Lorena Barberia: ‘Bolsonaro e Obrador expõem vidas para dizer que não têm medo’

Coordenadora da rede que monitora dados da covid-19 no Brasil, Lorena Barberia aponta falta de transparência e afirma que Estados baseiam suas ações em informações incompletas.
Foto: Wanezza Soares/El País
Foto: Wanezza Soares/El País

Coordenadora da rede que monitora dados da covid-19 no Brasil, Lorena Barberia aponta falta de transparência e afirma que Estados baseiam suas ações em informações incompletas

Daniela Mercier, El País

Passados 10 meses do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil, o país ainda enfrenta a pandemia no escuro. Sem conseguir fazer testagens em massa que forneçam uma dimensão real do número de doentes em fase de contágio —e não somente as infecções acumuladas, que no país já se aproximam de oito milhões— e com problemas na coleta, organização e divulgação de dados que permitam tomar as medidas necessárias na velocidade do avanço do vírus, Governos de Estados e municípios trabalham com estatísticas incompletas para definir suas ações, não convencem a população da importância de aderir a elas e deixam suas medidas vulneráveis a pressões políticas e econômicas. O diagnóstico é da pesquisadora Lorena Guadalupe Barberia (Cidade do México, 49 anos), coordenadora científica da Rede de Pesquisa Solidária, uma coalizão de especialistas que monitoram e avaliam as políticas públicas de combate à covid-19 em todo o Brasil.

falta de transparência, a existência de bases de dados divergentes e o pouco detalhamento de informações foram obstáculos encontrados logo de início e orientaram o foco de trabalho do grupo, que passou a ser conhecido como caçadores de dados da pandemia. Pesquisadores distribuídos pelos Estados cobram de suas gestões, das capitais e do Governo federal informações sobre questões como número e tipo de testes realizados, fiscalização de medidas de distanciamento e ações para garantir o ensino a distância. Esbarram, novamente, no descaso com as informações. “É uma tragédia. Estamos tentando produzir algo que poderia ajudar esse Estado a enfrentar melhor a pandemia. Então a falta de vontade de compartilhar uma informação mostra que existe um problema mais sério por trás”, afirma.

Professora de ciência política da USP, a mexicana que é filha de argentinos, graduada em economia pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, mestra em políticas públicas por Harvard e doutora em administração pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV) compara a gestão do presidente Jair Bolsonaro com exemplos internacionais e analisa que a pandemia escancarou o machismo de governantes como o brasileiro e o mexicano Andrés Manuel López Obrador. “Confundem o enfrentamento da pandemia com uma questão de fragilidade ou fortaleza física e colocam em risco a vida da população para mostrar que não têm medo do vírus”, afirma ela, que além da USP, é pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp), da FGV. A seguir os principais trechos da entrevista.

Pergunta. Como foi a criação da Rede de Pesquisa Solidária e como tem sido o trabalho até agora?

Resposta. A Rede começou primeiramente por uma questão pessoal. Eu tenho um grupo de pesquisa voltado para a avaliação qualitativa de políticas públicas. Quando começou a pandemia, em uma reunião do grupo, uma aluna perguntou: “Professora, estamos em uma pandemia. Não vamos fazer nada?”. E isso me despertou para a questão de que, realmente, na área das ciências sociais e de monitoramento de políticas públicas, a gente poderia dar uma contribuição relevante. Com o professor Glauco Arbix, da sociologia [da USP], e o José Eduardo Krieger [InCor-Faculdade de Medicina da USP], pensamos em como criar uma rede multidisciplinar de especialistas conversando sobre a pandemia.

Ficou visível desde o início que existiam pouquíssimos dados para que a gente soubesse a situação real da pandemia. Então uma das nossas primeiras missões foi pensar em como coletar informações para produzir nossos próprios dados, e, assim, avaliar as políticas públicas, colocar isso mais visível para a sociedade e debater soluções com os gestores. E para isso seria preciso produzir dados na velocidade da pandemia.

P. Seu grupo foi apelidado de caçadores de dados, pelo esforço em driblar a falta de transparência e organização dos Governos. Como fazem essa busca?

R. Para avaliar uma política pública, precisamos buscar decretos, portarias e indicadores transparentes disponibilizados pelos Governos. Parte da Rede é formada por advogados que trabalham muito ativamente protocolando pedidos de informação junto aos Estados via lei de transparência [Lei de Acesso à Informação]. Uma área específica em que isso ocorre é a fiscalização das restrições. Os Governos dizem que fiscalizam as medidas de distanciamento físico, então nós queremos saber quais são os dados por bairro, por tipo de infração, ou seja, ter evidências de que essa fiscalização está sendo realmente feita.

Ficamos com essa fama de caçadores de dados da pandemia porque logo no início vimos que para áreas muito importantes há diferentes bancos de dados e eles não estão integrados. Por exemplo, os casos confirmados de covid-19: hoje a gente tem pelo menos três diferentes bancos de dados oficiais —um para buscar informações sobre casos leves, outro para casos graves e hospitalizações, outro para casos em geral… Se você tenta cruzá-los, não há uma correspondência. Descobrir isso foi muito assustador para nós.

P. E em quais tipos de informação esse problema foi encontrado?

R. Ao longo da pandemia, martelamos na defesa de que os Governos precisam produzir dados transparentes e que esses dados precisam ser públicos. E essa discussão tem sido feita principalmente na área de testagem. A gente deveria saber qual é a taxa de positividade por tipo de teste. É um indicador fundamental, mas se a gente acessar hoje, em dezembro, o site do Ministério da Saúde, não encontraremos dados satisfatórios. Então o que fizemos? Criamos um grupo de trabalho em cada Estado e estamos protocolando via lei de transparência pedidos de informação sobre testagem. A nossa preocupação são os testes de casos ativos, que permitem fazer isolamento e rastreamento de contágios. Para reduzir a transmissão, precisamos saber os resultados dos exames RT-PCR. Os testes sorológicos [que buscam saber se o paciente já possui anticorpos contra o vírus, ou seja, se ele já se infectou no passado] e os PCR [que detectam o material genético do vírus naquele momento, portanto, as infecções ainda ativas] não dizem a mesma informação, precisam estar separados. Mas ainda hoje não existe essa informação sistematizada, abrangente, que permita um monitoramento.

Lugares que foram bem-sucedidos no mundo no controle da pandemia, como a Coreia do Sul, investiram em testagem. E é exatamente nessa área que temos falhado muito. Mesmo hoje, em que falamos de vacina, de uma nova esperança, precisamos nos preocupar em fazer mais testes.

P. Qual é o tamanho dessa equipe envolvida nos pedidos de informação junto aos Estados e como tem sido a resposta dos Governos?

R. À medida que o trabalho foi crescendo, a rede começou a fazer parcerias —a gente trabalha muito com o Observatório Covid-19 BR e com várias redes locais nos Estados. Hoje a Rede de Pesquisa Solidária faz parte de uma outra grande rede, uma rede de redes de pesquisadores engajados em buscar e compartilhar informação sobre a pandemia, com a consciência de que precisamos trabalhar colaborativamente para salvar vidas. Temos um trabalho muito abrangente pelo país graças a essas parcerias. Só na área de testagem são mais de 100 pesquisadores, em todos os Estados, trabalhando com a gente.

Infelizmente, a parte mais difícil do trabalho é que não temos visto interesse dos Governos em dar um retorno com rapidez e transparência. Muitas vezes eles demoram a responder, depois os dados não vêm na forma que a lei exige, aí recorremos, eles mandam de novo e ficamos meses nessa negociação. É uma tragédia, porque nós, pesquisadores, estamos tentando produzir algo que poderia ajudar esse Estado a enfrentar melhor a pandemia. Então essa falta de vontade de compartilhar uma informação mostra que existe um problema mais sério por trás.

O caso do Governo federal é mais grave porque ele poderia ser uma liderança nessa questão de padronizar os dados e disponibilizá-los facilmente, mas o que acontece no Brasil é justamente o oposto. Muitas vezes, o Governo retira dados da plataforma, demora a fornecer informações muito básicas, de forma que estamos muito aquém dos padrões internacionais. E somos um país que já possui um sistema de saúde pública, que tem muita infraestrutura que poderia ter sido alavancada e utilizada na questão da informação.

P. E em quais países essa informação foi disponibilizada de forma melhor?

R. Um lugar em que isso funcionou melhor foi na Argentina. Lá tanto o Governo federal quanto os locais foram muito transparentes desde o início para divulgar os dados da pandemia. Há informações muito específicas, por bairro, por tipo de surto, mapeando grupos vulneráveis. E o que é muito importante é que esses dados estão disponíveis em um arquivo CSV [formato que possibilita a leitura por diversos programas, como o Microsoft Excel], não é uma página na Internet em que você leva uma hora para baixar os dados de que você precisa ou em que se você clica de um gente dá certo, se você clica de outro vai para outro lugar. A Argentina permite que você baixe os dados e já comece a analisá-los. No Brasil, nós temos que passar mais tempo não analisando os dados, mas tentando coletá-los.

Isso tem começado a melhorar em algumas localidades —o Espírito Santo e o Ceará são bons exemplos de transparência dos dados de testagem desde o início do enfrentamento da pandemia. Mas não em São Paulo, que foi o epicentro, o Estado mais rico do país, onde isso poderia ter funcionado melhor logo no início e ainda permanecem grandes lacunas em várias questões.

P. No plano nacional, tivemos ao menos dois grandes apagões de dados sobre a covid-19, um em junho, com uma mudança na plataforma do Ministério da Saúde, e outro em novembro, com a instabilidade do sistema que impediu alguns Estados de atualizarem as suas estatísticas. Quais foram as consequências desses problemas?

R. Hoje tudo o que sabemos da pandemia depende dos dados de notificação de casos e óbitos. Dez meses após o início da pandemia, quando a gente fala que o Brasil registrou 1.000 óbitos em um dia, ainda estamos falando de mortes que foram notificadas agora mas que podem ter ocorrido em qualquer momento ao longo desses meses, enquanto que em outros países conseguimos acompanhar as mortes pela data em que ocorreram. Isso é um problema básico. Com isso, quando temos alguma pane como essa dos Estados e não é possível alimentar algum dado, depois vamos ver um pico [nas estatísticas]. A confusão nos números da pandemia é tão grande que esse dado não tem uma utilidade real para o gestor. Como os Governos podem justificar suas medidas de flexibilização usando esse tipo de dado?

E esse problema leva para outra questão, que são os dados sobre leitos. Um dos principais critérios que os Governos usam em seus planos de reabertura é a taxa de ocupação de leitos de UTI [para pacientes com covid-19]. Porque como não há dados confiáveis sobre testagem e sobre casos e óbitos, dependemos de relatórios hospitalares para saber como está a situação. Mas aí já é tarde. Ter uma UTI lotada significa que houve uma transmissão descontrolada nesse local semanas ou meses antes e que não agimos no momento em que precisávamos ter agido para poupar vidas.

P. No início da pandemia, a senhora chegou a elogiar a iniciativa de Governos locais de, à frente do Governo federal, implantar suas próprias medidas de distanciamento. Qual é a análise que faz dessas medidas agora e dos processos de reabertura?

R. Um dos nossos principais estudos hoje é o mapeamento dos planos de flexibilização de cada Estado. No início falamos: “Os Governos reagiram”. Essa corrida foi de fato importante, mas não quer dizer que não teria sido melhor com um esforço nacional mais coordenado. Por exemplo: se logo no início da pandemia tivéssemos determinado que pessoas que chegassem do exterior em todo o país fizessem quarentena por 14 dias, isso teria sido muito mais inteligente do que fechar todas as escolas no Maranhão. Então os Estados deram uma resposta fragmentada e não necessariamente coerente com a situação na pandemia naquele lugar.

Uma outra questão que chama muito a atenção nos planos de flexibilização é a divisão do Estado em regiões. Da mesma forma que falamos que o vírus não respeita fronteiras, ele também não vê que determinada região de São Paulo é vermelha e outra é laranja. Essa classificação cria uma confusão muito grande. Tem Estado com 12 fases de flexibilização, outros têm três… Passa a impressão de que a pandemia é algo muito gradual, que você pode ir fechando e abrindo [as atividades] aos pouquinhos, e não comunica corretamente qual é o nível de risco. O que a população precisa saber é: a situação é grave ou não? Qual é a conduta adequada? Mas em vez de discutir qual deveria ser a conduta mínima de segurança para os moradores de todo o Estado, ficamos discutindo que em tal lugar pode abrir até as 18h e em outro pode abrir até as 22h… Isso significou muita confusão e prejudicou a adesão às medidas.

Especialistas defendem que uma resposta radical e severa por duas semanas você conseguiria um controle muito mais eficiente do que fazer uma quarentena prolongada, mal fiscalizada e que não prática não está limitando nada.

P. Como avalia o Plano São Paulo, de restrições no Estado?

R. Em São Paulo, além da questão da divisão do Estado, os pesos dos indicadores [usados para nortear a reabertura] foram mudando ao longo da pandemia [em julho, por exemplo, o Governo flexibilizou de 60% para 75% o limite de leitos de UTIs ocupados com pacientes de covid-19 necessário para uma região passar da fase amarela para a verde, mais branda]. As estratégias foram mudando para ceder a pressões políticas. Vimos isso em dezembro: o governador [João Doria, PSDB] tentou proibir a venda de bebidas alcoólicas depois das 20h. A associação de bares e restaurantes contestou e venceu na Justiça. Por que isso aconteceu? Porque os Governos estão em uma saia-justa: têm que decidir entre serem muito rígidos, fechando tudo, ou deixarem tudo aberto e perderem o controle. O meio-termo não existe, porque eles precisam negociar com cada setor. E também não há fiscalização.

P. Ao longo desses 10 meses, passamos pela negação da gravidade da pandemia pelo Governo Bolsonaro, por duas trocas de ministros, pelo apagão de dados do Ministério da Saúde e agora por um impasse na elaboração do plano de vacinação. A senhora ainda se surpreende com a gestão brasileira da pandemia? Qual é o saldo?

R. Já temos amplas evidências para falar que é uma conduta irresponsável e criminosa, porque custa vidas. Mas minha leitura de cientista política é que essa é uma estratégia pensada de não se responsabilizar pela pandemia. Parte do diagnóstico de quem sabe que vai perder se decidir responder e enfrentar a pandemia. Coordenar um enfrentamento traria mais responsabilidade e julgamento sobre as ações do Governo Federal. Então a única chance que Bolsonaro tem de ser competitivo em 2022 é se distanciando do problema e colocando a culpa da crise nos governadores e prefeitos. Por isso ele não conseguiu realmente apoiar prefeitos nessas eleições. Ele não poderia se alinhar.

P. No México, a gestão de López Obrador também tem sido criticada e marcada pelo negacionismo. Como compará-la ao Governo Bolsonaro?

R. São dois casos importantes para discutir o machismo de presidentes na pandemia. Tanto Bolsonaro quanto Obrador fazem questão de mostrar que são machos de verdade, e por isso colocam em risco a vida da população e a deles, se expondo sem máscara, para dizerem que não têm medo do vírus. Confundem a capacidade de enfrentamento da pandemia com uma questão de fragilidade ou fortaleza física, com sua masculinidade. Quando você vê o discurso de mulheres, como a Merkel na Alemanha ou a primeira-ministra da Nova Zelândia [Jacinda Ardern], elas não fazem questão de trazer a pandemia para um nível tão pessoal. Alguns presidentes buscam manter essa imagem de homem forte: Brasil, México, Venezuela [com Nicolás Maduro]. Mas essa postura não foi adotada no Uruguai [governado por Luis Lacalle Pou. Então não é uma questão de como partidos de direita ou Governos populistas reagem, é mais uma questão de característica pessoal.

P. O que esperar da pandemia no Brasil em 2021?

R. Sendo realista, acredito que 2021 vai ter uma cena muito parecida com a que o país enfrentou em 2020, só que com a economia muito mais frágil, uma sociedade muito polarizada e com essas lacunas de infraestrutura no combate da pandemia que a gente não arrumou. Vamos ter uma situação muito complicada, porque a população está imaginando que vai chegar logo uma vacina, mas vacinar o Brasil inteiro vai ser um processo complexo, e a gente ainda vai precisar fazer muito distanciamento físico, ainda vai precisar fazer muita testagem. Estamos entrando em um momento grave, e o que me preocupa é: ou os Governos adotam medidas mais severas, entendendo que precisam atuar agora, ou estaremos no caminho de virar os Estados Unidos ou pior.

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