Revista PD #48: Novamente o parlamentarismo

É recorrente em tempos de crise política no Brasil a reaparição da ideia de adoção do sistema parlamentarista como remédio eficaz para a rápida normalização da vida institucional. E é uma pena que essa ideia ressurja sempre dentro desse contexto de oportunismo, como se o parlamentarismo se assemelhasse a uma gambiarra feita para solucionar algum problema grave de última hora.
Foto: Antonio Cruz / Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz / Agência Brasil

É recorrente em tempos de crise política no Brasil a reaparição da ideia de adoção do sistema parlamentarista como remédio eficaz para a rápida normalização da vida institucional. E é uma pena que essa ideia ressurja sempre dentro desse contexto de oportunismo, como se o parlamentarismo se assemelhasse a uma gambiarra feita para solucionar algum problema grave de última hora.

Por Anivaldo Miranda
Revista Política Democrática #48

Todavia, como a cavalo dado não se olha os dentes, seria imperdoável deixar de lado a chance que se apresenta para, mesmo no contexto da crise, recolocar o parlamentarismo no cardápio do debate político-institucional, fazendo um esforço para retirar do tema este cheiro de coisa improvisada e tratando-o como ele realmente merece, ou seja, como ideia-força de uma reforma política abrangente, capaz de tornar o Brasil mais preparado para enfrentar os enormes desafios do novo século.

Os eternos pessimistas diriam que o parlamentarismo no Brasil não passa de um devaneio, sobretudo porque encontraria no Congresso Nacional uma avassaladora resistência da chamada classe política. Embora a afirmativa seja verdadeira, ela não esgota, porém, o universo de possibilidades que poderiam fazer prosperar a ideia. Porque é nessa circunstância que reside, paradoxalmente, uma possível chance de êxito para a mudança parlamentarista.

Até agora a luta pelo parlamentarismo tem ficado quase sempre restrita ao universo da política quando deveria, há muito, ter fixado como alvo a opinião pública e como objetivo permanente a construção de um movimento, dentro e fora dos partidos, para um trabalho de amplo esclarecimento e conscientização da população, abordando principalmente a superioridade e a utilidade prática do parlamentarismo em relação ao presidencialismo que tanto nos desgasta e atravanca.

Na remoção dos obstáculos ideológicos que se antepõem recorrentemente à mudança parlamentarista está o mito da “tradição” presidencialista do Brasil. Falar em tradições políticas num país de recente passado colonial, de passageira monarquia e de uma democracia ainda adolescente chega a ser abusivo do ponto de vista histórico.

Mitos
O outro mito insustentável é o fantasma da instabilidade na qual o Brasil seria mergulhado como resultado da adoção do parlamentarismo. Basta comparar esse temor com a realidade gritante do momento presidencialista atual para se convencer do contrário. De fato, se formos falar de crise e instabilidade bastaria citar o quadro de desagregação e paralisia provocado pelo último governo Dilma e a agonia do governo Temer para verificar como o sistema presidencialista é incapaz de resolver suas crises de legitimidade sem colocar o país inteiro em sobressalto permanente e à mercê de tão desgastante e prolongada instabilidade político-institucional.

Nas condições do parlamentarismo, a crise política brasileira já teria redundado na dissolução do parlamento e na convocação de eleições antecipadas com a formação de um novo ministério e a recomposição das forças políticas. Se a profundidade da crise assim viesse a exigir, o remédio, embora amargo, voltaria a se repetir, até obrigar essas forças políticas à produção de uma maioria estável capaz de colocar em prática um programa de governo mais definido, baseado em princípios e escolhas estratégicas melhor debatidas e compreendidas pelos eleitores.

Ademais, como no parlamentarismo as funções de Estado e de governo são exercidas separadamente (a primeira delas pelo presidente da República e a segunda pelo primeiro ministro), numa situação de crise dificilmente os ocupantes das duas funções estariam ao mesmo tempo envolvidos em escândalos a ponto de ambos ficarem ameaçados de perda simultânea dos seus cargos. Normalmente, como o presidente da República, no parlamentarismo, tende a ser um político de maior experiência e trajetória conhecida e reconhecida, além de ocupar-se das políticas de Estado de longo curso e de estabilidade mais garantida, em momentos de queda do governo e do primeiro ministro, ao presidente caberá manter a estabilidade das políticas permanentes, mesmo que as questões conjunturais de governo sofram de intensa instabilidade. E é claro que isso dá à política e à economia, como de resto a toda vida nacional, um mecanismo mais claro e eficiente para atravessar, em menor tempo e com maior garantia de sucesso, as épocas de maior turbulência nacional.

No parlamentarismo, ao chefe de governo, ou propriamente ao primeiro ministro e seu gabinete (ministério) caberá, como executores das políticas públicas de governo, um papel de intensa interação com o parlamento para formar permanentemente maiorias capazes de administrar o país, porque do contrário terão vida curta e, com eles, tudo sucumbirá no redemoinho das eleições antecipadas. Em tais circunstâncias, a dinâmica da política parlamentarista tenderá a superar uma das maiores chagas de nossa vida congressual, ou seja, a engessada dicotomia governo/oposição que é marca registrada do funcionamento atual da Câmara Federal e do Senado no Brasil, criando via de regra polarizações estúpidas e fortemente influenciadas pelo poder econômico e pela ação dos lobbies e da corrupção.

No parlamentarismo, é óbvio, não desaparece a díade governo/oposição nem outras divisões mais específicas por grupos de interesses. Porém, a dinâmica diferente em relação ao presidencialismo cria entre todos os parlamentares a consciência de que, em última instância, fazem parte do mesmo barco e que chamar tempestades não é de bom tom visto que se, na borrasca, o barco afunda, todos se afogarão no sorvedouro das eleições antecipadas. Portanto, a vida demonstrará que a busca pela construção permanente de consensos poderá se mostrar mais interessante do que aquilo que ocorre atualmente, fazendo com que o embate parlamentar seja crescentemente mais programático e menos fisiológico.

Críticas
Os críticos do parlamentarismo têm algumas razões procedentes, todavia não aquelas atinentes ao próprio sistema, mas sim a algumas premissas que são essenciais para que a aposta parlamentarista não surja suspensa no ar ou acomodada em ambiente onde o pelanco do presidencialismo voou, mas o seu ninho de práticas e normas obsoletas e autoritárias permaneceu intacto.

Para dar certo no Brasil o parlamentarismo deve ser implantado como locomotiva de uma reforma política digna deste nome. E aqui, dentre outras mudanças necessárias, uma será fundamental. Ou seja, aquela que prepare os partidos políticos para agir propositivamente qualificando o novo sistema. E nesse sentido, é necessária a criação de regras rigorosas destinadas à democratização interna desses partidos que hoje, não raro, são dominados por camarilhas que privatizam a ação partidária e se perpetuam no domínio de siglas, reproduzem carreiras políticas inclusive com crescente caráter hereditário e reduzem os partidos a meras legendas eleitorais sem maiores vínculos com o conhecimento da realidade do país e as reivindicações da população.

Essa democratização interna dos partidos é essencial para que uma outra mudança basilar não se transforme em tiro pela culatra: como é vital para o parlamentarismo o voto preferencial do eleitor na instituição partido político e no programa que ele apresenta para a sociedade, a lista fechada de candidatos que dá suporte a esse mecanismo não poderá estar sujeita ao arbítrio daquelas camarilhas das quais falamos anteriormente, sob pena de retirar do parlamentarismo toda a sua autenticidade. Sem dúvida é fundamental que o eleitor, ao votar no partido sobretudo em função do seu programa, tenha certeza de que aquilo que vem dentro da embalagem realmente corresponde ao que dispõe o seu rótulo. Em outras palavras, que ao optar pelo programa A e não pelo C ou D, elegerá parlamentares de fato comprometidos antes de mais nada com esse programa e não com o fisiologismo de partido.

Uma outra mudança primordial será, com o advento do parlamentarismo, o fim da prática dos cargos comissionados, medida imprescindível para evitar a intromissão política na condução técnico-administrativa das máquinas públicas e a adoção plena da meritocracia no dia a dia dessa administração, reconduzindo o parlamento para suas funções primordiais quais sejam a definição das políticas públicas, a construção dos consensos nacionais, regionais ou locais no processo de funcionamento da sociedade e da economia e a fiscalização eficaz dos negócios públicos e dos poderes da República.

Crises
No nevoeiro causado pela conjugação da crise política com a crise ética e a crise econômica que faz o país agonizar durante um longo período de indefinições que se prestam a todos os pescadores em águas turvas, a ausência das soluções práticas que o parlamentarismo poderia apresentar causa um outro dano ao Brasil: questões e desafios estruturais que seriam necessários para qualificar o país na travessia do século XXI, ficam adiadas em seu debate e enfrentamento para horizontes difíceis de enxergar. Ocorre que a natureza desses desafios, muitos deles planetários, é tão ameaçadora que não há mais tempo para continuar ignorando-os.

Temáticas explosivas como é hoje o caso da violência e da criminalidade que avançam, demandas estruturais básicas como a necessidade urgente de rever matrizes estratégicas (como é o caso das matrizes de energia, transporte e a matriz agrícola insustentáveis) ou situações perturbadoras como o despreparo do Brasil para a adaptação aos tempos do aquecimento global em contexto de desmonte descarado da legislação e da política de meio ambiente, só tornam o debate sobre parlamentarismo algo de absolutamente atual.

Observados o cenário brasileiro como um todo, do alto do seu enorme território e população, e levando em conta a herança colonial recente que ainda nos atormenta com a obsolescência de muitas das nossas instituições, bem como o potencial geopolítico de que ainda dispomos apesar da gravidade de todos os nossos problemas e mazelas, podemos concluir, com suporte na dinâmica de nossa história recente, que o Brasil precisa e está apto a definir o seu Projeto Nacional, estruturando um modelo de economia e de sociedade aptos a garantir que a nossa inserção no mundo globalizado possa acontecer de maneira intensa, porém soberana, por força de um novo modelo desenvolvimento que supere nossas desigualdades ancestrais, crie uma economia sustentável e estreitamente ligada às vocações do país e produza uma democracia mais legítima em seus mecanismos de representação e verdadeiramente participativa e descentralizada. Para tanto precisaremos do parlamentarismo sem medo de ousar e de romper a inércia nessa nossa nação que tem pressa para resolver seus problemas.

* Anivaldo Miranda é jornalista e mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas

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