Aborto legal

Segundo o Código Penal, relações sexuais com menores de 14 anos configuram estupro de vulnerável dpa/picture alliance via Getty

Polícia investiga garoto de 13 anos e circunstâncias de estupro de menina de 11 em SC

Barbara Brambila, Giulia Alecrim, Thiago Félix, Tiago Tortella e Vinícius Tadeu, CNN Brasil*

À CNN, delegado afirma que depoimentos confirmam relações sexuais entre os jovens; especialistas se amparam no ECA para justificar aborto

A Polícia de Santa Catarina confirmou que um garoto de 13 anos está sendo investigado no caso da menina de 11 anos que realizou aborto na quarta-feira (22).

O delegado Alisson Rocha, titular da Delegacia de Tijucas, confirmou à CNN que existe um procedimento para apuração de ato infracional em curso pela unidade, e que depoimentos confirmam que os jovens tiveram relações sexuais e que elas teriam sido consensuais.

Ainda estão sendo feitos exames de elementos biológicos, dentre outros procedimentos, para apuração genética, não sendo possível afirmar que o bebê que a menina esperava era do suspeito.

Segundo o artigo 217-A do Código Penal, uma das classificações para estupro de vulnerável é “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”.

“O que saltou aos olhos foi que, no geral, houve uma relação de afeto entre os dois, houve uma premeditação para o lado da atividade sexual, em comum acordo, havia consentimento. Em regra, os dois praticaram as condutas com um ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável do artigo 217-A do Código Penal”, diz o delegado.

Ariel de Castro, presidente da Comissão de Direito à Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes da OAB-SP e integrante do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, observa que estupro de vulnerável se configura quando as vítimas têm menos de 14 anos, independentemente do consentimento ou não.

“É uma violência presumida pela legislação, com entendimento de que pessoas de menos de 14 anos não devem manter qualquer tipo de ato libidinoso”, afirma.

Um primeiro relatório de apuração foi encaminhado pela Polícia Civil para o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) há doze dias, porém, o MPSC pediu que a investigação faça mais diligências. Só ao término desta nova fase o delegado analisará se existe responsabilidade de ato infracional análogo ao estupro de vulnerável.

O delegado estima que as diligências devem ser concluídas até a próxima terça-feira (28). Depois disso, o relatório será novamente encaminhado ao MP, que também deve se manifestar sobre o assunto.

Punições possíveis?

Com a possibilidade de a gravidez ter sido causada por relações sexuais entre uma criança e um adolescente menor de 14 anos, juridicamente o caso ganha nova complexidade, de acordo com especialistas ouvidos pela CNN.

“Quando a relação é entre dois adolescentes, um adolescente e uma criança, só o caso a caso vai poder falar. O contexto é importante”, afirma Isabella Henriques, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-SP, ressaltando que é uma definição delicada.

Henriques também destaca que, em casos gerais, existem medidas socioeducativas prevista para os atos infracionais, mas que o caso deve ser julgado por uma justiça especializada pelo fato de o adolescente “também estar em um momento peculiar de desenvolvimento”.

Thales Cezar de Oliveira, procurador de justiça do MP-SP e professor da Faculdade Piaget, pontua que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), quando algum maior de 12 anos pratica um ato infracional ele pode ser passível de medidas socioeducativas até internação, desde que seja comprovado o ato.

O ECA considera crianças as pessoas com até 12 anos incompletos, e são considerados adolescentes aqueles entre 13 anos de idade e 18 anos incompletos.

Ariel de Castro destaca ainda que, se temos “um adolescente de 13 e uma menina de 11”, ambos são considerados vulneráveis.

“Caberiam medidas de proteção para ambos, de inclusão social, educacional, acompanhamento e atendimentos de saúde e psicológicos”, complementa.

Ele pontua também que, se for comprovado que não houve violência ou ameaça contra a vítima, o adequado, na avaliação dele, seria não aplicar uma medida de privação de liberdade para esse adolescente.

“Em casos assim, se não houve violência ou grave ameaça, no processo de apuração do ato infracional do adolescente, os juízes da infância concedem remissão (espécie de perdão judicial), a pedido da promotoria. Essa tese jurídica que tem sido aplicada no Brasil e internacionalmente é chamada de Lei Romeu e Julieta”, explica.

“Precisam ser aplicadas medidas de proteção. Ele precisa ser orientado sobre questões de sexualidade e deve se verificar se ele vive em situação de negligência familiar, abandono etc”, finaliza.

Isabella Henriques defende que o tema da violência sexual contra crianças seja discutido pela sociedade, tendo em mente os impactos na vida das crianças, e que tanto “sociedade e sistema de justiça estejam preparados para acolher as nossas crianças”.

Ariel de Castro ressalta que quando um caso como o da menina de Santa Catarina ocorre, “todos somos co-responsáveis, pela lei. A família, o Estado e a sociedade”, reforçando a importância da educação sexual.

Legalidade do aborto

Uma das exceções para a interrupção da gravidez no Brasil — visto que o aborto é criminalizado no país — é o estupro.

“No caso de uma criança com menos de 14 anos, vítima de estupro de vulnerável, não há dúvida do ponto de vista jurídico que ela pode abortar”, diz Henriques.

Castro, por sua vez, afirma que o caso de Santa Catarina é “sim, um estupro de vulnerável, porque uma menina de 11 anos está grávida”.

Isabella Henriques ressalta que os responsáveis legais precisam dar autorização para o procedimento, mas que o melhor interesse do menor de idade se sobrepõe aos interesses dos responsáveis.

“Se o responsável legal não tomar a decisão no melhor interesse da criança, no sentido de garantir os direitos da criança, o Ministério Público, a Defensoria Pública podem promover, provocar os direitos da criança”.

Thales de Oliveira também destaca que “independente da idade, a gravidez, sendo provocado por uma violência, tem o direito de abortar”. Não está claro, no caso específico, se a suposta relação da menina foi ou não consensual.

“É preciso que você tenha o consentimento da gestante e do representante [para o aborto]. Mas o Estatuto da Criança e do Adolescente confere tanto à criança e ao adolescente o protagonismo do seu direito. Há a prioridade à vontade da criança e adolescente. A menos que perceba que é uma vontade viciada”, pontua o procurador.

Em 21 de junho, a OAB de São Paulo publicou uma nota ressaltando o artigo 128 do Código Penal, que dita que “não se pune o aborto no caso de gravidez resultante de estupro”.

Caso teve repercussão nacional

Em maio, a mãe da menina de 11 anos a levou ao hospital universitário de Florianópolis (SC) logo após constatar que ela estava grávida. Na ocasião, a menina tinha 10 anos de idade.

O hospital constatou que o feto tinha 22 semanas e se recusou a realizar o procedimento, ao dizer que as equipes médicas não realizariam abortos após 20 semanas.
Após a negativa do hospital, a mãe da menina recorreu à Justiça para conseguir autorização para interromper a gravidez, mas não obteve o aval judicial.

O caso tramita em segredo de Justiça e veio a público após o site The Intercept e o portal Catarinas divulgarem trechos da audiência em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), faz uma série de perguntas à criança. A CNN entrou em contato com a advogada da família, Daniela Felix, que confirmou as informações da reportagem dos dois veículos.

No vídeo, a juíza questiona a garota se poderia “suportar mais um pouquinho” para, assim, permitir que o feto pudesse ser retirado com vida. Em outros momentos da audiência, Joana Ribeiro ainda perguntou à criança se ela gostaria de “escolher o nome do bebê” e se ela achava “que o pai do bebê concordaria com a entrega para adoção”.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina informou, em nota, que a Corregedoria abriu um procedimento investigatório sobre a condução do processo.
Zimmer autorizou a ida da menina para um abrigo, justificando em um dos despachos o “risco” da mãe efetuar “algum procedimento para operar a morte do bebê”. A menina já foi retirada do abrigo.

Juíza e promotora envolvidas no caso afirmaram à CNN que não iriam se pronunciar.

*Texto publicado originalmente em CNN Brasil


Mariliz Pereira Jorge: Aborto legal no Brasil

Falta aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema

Gol da Argentina. Na madrugada desta quarta (30), o Senado aprovou a descriminalização do aborto, que passa a ser legal até a 14ª semana de gestação e depende exclusivamente da decisão da mulher, como acontece em quase 70 países. Momento histórico. Marca mais um capítulo de um longo caminho percorrido pelas mulheres desde que a Rússia legalizou a prática há cem anos, ainda antes de se tornar União Soviética.

Enquanto isso no Brasil... A nossa legislação é mais parecida com a de países como o Afeganistão, o Irã e a Síria, o que nos dá a dimensão do atraso em que vivemos. Os direitos reprodutivos de nós, mulheres, não nos pertence, mas ao Estado, infestado de gente feito Jair Bolsonaro.

Em outubro, o presidente assinou um decreto para estabelecer, como estratégia nacional de longo prazo, a defesa da vida “desde a concepção” e dos “direitos do nascituro”. A medida foi considerada por defensores dos direitos reprodutivos mais um passo contra as possibilidades de interrupção de gravidez previstas em lei.

Nosso Congresso não fica atrás. Já escrevi que o Portal da Câmara registra 574 projetos em que o aborto é mencionado. Só em 2020 foram 64, muitos apenas pioram a vida da mulher, com aumento de pena, imprescritibilidade dos “crimes contra a vida”. No ano passado, o Senado desengavetou uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe o aborto desde o início da gestação.

Falta a sociedade e aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema: questões médicas, legais, direitos individuais, empatia. O aborto não pode ser criminalizado. As mulheres não devem ser tratadas como assassinas por defenderem tal bandeira, como quer Jair Bolsonaro, ao insinuar nas redes sociais que esta colunista seja uma genocida. A história vai contar quem é o genocida.