Revista Política Democrática || Marco Aurélio Nogueira: Oposição depende do centro democrático expandido

Falta de iniciativa e unidade na oposição faz com que Jair Bolsonaro seja perturbado somente por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor.  Governo não sabe que país é esse que o elegeu para governar.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

Falta de iniciativa e unidade na oposição faz com que Jair Bolsonaro seja perturbado somente por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor.  Governo não sabe que país é esse que o elegeu para governar

Não é só como metáfora da modernidade que a imagem do “carro de Jagrená” é eloquente. Disseminada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, trata-se de uma máquina mítica dos hindus que evolui arrastando consigo tudo o que encontra pela frente, sem que ninguém consiga controlá-la.

A metáfora serve bem para que se ilustrem situações como a brasileira, que escapa de avaliações simples e mostra um País flertando com o precipício, com a política em baixa, sem contar com um governo que atenue a carreira alucinada em que foi jogado.

A Presidência da República tornou-se um deserto de ideias. A paralisia e a mediocridade devoram suas entranhas. O primeiro mandatário não está à altura do cargo que ocupa, nem sequer se mostra à vontade nele, assusta-se com a própria sombra e acumula inimigos por onde passa. Não planta nem colhe nada de positivo, só atua para defender os próprios interesses restritos, seus e dos filhos. O governo não sabe que País é esse que o elegeu para governar. Não sabe e não se preocupa em querer saber.

O presidente segue pilotando seu Jagrená, indiferente aos estragos que provoca. Faz isso porque não é confrontado por uma oposição que vá além da agitação retórica e do jogo de cena. Como não há iniciativa e unidade na oposição, o governo só é perturbado por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor. Movimenta-se sem demonstrar coesão ou a posse de um programa concatenado de ação.

Na economia, por exemplo, a gestão de Paulo Guedes avança porque foi assimilada por Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, que não só garantiu a progressão da Reforma Previdenciária, mas mantém ambiente favorável ao reformismo econômico que se deseja institucionalizar. Mesmo assim, a economia patina e, a sensação é de que não se sabe bem o que fazer para dar respostas efetivas aos problemas que afligem a sociedade. Algum desdobramento desse quadro deverá surgir nas eleições do ano que vem, com um possível aumento da frustração do eleitor.

A mistura exótica de ultraliberalismo na economia e ultraconservadorismo nos costumes não está servindo para que se dê um salto para a frente. O governo demoniza a globalização e a revolução tecnológica, mas não sabe decodificá-las, o que faz com que não consiga enfrentar os problemas reais do País, as desigualdades, o desemprego, a desindustrialização, a miséria, a pobreza. Falta imaginação, falta criatividade, falta um mapa de navegação. Há mais disputas internas que articulação. Muito mais ideologia que racionalidade.

A confusão governamental mostra-se às escâncaras na luta entre as facções incrustradas no Incra, como falou o general José Carlos Jesus após ser demitido pelo secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia. A crise amazônica, sufocada entre a “porra da árvore” desprezada por Bolsonaro e a acusação governamental de que tudo não passa de uma disputa pelo minério que haveria em terras indígenas, exibe a céu aberto a inexistência de um plano que coordene a ação do governo na região. Por ali, militares não se entendem com o pessoal do ruralista Nabhan, que também não se entende com a turma do Ministério da Agricultura, cada qual amarrado a seu tronco.

As brigas dentro do PSL, até então tido como esteio parlamentar do governo, mostram uma combinação tóxica de miséria doutrinária com desejo de poder e controle do dinheiro.

Na Educação, o ministro Weintraub consegue a proeza de falar uma barbaridade sempre pior que a anterior. A área se arrasta, sem que haja qualquer indício de que uma luz por fim aparecerá.

Na Cultura, a censura corre solta, movida a guerra ideológica, a ingerências autoritárias, ataques e perseguições, chantagens e sufocamento orçamentário. Vetos a filmes entendidos como “pornográficos” convivem com a defesa de películas que fazem apologia a torturadores, igrejas e “valores cristãos”, no mais completo desrespeito à cultura, à arte, à liberdade de criação.

À margem de tudo, atacada por todos os lados e sendo devorada pela fogueira do governo, a Lava Jato agarra-se à opinião pública, que ainda lhe é favorável, sem poder contar com maiores apoios institucionais, o que a faz girar em falso. Confusões e trambiques como os do senador Flavio Bolsonaro e do ministro Marcelo Álvaro Antonio permanecem na crônica político-policial, sob o olhar plácido de Sergio Moro, outrora um impávido combatente anticorrupção. Pode ser que a Operação sofra algum ajuste e até volte a se fortalecer, mas seu momento atual é de declínio.

A palavra de ordem geral é de desconstrução: terra arrasada. Deseja-se um capitalismo livre de antolhos políticos, de regulação, de moderação, autocentrado e concentrado. Sem governo.

O presidente atira nos próprios pés, atrapalha-se na execução de coisas básicas, não consegue manter um ritmo proativo de gestão, nem administrar a gula de suas bases parlamentares. Sua natureza é o confronto. Está convencido da força de sua retórica e do estado de ânimo das parcelas da população que se retraem à política democrática e se deixam seduzir pelo ilusionismo do “mito”.

A “velha política” continua no comando, por mais que seja atacada por todos os lados. Entendida pejorativamente como sinônimo de práticas tidas como espúrias – entre as quais são enfiados, com mão de gato, o diálogo, o convencimento, a negociação –, a ela é contraposto o confronto como valor permanente, a intransigência, a veemência verbal, a localização de “inimigos”. O ambiente fica contaminado por “polarizações” recorrentes.

Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema político resiste, chegando mesmo, em alguns momentos, a impulsionar o processo de tomada de decisões e compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte, se contrapõe ao governo e mostra independência; em parte, se consome em seu próprio fogo corporativista.

Algo precisa surgir de suas bordas, onde se aloja o centro democrático expandido: liberais, a esquerda social-democrática, ambientalistas, verdes, cristãos progressistas, humanistas. Não só para nortear a política, permitindo-lhe retomar suas virtudes cívicas e sua capacidade de articulação, mas também para que se possa criar uma oposição consistente, que enfrente o governo, dialogue pedagogicamente com a sociedade, module o “carro de Jagrená” e prepare o caminho para as disputas eleitorais que haverá pela frente.

Se o terreno ficar congestionado de candidatos presidenciais disputando espaço entre si, será difícil sair do túnel em que meteram o País. Alguns, por exemplo, como o governador paulista João Dória, querem monopolizar a centro-direita e isolar Bolsonaro na extrema. Para vencer, porém, Dória terá de atrair parte substancial dos votos da centro-esquerda e dos liberais, que não rezam por sua cartilha. Outros batem no peito para proclamar sua superioridade perante os demais, há quem trabalhe em silêncio para cavar a própria trincheira e quem levante poeira para chamar atenção. Há donos demais, lideranças de menos. E a bandeira do antipetismo já não funciona como catalizador.

Fiel ao egocentrismo que os caracteriza, cada pedaço do universo político deseja ter um candidato para chamar de seu. Pode ser que a ideia seja ganhar força e negociar depois. Se tal não acontecer, porém, e o PT insistir em manter a carreira-solo com ou sem Lula, as urnas de 2022 nem precisarão ser abertas para que se saiba o que conterão.

*Marco Aurélio Nogueira é professor Titular de Teoria Política da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

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