Clóvis Rossi: O Brasil, esse ‘sem vergonha’

Abro "Brasil, brasileiro. Por que somos assim?", uma coletânea de 16 ensaios editada pela Verbena Editora, por inspiração da Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Seus autores são acadêmicos do mais alto nível com a vantagem adicional de que não participam da pirotecnia que, em geral, caracteriza o debate público no Brasil.
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Abro “Brasil, brasileiro. Por que somos assim?”, uma coletânea de 16 ensaios editada pela Verbena Editora, por inspiração da Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Seus autores são acadêmicos do mais alto nível com a vantagem adicional de que não participam da pirotecnia que, em geral, caracteriza o debate público no Brasil.

Já na apresentação, vem o choque: “O Brasil é um país curioso, é um país extremamente sem vergonha”.

O choque não é tanto pela frase em si. Também acho que o Brasil é sem vergonha, mas eu não sou ninguém, ao passo que Antonio Callado, que a pronunciou, é um intelectual do maior respeito, um escafandrista da alma brasileira, autor de obras primas como “Pedro Mico” e “Quarup”.

Que seja capaz de um julgamento tão severo obriga a pensar, ainda mais que a frase completa é assim: “Quando chega a hora de as coisas mudarem, as coisas não mudam. Não tenho mais esperanças”.

O choque é também pela época em que a frase foi pronunciada: em entrevista à Folha, no dia 26 de janeiro de 1997, quando fazia 80 anos e dois dias antes de morrer.

Se a constatação fosse feita hoje, seria auto-explicativa: a sem-vergonhice desfila todos os dias pelas páginas dos jornais, no horário nobre dos telejornais (e até nos horários não tão nobres). Mas, em 1997, o Brasil ainda vivia um pouco da ilusão de estabilidade que o Plano Real introduzira, a crise cambial só apareceria no ano seguinte e o “apagão” que destruiu o prestígio de Fernando Henrique Cardoso demoraria mais uns quatro anos.

Agora, constatações tão negativas são, digamos, normais. “Os ensaios, em sua maioria, são pessimistas em relação ao estado atual da sociedade brasileira, e mesmo em relação ao futuro próximo”, escrevem os organizadores na apresentação (o senador Cristovam Buarque, Francisco Almeida e Zander Navarro, doutor em Sociologia pela Universidade britânica de Sussex).

A exceção ao pessimismo, curiosamente, vem do único não-brasileiro convidado a escrever: o americano John W. Garrinson 2º, que, no entanto, viveu anos suficientes no país para se considerar “brasileiro por opção e não por nascença”.

Nos demais, aparecem sentenças tão duras quanto as de Callado. Escreve, por exemplo, José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP: “Não sobrevivemos sem mediadores, condutores, abridores de caminho. Estamos sempre à espera de que um deles apareça para nos dizer o que somos e o que queremos. Neste 2017 estamos perdidos, mais uma vez à espera de que ele chegue para abrir o caminho que nos levará a 2018”.

Agora que ninguém está olhando, confesse: você também não está se sentindo perdido, esperando alguém?

Há mais: “O brasileiro perdeu a guerra para si mesmo. […] Ele foi incapaz de organizar e fazer funcionar bem o seu aparelho de Estado e a sua economia”, escreve Flávio Kothe, professor na Universidade de Brasília e presidente da Academia de Letras do Brasil.

Se há 20 anos, Callado enxergava um país sem vergonha, hoje Cristovam Buarque, senador e único político presente no livro, chora “o nosso [do Brasil] desprezo a um rumo para o futuro. […] Não conseguimos formular metas e estratégias”.

Nessa toada, daqui a 20 anos, tais avaliações talvez pareçam otimistas. Ou será que o Brasil tomará vergonha?

* Clóvis Rossi é repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano.

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