Cada preso político dava aulas no setor de sua especialidade
Leio artigo do estimado Frei Betto no GLOBO de 2 de janeiro e copio seu texto final: “Basta analisar o índice de reincidência criminal daqueles que, em Presidente Venceslau, passaram pelo curso de ensino médio e as oficinas de pintura, teatro e estudos bíblicos. Todos administrados por nós, meia dúzia de presos políticos inseridos na massa carcerária.”
Embora preso político, Frei Betto e meia dúzia de companheiros, na Penitenciária de Presidente Venceslau, lograram a adesão de muitos detentos comuns às atividades que ele acima narra.
Antigo advogado de presos políticos, quero dar minha contribuição ao momento que estamos vivenciando das tragédias em penitenciárias, revelando as origens da organização de presos comuns que resultaram, hoje, em comandos que se digladiam.
Com o acirramento da luta, a partir de ações contra estabelecimentos bancários pela resistência armada à ditadura militar, esta emitiu o Decreto-Lei nº 898, de setembro de 1969, que não fazia diferença entre presos políticos e comuns, nos termos abaixo:
“Artigo 27. Assaltar, roubar ou depredar estabelecimento de crédito ou financiamento, qualquer que seja a sua motivação: /Pena: reclusão, de 10 a 24 anos./ Parágrafo único. Se, da prática do ato, resultar morte:/ Pena: prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em grau máximo.”
Dessa forma, presos políticos e comuns foram abrigados, na Ilha Grande, em um espaço que os guardas chamaram de Pavilhão da Segurança Nacional.
Lembro-me de, mais de uma vez, com o saudoso amigo Antônio Modesto da Silveira, ter esbarrado com Lúcio Flávio, Fernando CO, Horroroso, Marta Rocha e outros na Segunda Auditoria do Exército.
Os presos comuns habituaram-se ao comando dos presos políticos. Cada preso político dava aulas no setor de sua especialidade. O que recebiam de casa (cigarros, balas, bolos, frutas, produtos de higiene pessoal) era rigorosamente dividido entre todos. Com a anistia de 1979, os presos políticos que ainda estavam na ilha foram libertados, e os comuns mantiveram, tanto quanto possível, a organização que lhes foi ministrada.
Esse é o nascimento da Falange Vermelha, imediatamente modificada para Comando Vermelho. Afinal, o Comando Vermelho se multiplicaria nas prisões, e surgiram outras organizações como o PCC.
A lei da ditadura militar, que reuniu em um mesmo pavilhão presos políticos e comuns, é responsável pela organização carcerária que hoje, multiplicada, patrocina tragédias e desafia os confusos governos federal e estaduais.
É mais um legado maldito da ditadura militar.
Marcello Cerqueira é advogado
Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br