Ricardo Marinho: Histórias que precisamos contar

Nos 100 anos do Partido Comunista Brasileiro, Fausto Mato Grosso analisa com lucidez a história cotidiana do PCB em Mato Grosso do Sul
Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal

Cem anos atrás, no próximo 25 de março só que de 1922, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) nascia em Niterói, cidade recentemente relançada para o mundo cinematograficamente pelo filme Minha Mãe É uma Peça e suas duas sequências pelo saudoso Paulo Gustavo (1978-2021). Por ocasião do centenário, a Fundação Astrojildo Pereira propõe uma série de atividades, e uma delas é o belíssimo livro de Fausto Mato Grosso sobre a história cotidiana do PCB em Mato Grosso do Sul.

Este livro fala simultaneamente de um passado distante e recente. Tão longe e tão perto no tempo, e nem mesmo (pelo menos para um leitor brasileiro) no espaço: as crônicas que compõem o livro e a realidade a que se referem – o PCB, como um partido de cultura política que chegou às massas fugazmente – pertencem a um mundo definido. Nesse ínterim, esse passado distante foi-se distanciando ainda mais do recente, com uma velocidade surpreendente. Embora a inércia linguística tenha preservado a expressão partidos políticos, a participação política foi assumindo fisionomia completamente diferente em uma sociedade dominada pela lógica do mercado, agora acentuada pela pandemia. Esta participação, ligada, sobretudo, à internet, é essencialmente estranha às partes: uma instituição que se transformou e sangrou até à morte, e não só no Brasil.

Na apresentação de seu livro, Fausto Mato Grosso analisa com lucidez essas distâncias. Mas seu olhar retrospectivo leva a um convite para seguir em frente, inclusive em termos de pesquisa, apontando para possíveis fundos de arquivos privados inexplorados para a história do PCB, não apenas seus, mas da magnífica presença autoral da camaradaria com quem escreve o livro. Não há dúvida sobre a importância desta contribuição.

Uma obra sobre história cotidiana do PCB em Mato Grosso do Sul lança um desafio original à historiografia, convidando-a a ir além das visões anteriores sobre a história do PCB. Este desafio que exige respostas também se dirige a um leque muito mais amplo de leitores, porque aborda a complexa relação entre crônica e memória, através de uma vivência específica, colocando uma questão muito geral e clássica em debate: o que é uma fonte histórica?

Uma fonte (qualquer fonte) pode ser comparada, reformulando conhecida metáfora da folha de papel usada pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). Para apreender a dimensão referencial da fonte, devemos nos perguntar por meio da elaboração de uma série de questões, de como as faces da fonte são construídas: uma questão que muitos, silenciosamente, evitam fazer. Quando Fausto e a camaradagem se veem diante de seus arquivos inexplorados e começam a escrever crônicas também autobiográficas que os militantes comunistas sul-mato-grossenses do pós-1964 se perguntam: como surgiram essas histórias? Em quais contextos? Que relações de poder as condicionam?

Dessas perguntas, decifradas pelos olhares aguçados de Fausto e da camaradaria, emerge a dimensão referencial das crônicas, pois as vivências militantes ali expressas dão uma ideia da riqueza dos seus arquivos que nenhuma historiografia poderá ignorar. Esperamos que ela se sinta tentado a desenvolver essa temática, inclusive numa perspectiva comparada. Aliás, este é um tópico que se tornou mais relevante do que nunca pela obsessão preditiva gerada pela pandemia.

A camaradagem e Fausto sob vários aspectos realizam confissão pública da luta em favor da democracia e de como derrotar politicamente a ditadura em vigor entre 1964 e 1985. Esse exercício é homólogo a tradição jesuíta tão profundamente arraigada entre nós como ilustra o português Simão Rodrigues (1510-1579), pois o termo militante, e seus equivalentes em muitas línguas, remontam a Alessandro Farnese (1468-1549) e sua bula pontifícia Regimini militantis ecclesiae (1540), que sancionou a aprovação da Companhia de Jesus, mas, na experiência desta, a analogia com a prática da autobiografia exigida de novos adeptos justifica uma raiz comum na conformação brasileira como mostrou José Eisenberg.

Esse diálogo aparentemente inusitado, que nos projeta em dois passados distintos, em sua intrincada relação histórica desde a colônia Brasil, produz direções variadas de orientação e/ou desorientação. Quem lê Histórias que Ninguém Iria Contar, por vezes, terá a impressão de estar mergulhado num livro de ficção (também científica): uma experiência que nos ajudará a olhar com novos olhos a circunstância enigmática em que vivemos. Mas também terá claro o poema do Ferreira Gullar (1930-2016) de que para versar a história do povo brasileiro tem que falar do PCB.

*Ricardo Marinho é professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2022 (39ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

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