o acesso. É o que aponta a segunda edição do Atlas Águas, levantamento feito pela Agência Nacional de Águas (ANA).

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Esse montante contempla a construção de novas estruturas e a reposição das que já existem, incluindo ações para reduzir as perdas de água e melhorar a gestão dos sistemas para garantir a segurança hídrica das cidades do país. Atualmente, com a seca no centro-sul, várias cidades já enfrentam racionamento de água.

O trabalho avaliou, entre outros itens, a capacidade dos sistemas nas cidades, o desempenho da produção de água potável e da rede de distribuição e a vulnerabilidade dos mananciais.1 de 6 


Usina Hidrelétrica binacional de Itaipu. A maior do mundo desde a inauguração, em 1984, até o ano de 2012, produz até 14.000 megawatts. Foto: Alexandre Marchetti/Itaipu Binacional
Vista aérea da usina de Belo Monte, a segunda maior do país: capacidade para 11.233 megawatts. Foto: Divulgação
Hiderlétrica Ilha Solteira, em São Paulo. Em operação desde 1973. Foto: Henrique Manreza / Manreza Imagens / Divulgação / CTG Brasil
Hidrelétrica de Tucuruí, no Rio Tocantins, no Pará, pode produzir até 8.535 megawatts e foi inaugurada no mesmo ano que a de Itaipu, 1984. foto Rui Faquini
Usina hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Com capacidade instalada de 3.750 megawatts, ela está em operação no Rio Madeira, na Bacia Amazônica, desde 2013. Foto: Divulgação/PAC
No mersmo Rio Madeira, está a Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, instalada no rio Madeira, em Porto Velho (RO). Ela tem capacidade para 3.568 MW. Foto: Divulgação / Ibama
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Usina Hidrelétrica binacional de Itaipu. A maior do mundo desde a inauguração, em 1984, até o ano de 2012, produz até 14.000 megawatts. Foto: Alexandre Marchetti/Itaipu Binacional
Vista aérea da usina de Belo Monte, a segunda maior do país: capacidade para 11.233 megawatts. Foto: Divulgação
Hiderlétrica Ilha Solteira, em São Paulo. Em operação desde 1973. Foto: Henrique Manreza / Manreza Imagens / Divulgação / CTG Brasil
Hidrelétrica de Tucuruí, no Rio Tocantins, no Pará, pode produzir até 8.535 megawatts e foi inaugurada no mesmo ano que a de Itaipu, 1984. foto Rui Faquini
Usina hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Com capacidade instalada de 3.750 megawatts, ela está em operação no Rio Madeira, na Bacia Amazônica, desde 2013. Foto: Divulgação/PAC
No mersmo Rio Madeira, está a Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, instalada no rio Madeira, em Porto Velho (RO). Ela tem capacidade para 3.568 MW. Foto: Divulgação / Ibama
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Neste último quesito, o Atlas concluiu que 44% das cidades têm fontes de captação de água vulneráveis a eventos climáticos críticos, como secas e mudanças climáticas.

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Do total de investimentos estimados, 76% são demandas das regiões Sudeste e Nordeste, que concentram o maior contingente populacional do país.

Só 7 milhões têm segurança hídrica máxima

Levando em consideração os parâmetros do Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH), o Atlas apresenta um novo índice para medir o nível de garantia de acesso a água tratada em diferentes regiões diante das recentes crises hídricas.

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O levantamento apontou que apenas 7 milhões de brasileiros vivem em cidades com segurança hídrica máxima. Somente 667 cidades contam com um sistema de abastecimento de água capaz de garantir o fornecimento. 

Há pouco mais de 50 milhões de brasileiros vivendo em cidades com baixa ou mínima segurança hídrica. São 785 cidades nessa condição.

Outros 77,3 milhões de brasileiros vivem nas 1.975 cidades classificadas com segurança hídrica média quanto ao seu sistema de abastecimento de água. Em 22% das cidades os sistemas de distribuição têm alto índice de perdas.

Plano para recuperar reservatórios

Nesta segunda-feira, a diretoria da ANA aprovou um plano de contingência para recuperação dos principais reservatórios de água do país, principalmente os de usinas hidrelétricas, informou a Agência Brasil.

O objetivo da medida é aproveitar o período chuvoso, que vai de dezembro deste ano a abril de 2022, e garantir a recuperação dos níveis para os anos seguintes.

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O plano define vazões defluentes máximas que devem ser praticadas durante o período chuvoso nos reservatórios de Serra da Mesa, Três Marias, Sobradinho, Emborcação, Itumbiara, Furnas, Marechal Mascarenhas de Moraes, Jupiá e Porto Primavera. Novos reservatórios poderão ser incluídos nas medidas de contingência. 

A agência informou que as regras serão comunicadas ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para adoção no Sistema Interligado Nacional (SIN). A implementação das medidas será acompanhada por meio de boletins e sala de crise específicas.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/economia/brasil-precisa-investir-110-bi-ate-2035-pra-garantir-acesso-agua-diz-ana-1-25241710


Brasil perde 16% da superfície de água em 30 anos

Estado mais afetado é o Mato Grosso do Sul, onde mais da metade do recurso foi perdido desde 1990; todas as regiões e biomas foram afetados segundo pesquisa do MapBiomas

Emílio Sant'Anna, O Estado de S. Paulo

Em 30 anos, 15,7% da superfície de água do Brasil desapareceu. No Estado mais afetado, o Mato Grosso do Sul, mais da metade (57%) de todo o recurso hídrico foi perdido desde 1990. Ali, essa redução ocorreu basicamente em um dos biomas mais importantes do País, o Pantanal

Todos os biomas brasileiros foram afetados e suas perdas mensuradas em pesquisa inédita do MapBiomas, projeto que reúne universidades, organizações ambientais e empresas de tecnologia. Ao todo, 3,1 milhões de hectares de superfície de água sumiram, o equivalente a mais de uma vez e meia de todo o recurso hídrico disponível no Nordeste em 2020. 

Das 12 regiões hidrográficas, oito revelam hoje os efeitos do desmatamento, da mudança climática e da destruição de mananciais, refletido na crise hídrica que afeta o meio ambiente e a geração de energia elétrica. "Nesse ritmo vamos chegar a um quarto (25%) de redução da superfície de água do Brasil antes de 2050", afirmou Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas. 

Após Mato Grosso do Sul, completam as três primeiras posições da lista: Mato Grosso, com perda de quase 530 mil hectares, e Minas Gerais, com saldo negativo de mais de 118 mil hectares. Boa parte dos pontos de maior redução encontram-se próximos a fronteiras agrícolas, o que sugere que o aumento do consumo e a construção de represas em fazendas, que provocam assoreamento e fragmentação da rede de drenagem, trazem prejuízos para a própria produção. 

Para Maurício Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil, a pesquisa é um recado para os "tomadores de decisões de que é preciso mudar imediatamente essa trajetória de degradação que o Brasil tem escolhido". Ele destaca que a criação de reservatórios em propriedades particulares é um dos pontos mais preocupantes. 

"Quando a gente vê a discussão no Congresso sobre a flexibilização dos requisitos de licenciamento ambiental, não estão sendo considerados os cuidados que precisam ao serem feitas barragens dentro de propriedades privadas que causam perdas (para as bacias)", analisa Voivodic.

O estudo também mostra a relação entre regiões afetadas por queimadas redução de água. O município que mais pegou fogo entre 1985 e 2020, segundo o MapBiomas Fogo, e que mais perdeu água nesse período, foi Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Cáceres, o quinto que mais queimou no País, é o segundo em perdas. 





Além dos impactos ambientais, o problema detectado pela pesquisa implica perdas econômicas consideráveis. "Em algumas regiões de fronteira agrícola, como o Cerrado, chegar a um quarto de redução vai significar também o fim da safrinha", diz Azevedo, se referindo às culturas anuais mais curtas e que têm grande peso financeiro para os produtores. 

Relação

O alerta do pesquisador converge com o relatório do IPCC publicado neste mês. O painel climático da ONU apontou que até 2040, uma década antes do que era previsto, a temperatura média da Terra deve chegar a 1,5 grau acima dos níveis pré-industriais. Entre as consequências para o Brasil estão a perda da capacidade de produção agrícola causada por estiagens no Centro-Oeste. O mesmo efeito climático se espera no Nordeste e na Amazônia. 

Por lá, o estudo do MapBiomas também mostra esses efeitos. Até mesmo a bacia do Rio Negro perdeu superfície de água. Considerando o início e o final da série, foram mais de 360 mil hectares, queda de 22%. A queda mais acentuada ocorreu entre 1999 e 2000, com redução de mais de 560 mil hectares, ou um pouco mais de 27% a menos.

O que aconteceu com essa bacia, inclusive, é um exemplo. Após reduções acentuadas, mesmo anos com mais chuvas não são capazes de recuperar o estado inicial. Ou seja, os rios recuperaram, no máximo, parte dessas perdas. 

Para o coordenador do MapBiomas, o trabalho reaqlizado pela ANA (Agência Nacional de Águas) é bom e as leis que regulam o uso da água no Brasil estão bem estabelecidas. O problema está mesmo no desmatamento, mudança climática e descaso com mananciais. 



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A postura negacionista em relação aos ataques ao meio ambiente do governo Jair Bolsonaro (sem partido), que minimiza os impactos do desmatamento e fragiliza a fiscalização ambiental, preocupa especialistas.

Na gestão Bolsonaro, o número de focos de incêndios em regiões como Amazônia, Pantanal e Cerrado disparou. Em 2020, o Cerrado brasileiro assim como o Pantanal registraram as piores queimadas já captadas pelos satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia

De acordo com estudo do próprio MapBiomas, todos os anos, uma área maior que a Inglaterra pega fogo no Brasil. A área queimada desde 1985 chega a quase um quinto do território nacional. Foram 1.672.142 km², o equivalente a 19,6% do Brasil. O fogo e escassez hídrica acionam um sinal de alerta. "Isso reforça a mensagem aos tomadores de decisão de que é preciso mudar imediatamente essa trajetória de degradação que o Brasil tem escolhido. Os prejuízos que estamos causando ao planeta vão necessariamente impactar nossa economia", diz o diretor do WWF-Brasil.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,levantamento-mostra-que-pais-perde-16-da-superficie-de-agua-em-30-anos,70003818428


Eliane Brum: Como pode uma empresa controlar a vida e a morte?

Com cinco anos de operação, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se um laboratório de como o capitalismo produz colapso ecológico na Amazônia

Imagine. E mantenha o fôlego.

Imagine que sua vida não é controlada por você, mas pelas grandes corporações. A serviço delas estão grande parte dos Governos e grande parte dos parlamentares. Pelo seu poder financeiro, essas corporações fazem pressão para aprovar leis favoráveis a seus interesses, financiam campanhas políticas, publicitárias e de marketing, financiam cientistas em universidades prestigiadas e financiam também outra indústria que entra em suas telas 24 horas por sete dias da semana, a de entretenimento. Você é estimulado a comer produtos ultraprocessados (bolachas de pacote, congelados, refrigerantes...), que, apesar de serem chamados de alimentos, são na verdade produtores de epidemias de obesidade em várias partes do globo, provocando doenças relacionadas que vão demandar os produtos de outra indústria, a farmacêutica. Agrotóxicos produzidos por corporações transnacionais são liberados pelas agências de Governos e contaminam os rios, que contaminam os peixes e também o lençol freático e assim a água que você bebe. Esses agrotóxicos envenenam ainda a comida que você bota na mesa para os seus filhos e estão relacionados a várias doenças de trabalhadores e também a suicídios.

soja que substituiu as florestas e as savanas serve para alimentar os animais que, depois de uma vida escravizada, serão enfileirados em pedaços despersonalizados nas prateleiras dos supermercados. Parte desses bois foram colocados sobre as ruínas da floresta apenas para garantir a posse da terra que era pública, o que faz com que a carne no seu prato seja o final de um processo que começou com a destruição da natureza. Esses bois são também uma das principais causas do superaquecimento global pelo metano que emitem ao arrotar. Em alguns países, como o Brasil, a população bovina é maior do que a humana, o que torna sua digestão uma catástrofe global. A roupa que você veste tem, na ponta visível, uma vitrine iluminada de loja, ou um site supereficiente que entrega produtos na sua porta.

Na outra ponta da cadeia, com frequência, tem trabalho escravo e também infantil em algum país pobre no outro lado do mundo, em fábricas ou porões insalubres, que às vezes explodem ou queimam, ou então na parte pobre e insalubre de um país rico. Essa ampla circulação de mercadorias e de pessoas (e agora também de vírus) demanda uma enorme quantidade de combustíveis fósseis (derivados de petróleo, carvão mineral e gás natural), principal causa do colapso climático. Quase tudo que rodeia você veio de alguma cadeia de mineração, que destrói o meio ambiente em grande escala e também contamina os rios, os peixes, diferentes espécies de animais e também humanos com mercúrio e outras substâncias tóxicas. Mais recentemente, as corporações estão fazendo mineração também no fundo dos oceanos, onde ainda há menor regulamentação ou nenhuma. Se nada for feito, os lindos documentários do fundo do mar que você assiste em canais de “natureza” serão em breve memorial de um passado que já não existe no presente.

Dizem que você é livre, porque é consumidor e seus filhos já nascem como consumidores e clientes. Tem, portanto, a fantástica escolha de consumir a marca e o produto que quiser com o dinheiro, invariavelmente menos do que você precisa, que ganhou vendendo o seu corpo e o seu tempo, que é tudo o que você tem. Caso você considere essa condição desumana e se revolte, se junte com outros para denunciar a violência dessas cadeias e desse sistema, as corporações têm o poder financeiro de pagar os melhores advogados e até mesmo pesquisas com cientistas de instituições respeitáveis, capazes de romper todas as amarras éticas para afirmar as conclusões que as corporações precisam para seguir comendo o planeta. Com a Internet, as corporações passaram também a financiar centrais de ódio, onde geram robôs e conteúdos falsos para acabar com a sua reputação —ou a da organização não governamental ou do movimento do qual você participa— com ataques e mentiras nas redes sociais. Toda voz dissidente deve ser combatida e, se possível, destruída. Destruir uma reputação é um tipo de assassinato.

Por trás de toda essa engrenagem que determina, regula e controla vidas há pessoas feitas da mesma matéria que você. Vale a pena lembrar que o planeta inteiro tem 2.153 bilionários, um número de pessoas que cabe num teatro grande. Juntas, elas têm mais riqueza do que 60% da população mundial. Na América Latina e Caribe, esses bilionários somam 73 pessoas. Um estudo da Oxfam mostrou que, entre março e junho de 2020, nos meses iniciais de pandemia, esses 73 aumentaram sua fortuna em 48,2 bilhões de dólares, o equivalente a um terço do total de recursos previstos em pacotes de estímulos econômicos adotados por todos os países da região. No Brasil, há 42 bilionários. Entre março e julho deste ano, período de intensa crise humanitária causada pela pandemia, eles aumentaram suas fortunas em 34 bilhões de dólares. Quando, com organização e luta, a sociedade da qual você faz parte ou o grupo que o representa conquista algum direito, uma entidade que chamam “mercado”, mas que você nunca viu, afirma que “vai quebrar a economia”. O mercado são essas pessoas e os executivos que trabalham para elas nas mais variadas áreas, destacando-se nesse amplo espectro os economistas. Quando os jornais dizem que o “mercado está nervoso”, é essa “meia dúzia”, comparada à população mundial, que sentiu uma comichão de estresse.

Parece um pesadelo? Essa distopia é a vida hoje no sistema capitalista neoliberal. Nesse sistema, o mercado é a base da organização da sociedade, com desregulamentação da economia, privatização das empresas estatais e enxugamento dos gastos sociais. Faz parte também uma ampla circulação de mercadorias, fluxo de capitais e de informações num mundo cada vez mais globalizado, fazendo com que se torne muito difícil, quando não impossível, fiscalizar e controlar as grandes corporações transnacionais. A sensação que você partilha com os bilhões que habitam esse planeta e não fazem parte dessa minoria dominante é a de que não controla a sua vida. Não é uma sensação.

O capitalismo neoliberal é o ápice do processo pelo qual a espécie humana provocou o colapso climático que hoje ameaça nosso futuro no planeta e provocou também a sexta extinção em massa de espécies, em curso nesse momento. Essa distopia é nossa vida atual e sua última realização foi nos trazer ao tempo das pandemias, que já matou quase 180.000 pessoas no Brasil e mais de 1,5 milhão no planeta.

O que isso tem a ver com Belo Monte, a usina hidrelétrica construída no Médio Xingu, uma das mais ricas e biodiversas regiões da Amazônia?

Tudo.

Um laboratório de catástrofe

A região atingida por Belo Monte é um microcosmo onde o modo de existência capitalista neoliberal foi imposto a outros modos de existência, como o dos povos indígenas e ribeirinhos, num curto espaço de tempo. Em apenas uma década, esse modo de operação provocou destruição em cadeia. Os piores efeitos estão só começando. Nesse momento, o grande embate é pela água, um embate que ecoa uma das maiores guerras do planeta, hoje e muito mais no futuro próximo, o que torna a observação dos acontecimentos do Xingu ainda mais importante.

A empresa concessionária de Belo Monte, a Norte Energia SA, controla a água do rio para a geração de energia e, portanto, controla a quantidade de água que alcança a região povoada por populações da floresta, mais especificamente indígenas e ribeirinhos. A região cuja água está sob controle da Norte Energia é povoada também por milhares de diferentes espécies de animais e vegetais, algumas delas endêmicas, o que significa que em todo o planeta só existem naquele lugar. No leilão da usina, em 2010, a Norte Energia era composta por pequenas empreiteiras. Hoje é composta em quase 50% pelo Grupo Eletrobras, 20% por fundos de pensão (Petros e Funcef) e o restante dividido em participações menores.

Quando a Norte Energia controla a água, a empresa transfigura um pequeno grande mundo na floresta amazônica, hoje cada vez mais perto do ponto de não retorno. O que é o ponto de não retorno? É o momento em que a floresta deixa de ser floresta, e assim deixa de fazer o seu papel essencial de floresta, que é o de regular o clima, para se tornar uma savana. Obviamente é um acontecimento progressivo, que hoje está em ritmo acelerado devido ao enfraquecimento dos órgãos de proteção, ao aumento do desmatamento e dos incêndios no Governo Bolsonaro. Sem a maior floresta tropical do mundo, vale lembrar, se torna muito difícil controlar o superaquecimento global.

Dentro desse pequeno grande mundo atingido por Belo Monte, há um microuniverso que é ainda mais brutalmente atingido, conhecido como Volta Grande do Xingu. Com extensão de 130 quilômetros de uma beleza acachapante, a Volta Grande é morada de dois povos indígenas, os Yudjá e os Arara, e de vários grupos ribeirinhos, considerados população tradicional da floresta, além de camponeses agroecológicos e pescadores. Também é fortemente atingido o rio Bacajá, afluente do Xingu, do qual depende a vida do povo Xikrin. Em uma década, o universo dessas milhares de pessoas entrou em colapso provocado por Belo Monte.

Há sempre títulos complicados e em geral falsos nesses empreendimentos predatórios. Faz parte da estratégia converter a população atingida, grande parte dela formalmente analfabeta da escrita, também em analfabeta dos ouvidos. Chamaram de “Hidrograma de Consenso” a administração da quantidade de água liberada pela usina para a Volta Grande do Xingu. A inclusão da palavra “consenso” é um mistério, já que jamais houve consenso algum. Portanto, mais do que um mistério, é um truque de marketing para confundir o entendimento e dificultar o enfrentamento. A luta pela água, que para os povos do Xingu é uma luta pela vida, sempre foi produzida no conflito, já que suas vozes foram ilegalmente ignoradas desde a decisão de implantar a usina.

Fatos, pesquisas científicas e experiência cotidiana mostram que a administração da água para a operação de Belo Monte está provocando a destruição da Volta Grande do Xingu e, portanto, a destruição da vida dos humanos e não humanos que vivem lá. André Oliveira Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, afirma que o efeito do controle da água pela Norte Energia equivale a antecipar o colapso climático na Volta Grande do Xingu. “Possivelmente, o desmatamento no Alto Xingu e as barragens de Belo Monte têm um efeito muito mais severo (e em curso) na vazão da Volta Grande que a crise climática global”, afirma o geólogo, que estuda o Xingu e Belo Monte há anos. “Alguns estudos projetam redução de 30% na vazão do Xingu devido à emergência climática. Porém, o desvio de água para alimentar o reservatório intermediário já reduz a vazão em 35-40%, nos meses de setembro e outubro, no período da seca, e em 60-85% em março e abril, no período da cheia. Isso significa que a crise climática já chegou para a Volta Grande —e de forma mais severa.”

O Ministério Público Federal, que já moveu 24 ações pelas violações cometidas na implantação de Belo Monte, chama os acontecimentos ocorridos na Volta Grande de “ecocídio”. O conceito contempla o extermínio de um ecossistema ou bioma com todas as espécies que o constituem e busca a responsabilização dos agentes de destruição —pessoas, empresas, corporações, Governos. Os cientistas mais renomados do país, que pesquisam a região há décadas, já somaram suas vozes aos povos da floresta, ao afirmar que a administração da água proposta pela empresa está causando e irá causar um desastre ecológico que poderá levar espécies endêmicas à extinção e colapsar por completo a vida de indígenas e de ribeirinhos. Em maio deste ano, até mesmo o sistema financeiro internacional começou a se mover: o fundo soberano da Noruega, que administra mais de 1 trilhão de dólares, excluiu de sua carteira de investimentos a Eletrobras, por decisão de seu conselho de ética. A empresa, principal acionista da Norte Energia SA, foi deletada por “inaceitável risco de que contribua para sérias ou sistemáticas violações de direitos humanos”, devido à usina hidrelétrica de Belo Monte.

O roubo da água

No final de novembro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) conseguiu obter uma decisão favorável na Justiça federal, que obriga a Norte Energia a manter um hidrograma “provisório”, até que os estudos possam ser concluídos, para garantir a sobrevivência da Volta Grande. Isso significa que a empresa precisa liberar mais água para o ecossistema do que ela demanda no maliciosamente chamado Hidrograma de Consenso. A decisão foi tomada pelo juiz federal Roberto Carlos de Oliveira com base no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”, “impondo ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”.

Quando a usina recebeu a licença de operação, em 24 de novembro de 2015, apesar de todas as denúncias de violações e todo o passivo ecológico, a Volta Grande já tinha começado a se transfigurar. No ano seguinte, os Yudjá, povo indígena que considera ter canoas em vez de pés, porque são parte do rio, chamaram o ano de 2016 de “o ano do fim do mundo” (leia aqui). Em 2020, porém, a seca foi ainda maior. Por consequência, a situação da Volta Grande ficou ainda pior. Em toda a região atingida por Belo Monte, houve uma morte massiva de peixes. Ribeirinhos avisaram pelo WhatsApp que o Xingu estava se transformando num cemitério. “Os filhos do Xingu já não reconhecem mais o vai e vem da água”, disse Raimunda Gomes da Silva, liderança ribeirinha que teve sua casa e sua ilha incendiadas pela Norte Energia.

De 9 a 12 de novembro, o núcleo de “Guardiões”, formado por indígenas dos povos Xipaya, Kuruaya e Yudjá, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, interditou a Transamazônica no quilômetro 27 para denunciar que os peixes não conseguiam fazer a piracema. Ou seja, a reprodução tinha sido interrompida. “Estamos unidos para defender as águas do Xingu e as nossas vidas. Belo Monte quer nos matar aos poucos, assim como faz com os peixes do Xingu, mas nós lutaremos”, escreveram em uma carta manuscrita. “Estamos aqui para mostrar a situação que temos vivido desde a chegada de Belo Monte e o roubo da água do Xingu. Faz cinco anos que estamos sofrendo os impactos da barragem [...] A nossa vida não pode ser ignorada. Nossas vidas importam!”, afirmaram em documento às autoridades.

Costuma-se mencionar peixes com a linguagem da mercadoria. Em gramas, quilos e toneladas. Nesse caso, Belo Monte matou toneladas de peixes. Mas peixes não são mercadorias, peixes são criaturas vivas, diversas e fascinantes. Em maio de 2019, o britânico The Guardian, um dos jornais mais ativos na cobertura do colapso climático, anunciou a atualização de seu manual de redação e defendeu em editorial a mudança da linguagem, para que a imprensa seja capaz de conferir exatidão à cobertura ao se referir a esse momento limite vivido pela humanidade. Não mais “mudança climática”, mas “crise, colapso ou emergência” climática/o. Não mais “aquecimento global”, mas “superaquecimento global” (global heating, difícil de traduzir para o português). Não mais toneladas, estoques e outros termos relativos a mercadorias para seres vivos —e sim populações e outros termos adequados àqueles que vivem. Foi um marco, infelizmente ainda não seguido pela totalidade dos grandes jornais do mundo.

Quando milhões de peixes são assassinados ou impedidos de se reproduzir, toda uma cadeia de acontecimentos entra em colapso. As cidades romperam sua conexão com a natureza, fazendo com que as pessoas que nelas vivem se esqueçam de que são também natureza, mas na floresta, mesmo uma floresta duramente afetada e atacada, como a amazônica, é possível constatar que nenhum acontecimento, por menor que seja, é isolado. Tudo se conecta e se afeta mutuamente. São relações sociais, são também relações de vida. A morte dos peixes é uma tragédia para os peixes, mas é também uma tragédia para todos os humanos e não humanos que lá vivem. E se é uma tragédia para todos eles, será uma tragédia que vai ecoando em cadeia pelo planeta.

“Eu estava indo colher uma castanha pra fazer um peixe no leite de castanha e ouvi um barulhinho de folha. Quando fui investigar, era um carrapato andando”, contou Juma Xipaia, uma das principais lideranças de seu povo, em uma entrevista pública que fiz com ela para o Wow Festival Mulheres do Mundo. “Levei um susto imenso. Se eu pude ouvir um carrapatinho andando no meio da floresta amazônica é porque está muito, mas muito seco.” Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, Juma tinha se recolhido à aldeia para se proteger da covid-19. “Na minha opinião, o animal que mais está em risco de extinção é o próprio humano, por não entender que cada ser, por menor que seja, tem sua importância”, diz a indígena. “Os humanos vão comendo o mundo como se fossem uma grande traça.”

As cenas de indígenas e ribeirinhos tentando salvar peixes é de uma tragicidade imensa. E a partir dela se desencadearam vários pequenos acontecimentos. Bel Yudjá, liderança da aldeia de Mïratu, na Volta Grande do Xingu, conta que seu povo testemunhou a chegada de uma horda de urubus. Já não é aconselhável deixar roupas nos varais, porque são arrancadas por esses animais fascinantes. Urubus também começaram a aparecer nas pias onde lavam a louça. Os urubus migraram para se alimentar dos peixes mortos. Só esse pequeno, muito pequeno acontecimento, muda o lugar para onde os urubus migraram e muda também o lugar que deixaram.

A natureza é muito mais delicada e complexa do que qualquer invenção humana. “Espero que a Justiça e o Ibama consigam garantir uma quantidade de água que nos permita viver na Volta Grande”, diz Bel Yudjá. “Já estamos nos transformando num cemitério de peixes, acredito que seremos um cemitério de árvores mortas. Estamos aqui, lutando, e esperamos que as pessoas se somem a nós nessa luta para que a Volta Grande possa continuar viva e a nossa vida deixe de estar ameaçada.”

A pergunta mais inconveniente

Desde que a água virou “insumo”, um objeto sujeito à administração para obedecer à necessidade de lucros de uma empresa e não às necessidades da vida de um pedaço da floresta tropical mais importante do mundo, a grande pergunta no Médio Xingu, é: como uma empresa é capaz de controlar a água de um rio e de um ecossistema inteiro e, portanto, a vida de humanos e não humanos? Como uma empresa pode ser dona da água?

Essa é uma pergunta que só pode ser formulada por quem ainda é capaz de se espantar com a forma como o capitalismo converte tudo em mercadoria. Quem vive nas cidades já tem dificuldades de se espantar e fazer perguntas como essa porque o sistema que destrói a natureza se tornou “natural”. Essa é uma inversão só possível pela mística do capitalismo, na qual o “selvagem”, o não sujeitado ao sistema, é apresentado como anomalia. Essa mistificação encobre a anomalia real, que é o sistema que nos últimos séculos destruiu o próprio planeta, nos trazendo ao momento atual, no qual a própria espécie se encontra ameaçada.

proliferação de negacionistas é a resposta de um sistema que já não consegue encobrir com os métodos tradicionais os sinais evidentes, que qualquer um já pode sentir em seu cotidiano, de que a vida humana no planeta está em risco. É o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos, ocupando o cargo de maior poder da principal potência mundial, e de Jair Bolsonaro no Brasil, ao ocupar a presidência de um país estratégico para o controle do superaquecimento global, por ter 60% da floresta amazônica em seu território. Não basta usar os métodos tradicionais quando a realidade se impõe de forma tão contundente. É preciso provocar o caos instalando mentirosos no topo da cadeia.

Ainda assim, como a maioria vive em grandes cidades, as engrenagens são mais difíceis de enxergar porque já foram assimiladas, a maioria já nasceu dentro do sistema que a tritura e que lhe é apresentado como normalidade. Para os indígenas e ribeirinhos afetados por Belo Monte, não. Eles se abismam com aqueles que o pensador Yanomami Davi Kopenawa chama de “povo da mercadoria” ou “comedores de floresta”.

“Quanto vale a vida?”, perguntou Graça Yudjá, matriarca da aldeia Mïratu, a representantes da Norte Energia. “Essa é uma pergunta de levante da vida contra sua transformação em rendimento de energia elétrica”, diz a antropóloga Thais Mantovanelli em seu capítulo no livro Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal (Imprensa Universitária). “A questão dos impactos da hidrelétrica tornou-se uma guerra para os povos afetados. Uma guerra de corpos índios, ribeirinhos, cromáticos, contra o monocromatismo dos uniformes azul-claros do corpo técnico burocrático de Belo Monte, que impõe o fim do fluxo das águas e o fim da circulação da vida.”

A implantação de Belo Monte e os impactos em cadeia gerados pela usina produziram, em uma década, uma catástrofe ecológica. E por isso Graça Yudjá se assombra. Catástrofes ecológicas só acontecem quando a vida é usurpada ao ganhar preço. É óbvio que o fato de o preço sempre ser baixo alarga o abismo, mas o crime fundador é a monetarização da vida para que seu valor possa ser comparado àquele gerado pelos lucros —e invariavelmente perder.

Na catástrofe ecológica produzida pelas forças que geraram Belo Monte, todos os elementos estão presentes. Um leilão suspeito de fraudes, seguido pela formação de um consórcio-construtor composto pelas maiores empreiteiras do país, que mais tarde seriam objeto de denúncias da Operação Lava Jato; a imposição sobre os povos originários e tradicionais, violando a legislação brasileira e também internacional; a repressão e criminalização dos protestos contra a usina promovidas por participantes de movimentos sociais, indígenas e ribeirinhos, usando a Força Nacional contra o povo; o uso do instrumento jurídico autoritário da Suspensão de Segurança para impedir que as obras fossem paralisadas e assegurar que a usina se tornasse fato consumado antes que as ações fossem julgadas; a utilização da Abin para espionar movimentos sociais em pelo menos um caso comprovado; analfabetos assinando papéis que não eram capazes de ler em que perdiam todos os direitos ou aceitavam indenizações irrisórias para deixar suas casas, terras e ilhas; o comportamento omisso (ou favorável à empresa) de órgãos federais e autoridades públicas que deveriam proteger o meio ambiente e os povos originários, mas não o fizeram ou o fizeram debilmente; a contratação de empresas de assessoria de imprensa que atuavam na desqualificação de jornalistas que denunciavam as violações de direitos na construção da usina, ao mesmo tempo em que faziam lobby junto à direção de jornais para enaltecer a “grande obra de engenharia”; mais recentemente, a contratação de advogados especializados em direito ambiental para processar jornalistas que denunciam os abusos da Norte Energia. Todo o funcionamento do sistema, que no caso de Belo Monte foi operado por um conluio entre Governo federal e empresas privadas, pode ser visto, identificado e analisado no caso Belo Monte.

Belo Monte é ao mesmo tempo paradigma, ao mesmo tempo laboratório. Apresentada como a maior hidrelétrica 100% brasileira, já que Itaipu é binacional, custou pelo menos o dobro do anunciado e hoje está orçada em torno de 40 bilhões de reais, grande parte desse montante financiado pelo setor público, no caso o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Divulgada como a quarta maior do mundo pela sua capacidade instalada de 11.000 megawatts, a verdade é que esse valor é apenas potencial. Como o rio Xingu vive metade do ano na seca, a real produção de energia, que no jargão técnico se chama “energia firme”, é, na média, menos da metade disso.

Essa é uma das principais razões pelas quais cientistas e técnicos apontavam —e apontam— a inviabilidade da hidrelétrica. Desde antes do início da construção, especialistas no setor elétrico já comprovavam que Belo Monte era inviável também para a produção de energia, devido à característica sazonal (estação de chuvas e estação de seca) do Xingu. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, o EL PAÍS e o The Guardian revelaram que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.

Consenso em vez de polarização

Belo Monte mostra também como a ideologia para a Amazônia construída pela ditadura civil-militar (1964-1985) é persistente, ao manter-se viva e ativa na visão de desenvolvimento tanto da centro-esquerda como da extrema direita. Nesse olhar tipicamente de século 20, mas que no espectro partidário brasileiro ainda orienta os programas da maioria dos partidos, a floresta amazônica é tratada como objeto de exploração e seus povos são invisibilizados. Apesar de toda a polarização do país nos últimos anos, Belo Monte revelou-se o único consenso: a primeira turbina foi inaugurada por Dilma Rousseff (PT) e a última por Jair Bolsonaro (sem partido).

Durante a construção da usina, povos indígenas da região atingida, mesmo de recente contato, foram durante mais de um ano abastecidos com produtos industrializados, parte deles ultraprocessados. Para quem testemunhou o processo, foi como observar um experimento de laboratório em que povos originários foram usados como cobaias. O nome da pesquisa poderia ter sido: “como indígenas de recente contato da floresta amazônica se comportam ao ter sua alimentação repentinamente substituída por produtos industrializados”. O resultado foram doenças como obesidade, hipertensão e diabetes. O próprio Ministério da Saúde comprovou um aumento de 127% na desnutrição infantil entre 2010 e 2012 nas aldeias da região.

Desde o início da segunda década, o fluxo de indígenas na cidade de Altamira se intensificou, roças deixaram de ser feitas porque a comida chegava em latinhas e embalagens, o modo de vida foi profundamente alterado, a ponto de o Ministério Público Federal denunciar a Norte Energia SA por etnocídio indígena. Essa violenta transfiguração do território e da vida no território fez com que a covid-19 encontrasse as aldeias da região muito mais dependentes da cidade e dos produtos da cidade, o que expôs ainda mais a população originária aos riscos da pandemia. Belo Monte é também paradigma na produção de pobres, ao converter população tradicional da floresta em miseráveis nas periferias urbanas.

A corrupção do território também foi decisiva para converter Altamira na cidade mais violenta da Amazônia e uma das mais violentas do Brasil, com as periferias tomadas por facções criminosas. Em 29 de julho de 2019, essa violência foi decisiva para a irrupção do segundo maior massacre carcerário da história de país, ocorrido no presídio de Altamira, com 62 mortos no total. Nas periferias da cidade, há hoje uma geração de crianças sendo criadas pelas avós porque os pais foram assassinados nos últimos anos. Desde o início de 2020, Altamira testemunha uma série de suicídios de adolescentes, a maioria deles enforcados, fenômeno relacionado pelos especialistas à repentina e violenta transformação do território e do modo de vida da população produzidos por Belo Monte.

Um laboratório de resistência

O que os indígenas e ribeirinhos chamam de “roubo da água” é o mais recente capítulo. Certamente não será o último. Mas talvez seja o mais decisivo. Se não for impedido, como já foi amplamente denunciado por indígenas, ribeirinhos, cientistas, defensores públicos e procuradores da República, pode resultar no extermínio da Volta Grande do Xingu. Jansen Zuanon, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e um dos mais respeitados especialistas em peixes do país, explica que essa transfiguração da Volta Grande pode causar a extinção de espécies que só existem naquele ecossistema, como o famoso acari-zebra, personagem de adoração de visitantes que vêm de várias partes do mundo apenas para observá-lo em seu habitat. Jansen também explica que o que acontece com os peixes também acontece com as outras espécies e até mesmo com os humanos que vivem como natureza:

“A população humana e não humana que habita a Volta Grande está acostumada aos ritmos do rio e conhece os sinais. Essas populações organizaram as suas vidas em torno da previsibilidades desses ritmos. Quando uma empresa passa a regular a quantidade de água a partir da necessidade de energia demandada pelo operador nacional do sistema, uma entidade alheia ao Xingu e a todos os seus ciclos naturais, perde-se todo o sincronismo, desestruturando completamente os ciclos biológicos das espécies. Ao regular a água nas torneiras da usina, a empresa acaba afetando direta ou indiretamente todos os ciclos que acontecem na Volta Grande do Xingu. Nem os peixes, nem os tracajás (quelônios), nem mesmo os humanos conseguem reconhecer os sinais, que passaram a ser contraditórios. A única forma de impedir o desastre total é manter uma quantidade suficiente de água para todas essas espécies e manter também o ritmo natural. É necessário que seja previsível. Sem isso, a desestruturação do ecossistema será completo. Se Belo Sun conseguir se instalar, sobrepondo o seu impacto ao de Belo Monte, aí estaremos no fio da navalha.”

Enquanto Belo Monte seca a Volta Grande do Xingu e provoca um desastre ecológico e uma crise humanitária, com famílias ribeirinhas enfrentando a fome pela primeira vez, outra empresa, essa transnacional, avança sobre a Volta do Xingu. A mineradora de origem canadense Belo Sun pressiona há anos para a instalação do que é vendido como “a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil”. Para conseguir se instalar, produz um lobby intenso junto ao governo do Estado do Pará e junto aos parlamentares, em Belém, e também junto às comunidades locais da Volta Grande do Xingu, cada vez mais desamparadas e testemunhando seu mundo entrar em colapso. Se Belo Sun conseguir avançar, vai sobrepor o seu enorme impacto sobre o já enorme impacto de Belo Monte e deixará como legado uma montanha de rejeitos tóxicos cujos efeitos permanecerão por gerações.

Essa é a situação. No microcosmo chamado Volta Grande do Xingu é possível assistir, em tempo real, o movimento do capitalismo mais predatório em sua ação para subjugar a natureza e os povos que são natureza. É quase uma vitrine, um museu do presente ou, como é chamado pelo ambientalista Marcelo Salazar, “um museu de ruínas”.

A guerra da humanidade em transe climático está se passando lá, agora, em miniatura. Entre os que são natureza —e os que esvaziam a natureza e a convertem em mercadoria. Entre os que chamam o que é vivo de “recurso”— e os que chamam o que é vivo de “vivo”. Esse é o mesmo embate que, travado em larga escala no planeta, tem numa ponta os povos originários, a juventude climática liderada por Greta Thunberg e 99% dos cientistas do mundo, e, na outra, grandes corporações, governantes, políticos, executivos, advogados, publicitários e lobistas a seu serviço.

É por isso que os olhos do mundo se voltam cada vez mais para a Volta Grande do Xingu e Altamira, considerada epicentro da destruição da Amazônia. É importante sublinhar ainda que, se a região se tornou um laboratório da destruição, também tem se mostrado um laboratório de resistência. Contra forças imensamente mais poderosas e um poder econômico totalmente desigual, sofrendo no corpo os impactos da transfiguração de seu mundo, ribeirinhos, indígenas, pescadores, agricultores familiares e ativistas resistem. Nem por um dia sequer deram trégua à Norte Energia e mais recentemente também à Belo Sun.

Não podem, porém, seguir lutando sozinhos uma luta que é pelo planeta de todos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


O Estado de S. Paulo: Uso de água no País deve crescer 24% até 2030

Situação resulta do processo de urbanização, expansão da indústria, agronegócio e economia, conforme estudo feito por agência nacional

Por André Borges, de O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Na próxima década, o aumento do consumo de água tratada no Brasil é um dos fatores que deverá amplificar os problemas causados pelas estiagens prolongadas e a precária infraestrutura nacional de distribuição. Até 2030, o uso da água terá um crescimento de 24% sobre o volume atual, resultado do processo de urbanização, expansão da indústria, agronegócio e economia.

A informação faz parte do estudo Conjuntura dos Recursos Hídricos - 2018. O Estado teve acesso aos principais dados do levantamento elaborado anualmente pela Agência Nacional de Águas (ANA). O material deve ser divulgado nesta semana.

A retirada total de água no País para consumo foi de 2.083 metros cúbicos por segundo (m³/s) em 2017. O principal destino dessa água foi o agronegócio. A irrigação respondeu por 52% do volume total, além de outros 8% serem utilizados para a criação de animais. O abastecimento humano nas cidades representou 23,8% do consumo, seguido pela indústria (9,1%), usinas termoelétricas (3,8%), abastecimento rural (1,7%) e mineração (1,6%).

As regiões hidrográficas que apresentam a maior retirada são as da bacia do Rio Paraná (496 m³/s), seguida pela bacia do Atlântico Sul (305 m³/s) e pela bacia do São Francisco (282 m³/s). Juntas, essas regiões são responsáveis por aproximadamente 52% da retirada total de água no Brasil.

Marcelo Cruz, diretor da ANA, afirma que a projeção de crescimento é preocupante, apesar de o País ter registrado um avanço de 80% no total de água nas últimas duas décadas. “A perspectiva de crescimento é elevada e inspira um sinal de alerta, para que tenhamos uma gestão compatível. Não significa que estejamos em um cenário fora do controle, porque nossos números de oferta de água são confortáveis”, diz Cruz. “Por outro, há muito a ser feito. Mais da metade das águas que retiramos dos nossos mananciais e produzimos não chega ao consumidor, por problemas de infraestrutura.”

 

Reservatórios
As chuvas de 2018 têm colaborado para a recuperação de alguns dos maiores reservatórios de água do País, como Sobradinho (BA) e Furnas (MG), apesar dessas barragens necessitarem de mais algumas temporadas com grande precipitação para recuperarem seus níveis regulares.

Há exatamente um ano, o lago de Sobradinho, principal reservatório da Região Nordeste, localizado no Rio São Francisco, estava com apenas 4% de sua capacidade total de água. Hoje esse volume está em 29%. O reservatório de Furnas, o “mar de Minas” que banha 34 municípios mineiros, estava com 10% de seu volume máximo de água um ano atrás. Hoje acumula 24% em sua barragem.

Neste ano, as precipitações também têm sido favoráveis ao reservatório do Rio Descoberto, lago localizado a 50 quilômetros de Brasília, que abastece mais de 60% do consumo do Distrito Federal. Um ano atrás, o Descoberto agonizava com só 5,3% de seu potencial.

Na segunda-feira, 17, conforme dados da Agência Reguladora das Águas (Adasa) do DF, chegou a 97% de sua capacidade. A melhora levou a agência a anunciar que, a partir da próxima sexta-feira será declarado o fim da “situação crítica de escassez hídrica” no Distrito Federal. O governo do DF havia oficializado a situação crítica do abastecimento dois anos e três meses atrás, em 16 de setembro de 2016.

‘Tinha de usar só a metade do que a gente precisava’
O pequeno agricultor Shedeon de Souza Nascimento viu sua lavoura secar um ano atrás, às margens da represa do Descoberto, a 50 quilômetros de Brasília. A estiagem prolongada, que castigou a maior parte das regiões Centro-Oeste e Nordeste do País nos últimos cinco anos, fez sumir o lago que margeava a sua plantação de verduras. Um ano atrás, a barragem do Descoberto encarou seu pior índice desde o início da série histórica, iniciada 31 anos atrás, atingindo apenas 5,3% do seu volume útil.“Perdi quase tudo. Normalmente, a gente consegue plantar quatro hectares de verduras. No ano passado não chegou a dois hectares. Tinha de usar só metade da água que a gente precisava. Foi uma tristeza. Estou aqui há 14 anos. Nunca vi nada igual”, conta Nascimento, que utiliza um poço artesiano próximo à barragem para regar a plantação.

A irrigação deverá ampliar ainda mais a sua fatia no consumo nacional de água, pressionando a busca por “novas fronteiras hídricas”, afirma Sergio Ayrimoraes, superintendente de Planejamento de Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA). “Sabemos que as áreas com água mais acessível já foram ocupadas e o agronegócio começa a avançar para regiões onde, naturalmente, haverá mais conflitos. Daí a fiscalização ser essencial”, diz.

“Por outro lado, vemos grandes produtores buscando tecnologias para o consumo mais eficiente de água, o que deve ser ampliado”, acrescenta ele.

Na avaliação de Ayrimoraes, o próximo ano deverá apresentar uma situação, em geral, mais amena do que a vivida nos últimos cinco anos quanto à disponibilidade de água. “Neste ano de 2018 já houve sinais de melhora, tivemos algumas ações de infraestrutura. Devemos passar um 2019 sem sustos, mas o alerta deve ser constante.”

Para lembrar
Em fevereiro, com base em dados da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), o Estado mostrou que, mesmo após dois anos do fim do racionamento, o consumo na região metropolitana ainda é 15% menor do que era antes do início da seca que assolou o Cantareira a partir de fevereiro de 2014. Na época, a empresa lançou o programa de desconto na conta para reduzir o gasto.


A Semana Mundial da Água no #ProgramaDiferente

Na passagem do Dia Mundial da Água, neste 22 de março, e em plena semana do World Water Forum, ou o Fórum das Águas, importante evento mundial que acontece em Brasília, o #ProgramaDiferente trata dessa questão global sob um aspecto peculiar: o livro "Faça-se a Água - A solução de Israel para um mundo com sede". Conversamos com o autor, o norte-americano Seth Siegel, e com o seu editor, o brasileiríssmo José Luiz Goldfarb. Falamos de meio ambiente, sustentabilidade, conscientização e cultura. Assista.


Brasil concentra 20% da água do mundo, mas menos da metade da população tem acesso a saneamento

Apenas 39% das residências têm seus rejeitos tratados adequadamente. Falta de tratamento afeta saúde da população e polui fontes de recursos hídricos. No Brasil, água é fundamental para agricultura e setor de energia.

Por Nações Unidas no Brasil (ONU-BR)

O Brasil abriga um quinto das reservas hídricas do mundo, mas a abundância não significa acesso universal a água própria para o consumo, nem a saneamento. Menos da metade — cerca de 48,6% — da população brasileira é atendida por serviços de esgoto e apenas 39% das residências têm seus rejeitos tratados.

Os números são do Banco Mundial, que alertou na última quarta-feira (3) para as desigualdades na distribuição de água entre a população, a indústria e a agricultura no Brasil, além de detalhar a importância dos recursos hídricos para a economia brasileira.

Embora 82,5% dos brasileiros tenham acesso a água, apenas 43% dos domicílios entre os 40% mais pobres do país têm vasos sanitários ligados à rede de esgoto, segundo dados de 2013.

A falta de tratamento faz com que poluentes sejam jogados diretamente na água ou processados em tanques sépticos desregulados, com graves consequências para a qualidade dos recursos hídricos, bem como para o bem-estar da população.

O Banco Mundial chama atenção ainda para o desperdício registrado nas empresas de abastecimento — perdas chegam a 37%.

De acordo com a agência da ONU, o financiamento e subsídios do setor são baseados em uma estrutura tarifária ultrapassada que, somada ao excesso de pessoa e elevados custos operacionais, encarecem a oferta para os consumidores.

Os gastos com a produção inviabilizam novos investimentos, capazes de tornar a infraestrutura mais resistente a eventos climáticos extremos como secas e inundações.

Economia brasileira depende da água

O organismo financeiro destaca que 62% da energia do país é gerada em usinas hidrelétricas e 72% da água disponível para o consumo é destinada à irrigação na agricultura.

O Banco Mundial lembra que o Brasil é o segundo maior exportador de alimentos do mundo — sendo a agricultura e o agronegócio responsáveis por 8,4% do Produto Interno Bruto (PIB). Atualmente, apenas pouco menos de 20% da área de terras irrigáveis não contam com sistemas de água para o cultivo.

Segundo a agência da ONU, mesmo com a diversificação das fontes de energia prevista para as próximas duas décadas, as usinas hidrelétricas continuarão entregando 57% da eletricidade usada no Brasil.

Tamanha dependência significa que, em tempos de crise – como a vivida por São Paulo em 2014 e 2015 –, a produtividade de diversos setores econômicos pode ser ameaçada.

“Em São Paulo, por alguns meses, não ficou claro se as indústrias, como a de alumínio, grande consumidora de água, poderiam continuar produzindo no ritmo anterior à crise hídrica”, lembra o líder do programa de desenvolvimento sustentável do Banco Mundial no Brasil, Gregor Wolf.

Matéria publicada no portal da Nações Unidas no Brasil (ONU-BR).


Fonte: cidadessustentaveis.org.br