13 DE MAIO
13 de maio: Conquistas da população negra mudam cenário brasileiro, mas desafios persistem
Lideranças destacam necessidade de contínua luta para garantir cidadania plena e investimento em levantamento de dados mais detalhados na educação
Comunicação FAP | Foto: Carl de Souza/AFP
Lideranças históricas do Movimento Negro alertam para retrocessos nas conquistas obtidas ao longo de décadas e defendem a necessidade de aprofundar as políticas públicas de combate ao racismo, sobretudo no campo da educação básica e na representação política. Em entrevistas à Fundação Astrojildo Pereira (FAP), o Babalawô Ivanir dos Santos, doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o professor de Sociologia Ivair Augusto Alves dos Santos, assessor da Unesco, afirmaram que o Brasil vive um momento decisivo na luta contra as desigualdades raciais e advertiram sobre ataques às ações afirmativas e às conquistas da população negra.
A escravidão no Brasil foi oficialmente abolida em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Em 2025, completam-se 137 anos da abolição. No entanto, para Ivanir dos Santos, o 13 de maio, historicamente visto como uma data de protesto pelo Movimento Negro, continua a representar a "falsa abolição", que deixou a população negra à própria sorte, sem qualquer projeto social, econômico, cultural ou político de inclusão.

"A abolição é contada a partir do ato da princesa Isabel e não do processo de luta. Não foi só a assinatura da princesa, houve todo um processo de luta que é invisibilizado", disse Ivanir dos Santos. Segundo ele, as políticas públicas tardaram em chegar, e mesmo conquistas importantes, como a criminalização do racismo pela Lei Caó e a criação da Fundação Cultural Palmares, ainda não foram suficientes para ajudar a garantir cidadania plena à população negra.
Conselheira curadora da Fundação Astrojildo Pereira, entidade ligada ao Cidadania 23, Raquel Dias ressaltou que o 13 de maio de 1888 representou uma ruptura formal com o regime escravista, mas não assegurou à população negra as condições materiais para o exercício pleno da cidadania. “Sem acesso à terra, à educação ou a políticas de reparação, os libertos foram lançados à margem da sociedade, inaugurando um novo ciclo de exclusão”, disse ela.
“Essa ‘liberdade’ incompleta serviu majoritariamente aos interesses das elites, e seus efeitos ainda são sentidos nas profundas desigualdades raciais que marcam o Brasil contemporâneo. A persistência da violência institucional, da desigualdade socioeconômica e do racismo estrutural mostra que o 13 de maio não encerra a luta por justiça, mas a reinventa todos os dias”, asseverou Raquel.

“Ponto central do debate”
Ivanir ressaltou que, apesar de avanços como as políticas de cotas raciais no ensino superior e a tipificação do racismo como crime inafiançável pela Constituição de 1988, o racismo estrutural segue reproduzindo exclusões. "A maioria da população negra ainda não é considerada cidadã. Esse é o ponto central do debate sobre a democracia no Brasil", afirmou, destacando também o número pequeno de negros nos espaços de poder político, mesmo após marcos históricos como a eleição de governadores negros nos anos 1990.
Na mesma linha, Ivair dos Santos defendeu que o país precisa avançar no enfrentamento das desigualdades raciais na educação básica, ampliando o alcance das ações afirmativas para além do ensino superior. "Nós passamos por um período muito grande de defesa dos programas de ações afirmativas, mas hoje vivemos um ataque intenso, internacional. A grande preocupação é como consolidar ainda mais essa luta", alertou o professor.
O assessor da Unesco explicou que o conceito de equidade deve ser incorporado aos mecanismos de gestão da educação, defendendo a análise detalhada de microdados sobre o desempenho escolar de estudantes negros. Para Ivair, as avaliações atuais baseadas em médias não revelam as reais disparidades. "Não basta mais dizer que os negros têm menor desempenho. Nós precisamos saber como é essa diferença, em cada sala de aula, escola por escola, turma por turma, e qual o tipo de recurso investir para mudar essa curva", afirmou.
Microdados
O sociólogo criticou ainda as análises educacionais que não consideram as especificidades raciais. Segundo ele, os principais indicadores da educação básica, por exemplo, não são suficientes para dimensionar a desigualdade. "Do jeito que estão hoje, os dados não traduzem a nossa realidade. O país precisa mudar essa realidade de desigualdade, e só vai conseguir fazer isso quando analisar os microdados", sugeriu.

"Todos esses mecanismos de avaliação precisam ser redesenhados para incorporar o recorte racial de forma precisa. Não podemos mais aceitar relatórios que apenas digam que o desempenho melhorou ou piorou em geral. Precisamos saber quem melhorou, quem piorou, onde estão os alunos negros nessas estatísticas", criticou.
Segundo ele, o desafio agora é aprofundar a ação afirmativa no ensino básico, algo que ainda encontra resistência tanto no campo político quanto no educacional. "Durante décadas lutamos para garantir o acesso do negro à universidade. Agora, precisamos olhar para o ensino básico com a mesma urgência e determinação", afirmou.
Para Ivair, a grande tarefa da atualidade é avançar na qualidade da educação básica com foco na equidade racial, garantindo que as futuras gerações negras tenham as mesmas oportunidades que os demais grupos. "Não é possível construir um país justo e democrático se continuarmos tratando desiguais como iguais", concluiu.
De acordo com o professor doutor Ivanir dos Santos, a sociedade brasileira avança lentamente no reconhecimento dos direitos da população negra, mesmo após conquistas legislativas e políticas importantes. Para ele, é preciso enfrentar não apenas o racismo institucional, mas também as resistências dentro dos próprios partidos políticos, inclusive os progressistas, que ainda relutam em adotar medidas efetivas de inclusão racial em suas estruturas.
Avanços históricos
Durante a entrevista, o professor doutor apresentou uma linha cronológica das principais conquistas do Movimento Negro desde os anos 1970. Naquele período, a militância consolidou o 13 de maio como data de protesto e denúncia da abolição inconclusa. "Nós transformamos o 13 de maio em um dia de luta e denúncia da falsa abolição. A população negra foi jogada à sua própria sorte, sem projeto social, econômico, cultural ou político", reforçou.
Em 1988, durante o centenário da abolição, o Movimento Negro organizou manifestações marcantes em Brasília e em outras capitais, mesmo sob repressão militar. "Fomos reprimidos em Brasília, mas conseguimos arrancar da Assembleia Constituinte a criminalização do racismo como crime inafiançável", recordou Ivanir.
Na mesma época, foi criada a Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, com o objetivo de valorizar a cultura afro-brasileira. Em 1989, foi aprovada a Lei nº 7.716/89, conhecida como Lei Caó, que criminalizou o racismo, o preconceito de cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional.
Nos anos 1990, o movimento articulou avanços em políticas públicas, como a criação do Grupo Interministerial de Políticas Raciais (GTI), no governo Fernando Henrique Cardoso, e promoveu, em 2000, debates preparatórios para a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, África do Sul, em 2001. O Brasil enviou a maior delegação do mundo ao evento, que consolidou o compromisso do Estado brasileiro com políticas afirmativas.
“Muito sangue”
Essas conquistas abriram caminho para a criação, no governo Lula, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), hoje Ministério da Igualdade Racial, além da adoção da política de cotas raciais no ensino superior e, mais tarde, no serviço público federal.
"Foi uma vitória histórica. Mas precisamos entender que esses direitos foram conquistados com muito sangue, suor e enfrentamento político. E que hoje estamos assistindo a tentativas de reversão dessas políticas, inclusive no Congresso Nacional e em governos estaduais", alertou Ivanir.
Ele lembrou ainda que uma das grandes vitórias simbólicas foi a introdução do quesito cor nas pesquisas oficiais, o que permitiu desmascarar a política de embranquecimento do Estado. "Antes, muitos negros eram registrados como pardos ou brancos por vergonha ou medo. Hoje, temos orgulho de nossa identidade e lutamos para que o Estado reconheça isso em suas políticas públicas", disse.
Cristovam Buarque: Lei incompleta
A Lei Áurea é considerada um marco social, pela extinção do regime escravocrata, e marco legal pela simplicidade de apenas um artigo: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”. Nada mais do que 12 palavras e acabou a infâmia de tratar pessoas como mercadoria.
Esta simplicidade deixou a lei incompleta e de certa forma inócua para o propósito de ir além da proibição da venda, compra e propriedade de pessoas, e de servir também para a garantia da liberdade, promoção social e progresso dos afrodescendentes no Brasil. Aquele artigo simples foi capaz de acabar com os grilhões, mas não de incorporar a população negra à sociedade brasileira. Manteve-se a desigualdade, a exclusão, a pobreza e, consequentemente, o racismo.
Teria sido diferente se a Lei Áurea tivesse mais um artigo: “Fica estabelecido no Brasil um sistema único, público, de educação para todos”. Mas a lei ficou incompleta. Ao longo dos 134 anos de sua vigência, comemorados na semana que passou, o Brasil sem escravismo manteve a escravidão, porque sem educação as algemas físicas que aprisionavam os escravos se transformaram em algemas mentais que amarram todos os pobres brasileiros. Não apenas os negros, mas sobretudo estes, por formarem a maior parte dos pobres do País.
Ao longo destes 134 anos, desde 1888, o Brasil manteve uma desigualdade abismal entre a educação dos que podem pagar por uma boa educação e aqueles que não podem. Se desde aquela época os descendentes dos escravos e seus senhores estudassem em um mesmo sistema escolar com qualidade para todos brasileiros, ao longo destas três ou quatro gerações, a desigualdade que ainda existisse, além de pequena, seria graças ao talento dos que se dedicam aos estudos. A desigualdade não seria herança financeira, que termina sendo também herança racial. Sem o segundo artigo, a Lei Áurea ficou incompleta.
Além da lei incompleta de 1888, atravessamos toda a história pós-abolição e republicana sem acrescentar o artigo e outras ações que faltam. Por 40 anos depois da Lei, nem ao menos criamos um Ministério da Educação; quando criado já nos anos 1930, serviu para coordenar a educação da minoria dos filhos da população branca e rica, ou quase rica, nas poucas escolas de base que foram criadas ao longo das décadas. A obrigatoriedade de vaga aos seis anos só veio em 1988 com a Constituição; aos 4 anos, em 2013; a obrigatoriedade de vaga até os 17 anos, só em 2016; o Piso Nacional Salarial para o Professor, em 2008.
Até hoje, o Brasil deixa a educação nas mãos dos pobres e desiguais municípios. Foram feitas leis como a Merenda Escolar (1955), Emenda Calmon (1983), Livro Didático (1985), Fundef (1996), PNE-I (2001), Fundeb (2007), Piso Salarial do Professor (2008), PNE-II (2011), BNCC (2020), e o Brasil continua com educação entre as piores do mundo e provavelmente a mais desigual entre todos os países.
Até hoje, o Brasil não decidiu completar a Lei Áurea criando um Sistema Nacional de Educação de Base. A sociedade brasileira, seus eleitores e líderes continuam com a mesma visão da Princesa Izabel e do Primeiro-Ministro João Alfredo – basta o primeiro e único artigo da Lei Áurea, a educação de cada criança é assunto da família ou do prefeito, não do país. O resultado é que um século e meio depois da Lei Áurea, temos duas vezes mais adultos analfabetos do que no ano da abolição incompleta, todos eles pobres e quase todos afrodescendentes.
Na verdade, todos os governos seguintes, ditadura ou democracia, de direita ou esquerda, negaram-se a assumir a educação de nossas crianças como uma questão nacional: levar a sério o artigo da Constituição que assegura a educação como um direito de todos os brasileiros e tornar a educação como o vetor do progresso do país.
Nos navios negreiros, havia marujos com a tarefa de impedir os escravos desesperados pularem no mar, já que a morte deles era uma perda financeira para o proprietário. Hoje, não oferecemos escolas que assegurem a seus alunos quererem permanecer nelas, e se eles quiserem pular no mar da deseducação, aceitamos que o façam sem percebermos a perda que isso representa para o futuro de cada um deles, para suas famílias e para todo o País.
Faz 134 anos que demos alforria aos escravos, mas não os libertamos, porque não lhes demos a educação, sem a qual a liberdade é apenas uma ilusão. Por falta de um artigo a mais na Lei Áurea, mantivemos uma última trincheira da escravidão, mantivemos os descendentes dos escravos em um novo tipo de servidão e amarramos o progresso do país.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
Fonte:
Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/05/4925679-lei-incompleta.html
Abolição não significa libertação do homem negro, diz historiador e documentarista
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O historiador e documentarista Ivan Alves Filho, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História, diz que “o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional”, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de maio (edição 31), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
“A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório”, afirma ele, na publicação. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no portal da FAP.
Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021
De acordo com o documentarista, a passagem ocorreu em um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando, segundo ele, formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos 19 e 20. “Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão”, pondera.
“Mas se a abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital”, analisa o autor, no artigo publicado na revista Política Democrática Online.
Segundo Ivan, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já havia advertido para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro.
Veja todos os autores da 31ª edição da revista Política Democrática Online
“Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão”, analisa
Na avaliação do historiador, se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. “Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar”, acentua.
A íntegra da análise do historiador está disponível, no portal da FAP, para leitura na versão flip da revista Política Democrática Online, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.
O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.Leia também:
Santos Cruz: ‘Instituições não aceitarão ações aventureiras do governante’
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Fonte:
Combate ao racismo é tema de podcast da FAP; ouça episódio especial
O programa Rádio FAP desta semana entrevista o juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) Fábio Esteves, referência nacional no combate ao racismo. Homem preto e de origem pobre, o magistrado destaca que suas conquistas profissionais exigiram esforço, suor e muita superação.
Ouça o podcast!
O podcast conta com a participação do jornalista Sionei Ricardo Leão, membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira.
Os 133 anos da Lei Áurea, a abolição inacabada no Brasil e a importância do debate sobre a igualdade racial estão entre os principais assuntos. O episódio conta com áudios da TV Câmara dos Deputados, canal Fora dos Autos (Youtube) e da página do Olodum no Facebook.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
RPD || Ivan Alves Filho: 13 de Maio, um ponto de convergência
Como única revolução social brasileira até o momento, ao consagrar juridicamente uma mudança que já vinha se operando no modo de produção, o 13 de Maio deixou marcas profundas na vida nacional. A passagem da ordem escravista para a capitalista se processara a duras penas, após três séculos e meio de trabalho compulsório. E ocorreu um período de transição relativamente longo até o capitalismo, quando formas não capitalistas ainda se apresentavam em diferentes pontos do país, entre os séculos XIX e XX. Estou-me referindo à meia, ao colonato, ao aviamento e ao barracão.
Mas se a Abolição libertou o homem escravizado, isso não significa que tenha libertado o homem negro. Uma vez livre, o negro de todos os quadrantes do país encontrara inúmeras dificuldades para se integrar à nova realidade marcada pela dominação cada vez mais acentuada do capital.
Lá atrás, ou seja, em 1823, ao propugnar por uma ruptura gradual com o modo de produção escravista, José Bonifácio já nos advertira para a necessidade de, paralelamente, realizar uma reforma agrária que possibilitasse a inserção social do negro. Ele não só não seria ouvido, mas também D. Pedro II regulamentaria, em 1850, uma Lei das Terras que praticamente impediria o aceso do trabalhador negro à propriedade no campo. Essa lei foi sancionada exatamente no mesmo ano da supressão do tráfico negreiro, anunciando o começo do fim da escravidão. Se, por um lado, o negro não seria mais escravizado, por outro, permaneceria atrelado ao latifúndio. Ou seja, a terra deixava de ser doada no Brasil, só podendo ser obtida mediante compra a partir daí. E era muito difícil ao descendente de escravos, naturalmente, reunir recursos suficientes para adquirir uma gleba para trabalhar.
Outro ponto que me parece fundamental tem que ver com uma certa incompreensão do caráter das transformações sociais entre nós. Ainda que tivesse combinado diferentes formas de luta, que iam dos embates armados dos quilombolas às manifestações na imprensa e no próprio Parlamento, prevaleceria a saída institucional. A Abolição, nunca é demais lembrar, foi uma luta nacional, de negros e brancos. Nem o Estado tinha força suficiente para barrar as mudanças nem a sociedade civil conseguia alterar tudo de chofre ou colocar o Estado abaixo. Daí a via negociada. Nem revolução nem conciliação: negociação.
Eis o que nos desnorteia um pouco. A isso vem se somar outra particularidade do processo histórico brasileiro: a escravidão teve por aqui um conteúdo étnico, o que já não ocorria na escravidão antiga. Durma-se com um barulho desses.
Por outro lado, talvez caiba recordar a lição dada pelo samba de enredo da Vila Isabel, em 1888: é preciso um certo “jogo de cintura…(para fazer) valer seus ideais”. Dir-se-ia que a Abolição entendeu essa nossa particularidade, logrando convergir todas as lutas para o campo institucional.
*Ivan Alves Filho é historiador, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História; jornalista e documentarista brasileiro. É autor de mais de uma dezena de livros.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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