Cora Rónai: Tecnologia e ignorância, combinação fatal

O que deve ser combatido é a maneira como as redes são usadas e, sobretudo, as causas que levam ao seu mau uso, como a insegurança e a falta de educação.
Foto: Reprodução/Google
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O que deve ser combatido é a maneira como as redes são usadas e, sobretudo, as causas que levam ao seu mau uso, como a insegurança e a falta de educação

A matéria mais horripilante que li este fim de semana – em que, como de hábito, não faltaram notícias horripilantes – contava o linchamento de dois homens inocentes num povoado mexicano, depois que boatos espalhados via Facebook e WhatsApp os denunciaram como sequestradores de crianças. Ricardo Flores, de 21 anos, e seu tio Alberto, de 43, haviam ido à cidade para comprar material de construção, e morreram sem saber do que eram acusados.

“Parece que esses criminosos estão envolvidos com o tráfico de órgãos. Nos últimos dias, crianças de quatro, oito e 14 anos desapareceram e algumas foram encontradas mortas com sinais de que seus órgãos foram removidos” dizia, segundo a BBC, uma das mensagens compartilhadas.

Os dois foram agredidos com fúria, seus corpos encharcados em gasolina e incendiados. A foto da reportagem mostra uma multidão diante da fogueira. O que a distingue dos quadros e ilustrações que mostram multidões medievais diante do suplício de feiticeiras são os braços erguidos segurando smartphones e filmando as chamas.

Cenas parecidas aconteceram na Índia diversas vezes este ano, através de incitações semelhantes: crianças sequestradas e mortas, seus órgãos removidos. Foram tantos casos de linchamento que o WhatsApp teve que restringir o número de grupos para os quais mensagens podem ser compartilhadas no país.

É fácil atribuir a culpa pela violência à tecnologia, mas é preciso resistir a essa facilidade. Desde a eleição de Trump, as redes sociais vêm sendo sistematicamente demonizadas. São um bode expiatório conveniente para tudo o que seres pensantes entendem estar errado com a humanidade, de escolhas políticas incompreensíveis a explosões de violência gratuitas.

É verdade que nunca, em momento algum, pessoas mal equipadas intelectualmente tiveram acesso a ferramentas tão poderosas de comunicação; mas essas ferramentas são menos culpadas pelos acontecimentos do que a ignorância dos seus usuários. Propor a sua censura ou a sua pura e simples proibição é bem mais simples do que encarar a realidade — ou as reais raízes da violência.

Para governos ausentes e populistas, que nunca se preocuparam com a educação ou a segurança da população, é muito conveniente poder apontar para a tecnologia, essa força misteriosa e mal compreendida que, ainda por cima, está nas mãos de meia dúzia de capitalistas bastante vilanizáveis.

Na verdade, estamos diante de um problema para lá de complexo. A beleza do WhatsApp é dar a pessoas comuns, como eu, você e, sim, até os linchadores mexicanos e indianos, uma forma de comunicação rápida, barata, eficiente e segura, com um nível de criptografia imbatível.

Abrir essa criptografia pode ajudar a polícia a solucionar alguns crimes, mas ao custo de tirar de milhões de pessoas em situação vulnerável a possibilidade de manter as suas comunicações em sigilo total. O estrago que um governo mal intencionado pode fazer tendo acesso irrestrito às mensagens da população é incalculável.

O que deve ser combatido não são as redes, mas a forma como são usadas — e, sobretudo, as causas que levam ao seu mau uso, como a insegurança e a falta de educação. Não é à toa que episódios horrendos como os recentes linchamentos aconteceram em regiões de baixíssimo nível educacional, onde a população desistiu, há tempos, de confiar na polícia.

 

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