Eleições 2022: o papel e as polêmicas dos militares na votação para a Presidência

Nas últimas semanas, um debate que parecia ter sido superado com a redemocratização do Brasil, em 1985, voltou à tona: o papel das Forças Armadas no processo eleitoral brasileiro
Urna eletrônica | Foto: reprodução/BBC news
Urna eletrônica | Foto: reprodução/BBC news

Leandro Prazeres, BBC News Brasil*

O tema voltou a ser discutido, principalmente, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a levantar dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas, criticar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e acusá-lo de recusar sugestões feitas pelo Exército sobre o funcionamento do sistema eleitoral.

Em uma live, Bolsonaro chegou a afirmar que as Forças Armadas não se limitariam a “participar como espectadoras” das eleições deste ano.

Mas afinal: qual é o papel definido, até agora, para as Forças Armadas durante as eleições deste ano? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, apesar das afirmações do presidente, o papel dos militares nas eleições deverá se limitar ao transporte de urnas eletrônicas para locais de difícil acesso, garantir a segurança da votação em municípios onde haja possibilidade de conflitos e participar do processo de fiscalização do processo eleitoral.

Os especialistas, no entanto, são unânimes: não cabe às Forças Armadas o papel de “revisora” das eleições.

Forças Armadas x TSE

A tensão em torno de qual o papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas neste ano começou há pelo menos um ano quando o presidente Bolsonaro e alguns de seus aliados intensificaram suas críticas ao sistema eleitoral. Sem apresentar provas, Bolsonaro levantou dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas.

Alegando supostas falhas no sistema de urnas eletrônicas, Bolsonaro defendeu a implantação de um sistema de contabilização de votos impresso, em que os números digitados por cada eleitor nas urnas sejam impressos e depositados em uma urna de acrílico como forma de garantir segurança em caso de acusações de fraude.

Em julho, o então ministro da Defesa e atualmente cotado para ser vice na chapa de Bolsonaro, general Braga Netto, defendeu o debate sobre o chamado voto impresso e disse que a discussão era “legítima”.

Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) chegou a tramitar no Congresso Nacional, mas ela não obteve os votos necessários e foi derrotada, em agosto de 2021.

Todo esse debate se acentuou ao mesmo tempo em que as principais pesquisas de intenção de voto passaram a mostrar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a frente de Bolsonaro na disputa pela Presidência da República.

Logo após a derrota da PEC do voto impresso, os militares voltaram à cena. Eles foram convidados pelo TSE para fazer parte da Comissão de Transparência das Eleições (CTE), criada em setembro de 2021 pelo então presidente do tribunal, Luiz Roberto Barroso.

A comissão tinha o objetivo de receber sugestões de diversas entidades da sociedade para ampliar a segurança do processo eleitoral. Entre os órgãos convidados estavam a Polícia Federal e as Forças Armadas.

Jair Bolsonaro
Para especialistas, Forças Armadas incorporaram discurso do presidente Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas

E é justamente a participação dos militares nessa comissão que deu ainda mais munição para o debate sobre a atuação das Forças Armadas durante as eleições.

Isso porque os militares enviaram um conjunto de 88 questões ao TSE sobre quais medidas seriam tomadas diante de supostas fragilidades no sistema encontradas por eles.

A lista de perguntas feitas pelos militares é dividida em cinco grandes grupos: dúvidas sobre o teste de integridade das urnas eletrônicas; nível de confiança nos sistemas de votação e apuração dos votos; solicitação de documentos, listas, relatórios e informações sobre as políticas do TSE; funcionamento das urnas; e propostas de aperfeiçoamento da transparência do tribunal.

Em suas respostas, o TSE voltou a defender que o sistema eleitoral do país é seguro e rejeitou a maior parte das propostas feitas pelos militares.

Analistas avaliam que as perguntas feitas pelo Exército desconsideram o histórico de segurança apresentado pelas urnas eletrônicas, em uso desde 1996, e incorporam elementos do discurso de Bolsonaro que coloca em xeque o sistema eleitoral.

A temperatura ficou ainda mais alta depois que o ex-presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Roberto Barroso, disse que as Forças Armadas estariam sendo “orientadas” a atacar o processo eleitoral.

“Desde 1996 não tem nenhum episódio de fraude. Eleições totalmente limpas, seguras. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar. Gentilmente convidadas para participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo”, afirmou Barroso.

Em resposta, o Ministério da Defesa rechaçou a declaração do ministro e a classificou como “irresponsável”.

E em meio a esse cenário, Bolsonaro voltou a levantar dúvidas sobre a segurança das eleições.

Em um evento no dia 27 de abril, ele chegou a dizer que os militares teriam sugerido uma apuração paralela dos votos feita pelas Forças Armadas.

Para isso, segundo ele, bastaria a instalação de um “cabo” para que os dados da votação fossem enviados a um computador dos militares.

“Uma das sugestões é que, [com] esse mesmo duto que alimenta na sala secreta os computadores, seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador também das Forças Armadas para contar os votos no Brasil”, disse.

Na semana seguinte, no dia 27 de abril, o presidente disse, em uma transmissão em suas redes sociais, que os militares não teriam um papel passivo durante as eleições.

“Convidaram as Forças Armadas. Repito, as Forças Armadas não vão fazer papel de chancelar apenas o processo eleitoral, participar como espectadores do mesmo. Não vão fazer isso”, disse.

Dois dias depois, o presidente do TSE, Edson Fachin, disse que não há “poder moderador” para intervir na Justiça Eleitoral.

“Não há poder moderador para intervir na Justiça Eleitoral”, disse Fachin, em uma entrevista.

“Colaboração, cooperação e, portanto, parcerias proativas para aprimoramento, a Justiça Eleitoral está inteiramente à disposição. Intervenção, jamais.”, afirmou o ministro.

Transporte, fiscalização e acesso a sala-cofre

O ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Ayres Britto, que comandou o tribunal entre 2008 e 2010, disse à BBC News Brasil que, desde a redemocratização, o papel exercido pelas Forças Armadas nas eleições têm se resumido a transportar urnas para regiões de difícil acesso e garantir a segurança da votação em municípios ou localidades onde haja possibilidade de conflito.

O ex-ministro ressaltou que isso só acontece quando a Justiça Eleitoral requer a ação dos militares e que, neste ano, esse papel não deverá ser diferente. Ele diz ainda que não cabe aos militares o papel de “revisor” das eleições.

“Desde a volta da democracia, os militares só atuam nas eleições por determinação da Justiça Eleitoral. Em geral, a atuação deles se limita a distribuir urnas e garantir a segurança em alguns locais de votação sempre que solicitado”, afirmou o ex-ministro.

Procurado pela BBC News Brasil, o TSE informou que, desde 2019, as Forças Armadas também estão habilitadas a atuar como fiscalizadoras do processo eleitoral.

Entre as instituições que podem exercer este papel estão os partidos políticos, polícia federal e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Segundo o TSE, as Forças Armadas podem participar de todas as fases do processo de fiscalização das eleições, inclusive da contabilização dos votos.

“Os integrantes da CTE (Comissão de Transparência Eleitoral) poderão participar de todas as etapas do processo eleitoral, inclusive com acesso à sala-cofre”, disse o TSE em nota enviada à BBC News Brasil. Sala-cofre é onde são armazenadas cópias físicas dos programas que serão usados durante as eleições.

Ayres Britto, ex-presidente do TSE
Ex-presidente do TSE, diz que as Forças Armadas nas últimas eleições tem se resumido a transportar urnas

Ayres Britto, faz uma ressalva, porém. Segundo ele, os militares não podem atuar como “mentores” do processo eleitoral.

“As Forças Armadas não são um poder e nem um ministério. Elas não podem atuar como mentores do processo eleitoral, determinando o que pode ou não pode ser feito. Elas atuam apenas como colaboradores”, diz o ex-ministro.

Outro ex-ministro do TSE e advogado especializado em direito eleitoral, Henrique Neves, diz que ainda que as Forças Armadas participem como fiscalizadoras das eleições e integrantes da comissão de transparência, o TSE não é obrigado a acatar as recomendações.

“As Forças Armadas não podem atuar como revisoras das eleições. Os militares podem fiscalizar e fazer parte da comissão de transparência, mas por lei, não há nada que obrigue o tribunal a acatar essas sugestões”, disse o ex-ministro.

Preocupação e alerta

Para a pesquisadora do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e de Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Carolina Botelho, as manifestações dos militares até o momento devem ser vistas como uma tentativa de intervenção no processo eleitoral.

Segundo ela, desde a redemocratização, em 1985, as Forças Armadas vinham atuando dentro de suas atribuições sem fazer interferências na esfera política.

Ela afirma, no entanto, que esse histórico muda em abril de 2018, quando o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas fez uma postagem no Twitter às vésperas do julgamento de uma ação sobre a prisão do ex-presidente Lula que foi interpretada por alguns analistas como uma ameaça aos ministros do STF.

Para a pesquisadora, o teor dos questionamentos sobre o funcionamento do sistema eleitoral feitos pelo Exército deve ser visto como uma “intervenção” dos militares no processo das eleições.

Ela ressalta, porém, que não é possível afirmar o tamanho do apoio que essa corrente tem dentro do meio militar.

“Esses questionamentos devem, sim, ser vistos como uma intervenção indevida dos militares no processo eleitoral. O que não sabemos, no entanto, é qual é a dimensão da parcela de militares envolvidos nessa tentativa de intervir. Há uma opacidade na instituição que nos impede de ver isso na sua totalidade”, afirma Carolina Botelho.

Para o professor de Teoria Política da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), Hesaú Rômulo, o grande número de militares na gestão do presidente Jair Bolsonaro torna mais difícil indicar onde termina o governo e onde começam as Forças Armadas.

Por conta dessa particularidade, ele avalia que o comportamento dos militares às vésperas das eleições deste ano é atípico.

“O simples fato de estarmos tendo esse tipo de debate mais de 30 anos depois da redemocratização mostra que a atuação dos militares nos últimos anos mudou. De certa forma, os militares tomaram pra si a função de revisores do processo eleitoral, ainda que isso não exista na nossa legislação”, afirma o professor.

Na avaliação do ex-ministro Ayres Britto, porém, apesar do clima tenso, a atuação dos militares nas eleições deste ano não ultrapassou as regras institucionais.

“Até agora, as Forças Armadas têm atuado somente no campo da colaboração, inclusive enviando suas sugestões. Não avalio que houve avanço de nenhum sinal. Agora, se o presidente está fazendo uso político disso, isto é um outro problema”, avalia o ex-ministro

*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil

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