RPD || Martin Cezar Feijó: O mundo pós-pandemia. O novo normal cultural

Efeitos nefastos da pandemia abalaram o mundo cultural por completo. O quadro ainda continua indefinido; a situação caótica; o medo imperando. Mas, apesar de o futuro se demonstrar sombrio, a cultura pode, e deve, oferecer respostas, avalia Martin Cezar Feijó em seu artigo.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Efeitos nefastos da pandemia abalaram o mundo cultural por completo. O quadro ainda continua indefinido; a situação caótica; o medo imperando. Mas, apesar de o futuro se demonstrar sombrio, a cultura pode, e deve, oferecer respostas, avalia Martin Cezar Feijó em seu artigo

A imaginação mais sarcástica, irônica e cruel não poderia criar cenário tão absurdo como o que estamos vivendo. O pior dos mundos. Historicamente compreensível, mas humanamente inacreditável. O motivo principal deste texto é pensar como será o mundo pós-pandemia, principalmente na cultura.

Claro que me refiro à pandemia do novo coronavírus, que causa a Covid-19. Uma infecção que já contaminou milhões no mundo todo, levando a milhares de óbitos, que no Brasil já ultrapassou a marca de 75 mil pessoas no momento em que este texto é concluído. E não há previsão segura para seu encerramento. Se não há previsão para o fim deste ciclo, como se aventurar a prever o que será depois que tudo passar?

Mas a questão aqui não se resume ao quadro sanitário, que cientistas competentes estão cuidando em várias partes do mundo sob a supervisão da Organização Mundial de Saúde (OMS), que já é dramático por si só. A questão se amplia nas consequências econômicas, sociais, políticas e culturais, objetivo desta reflexão.

O mundo da cultura foi totalmente abalado pelos efeitos da pandemia: cinemas, teatros e museus foram fechados; artistas, músicos e bailarinos estão desempregados. Com as quarentenas, cidades ficaram vazias (Living in a ghost town, Rolling Stones), tudo parecendo formar cenário das maiores e mais tenebrosas distopias. Enquanto equipes médicas travavam batalhas contra um vírus invisível em unidades de terapias intensivas, sendo contaminados e, muitos deles, mortos; jornalistas buscavam informar enfrentando não só os vírus que se espalhavam, mas também a grande quantidade de fake news que tumultuava o ambiente de guerra.

Passado mais de meio ano do ano que parece não ter fim, muita coisa se esclareceu, muita coisa se disse, muito se tentou encontrar respostas e saídas. Artistas buscaram nos meios eletrônicos formas de se comunicar com seu público; professores, em todos os níveis, tiveram que se adequar aos meios remotos para passar suas mensagens. Mas nem toda criatividade superou a angústia das distâncias, os temores dos fracassos e as certezas de que algo muito importante se perdia.

Alguns autores passaram a se debruçar sobre os cenários possíveis após a passagem destes fatos; alguns esperançosos, até delirantes, como o utópico filósofo esloveno Slavoj Žižek com seu Pandemia – Covid-19 e a reinvenção do comunismo (Boitempo), ou até em múltiplas vozes, como o livro organizado pelo advogado José Roberto de Castro Neves, O mundo pós-pandemia. Reflexões sobre uma nova vida (Nova Fronteira).

Pode-se ainda destacar aqui dois articulistas, uma médica e um cineasta. A primeira, Margareth Pretti Dalcolmo, em Humanismo médico – humanismo na medicina, cita o polímata Avicena (980-1037): “A imaginação é a metade da doença. A tranquilidade é a metade do remédio. E a paciência é o primeiro passo para a cura” (pág. 29). Mas é em A realidade é mais estranha que a ficção que o cineasta Bruno Barreto, que já dirigiu uma distopia baseada na obra de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, define com precisão o quadro desta crônica: “Indecifrável é o nosso futuro. Inverossímil, o nosso presente” (pág. 144).

Presente este que já tem uma palavra que pode definir o ano: “Covid-19”, mas que também já tem o seu clichê mais repetido: o “novo normal”, na perspectiva que tudo se acabe um dia, se é que vai acabar, como já foi apontado pela revista britânica The Economist no final de junho: “A covid veio para ficar e temos que nos adaptar”.

Portanto, o quadro ainda continua indefinido, a situação caótica, o medo imperando. O futuro se demonstra sombrio, mas a cultura pode, e deve, oferecer respostas. Entendendo a cultura aqui como a expressão sensível, por meio das artes, aos impasses da humanidade, pois é claro que respostas sempre foram encontradas em quadros até mais sombrios do que o atual. Não será diferente agora, apesar de todos os percalços que já existiam no plano oficial para o desmantelamento do antigo Ministério da Cultura, mas também do Ministério da Educação. Que período insano!

E neste sentido, como será o “novo normal” do qual se fala tanto? Bem, se for “normal” não será “novo”; mas se for “novo”, com certeza não será “normal”. Até porque, como lembrou o cineasta Jean-Luc Godard, “cultura é regra, arte é exceção”.

E cultura, no sentido que Freud a entendeu, é o conjunto de regras criadas para proteger a humanidade da natureza – incluindo dos próprios humanos entre si –, mas que causa um mal-estar que se enfrenta de duas formas: grosseiras ou sublimes.

Em suma, quem (sobre) viver, verá. Seja em um mundo digital (5G), eletronicamente conectado, seja na retomada dos drive-ins para se assistir um filme em tela grande; ou mesmo nos museus agendados e teatros vazios (mas cheios de emoções e novas ideias); a cultura sobreviverá, renascerá, surpreenderá.

Como sempre foi, ainda é, sempre será. Desde que o Homo Sapiens passou a contar histórias em torno das fogueiras para atiçar a imaginação de todos para uma vida além da mesmice do dia-a-dia, confinados ou não. Histórias foram escritas. Publicadas. E não há nada como abrir-se um livro impresso em papel e viajar através do tempo, dos mistérios e dos espaços para descobrir mundos diversos e alegrias sem fim.

Em suma, só para lembrar o que todos sabem: a pandemia vai passar. Sabe-se lá quando ou como. Como no rio de Heráclito, não seremos os mesmos, nem o rio, mas histórias para contar não irão faltar, dando origem a um Decameron ou a um Rei Lear, mas “normal” nada será. Que sejamos melhores, então!

*Martin Feijó é historiador, doutor em comunicação pela USP e professor de comunicação comparada na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).

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