presidencialismo

Urna eletrônica | Foto: reprodução/BBC news

Eleições 2022: o papel e as polêmicas dos militares na votação para a Presidência

Leandro Prazeres, BBC News Brasil*

O tema voltou a ser discutido, principalmente, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a levantar dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas, criticar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e acusá-lo de recusar sugestões feitas pelo Exército sobre o funcionamento do sistema eleitoral.

Em uma live, Bolsonaro chegou a afirmar que as Forças Armadas não se limitariam a "participar como espectadoras" das eleições deste ano.

Mas afinal: qual é o papel definido, até agora, para as Forças Armadas durante as eleições deste ano? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, apesar das afirmações do presidente, o papel dos militares nas eleições deverá se limitar ao transporte de urnas eletrônicas para locais de difícil acesso, garantir a segurança da votação em municípios onde haja possibilidade de conflitos e participar do processo de fiscalização do processo eleitoral.

Os especialistas, no entanto, são unânimes: não cabe às Forças Armadas o papel de "revisora" das eleições.

Forças Armadas x TSE

A tensão em torno de qual o papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas neste ano começou há pelo menos um ano quando o presidente Bolsonaro e alguns de seus aliados intensificaram suas críticas ao sistema eleitoral. Sem apresentar provas, Bolsonaro levantou dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas.

Alegando supostas falhas no sistema de urnas eletrônicas, Bolsonaro defendeu a implantação de um sistema de contabilização de votos impresso, em que os números digitados por cada eleitor nas urnas sejam impressos e depositados em uma urna de acrílico como forma de garantir segurança em caso de acusações de fraude.

Em julho, o então ministro da Defesa e atualmente cotado para ser vice na chapa de Bolsonaro, general Braga Netto, defendeu o debate sobre o chamado voto impresso e disse que a discussão era "legítima".

Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) chegou a tramitar no Congresso Nacional, mas ela não obteve os votos necessários e foi derrotada, em agosto de 2021.

Todo esse debate se acentuou ao mesmo tempo em que as principais pesquisas de intenção de voto passaram a mostrar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a frente de Bolsonaro na disputa pela Presidência da República.

Logo após a derrota da PEC do voto impresso, os militares voltaram à cena. Eles foram convidados pelo TSE para fazer parte da Comissão de Transparência das Eleições (CTE), criada em setembro de 2021 pelo então presidente do tribunal, Luiz Roberto Barroso.

A comissão tinha o objetivo de receber sugestões de diversas entidades da sociedade para ampliar a segurança do processo eleitoral. Entre os órgãos convidados estavam a Polícia Federal e as Forças Armadas.

Jair Bolsonaro
Para especialistas, Forças Armadas incorporaram discurso do presidente Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas

E é justamente a participação dos militares nessa comissão que deu ainda mais munição para o debate sobre a atuação das Forças Armadas durante as eleições.

Isso porque os militares enviaram um conjunto de 88 questões ao TSE sobre quais medidas seriam tomadas diante de supostas fragilidades no sistema encontradas por eles.

A lista de perguntas feitas pelos militares é dividida em cinco grandes grupos: dúvidas sobre o teste de integridade das urnas eletrônicas; nível de confiança nos sistemas de votação e apuração dos votos; solicitação de documentos, listas, relatórios e informações sobre as políticas do TSE; funcionamento das urnas; e propostas de aperfeiçoamento da transparência do tribunal.

Em suas respostas, o TSE voltou a defender que o sistema eleitoral do país é seguro e rejeitou a maior parte das propostas feitas pelos militares.

Analistas avaliam que as perguntas feitas pelo Exército desconsideram o histórico de segurança apresentado pelas urnas eletrônicas, em uso desde 1996, e incorporam elementos do discurso de Bolsonaro que coloca em xeque o sistema eleitoral.

A temperatura ficou ainda mais alta depois que o ex-presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Roberto Barroso, disse que as Forças Armadas estariam sendo "orientadas" a atacar o processo eleitoral.

"Desde 1996 não tem nenhum episódio de fraude. Eleições totalmente limpas, seguras. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar. Gentilmente convidadas para participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo", afirmou Barroso.

Em resposta, o Ministério da Defesa rechaçou a declaração do ministro e a classificou como "irresponsável".

E em meio a esse cenário, Bolsonaro voltou a levantar dúvidas sobre a segurança das eleições.

Em um evento no dia 27 de abril, ele chegou a dizer que os militares teriam sugerido uma apuração paralela dos votos feita pelas Forças Armadas.

Para isso, segundo ele, bastaria a instalação de um "cabo" para que os dados da votação fossem enviados a um computador dos militares.

"Uma das sugestões é que, [com] esse mesmo duto que alimenta na sala secreta os computadores, seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador também das Forças Armadas para contar os votos no Brasil", disse.

Na semana seguinte, no dia 27 de abril, o presidente disse, em uma transmissão em suas redes sociais, que os militares não teriam um papel passivo durante as eleições.

"Convidaram as Forças Armadas. Repito, as Forças Armadas não vão fazer papel de chancelar apenas o processo eleitoral, participar como espectadores do mesmo. Não vão fazer isso", disse.

Dois dias depois, o presidente do TSE, Edson Fachin, disse que não há "poder moderador" para intervir na Justiça Eleitoral.

"Não há poder moderador para intervir na Justiça Eleitoral", disse Fachin, em uma entrevista.

"Colaboração, cooperação e, portanto, parcerias proativas para aprimoramento, a Justiça Eleitoral está inteiramente à disposição. Intervenção, jamais.", afirmou o ministro.

Transporte, fiscalização e acesso a sala-cofre

O ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Ayres Britto, que comandou o tribunal entre 2008 e 2010, disse à BBC News Brasil que, desde a redemocratização, o papel exercido pelas Forças Armadas nas eleições têm se resumido a transportar urnas para regiões de difícil acesso e garantir a segurança da votação em municípios ou localidades onde haja possibilidade de conflito.

O ex-ministro ressaltou que isso só acontece quando a Justiça Eleitoral requer a ação dos militares e que, neste ano, esse papel não deverá ser diferente. Ele diz ainda que não cabe aos militares o papel de "revisor" das eleições.

"Desde a volta da democracia, os militares só atuam nas eleições por determinação da Justiça Eleitoral. Em geral, a atuação deles se limita a distribuir urnas e garantir a segurança em alguns locais de votação sempre que solicitado", afirmou o ex-ministro.

Procurado pela BBC News Brasil, o TSE informou que, desde 2019, as Forças Armadas também estão habilitadas a atuar como fiscalizadoras do processo eleitoral.

Entre as instituições que podem exercer este papel estão os partidos políticos, polícia federal e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Segundo o TSE, as Forças Armadas podem participar de todas as fases do processo de fiscalização das eleições, inclusive da contabilização dos votos.

"Os integrantes da CTE (Comissão de Transparência Eleitoral) poderão participar de todas as etapas do processo eleitoral, inclusive com acesso à sala-cofre", disse o TSE em nota enviada à BBC News Brasil. Sala-cofre é onde são armazenadas cópias físicas dos programas que serão usados durante as eleições.

Ayres Britto, ex-presidente do TSE
Ex-presidente do TSE, diz que as Forças Armadas nas últimas eleições tem se resumido a transportar urnas

Ayres Britto, faz uma ressalva, porém. Segundo ele, os militares não podem atuar como "mentores" do processo eleitoral.

"As Forças Armadas não são um poder e nem um ministério. Elas não podem atuar como mentores do processo eleitoral, determinando o que pode ou não pode ser feito. Elas atuam apenas como colaboradores", diz o ex-ministro.

Outro ex-ministro do TSE e advogado especializado em direito eleitoral, Henrique Neves, diz que ainda que as Forças Armadas participem como fiscalizadoras das eleições e integrantes da comissão de transparência, o TSE não é obrigado a acatar as recomendações.

"As Forças Armadas não podem atuar como revisoras das eleições. Os militares podem fiscalizar e fazer parte da comissão de transparência, mas por lei, não há nada que obrigue o tribunal a acatar essas sugestões", disse o ex-ministro.

Preocupação e alerta

Para a pesquisadora do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e de Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Carolina Botelho, as manifestações dos militares até o momento devem ser vistas como uma tentativa de intervenção no processo eleitoral.

Segundo ela, desde a redemocratização, em 1985, as Forças Armadas vinham atuando dentro de suas atribuições sem fazer interferências na esfera política.

Ela afirma, no entanto, que esse histórico muda em abril de 2018, quando o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas fez uma postagem no Twitter às vésperas do julgamento de uma ação sobre a prisão do ex-presidente Lula que foi interpretada por alguns analistas como uma ameaça aos ministros do STF.

Para a pesquisadora, o teor dos questionamentos sobre o funcionamento do sistema eleitoral feitos pelo Exército deve ser visto como uma "intervenção" dos militares no processo das eleições.

Ela ressalta, porém, que não é possível afirmar o tamanho do apoio que essa corrente tem dentro do meio militar.

"Esses questionamentos devem, sim, ser vistos como uma intervenção indevida dos militares no processo eleitoral. O que não sabemos, no entanto, é qual é a dimensão da parcela de militares envolvidos nessa tentativa de intervir. Há uma opacidade na instituição que nos impede de ver isso na sua totalidade", afirma Carolina Botelho.

Para o professor de Teoria Política da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), Hesaú Rômulo, o grande número de militares na gestão do presidente Jair Bolsonaro torna mais difícil indicar onde termina o governo e onde começam as Forças Armadas.

Por conta dessa particularidade, ele avalia que o comportamento dos militares às vésperas das eleições deste ano é atípico.

"O simples fato de estarmos tendo esse tipo de debate mais de 30 anos depois da redemocratização mostra que a atuação dos militares nos últimos anos mudou. De certa forma, os militares tomaram pra si a função de revisores do processo eleitoral, ainda que isso não exista na nossa legislação", afirma o professor.

Na avaliação do ex-ministro Ayres Britto, porém, apesar do clima tenso, a atuação dos militares nas eleições deste ano não ultrapassou as regras institucionais.

"Até agora, as Forças Armadas têm atuado somente no campo da colaboração, inclusive enviando suas sugestões. Não avalio que houve avanço de nenhum sinal. Agora, se o presidente está fazendo uso político disso, isto é um outro problema", avalia o ex-ministro

*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil


Hamilton Garcia: O esgotamento da democracia de clientela e os perigos que se avizinham

Falar no esgotamento da democracia de clientela após duas vitórias sucessivas do Centrão, nas eleições municipais de 2020 e nas mesas do Congresso Nacional, pode parecer totalmente despropositado, mas não é. Já há praticamente um consenso, entre muitos analistas políticos, de que a Nova República se esgotou, ela, que não obstante os sinais vindos da luta democrática dos anos 1970-1980, se desenrolou, a partir dos anos 1990, como um movimento transformista que, sob o impulso da luta pelo governo representativo (presidencialismo de coalizão), instaurou, de fato, um regime semi-representativo (presidencialismo de cooptação).

Mas é preciso discutir mais detidamente de qual esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por sistema eleitoral majoritário.

Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo, semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros, impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor hegemônico do bloco histórico em crise.

Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo para não falar do ótimo.

O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas mudanças políticas.

Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi "salvo" pela pandemia, que se transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal “segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.

Não se pode descartar que o liberalismo radical de Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a "nova" coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão, inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via prussiana em nosso longo processo de modernização.

O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar, tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores. Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país, a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da pandemia, como a indústria farmacêutica.

Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária, ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas "vítimas" de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível sobre mata ressecada.

A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe", que, no caso do bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico "exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.

Diante disso e da incrível capacidade interpelatória das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS  – sob o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.

Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de 2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto, naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.

Um conflito desta envergadura não só é possível, como pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de seu "novo" governo. Outra variável importante a considerar, é como a radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou José Murilo de Carvalho[i], as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e incerto.

Fator decisivo para tal evolução da situação é como as massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência, a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO). 

Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada da nacionalidade, em cuja sombra poderiam "se organizar as demais forças da nacionalidade"[ii].

À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia (clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.

De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em meio aos perigos que se avizinham.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])


[i] Forças Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.

[ii] Apud Carvalho, p. 120.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


José Serra: A miséria do presidencialismo

O regime presidencial, o voto proporcional e a relação entre Poderes favorecem aventureiros

O destino dos EUA, a República mais antiga, mais estável, mais rica e mais poderosa dos tempos modernos, está em alto risco e, apesar de seus sintomas de decadência terem surgido na década de 1960, ninguém é capaz, hoje, de prever seu futuro. O destino de uma das maiores democracias do mundo, que alterna períodos de relativa estabilidade com outros de autoritarismo, períodos de alto crescimento econômico com outros de retrocesso, é incerto até mesmo quanto ao ano que começa. Refiro-me ao Brasil, onde não se pode hoje prever em que direção irá o atual retrocesso econômico e sanitário, nem se, e como, enfrentaremos os desafios do aumento do desemprego e da pobreza.

Os dois países não estão isolados nessa condição de enfrentar desafios que parecem maiores do que os recursos de que dispõem para superá-los, entre os quais as ameaças à liberdade e à igualdade. Diferentemente das décadas de 1970 e 1980, em que a chamada onda democrática liberou do autoritarismo dezenas de países, as ameaças à democracia voltaram a se espalhar por todo o mundo – incluídas as Américas do Sul, Central e, agora, a América do Norte.

O fenômeno tem sido tratado como neopopulismo, ou neonacionalismo, e frequentemente associado ao surgimento de lideranças com perfil centralizador e autoritário, que defendem um regime em que o poder seja exercido contra os inimigos da nação em relação direta entre o líder e “o povo”. Alguns autores consideram que o requisito essencial para a definição do líder populista é que o principal obstáculo à sua conjunção carnal com o povo são as instituições, quaisquer que sejam. Daí a sua necessidade de esvaziar, contornar, enfraquecer ou demolir as instituições vigentes.

Nos últimos anos se multiplicaram, na literatura acadêmica, nos think tanks e na mídia, estudos e opiniões centrados na explicação do perfil dos líderes neopopulistas. Poucos são os que levam em conta que o perfil populista é um estilo de liderança muito frequente em todos os países e em todos os níveis de governo, e a questão fundamental é saber como se tornou possível que um aventureiro, muitas vezes desconhecido ou sem experiência executiva, alcance o mais alto poder em uma nação.

Dessa perspectiva, que considero a mais adequada para entender as incertezas hoje enfrentadas pelo Brasil e pelos EUA, trata-se de compreender as condições políticas que tornaram possível uma sociedade moderna e complexa entregar livremente o poder a um líder populista. Os muitos anos de vida pública que dediquei a estudar o sistema político brasileiro me permitem apontar o regime presidencialista, o sistema de voto proporcional e a relação entre os Poderes constituídos como o conjunto de fatores que tornam a Nação vulnerável ao aventureirismo em sua principal encarnação, o populismo.

O presidencialismo é um regime de governo que, por definição, produz uma divisão entre Poderes distintos de igual legitimidade, mas não garante que as maiorias que elegem esses Poderes sejam idênticas, ou sequer compatíveis. A convivência produtiva entre o presidente e o Parlamento depende sempre de um conjunto complexo de fatores, sobre os quais o presidente tem pouco ou nenhum controle – as relações entre partidos, as agendas dos parlamentares, as insatisfações, as necessidades e os ideais do eleitorado. Com isso a probabilidade de cumprir suas promessas, ou mesmo de simplesmente controlar a gestão pública, tende a ser baixa, abrindo as portas para candidatos que prometem tudo a custo de nada. Os quais, se eleitos, farão o mesmo percurso, agregando mais insatisfação ao ânimo popular, e reiniciando percurso semelhante.

Daí decorre uma tendência que vem sendo observada em toda parte: a corrosão da legitimidade das democracias representativas, uma vez que o representante é visto como um usurpador, que não ouve, não cumpre seus compromissos com os representados e nem sequer os respeita.

No regime parlamentar, que defendo, o presidente representa o Estado, mas quem exerce o governo é, por definição, o líder de um partido majoritário ou capaz de formar uma coalizão majoritária. O mandato do governo depende da maioria parlamentar, e ambos dependem de cooperar para cumprir as expectativas do eleitorado.

O sistema de voto proporcional no Brasil exacerba a perda de legitimidade da democracia representativa e os obstáculos à capacidade presidencial de governar. Exercido com lista aberta em megadistritos, ele produz, por construção, uma relação opaca entre representante e representado, o que reforça os sentimentos de frustração e impotência do eleitor, sentimentos também encontrados nos EUA.

Desde o fim do mandato de Bill Clinton, em 2000, apenas Barack Obama foi vitorioso nas urnas, graças a um colégio eleitoral concebido para limitar o voto popular direto. O sentimento de frustração e impotência do eleitor serviu de catalisador do ódio mobilizado por um aventureiro para demolir as instituições e perpetuar-se no poder. Não conseguiu, mas seu legado de desmoralização da legalidade vigente e da convivência pacífica entre cidadãos terá consequências imprevisíveis.

*Senador (PSDB-SP)


Raul Jungmann: O colapso do presidencialismo de coalizão e de colisão

Desde a retomada das eleições diretas pelo poder civil em 1985 que todos os presidentes eleitos optaram por construir uma ampla coalisão multipartidária no Congresso Nacional para governar. Os motivos eram, e continuam sendo, a fragmentação partidária, a necessidade de reformas constitucionais exigirem quorum qualificado de três quintos e o fato de o partido do Presidente jamais exceder a 20% dos deputados.

A esse método ou sistemática de governar deu-se o nome de “presidencialismo de coalizão”. Isto porque, sinteticamente, em troca dos votos necessários para fazer passar seu programa de governo, o chefe do Executivo deve abrir espaços na administração pública não só para representantes dos partidos que compõem a sua base, mas também ampliar apoios.

Esse modo de governar foi duramente atingido por uma série de escândalos, cujo ápice se deu na operação Lava Jato. Porém, dada a estrutura e dinâmica da política brasileira, permanece impossível governar sem lançar mão dele, à falta de uma ampla reforma política.

O Presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir mão do sistema, dispensando a alternativa habitual de uma ampla coalisão multipartidária para governar. Eleito num momento de ampla rejeição da política, dos políticos e dos partidos, entendeu que não deveria alinhar-se com a “velha política” e seus métodos, incluído o “presidencialismo de coalizão”.

Ainda assim, há que governar e entregar o que prometeu, o seu programa de governo, o que só é possível com votos suficientes no parlamento. Como fazê-lo? Emerge então o “presidencialismo de colisão”, cujos alicerces básicos são os seguintes:

(I) proclamar ter o apoio da espada (militares) e do povo (seus seguidores) para constranger o Congresso e o Judiciário;

(II) manter em constante stress os adversários, reais ou imaginários, considerados “inimigos”;

(III) mobilizar continuamente os seus seguidores/apoiadores para pressionar as instituições e adversários;

(IV) e organizar e empregar uma estrutura digital, via redes sociais, para fins de mobilização e ataque a oposição, instituições, mídia e adversários, inclusive com ameaças, como alternativa ao apoio do Congresso, em uma espécie de democracia direta

Esse “presidencialismo de colisão” dá sinais que entrou em colapso, e estão à vista os determinantes do seu esgotamento em tempo mais curto do aquele que o precedeu.

As Forças Armadas se mantêm refratárias a qualquer uso político que se queira fazer delas, sendo impossível acreditar que apoiariam o Presidente em uma aventura autoritária, pois seu compromisso democrático tem se mantido impecável. O emprego das mídias digitais para manter mobilizados seus seguidores, ameaçar adversários, Congresso e Supremo Tribunal Federal foi desarticulado pelos inquéritos em curso na Corte e no Parlamento sobre as chamadas fake-news, e que alcançaram toda a estrutura de financiadores, propagadores e seus robôs, e o “gabinete do ódio”.

Mais além, o “presidencialismo de colisão” teve sua exaustão acelerada pela eclosão da pandemia, dado que os seguidos ataques aos governadores, prefeitos e academia geraram conflitos em série e quase nenhuma coordenação, com as consequências que aí estão em termos de mortes, carências de pessoal e equipamentos.

A exaustão também se verificou na economia, onde o projeto liberal do ministro Paulo Guedes foi paralisado pela crise do coronavírus, com o consequente adiamento da agenda das reformas e a reversão, ainda que provisória, da política de redução do Estado.

Por fim, os inquéritos e investigações em curso que alcançam o Presidente da República e família, tiveram o condão de enfraquecer seu apoio na sociedade, levando a necessidade irônica de organizar uma base parlamentar nos moldes do “presidencialismo de coalizão” – justo ele que o negara – para fins preventivos e defensivos, no caso de um processo de impeachment.

Viu-se assim o presidente da República virar o promotor da volta triunfal da “velha política”, num retorno pela porta dos fundos do loteamento em larga escala, sem seletividade curricular, de cargos na administração para parlamentares visando formar justamente uma ampla coalizão multi-partidária.

Essa guinada apresenta riscos, dentre os quais a perda de parte dos seus fies seguidores de raiz, e a sua nova e improvisada base, alicerçada no Centrão, pouco resistente às pressões decorrentes de uma queda de popularidade.

O colapso do “presidencialismo de colisão”, aponta para o resgate de uma política cujo contorno é menos conflitivo e mais negocial. Mas inexistem evidências de que veio para ficar ou mesmo que mantenha alguma consistência. Até porque, parte dos conflitos provocados pelo Presidente e os processos em curso que o ameaçam estão longe de um desfecho e, pelo potencial corrosivo que detêm, provocarão novas e sucessivas crises.

Estamos, portanto, no fim de um ciclo político caracterizado por um sistema presidencialista que nas suas diversas faces, esgotou-se. Em retrospecto, olhando para os últimos 30 anos, dois impeachments e crises recorrentes, talvez seja o caso de iniciar a discussão e o amadurecimento de uma alternativa real ao que aí está, como o parlamentarismo ou, mais adequado à nossa história e geografia política, o semipresidencialismo.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Rogério Furquim Werneck: Presidencialismo de confrontação?

Sobram razões para desaconselhar a ‘solução’ de deixar articulação com o Congresso a cargo de Paulo Guedes

Mal sabendo da crise que estava prestes a eclodir em Brasília, dei a meu último artigo, publicado há duas semanas, o título “Presidencialismo de improvisação”. Tivesse o artigo sido escrito na semana passada, em meio à ruidosa e desajuizada escalada de hostilidades entre o Planalto e o Congresso, o título talvez pudesse ter sido “Presidencialismo de confrontação”.

É bem possível que a forma desastrada com que o governo deu início às negociações com o Congresso já tenha condenado a reforma previdenciária a ser bem mais acanhada do que poderia ter sido. O certo é que o clima excepcionalmente favorável, de harmonia e colaboração, que se estabelecera entre o governo e os presidentes da Câmara e do Senado, foi perdido. E não será fácil restaurá-lo.

O estremecimento nas relações do Planalto com o Congresso deu novo alento às resistências à reforma. Os que a ela se opõem mostram-se agora bem mais aguerridos. E até dispostos a tentar barrar partes importantes da proposta do governo já na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), antes mesmo da sua tramitação na Comissão Especial e no plenário da Câmara.

Por sorte, a crise da última semana de março parece ter sido contornada, pelo menos por ora, com a celebração de um armistício pautado por gestos de reconciliação de lado a lado. E, nos segmentos mais lúcidos e ponderados do governo, ganhou força a percepção de que, além da incontrolável propensão ao destempero de Jair Bolsonaro, há algo de profundamente errado na forma com que o Executivo vem conduzindo sua relação com o Congresso.

Em audiência no Senado, na semana passada, o ministro da Economia reconheceu que estava havendo uma “falha dramática” do lado do governo. E, no próprio Planalto, os ministros militares começam a reconhecer que a articulação do Palácio com o Congresso não está funcionando e que a Casa Civil não está cumprindo seu papel. O ministro Santos Cruz, que responde pela Secretaria do Governo, não poderia ter sido mais franco: “O Onyx, como gaúcho da fronteira, não tem perfil conciliador” (“Valor”, 29/3).

Reconhecer com todas as letras que a articulação do Planalto com o Congresso não está funcionando foi um grande avanço. O problema é que, em face desse diagnóstico essencialmente correto, o governo está contemplando uma solução improvisada e altamente problemática para corrigir a deficiência: deixar a articulação com o Congresso a cargo do ministro Paulo Guedes.

Sobram razões para desaconselhar essa suposta “solução”. É bom lembrar que o ministro da Economia tem hoje sob sua alçada vasto leque de atribuições que, até dezembro, justificavam a existência de nada menos que quatro ministérios de porte: Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento, Indústria e Comércio e Trabalho.

Conciliar tais atribuições com a concepção e a tramitação de uma proposta tão complexa como a da reforma da Previdência já tem sido um desafio mais do que extenuante. Especialmente agora, quando perspectivas menos promissoras para a economia brasileira nos próximos meses passaram a exigir do ministro dedicação ainda mais intensa à condução da política econômica.

É completamente despropositado esperar que, além de dar conta de tudo isso, o ministro possa se desincumbir a contento das intrincadas articulações políticas requeridas para, ao longo de muitos meses, levar adiante a aprovação da reforma previdenciária, num Congresso fragmentado em pelo menos duas dezenas de partidos em que os líderes têm pouca ou nenhuma ascendência sobre suas bancadas.

Não bastassem todas essas dificuldades, há ainda que ter em conta argumentos adicionais, de ordem política, que apontam para a imprudência de se deixar o ministro da Economia exposto na linha de frente das negociações com o Congresso.

Tendo feito o diagnóstico correto, o governo precisa entender que sua articulação com o Congresso não pode ser entregue ao ministro da Economia. Trata-se de função indelegável da Presidência da República que, até o momento, verdade seja dita, não conta com quem possa desempenhá-la com sucesso.


Marco Aurélio Nogueira: A reforma que não cabe em si

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo

Enquanto candidatos e postulantes a candidato cruzam o País em busca de cacife e visibilidade, no dia a dia da política o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco.

É a reforma política, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores políticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antídoto contra os males que afligiriam partidos, parlamentares e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximarem as eleições, ele dispara. Alega-se que é para “salvar a política” e “resgatar o sistema”, mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessados.

Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacionistas para “melhorar a política”. O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.

Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificadas para que respondam melhor às exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos postular que o modo como se faz política precisa ser alterado.

Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentando-se reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influenciados pelas instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.

Sistemas concebidos para permitir a equilibrada representação das distintas propostas políticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que necessariamente todas as propostas se façam representar, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove uma inflexão localista e desestimula a discussão política geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológicos e convidem os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldades para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio político ou administrativo.

O sistema político brasileiro não parece funcionar bem. A “classe política” não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituídos como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunista de legendas inconsistentes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.

O problema a resolver nesta fase crítica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade de parlamentarismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas nem eliminará a mixórdia programática e a pobreza de ideias.

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difícil imaginar como é que o País encontrará eixo.

Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aí dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrático que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado.

Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema político derrapa, mas porque os cidadãos democráticos não conseguem se articular entre si. Os liberais democráticos não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperantes e a esquerda “pura”, radicalizada, é prisioneira de seus fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade conquistada ao longo da democratização do País.

Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma “classe política” mais qualificada em termos intelectuais e ético-políticos.

Avanços políticos substantivos estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, às interações entre governantes e governados. Em que medida o sistema político pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.


Mauricio Huertas: A transição pós-PT, o presidencialismo de cooptação e as penas que voam no ninho tucano

Não chega a espantar toda a polêmica e o stress causado pela mais recente propaganda partidária do PSDB, mencionando genericamente os erros que a legenda teria cometido (sem, contudo, listá-los) e criticando o “presidencialismo de cooptação” – que, segundo o programa tucano, neste momento em que é preciso pensar no país, deveria ser substituído pelo parlamentarismo.

Quem acompanha o dia-a-dia da política sabe da divisão partidária existente entre os defensores e partícipes do governo do presidente Michel Temer contra aqueles que cobram o desembarque e a coerência de continuar se opondo aos desmandos e esquemas ilícitos que apenas mudaram de mãos com a troca de mandatário no mesmíssimo consórcio do poder instalado em Brasília.

A crise interna do PSDB é, em maior ou menor grau, reprodução da crise da política e da democracia brasileira, com seus reflexos nos partidos, nas instituições e em toda a sociedade organizada. A realidade opõe quem defende fazer a transição pós-PT dentro deste governo, fechando os olhos e tapando o nariz para a má companhia ocasional, como se os fins justificassem os meios, àqueles que consideram absurdo e inaceitável servir de base de sustentação para os cúmplices de Lula e Dilma por 13 anos, igualmente implicados nas investigações da força-tarefa do Ministério Público, da Polícia Federal, do Judiciário e da Procuradoria-Geral da República.

Uma coisa é certa: do lado de cá, consideramos o petismo águas passadas e queremos avançar. A divergência é sobre como (e com quem) proceder essa transição. Do lado de lá, prossegue a retórica do golpe e o discurso do vitimismo, na tentativa desesperada de sobrevivência após a avalanche de denúncias, delações e condenações. No meio há um fosso enorme aberto pela Operação Lava Jato, que deve servir exatamente para separar os dois lados: e quem, pelos mais inconfessáveis interesses, quiser dar as mãos ao lado oposto para se salvar mutuamente, que afunde solidário, mas não nos puxe junto.

Isso posto, registrado o nosso apoio incondicional à Lava Jato e à punição exemplar de todos os envolvidos em irregularidades, estejam eles no PT, no PMDB, no PSDB ou na “pqp”, voltemos à polêmica da propaganda tucana. Primeiro, uma constatação sobre o formato: o programa feito todo (e apenas) por atores reforça a aversão à política. Passa um atestado da falência da nossa democracia representativa e da miséria dos partidos. Isso é bom? É desejável?

O PSDB afirma e reafirma: Errou! – e a mensagem repetida é a que fica, afinal. “Está na hora de pensar no país”, o programa também repete. Então quer dizer que até agora não pensava? (Hmmmm) Houve ruído para fora e para dentro. Voou pena para todo lado. A peça produzida pelo publicitário Einhart Jacome da Paz – conhecido no meio político como cunhado e marqueteiro de Ciro Gomes nas suas incursões como candidato a presidente em 1998 e 2002, antes disso de FHC em 1994 e 1998, e depois de Lula no 2º turno de 2002 – parece tão confusa e errante quanto o seu currículo profissional.

Diante disso tudo, a defesa do parlamentarismo soa frágil, como tábua de salvação dos políticos tucanos que foram escondidos no seu próprio programa. Há um vácuo entre a intenção da mensagem emitida e a percepção real do eleitor. Como comunicação isso é ruim. Muito ruim. Parece que o estrago que o PT fez à esquerda, o PSDB pode estar fazendo ao parlamentarismo. Tudo porque o discurso não combina com a ação. Não passa credibilidade.

O termo “presidencialismo de cooptação”, que usamos há tempos em outros artigos por aqui e agora tanto desagrada os “players” do governo, incomoda exatamente porque coloca o dedo na ferida. Os cifrões nos olhos dos bonequinhos que representam os deputados na ilustração animada do PSDB indicam uma realidade que os mais pragmáticos preferiam omitir. O sistema político-partidário está falido, nossos partidos agonizam e as velhas lideranças batem cabeça. O passado resiste a partir e o futuro demora a chegar. Então, como agir neste momento? As mudanças se impõe. Mãos à obra.

 


Gaudêncio Torquato: A saída para a crise

A crise que assola a democracia representativa, relembrando as lições de Rogér-Gerard Schwatzenberg, tem como fundamentos, entre outros, o declínio da força dos Parlamentos, a desideologização, o amortecimento dos partidos, o desânimo das massas eleitorais ante o desempenho dos representantes e a escassa capacidade da política para promover avanços nas estruturas do Estado.

Os efeitos da crise se fazem mais fortes em democracias ainda incipientes, onde as instituições não alcançam altos níveis de solidez e, por conseguinte, padecem de frequentes tensões. Nesses espaços, a corrupção acaba ganhando volume.

É o caso do Brasil, que, desde a instalação da República, em 1889, alternou ciclos democráticos com ciclos autoritários. Nossa primeira Constituição, em 1891, abrigou preceitos preservadores de direitos individuais e garantias democráticas, perdurando até 1930, quando o país passou a conviver com desajustes que levaram à centralização autoritária da Constituição de 1937.

O mando autoritário segue até 1945, após a ditadura getulista, reinstalando-se, com a Constituição de 46, os horizontes democráticos que vão até 1964.

O golpe militar fecha novamente os portões democráticos, que começam a ser reabertos a partir de 1982 com a eleição de governadores pela via direta.

Em 1986, o país abre as comportas da redemocratização, com eixos fixados na CF de 88.

Sistema híbrido

Em todo esse tempo, o Brasil conviveu com os elementos tradicionais que ancoraram o regime republicano: o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo, o voto uninominal e dois tipos de sistema eleitoral (proporcional e majoritário), que acabam conferindo caráter híbrido à nossa democracia.

A presença do Estado sempre tem sido muito forte na vida dos cidadãos, a ponto de convivermos com uma “cidadania regulada”, forma que o historiador José Murilo de Carvalho designa de “estadania”, cujas origens apontam para a inversão da pirâmide dos direitos.

Ao contrário, por exemplo, da Inglaterra que, de acordo com Tomas Marshall, implantou, no século XVIII, primeiramente os direitos civis, e somente um século depois, os direitos políticos, fechando a pirâmide, bem mais tarde, com os direitos sociais. Por aqui, invertemos a tríade: implantamos os direitos sociais antes da expansão dos direitos civis.

Dessa forma, os direitos sociais apareceram não como conquista dos trabalhadores, mas como “doação”, um favor, um presente do ditador Getúlio Vargas, fato que acabou tornando as massas “refém” do Estado e da figura do presidente.

Na Inglaterra, tais direitos foram conquistados.

Não por acaso, o presidencialismo exerce entre nós forte atração, sendo o regime de governo mais simpático aos habitantes.

O país caminhou na direção contrária às Nações desenvolvidas, que reduziram o tamanho de seus Estados, conformando-os ao grau de cidadania de seu povo. Portanto, as mazelas geradas pelo patrimonialismo aqui são alimentadas pelas “tetas do Estado”, fato que impede rápidos avanços e dificulta a instalação de reformas fundamentais ao desenvolvimento.

Esse pano de fundo de nossa cultura política explica o agravamento da crise que consome as energias do país e dá vazão à tese: se a democracia representativa atravessa momentos turbulentos em outras regiões do mundo, por aqui vive seu ápice.

Não há mais como sustentar os pilares tradicionais de nossa República. Por isso, avoca-se a necessidade de discutir outras ferramentas que compõem as vias democráticas, a começar pelo sistema de governo.

Nosso presidencialismo já deu o que tinha de dar. Chegou a hora de abrimos um portão no condomínio do presidencialismo.

A via parlamentarista é uma boa saída para a crise. Já está amadurecida a ideia de conferir maior poder aos representantes do povo, atribuindo ao Parlamento o exercício de tarefas hoje atribuídas ao Executivo. Essa alternativa pode equacionar os impasses hoje vividos.

Reforma política

Há, porém, uma barreira para a mudança de regime: a baixa qualidade de nossa representação.

Não dispomos de um corpo parlamentar ajustado ao modelo parlamentarista. Ademais, não há condições de se estabelecer um regime parlamentarista sob o gigantesco balcão que acolhe 35 partidos.

Para a convivência entre os conjuntos da situação e da oposição, o Parlamento carece de um leque de não mais que 7 a 8 partidos. As correntes de pensamento e opinião estariam bem representadas.

O modelo brasileiro continuaria a preservar valores de nossa cultura política. A figura do presidente, por exemplo, ao contrário do simbolismo que detém no modelo alemão, poderia abarcar alguns poderes administrativos.

É o caso de adotarmos modelagem similar ao parlamentarismo francês, também chamado de semi-presidencialismo, um sistema híbrido com essas características: eleição pelo voto direto do presidente da República para um mandato de 7 anos, com direito à reeleição; um gabinete presidido por um Primeiro-Ministro nomeado pelo presidente dentre os deputados do partido ou coalizão majoritária.

O presidente ocupa-se da política externa e da defesa nacional e preside o Conselho de Ministros; nomeia e demite os ministros atendendo solicitação do Primeiro-Ministro.

Será difícil? Sim, mas não impossível.

O nosso conjunto parlamentar precisa enxergar o amanhã, não apenas as conveniências pessoais. Já tivemos experiências parlamentaristas no passado: no 1º e 2º Reinados, com o imperador exercendo o Poder Moderador e, entre 1961 a 1963, no governo João Goulart.

Ocorre que nossa tradição presidencialista sempre deu as cartas. O poder da caneta presidencial (também de governadores e prefeitos) exerce enorme atração.

O roteiro é este: reforma política limitando o número de partidos, implantação do sistema majoritário (ou misto) para a eleição de representantes, adensamento doutrinário das siglas, entre outros aspectos.

O fato é que o país chegou ao final da linha em matéria de vícios, distorções, contrafações e mazelas. Não haverá instituição forte se a política não mudar seus costumes. A taxa de corrupção seria menor com instituições sólidas.

As crises políticas não chegariam a abalar o país. A democracia brasileira daria um salto de qualidade.


* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação


Ives Gandra da Silva Martins: Parlamentarismo, um sistema bem-sucedido

Com exceção dos Estados Unidos, o presidencialismo nas Américas tem sido um permanente fracasso. Todos os países que o adotaram tiveram golpes de Estado, revoluções e períodos de uma frágil democracia.

Se analisarmos, depois da 2.a Guerra Mundial os principais países sul-americanos foram agitados por rupturas institucionais e regimes de exceção. Assim, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia, Peru, Venezuela, Cuba, etc., passaram por rupturas democráticas e pela implantação de regimes de força.

O Brasil, que viveu 42 anos no sistema parlamentar monárquico, desde 1889 jamais teve um período tão longo de estabilidade. De 1889 a 1930, foram 41 anos interrompidos pela ditadura Vargas (de 1930 a 1945). O período de 1946 a 1964 (18 anos) terminou com a revolução de 31 de março. A redemocratização de 1985 deu início a um período de 31 anos, com dois impeachments presidenciais e alta instabilidade. Os governos dos presidentes Lula e Dilma Rousseff levaram o País à crise econômica sem precedentes em sua História, com queda assustadora do PIB, 11,5 milhões de desempregados, retorno da inflação e fantástico nível de corrupção.

Decididamente, o presidencialismo não é um bom sistema, pois confunde o chefe de Estado com o chefe de governo e este, quando eleito, se sente dono do poder, transformando-o, o mais das vezes, numa ditadura a prazo certo.

Presidi entre 1962 e 1964, na cidade de São Paulo, o extinto Partido Libertador, o único partido autenticamente parlamentarista entre os 13 existentes até o Ato Institucional n.° 2. Declarava Raul Pilla, seu presidente nacional, ser o parlamentarismo o sistema de governo da “responsabilidade a prazo incerto”, pois, eleito um chefe de governo irresponsável, por voto de desconfiança é alijado do poder, sem traumas. O presidencialismo, ao contrário, considerava Pilla, é o sistema “da irresponsabilidade a prazo certo”, pois, eleito um presidente incompetente ou corrupto, só pelo traumático processo do impeachment é possível afastá-lo.

Vejamos, por exemplo, o Brasil atual. Desde 2014 os sinais de fracasso do modelo econômico adotado eram evidentes, mas só houve consenso em iniciar o processo de impeachment em meados de 2016.

Arend Lijphart, professor da Universidade Yale, publicou um livro, em 1984, intitulado Democracies: Patterns of Majoritarian & Consensus Government in Twenty-one Countries. Examinou o sistema dos 21 principais países do mundo onde não houvera ruptura institucional depois de 2.a Guerra Mundial e encontrou 20 hospedando o parlamentarismo e só os Estados Unidos presidencialista.

Historicamente, os dois sistemas têm origem na Inglaterra, o parlamentar (1688/89), e nos Estados Unidos, o presidencial (1776/87). A própria influência inglesa nas 13 colônias levou os norte-americanos a adotar um sistema presidencial quase parlamentar, pois lá o Congresso tem participação decisiva nas políticas governamentais.

O grande diferencial entre parlamentarismo e presidencialismo reside na responsabilidade. No parlamentarismo, o mau desempenho é motivo de afastamento do primeiro-ministro, eleito sem prazo certo para governar. A própria separação entre chefe de Estado e chefe de governo cria um poder ultrapartidário capaz de intervir nas crises, seja para avalizar novos governos escolhidos pelo Parlamento, seja para dissolver o Parlamento quando este se mostre também irresponsável, a fim de consultar o povo se aquele Parlamento continua a merecer a confiança do eleitor.

O simples fato de o chefe de governo ter de prestar contas ao Parlamento e os parlamentares poderem voltar mais cedo para casa impõe a seus governos a responsabilidade, característica dominante no sistema parlamentarista.

Por outro lado, a separação da chefia de governo da chefia de Estado – algo que, no presidencialismo, se confunde na mesma pessoa – facilita a adoção de outros atributos próprios do sistema parlamentar, como o da burocracia profissionalizada. Este jornal publicou em 3/1/2015 que, enquanto o governo parlamentar alemão tinha 600 funcionários não concursados para tais funções, a presidente Dilma Rousseff tinha 113 mil.

Eleito um governo, este escolherá entre os servidores públicos que estão no topo da carreira os que mais se afinam com a maneira de ser do novo governo. Gozam os presidentes dos Bancos Centrais de autonomia maior, quando não de independência. Por essa razão, nas quedas de Gabinete os servidores administram o País até a escolha de um novo governo, sem a economia ser afetada.

Acrescente-se que a maioria dos países parlamentares adota o voto distrital puro ou misto, o que facilita o controle do eleitor sobre o político eleito.

Os modelos parlamentaristas são diversos, com maior ou menor atuação do chefe de Estado. Alguns até exercem funções de governo, como nos modelos francês e português, por exemplo, mas a regra é não exercê-las.

Também os partidos políticos se fortalecem no parlamentarismo, enquanto no presidencialismo se esfacelam, à luz da maior força do presidente. Quando se diz que o Brasil não pode ter o parlamentarismo porque não tem partidos políticos, respondo que o Brasil não tem partidos políticos porque não tem o parlamentarismo. Cláusula de barreira é fundamental para evitar legendas de aluguel, algo que, no Brasil, é um dos maiores males do presidencialismo.

Creio que chegou o momento de repensar o modelo político brasileiro e adotar o sistema parlamentar, que sempre deu certo no mundo, substituindo o adotado pelo Brasil, cujo fracasso é fantasticamente constante na sua História. (O Estado de S. Paulo – 14/09/2016)

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS É PROFESSOR EMÉRITO DAS UNIVERSIDADES MACKENZIE, UNIP, UNIFIEO E UNIFMU, DO CIEE/”O ESTADO DE S. PAULO”, DA ECEME, DA ESG E DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL-13 REGIÃO


Fonte: pps.org.br


Chico Andrade: O Parlamentarismo, distensão e mudança do sistema político

Apesar dos ladrões do dinheiro público, apesar dos traidores de todos os lados, apesar dos golpistas, verdadeiros ou não, diante dessa baixaria a que chegamos pelas pressões e paixões ideológicas, às vezes compreensíveis, e no meio dessa guerra que ignora amizades e sepulta as regras mínimas da boa convivência está o pobre e sofrido povo brasileiro, que não tem culpa do desastre econômico e político a que o país foi levado, mas é o mais diretamente atingido, com o desemprego galopante, a brusca redução de suas condições de vida e com a falta absoluta de perspectivas.

O impeachment foi admitido, a presidente Dilma afastada, como manda a Lei e, não obstante o justo direito de reclamar dos petistas e de seus militantes mais fiéis, a presidente dificilmente voltará a ocupar o cargo. Por conta das óbvias razões jurídicas e políticas de seu afastamento. Michel Temer é o presidente em exercício, e é nele e em seus ministros que precisamos agora focar e direcionar nossas melhores energias e esperanças para vislumbrarmos uma breve solução para este nefasto pesadelo da crise.

A despeito do estresse permanente provocado no meio político a cada novo episódio da Operação Lava Jato ou a cada nova delação premiada, o país precisa sair do atoleiro, os empresários têm de enxergar a luz no fim do túnel e os trabalhadores, sobretudo, necessitam urgentemente de entrever o caminho de um outro país, que volte a gerar empregos e que lhes aponte a perspectiva da dignidade e de uma vida de paz com suas famílias.

E em meio aos destroços da tragédia deixada, e mesmo diante de um cenário de profunda divisão política, se considerarmos o ainda real enraizamento social do PT e seus movimentos sociais diversos, nos deparamos com um sentimento que caminha para o consenso: o sistema político que produziu esse caos – o presidencialismo chamado de coalizão – se esgotou. De nada vai adiantar se formarem novos partidos, ainda que cada um desses novos grupos surjam abençoados pelo Papa ou pela mais pura das santidades dos céus, porque já não é mais da ilusão de um homem bom e santo para nos salvar o que precisamos. Mas da ousadia e da coragem de construirmos outro modelo, pelo qual as responsabilidades pela gestão do Estado possam ser efetiva e transparentemente compartilhadas com todos que se proponham a participar da vida pública, independente de suas ideologias ou de suas crenças religiosas.

E, não obstante parecer que tudo está ruim e mais distante uma solução, eis que as circunstâncias colocam diante de nós talvez uma ótima oportunidade para sacudirmos a poeira da intolerância e mitigando as barreiras dos ódios plantados nos juntarmos em torno de uma bandeira mais humana e libertária, que acolhe a todos, vencedores e derrotados. A auspiciosa ideia do Parlamentarismo, como modalidade de se dividir e compartilhar o poder entre todas as forças que efetivamente se fizerem representativas do povo brasileiro no Congresso Nacional.

Não vamos deixar de eleger o presidente da República, apenas este não será mais o todo poderoso e nenhum partido sozinho o será. Sem a necessidade de reinventar outros caixas dois ou outros esquemas criminosos de desvio do dinheiro público, pensemos na possibilidade histórica de desarmar os espíritos, de mitigar as tensões que se elevaram ao extremo nos últimos tempos, com razões justas ou não.

O caos deixado nas contas públicas, a saturação de políticas não transformadoras, o desrespeito ao cidadão, o descrédito com tudo e quase todos, tudo isso não será enfrentado com uma medida mágica e, nem mesmo com toda a força resultante do impeachment se oferecendo em apoio ao presidente em exercício, já que as soluções demandam tempo, acordos e, sobretudo, um ambiente mais propício à boa governança e que inspire a coesão social. E isso não se dará num cenário de permanente confronto ou de requeridas vinganças.

Ora, embora, afora o PPS, que historicamente se proclama parlamentarista, ainda que não exerça permanentemente o protagonismo de sua defesa, não vislumbre-se da parte, principalmente dos grandes partidos o debate do tema, as circunstâncias deste momento, em que, o presidente do senado se declara simpático, o PSDB, coloca entre as premissas para apoiar o governo provisório a inclusão do parlamentarismo na pauta, menções de parlamentares dos mais diversos partidos de direita, de esquerda ou de centro são observadas no sentido de se pensar com urgência na mudança do sistema presidencialista, ainda temos a palavra do presidente interino, Michel Temer, se propondo a sinceramente discutir a ideia.

Quando do plebiscito em torno da mudança do sistema de governo, ocorrido em 1993, a maioria dos grandes partidos optou pela manutenção do presidencialismo, porque havia a ansiedade pelo poder, e um pensamento autoritário de solução dos problemas brasileiros reinante na cabeça de grandes lideranças de cada uma dessas agremiações, como Brizola, Lula, Mário Covas, entre tantos outros. Passados agora mais de 20 anos, percebemos que muito pouco avançamos no sentido da verdadeira cidadania. Na primeira eleição direta elegemos um presidente desenraizado socialmente e o tiramos dois anos depois. Vencemos a guerra contra a inflação, mas não enfrentamos adequadamente os graves problemas da desigualdade e da pobreza, e na política, saímos de cerca de meia dúzia de partidos para, pasmem, mais de trinta atualmente, o que, segundo a maioria dos entendidos, só provoca mais desagregação. E agora, estamos a fazer o impeachment de uma presidente do partido que se construiu a base do apelo popular e da ilusão antiga dos salvadores da pátria e da utopia da esquerda.

Não dá mais! Não fomos capazes de fazer as mudanças no sistema político e eleitoral exigidas, como o voto distrital misto e em lista e a redução do custo de campanhas e com isso o presidencialismo mal apelidado de coalizão acabou. E se isto é verdade, porque não fazemos esse debate pra valer? É fato que assim que nos deparamos com essa exaustão, nos vem a pergunta: o que fazer? Ora, não precisamos sair por aí pregando uma maravilha salvadorenha, porque não é mais disto que se trata, mas está mais do que na hora de se desmistificar a confusa ideia que a maioria do povo faz do parlamentarismo: acham que seria pior, já que o exemplo da maioria dos parlamentares é péssimo, recheado de pessoas despreparadas, envolvidas em denúncias de desvios e de corrupção, ou inaptas para o exercício de um cargo tão relevante como o de um primeiro-ministro. Isso não deixa de ser verdade, mas o parlamento em qualquer lugar do mundo é assim, um pouco a cara de seu povo. No nosso caso, temos então uma dupla oportunidade, nos educarmos politicamente para elegermos melhor nossos representantes.

E mais: agora que as grandes lideranças do PSDB também não se acham totalmente imaculadas das denúncias da Lava Jato, as do PMDB, nem se fala, pensemos então nos demais partidos democráticos do centro para a esquerda. O PT, por exemplo, se sobrou um pouco de juízo em seus dirigentes, estes devem ser acordados já para esse debate, pois é o que lhes resta de esperança para um dia se reencontrarem com o sonho de seu passado transformista e de suas pregações sociais. Outros partidos, como o P-Sol, e a Rede, de Marina Silva, só teriam a ganhar ao se dedicarem ao tema, diante do potencial pedagógico e da perspectiva , humanista e transformadora que a proposta sugere, especialmente quando se prenunciam tempos novos. Aos de centro ou de direita, outra opção não lhes restaria, já que seus partidos estão quase todos contaminados pelas denúncias e se ressentem da fragilidade de suas bases, forjadas em bandeiras insuficientes ideologicamente ou nas bases difusas das igrejas.

O PT vai enfrentar um futuro incerto, é verdade. Provavelmente, nas próximas eleições gerais, não elegerá a metade dos deputados que elegeu em 2014. O PCdoB, igualmente sofrerá perdas, A Rede vai ganhar alguns, o Psol, talvez outros e, um ou outro dos partidos que estão na forma como o de Erundina, se legalizados, também podem eleger deputados. Mas tudo indica que a esquerda tradicional, ou principalmente a identificada com os desmandos do PT sofrerá baixas sensíveis nesse futuro imediato. Porém, não somos daqueles que sonham com o fim do PT, queremos sim que seus dirigentes façam a necessária autocrítica de seus imensos pecados públicos. Pecados políticos capitais! E creio que, entre seus quadros, existam alguns que estejam também pensando em oferecer respostas mais altivas a sua militância, que não apenas a falsa narrativa da vitimização. E nem seria bom para essas pessoas que se iludiram em torno do projeto lulopetista ou de suas crenças ideológicas simplesmente ficarem no limbo. Também não seria bom para o país.

Por outro lado, os xingamentos, os adjetivos desrespeitosos, o igualamento pra baixo a que se chegou vindo de ambos os lados nas redes sociais de partidos e de personalidades políticas em nada vai contribuir para encontrarmos o caminho de superação dessa tragédia. Guardadas as devidas proporções, da depressão pelo desencanto ou mesmo da raiva, é hora de baixar a guarda. É hora de todos pensarmos na distensão, já que a continuar assim, ninguém vai ganhar.

E se pararmos um pouco para refletir, é de ações mitigadoras, de mediação construtiva, de uma verdadeira abertura à distensão política o que precisamos neste momento para recomeçar. O debate em torno da construção de uma proposta Parlamentarista para o Brasil pode de novo unir a esquerda e o centro e, quem sabe, muitos democratas e liberais da direita, porque, antes de tudo, não começa de algo definido, mas de uma oportunidade extremamente pedagógica e generosa, para os militantes de antes e para os novos que agora se enxergam empoderados pelas redes sociais.

O PPS tem lideranças importantes para iniciar esse debate e com autoridade suficiente para propor a sua disseminação entre os demais partidos e no conjunto da sociedade. E para não retornarmos à barbárie política e nem ficarmos mais apenas a repetir os nomes dos culpados pela crise, que são muitos, por que não ousamos iniciar de verdade esse auspicioso debate? Poderíamos começar propondo uma Coordenação nacional para a divulgação e desmistificação do Parlamentarismo no Brasil, explicando suas premissas e vantagens para a democracia.


Chico Andrade é presidente do PPS-DF