Revista online | Uma crônica de dois golpes

Construção democrática impõe ideia de mudança social que repele a aniquilação do adversário mediante a violência política
Bolsonatistas radicais são vistos por meio de janela vandalizada do Palácio do Planalto | Foto: Adriano Machado/Reuters
Bolsonatistas radicais são vistos por meio de janela vandalizada do Palácio do Planalto | Foto: Adriano Machado/Reuters

Luiz Sérgio Henriques*, ensaísta, especial para a revista Política Democrática online (51ª edição: janeiro de 2021)

O imaginário das velhas revoluções consagrou o assalto direto aos palácios como a via privilegiada para o poder. Tais lugares supostamente materializavam o domínio das classes do passado, que deveria ser abatido num só golpe, à vista de todos, antes de neles se instalarem os novos senhores. Surpresos e desconcertados, vimos esta concepção de mudança, que hoje somos unânimes em considerar pobre e abstrata, sair do baú de ossos e ser posta em prática pela nova direita “revolucionária”, primeiro no Capitólio norte-americano, dois anos depois nas sedes dos poderes em Brasília. 

Em ambos os casos, um pesado rastro de destruição – e no Capitólio até mortes. Um ar de farsa rodeou imediatamente o primeiro episódio, com sua bizarra multidão de conspiracionistas reunidos em torno da fantasiosa ideia de uma eleição roubada ilegitimamente a Donald Trump. Tratou-se de algo insano e inédito, a saber, impedir a certificação dos votos do presidente Biden, chegando-se, para tanto, ao despropósito de ameaçar com a forca o vice-presidente republicano que presidia a cerimônia e, mesmo pertencendo ao partido de Trump, insistia em se manter “dentro das quatro linhas da Constituição”. 

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Por aqui, a farsa em dobro, sobrecarregada pelo cinismo adicional que a reencenação de um golpe de Estado exige. Bem verdade que há diferenças, uma vez que o desatino brasileiro amparou-se numa concepção “revolucionária” de tipo mais clássico. Criado o caos e a desordem, as classes possuidoras acorreriam em favor da vanguarda revoltosa. A instituição policial e militar como tal, e não só alguns setores desviados, marcharia em ordem unida para depor o governante recém-eleito. E a maioria silenciosa, enfim incendiada, se ergueria em torno de palavras de ordem de inequívoco sabor fascista, como a tríade “Deus, Pátria e Família”, a que os grandes farsantes agora acrescentam uma “liberdade” concebida como atributo do indivíduo desligado de obrigações e responsabilidades com sua sociedade.

O sociólogo Luiz Werneck Vianna tem apontado que na nossa História está presente um descompasso forte entre modernização e moderno. Em síntese sumária, a modernização aconteceu pelo alto, comandada com mão de ferro por regimes autoritários e mesmo ditatoriais, como o de 1937 ou o de 1964. Ao contrário, a modernidade a que aspiramos, para se afirmar de modo continuado, requer cisões e rupturas, muitas vezes imperceptíveis, com este caminho acidentado que teve início lá atrás, num tempo agrário e escravocrata. Sua meta, no entanto, é uma democracia em que se combinem liberdades formais e substantivas, representação e participação, direitos do indivíduo e da sociedade, tal como assinalado simbolicamente pela Carta de 1988. 

Mas o fato é que ainda hoje ressurge continuamente o hiato entre modernização e moderno. Há, por isso, disfunções e impulsos regressivos, sinais preocupantes de anomia e irracionalismo, como os que marcaram a ação das hordas de janeiro. Para os bárbaros, tudo é bárbaro. Vale esfaquear Di Cavalcanti ou quebrar o artesanato fino de Balthazar Martinot; desrespeitar as colunas de Oscar Niemeyer ou depredar os painéis de Athos Bulcão e Marianne Peretti. Vale ainda dessacralizar os lugares da nossa comum religião cívica, como as sedes dos poderes. Subindo a rampa do Congresso, certa vez Le Corbusier exclamou: “Aqui há invenção”. No dia fatídico, contudo, houve só destruição e destruidores.  

Confira, a seguir, galeria:

Foto: Adriano Machado/Terra
Foto: Jim Lo Scalzo/EPA
Foto: Sergio Lima/AFP
Foto: Leah Millis/Reuters
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters
Foto: John Minchillo/AP
Foto: Reprodução/Canal Ciências Criminais
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Foto: Sergio Lima/AFP
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Foto: Sergio Lima/AFP
Foto: Leah Millis/Reuters
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Foto: John Minchillo/AP
Foto: Reprodução/Canal Ciências Criminais
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A democracia política e social é o moderno. Permite a livre movimentação de todos os atores, inclusive os seres ditos subalternos. Obriga todos os seus participantes a participarem de um jogo complexo, cujas regras – e o respeito a elas – são pelo menos tão importantes quanto os resultados que cada ator, individual ou coletivo, colhe em cada circunstância. Eleições ganham-se e perdem-se numa sucessão indefinida. A construção democrática, sempre inacabada, impõe uma ideia de mudança social que, sem negar a correlação de forças e a luta áspera por seu progressivo realinhamento, repele a aniquilação do adversário mediante a violência política. 

A democracia norte-americana, com todas as suas falhas e imperfeições, dura há mais de dois séculos e seus documentos originais, como ainda recentemente lembrou a historiadora Anne Applebaum, inspiraram a linguagem radical dos revolucionários de 1789 e de muitos outros lutadores anticoloniais. Simón Bolívar – outro exemplo lembrado por Applebaum – viu naquele País a concretização da “liberdade racional”. Em contraposição, nossos períodos de liberdade plena foram muito mais curtos, mas, sem falsa modéstia, nem por isso temos menos a oferecer ao mundo. Aqui também há originalidade, vocação para o moderno e um sentido de futuro que temos mantido, apesar de todas as quedas. 

Sobre o autor

*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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