Compreender as novas direitas é imprescindível para combatê-las, afirma professor Marcus Vinícius Oliveira

Historiador Marcus Oliveira | Foto: Divulgação
Historiador Marcus Oliveira | Foto: Divulgação

Doutor em história diz que inação ou incompreensão diante de novas formas de organização política não reduz seu potencial destrutivo

Comunicação FAP

A ascensão de movimentos de direita e extrema direita em diversos cenários globais tem imposto um desafio analítico. Afinal, o que diferencia essas forças contemporâneas de seus antecessores históricos? O historiador e professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Marcus Vinícius Oliveira diz que, inegavelmente, há algo novo nas novas direitas. Essa novidade reside em suas concepções políticas e na forma como se organizam a partir de marcos históricos recentes que as moldaram de maneira particular.

A compreensão aprofundada desse fenômeno é vista por Oliveira não apenas como uma necessidade acadêmica. “É uma das ferramentas imprescindíveis para que nós consigamos combater efetivamente esses grupos”, afirma ele, que é pesquisador e doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

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Oliveira baseia sua análise em três leituras principais que, juntas, oferecem perspectivas sobre a novidade dessas direitas. A primeira é a do historiador italiano Steven Forti, com a obra “Extremas Direitas 2.0”. Forti argumenta que essas direitas começaram a se estruturar a partir dos anos 1960 e 1970, período em que conceitos como fascismo e populismo se tornaram insuficientes para explicá-las. O próprio título do livro já sugere que não se trata de uma mera repetição do passado, embora elementos anteriores possam estar presentes.

Veja vídeo, abaixo:

“Revolução cultural”

A tese central de Forti, segundo a interpretação de Oliveira, é que essa nova direita, com origem na França nos anos 60, surgiu da percepção de que as esquerdas haviam se infiltrado e culturalmente dominado a sociedade. Diante disso, a direita concluiu que, para alcançar o poder político, também necessitaria de sua própria “revolução cultural”. O nome mais associado a essa ideia é Alan de Benoist, que defendia a apropriação de ideias da esquerda para ganhar espaço no terreno cultural. Benoist, inclusive, afirmava abertamente que desejava um “gramscismo de direita”.

Na visão desses grupos, Gramsci é compreendido como um “pensador da cultura” que entendeu que o consenso social é construído por meio de instituições culturais e intelectuais. Assim, a nova direita busca criar seus próprios intelectuais e instituições culturais para disputar politicamente a sociedade. Segundo o professor, um dos pontos definidores dessa nova direita, portanto, é a crença na existência de uma “guerra cultural ou há uma grande disputa cultural dentro da sociedade”, na qual é fundamental combater as esquerdas e o progressismo.

A segunda leitura fundamental na análise de Oliveira é a do cientista político Cas Mudde, autor de “A extrema direita hoje”. Para Mudde, o que distingue a extrema direita atual das três ondas anteriores é sua normalização. Esses grupos se tornaram “cada vez mais normais” ao longo do tempo, conforme explica o pesquisador, a ponto de não apenas disputar, mas também vencer eleições e formar governos em diversos lugares. Essa quarta onda de extrema direita, caracterizada pela normalização, emerge em um contexto de três grandes crises que Mudde enumera, partindo do século XX.

“Guerra ao terror”

O primeiro marco temporal, para Mudde, é 2001, com os ataques de 11 de setembro. Esses ataques, em sua visão, criaram um novo inimigo para o Ocidente: os povos árabes, islâmicos, muçulmanos, que frequentemente são associados ao comunismo por grupos de extrema direita. A “guerra ao terror” tornou-se, assim, fundamental para o surgimento e a normalização dessas novas extremas direitas.

O segundo marco é a crise econômica de 2008. Após essa crise, os pacotes de austeridade, especialmente na Europa, foram intensamente contestados por esses grupos. “Os grandes bancos, as grandes instituições internacionais, como a própria União Europeia, Organização das Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional, enfim, todas essas grandes organizações estão sendo controladas por elites, por determinados oligopólios”, critica Oliveira. Essas elites, acrescenta, estariam distantes dos interesses populares, sendo, portanto, “antipopulares”. Nesse cenário, a direita se posiciona como representante do povo, ao lado dos trabalhadores, impulsionando seus interesses.

Por fim, as crises imigratórias vividas pela Europa a partir dos anos 2010 constituem o terceiro marco. Na avaliação de Oliveira, essas crises se conectam aos pontos anteriores ao questionarem se grandes instituições internacionais permitem a entrada de imigrantes com base em uma agenda progressista, o que levaria a Europa a “perder a sua identidade”. A islamofobia, já fortalecida desde 2001, ganha ainda mais força com a questão da imigração.

A ideia de Mudde, sintetizada por Oliveira, é que essas direitas se organizam a partir desses marcos, oferecendo respostas “integradas”. Mudde considera essas direitas populistas (conceito com o qual Oliveira discorda), pois partem da premissa de que há um conglomerado mundial que se opõe aos interesses populares e que a extrema direita combate esse establishment e essa elite global, em nome dos interesses populares e nacionais.

Galáxia de movimentos

A terceira e “preferida” leitura de Oliveira é a do cientista político argentino Pablo Stefanoni, autor de “A rebeldia se tornou de direita?”. O grande mérito de Stefanoni, para o professor, é perceber que esses grupos, por mais diversos que sejam – formando o que ele chama de uma “galáxia” de movimentos – estão unificados por uma ideia rebelde.

 Embora a rebeldia seja tradicionalmente associada à esquerda, Stefanoni argumenta que a direita contemporânea também se apropriou dessa ideia. A rebeldia dessas direitas reside na contestação de um “determinado status progressista” que, em sua visão, defende pautas como gênero, sexualidade e identidades. Ao se contraporem a essas pautas e a um “determinado establishment político”, esses grupos se veem como rebeldes, dentro de uma visão “contestatória da realidade”.

Essa contestação abrange arranjos políticos, econômicos, sociais e até jurídicos estabelecidos nas últimas décadas. No Brasil, por exemplo, as novas direitas e extremas direitas contestam o arranjo da Nova República, vendo a Constituição de 1988 como “um arranjo muito progressista, como um arranjo de esquerda”. Essa ideia é defendida por intelectuais como Olavo de Carvalho, que via a Nova República como “uma antessala do socialismo, uma antessala do comunismo”, e Sérgio Avelar Coutinho, para quem a transição democrática brasileira era uma transição para o socialismo porque as esquerdas e progressistas estariam dominando.

Retórica da rebeldia

Para Oliveira, essa retórica da rebeldia de quem se insurge contra uma determinada organização se manifesta tanto no discurso quanto nos comportamentos. “O apoio à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 é um exemplo, mas também a valorização de figuras de direita que teriam coragem de falar sobre determinados assuntos”, analisa.

A própria ideia de liberdade de expressão, tal como concebida por esses grupos, está inserida nessa perspectiva de rebeldia, segundo o pesquisador, incluindo o direito de “poder ofender inclusive as pessoas ter o direito a ofensa o direito ao preconceito”. Oliveira ilustra essa ideia com o exemplo de uma pichação que igualava “comunismo a nazismo ao quadrado”, demonstrando a forte noção de “enfrentamento em relação ao determinado arranjo político” presente entre as direitas.

É crucial entender, na análise de Oliveira, que, embora esses grupos façam apelos ao passado e queiram retomar aspectos históricos, isso não os torna meramente saudosistas. O apelo ao passado serve a uma rebeldia que “pretende destruir determinados arranjos políticos e construir novos projetos de futuro alinhados ao que eles pensam”. Portanto, são também “projetadores de um determinado futuro”.

Observando por essas três lentes – a “revolução cultural” de Forti, a “normalização” e resposta às crises de Mudde, e a “rebeldia” de Stefanoni –, Oliveira conclui que essas direitas são efetivamente novas. Elas se distinguem das anteriores por sua concepção política e por responderem a momentos históricos distintos, com “políticas novas”.

“Políticas do tempo”

Essas direitas são contemporâneas no sentido de que constroem o que Oliveira chama de “políticas do tempo”. Elas definem o que deve existir no presente e o que deve pertencer ao passado. Para esses grupos, segundo o professor, “o progressismo ideias de justiça social de igualdade são ideias que não devem pertencer mais ao presente”, assim como a Nova República e a democracia.

Apesar de alguns autores, como Mudde, utilizarem o conceito de populismo, e outros questionarem o uso de “fascismo”, Oliveira reitera que conceitos anteriores “não servem tanto” para explicar esses novos grupos. No entanto, ele faz um alerta fundamental: “Não chamá-los de populistas e fascistas não significa diminuir o seu risco, não significa diminuir o seu perigo em relação à nossa sociedade”.

Pelo contrário, para Oliveira, aprofundar a compreensão sobre quem são e como operam essas novas direitas é, em suas palavras, “uma das ferramentas imprescindíveis para que nós consigamos combater efetivamente esses grupos”. Esta é a crítica central: a inação ou a incompreensão diante dessas novas formas de organização política não reduz seu potencial destrutivo, mas exige um esforço consciente e baseado na análise para enfrentá-las.

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