Míriam Leitão: Bolsonaro é um extremista só
O resultado do plebiscito no Chile e a eleição presidencial na Bolívia são boas notícias numa região que acumula tensões e amarguras. Até a aposentadoria do senador uruguaio, e ex-presidente, José Mujica foi uma aragem de boa política pelo seu discurso forte e sincero que viralizou nas redes. Nos casos chileno e boliviano, a saída dos impasses foi pelo melhor dos caminhos, a democracia.
Bolsonaro, pela sua defesa dos regimes ditatoriais da América Latina das décadas de 60 e 70 do século passado, deu a impressão de que a região voltaria ao velho padrão de democracia interrompida. Como venceram candidatos de direita no Chile, Paraguai e Uruguai, o temor era de um queda no túnel do tempo. Mas o que ficou claro é que Bolsonaro está sozinho, porque nem a direita da região tem afinidade com ele. Foi com constrangimento que o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, ouviu de Bolsonaro elogios ao ditador Stroessner. O presidente do Chile, Sebastian Piñera, rechaçou o ataque sórdido que Bolsonaro fez à ex-presidente Michele Bachelet ao ofender a memória do pai dela, morto na prisão. Bolsonaro é um extremista só.
Piñera reagiu à violenta explosão de movimentos de rua, contra seu governo, caminhando para o centro e propondo uma solução há muito aguardada no país: a mudança da Constituição. Houve forte comparecimento às urnas neste final de semana, os jovens participaram, num país onde o voto não é obrigatório. A vitória dos que querem uma nova constituição foi esmagadora.
No governo Bolsonaro, como sempre, há a falta de compreensão do que acontece debaixo de seus narizes. O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, mostrou desconhecimento ao defender mudança na Constituição brasileira, porque ela teria tornado o Brasil “ingovernável”. O ministro Bruno Dantas, do TCU, sugeriu “estudar um pouco de História e entender a transição democrática deles”. Pois é. O Brasil começou sua transição fazendo uma Constituinte, o Chile só agora abandonará a constituição da época da ditadura.
A Bolívia viveu há um ano um momento de enorme turbulência política que fez temer sua volta ao passado de instabilidade crônica. Na época, houve um debate bizantino sobre se havia sido ou não um golpe. Aqui escrevi que era uma discussão ociosa, porque se os chefes militares se reúnem e vão à televisão exigir a saída de um governante é golpe, evidentemente. O ex-presidente Evo Morales havia errado também por disputar um quarto mandato ao arrepio da constituição e do referendo de 2016. Morales deveria ter feito o natural processo de sucessão dentro do MAS. Seu personalismo agravou a crise. A solução um ano depois foi de recolocar pelas urnas o MAS no governo, mas através de um novo líder, Luis Arce.
A diplomacia brasileira errou o tempo todo com a Bolívia, país com o qual temos uma relação densa. Houve um momento em que a Argentina teve que negociar com o Paraguai o pouso para reabastecimento do avião que levava Evo para o exílio. A diplomacia brasileira, que já solucionou conflitos na região e sempre reconheceu o direito de asilo, ignorou o problema. Agora, foi o último país a reconhecer a vitória de Arce. Piñera foi um dos primeiros.
O debate sobre modificar ou não a Constituição da era pinochetista foi sepultado ontem pelas urnas no plebiscito convocado por Piñera. Quase 80% dos que votaram disseram que é preciso mudar. Começa agora um longo processo. No ano que vem haverá eleição para a Constituinte e depois que ela for redigida será novamente votada. Nesse caminho o Chile pode avançar mais na cicatrização das velhas feridas da era da ditadura militar.
A diferença entre a direita da região e Bolsonaro é que o presidente brasileiro defende a ditadura, o que outros governantes não fazem. Além disso, no seu governo, há pessoas que como ele admiram torturadores. E existem militares remanescentes da pior ala do regime, a do general Silvio Frota, derrotada pelo presidente Ernesto Geisel no dia 12 de outubro de 1977. Nosso retrocesso é muito maior do que nos damos conta.
Ao renunciar ao seu mandato de senador, o ex-presidente uruguaio deixou o legado de palavras que se deve guardar. Entre as várias frases memoráveis destaco aquela que ele dirigiu aos jovens. “Triunfar na vida não é ganhar, triunfar na vida é levantar-se e recomeçar toda vez que cair.” A resiliência, essa é a lição de Pepe. Doze anos preso em condições desumanas, ele viveu o que aconselha.
Rubens Barbosa: As novas ameaças e o Brasil
País deve acompanhar a evolução tecnológica e geopolítica da exploração espacial.
Grande parte das facilidades da nossa vida no planeta Terra depende, para seu funcionamento diário, de objetos baseados no espaço. Sistemas de comunicação, transporte aéreo, comércio marítimo, serviços financeiros, monitoramento de clima e defesa dependem da infraestrutura espacial, incluindo satélites, estações terrestres e movimentação de dados em âmbito nacional, regional e internacional. Essa dependência apresenta sérios – e frequentemente pouco percebidos – problemas de segurança para empresas provedoras e para os governos.
Nesse cenário, começam a ser examinadas novas ameaças de ataques aos satélites em órbita que podem afetar todos os serviços e facilidades mencionados. Essas ameaças devem estar sendo avaliadas pelo governo brasileiro. Além disso, a utilização do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, tornada possível depois de décadas de decisões equivocadas, representa um grande desafio para o governo e as empresas brasileiras. Não só pela necessidade de melhoria na infraestrutura da região e do próprio centro, mas também na legislação interna, sobre uma lei do espaço (que defina as atividades comerciais no espaço, como a utilização de detritos espaciais), sobre o órgão responsável pela negociação com empresas interessadas na utilização do CLA, a definição do contrato de licenciamento de lançamento, a ser assinado com a autoridade nacional e o comércio de tecnologia espacial.
Como qualquer outra infraestrutura digitalizada, satélites e outros objetos baseados no espaço são vulneráveis, em especial, a ameaças cibernéticas. As vulnerabilidades cibernéticas apresentam riscos muito sérios não só para esses objetos, mas também para infraestruturas essenciais terrestres. Se não forem contidas, essas ameaças poderão interferir no desenvolvimento econômico global e, por extensão, na segurança internacional. Cabe registrar que essas preocupações não são meramente hipotéticas. Na última década mais países e atores privados conseguiram adquirir e empregar meios para afetar esses objetos espaciais críticos com aplicações inovadoras que começam a representar uma ameaça real ao seu funcionamento.
A ideia da guerra espacial não é nova, começou com os foguetes V-2 da Alemanha. A eventual atividade bélica no espaço hoje se concentra nos instrumentos utilizados para as guerras na Terra. Os satélites são utilizados nas operações militares para identificar alvos e responder a questões estratégicas, além de localizar as forças militares e bombas e obter informações nos teatros de guerra. Isso torna os satélites alvos atrativos para mísseis terrestres. EUA, China e Índia estão desenvolvendo armamentos destrutivos de objetos no espaço, visando a impedir os sinais para a Terra dos satélites militares com lasers ou mesmo os explodindo, fazendo detritos se espalharem pelo cosmo. Estão também tornando suas Forças Armadas voltadas para o espaço. Em 2019 foi criada pelo governo dos EUA a Força Espacial, serviço militar independente cujos doutrina, treinamento e capacidade estão sendo definidos pelo Pentágono.
Para tentar evitar uma lei da selva espacial começa a ser discutido algum tipo de regime multilateral. No momento não há leis nem normas específicas para uma eventual guerra espacial. O Tratado sobre o Espaço Exterior, de 1967, proíbe a utilização de armas de destruição em massa no espaço, mas não trata de armas convencionais. Se dois satélites, por exemplo, ficam muito próximos de maneira ameaçadora, não há respostas adequadas. Em 2008 a União Europeia propôs um código de conduta voluntário para promover “comportamento responsável” nessa área. No mesmo ano, para se contrapor a essa iniciativa, China e Rússia propuseram um tratado que proibiria armas no espaço. O tratado não visava armas antissatélites, mas armas antimísseis baseadas no espaço. A oposição à iniciativa europeia, além da Rússia e da China, veio da América Latina e da África.
Apesar de apoiar a desmilitarização do espaço, os países dessas regiões não aceitaram que os países com objetos no espaço pudessem ter o direito de usar a força para defendê-los. Nenhuma das duas iniciativas prosperou, mas experimentos militares com fins ofensivos continuam a ser feitos visando à eventual destruição de satélites que poderão ter efeitos devastadores para a defesa e as comunicações globais.
O governo brasileiro não poderá perder de vista as transformações positivas que ocorrerão na área aeroespacial pela redução de custos, por novas tecnologias e, sobretudo, pelo aparecimento de uma nova geração de empresários privados operando ao lado dos governos. Turismo para os ricos e mais avançada rede de comunicações para todos, exploração mineral e transporte de massa passarão a ter um impacto nos negócios e tornarão o espaço uma verdadeira extensão da Terra. Com visão de futuro, o Brasil, que passará a ter interesses concretos nesse campo, deveria fazer o acompanhamento da evolução tecnológica e geopolítica da exploração espacial.
Sem descurar das novas ameaças que começam a ser discutidas agora e poderão afetar as facilidades terrestres de que dispomos, o Brasil deveria participar dessas conversações, quando retomadas.
*Presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen)
Eliane Cantanhêde: Combater o bom combate
Enquanto militares se calam, diplomatas vão da perplexidade à indignação
De um lado, militares são tidos como corajosos e durões e, de outro, diplomatas carregam a fama de medrosos e melífluos, mas esses preconceitos estão sendo colocados à prova no governo Jair Bolsonaro. Enquanto generais resmungam em privado contra humilhações impostas aos seus pares, embaixadores engrossam a crítica à política externa e aos delírios do chanceler Ernesto Araújo.
Militares e diplomatas são carreiras de Estado, com provas de acesso e cursos que vão deixando muita gente boa para trás, até afunilar nos melhores dos melhores. Ambas são baseadas em hierarquia, disciplina e… cuidado ao falar. O que mais se espera de militares e diplomatas, porém, é paixão pelo Brasil e prioridade ao interesse nacional, porque governos vêm e vão, o Estado fica.
São conhecidos a explicação dos militares de alta patente e o interesse dos de baixa patente ao apoiar o capitão para presidente. Uns, por ideologia. Os outros, pela expectativa de ter no poder quem passou a vida, na caserna e no Congresso, cuidando de privilégios corporativos. O que não dá para entender é por que eles aceitam com tanta facilidade Bolsonaro e seus filhos batendo continência para um tal guru que xinga generais aos palavrões. Quando o general Santos Cruz reagiu aos insultos, quem perdeu a guerra, e o cargo no Planalto, foi ele.
Agora, Bolsonaro humilha o general da ativa Eduardo Pazuello, que se submete candidamente: “um manda, o outro obedece”. Muito se lê que os militares ficaram indignados, mas só Santos Cruz lembrou, ou advertiu, que hierarquia e disciplina “não significam subserviência” e tudo não se resume a “mandar varrer a entrada do quartel”. O general da reserva Paulo Chagas fez coro, ensinando que a ética militar entre superiores e subordinados não pode ser o simples “um manda e o outro obedece”.
E como assimilar que Ricardo Salles chame o general da reserva Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e seja apoiado pelo filho do presidente? No fim, Salles pediu desculpas “pelo excesso”, ao que Ramos prontamente aquiesceu: “as diferenças estão apaziguadas”. “Diferenças”?
Com Pazuello, bastou uma visitinha do presidente. Com Ramos, uma volta de moto pelo DF. Assim, coube aos políticos, à frente Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, tomar as dores de Ramos e, por tabela, dos militares: “Não satisfeito em destruir o meio ambiente, (Salles) resolveu destruir o próprio governo”, desferiu Maia.
Assim como nas Forças Armadas, há no Itamaraty, ao lado da hierarquia e da disciplina, o instinto de sobrevivência e a disputa por postos e promoções. Mas cresce a fila de embaixadores “da reserva” dizendo o que precisa ser dito. No artigo “O grande despautério”, no Jornal do Brasil, o ex-embaixador na Itália Adhemar Bahadian resumiu o discurso do chanceler para os novos diplomatas: “as palavras foram como pedras mal-educadas, rudes e tingidas de ódio” e “a diplomacia brasileira (…) foi chicoteada como em navio negreiro”.
Também já se manifestaram Rubens Ricupero, Roberto Abdenur, Marcos Azambuja, Celso Amorim, José Alfredo Graça Lima, José Maurício Bustani, Samuel Pinheiro Guimarães, Sérgio Florêncio, ex-chanceleres fora da carreira, como Celso Lafer, e embaixadores ainda na ativa, como Everton Vargas, Paulo Roberto Almeida e Mário Vilalva (licenciado).
O tom vai da perplexidade à indignação diante da subserviência ao governo Trump, a opção por um lado na guerra entre EUA e China, as caneladas em parceiros tradicionais, a prevalência da ideologia sobre o interesse nacional e o retrocesso em foros internacionais. Ao combater o bom combate, esses nossos embaixadores trazem luz e realidade não só para os diplomatas, mas para todos os corajosos e durões na defesa do Brasil.
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Andrea Jubé: “A amizade supõe a confiança”
Três nomes revezam-se no entorno presidencial
A solução caseira para a reacomodação de quadros no Palácio do Planalto atesta que, embora o presidente Jair Bolsonaro tenha ampliado o leque de aliados ao se aproximar das cabeças coroadas do Centrão, o time de auxiliares em quem ele realmente confia é tão restrito que não lota um elevador na sede do Executivo federal.
Desde que se tornou presidente, um temor quase patológico de Bolsonaro é o de ser traído, ou abandonado, pelos aliados. A relação conflituosa, quiçá beligerante, com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e com o governador afastado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), dois veementes aliados na campanha eleitoral, a quem agora acusa de deslealdade, ilustra esse receio.
Por isso, desde o início do governo, o presidente escalou para postos estratégicos no palácio assessores de longa data, que a passagem dos anos de convivência promoveu ao patamar de amigos insuspeitos. “A amizade supõe a confiança”, escreveu André Maurois (1885-1967), biógrafo de Voltaire.
É nesse contexto que a recente reconfiguração dos espaços no entorno presidencial envolve três protagonistas, que convivem com o presidente, e seus filhos, há décadas: o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, que se despede do cargo para tomar posse no Tribunal de Contas da União (TCU); Pedro César Nunes Sousa, que assumiu a Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ) no lugar de Oliveira; e Célio Faria, que assumiu a chefia do gabinete presidencial, no lugar de Pedro.
Oliveira ascendeu a jato na República: a partir da vitória de Bolsonaro nas urnas, foi de assessor parlamentar a ministro do TCU em dois anos. Até quinta-feira, o major reformado da Polícia Militar do Distrito Federal acumulava o ministério com o posto de subchefe de Assuntos Jurídicos, umas das funções mais estratégicas ligadas à Presidência da República.
Quando foi alçado ao primeiro escalão, em junho de 2019, Oliveira manteve o cargo original, que exerceu desde o começo do governo. Para isso, a SAJ teve de ser deslocada da Casa Civil, sua pasta de origem, para a Secretaria-Geral.
O secretário especial de Assuntos Estratégicos, Flávio Rocha - outro quadro que Bolsonaro conhece dos tempos de parlamentar - é o mais cotado para assumir o ministério. Contudo, o posto-chave, de substituição mais delicada sempre foi a SAJ. Acabou sendo confiado a Pedro Nunes, ou simplesmente Pedro, como é conhecido internamente, por meio da nomeação publicada no “Diário Oficial” na quinta-feira.
Embora seja um cargo de segundo escalão, a SAJ trata-se, na verdade, de um posto que se equipara a um ministério, pela relevância do papel e influência junto ao presidente.
O titular da SAJ tem de ser da estrita confiança do presidente, porque terá trânsito livre no gabinete presidencial, dispensando-se, até mesmo, inclusão na agenda oficial. Despachará três, quatro vezes, ou mais por dia, com o chefe do Executivo para tratar da redação de projetos de lei, medidas provisórias, e discutir os vetos presidenciais.
O posto é tão estratégico que personalidades-chaves da República já o ocuparam. Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e Dias Toffoli têm a mesma trajetória: foram titulares da SAJ. Em seguida, foram nomeados para o comando da Advocacia-Geral da União (AGU) - Gilmar no governo Fernando Henrique, Toffoli no governo Lula. Depois da AGU, foram indicados para compor a Corte Constitucional.
O desafio de Bolsonaro era encontrar um nome com formação jurídica que desfrutasse de sua máxima confiança. Tarefa inglória, porque o laço de Jorge Oliveira com os Bolsonaro é muito singular. É notório que o capitão Jorge Francisco, pai de Jorge Oliveira, foi assessor e chefe de gabinete de Bolsonaro por 29 anos. Oliveira também foi assessor de Bolsonaro, e nos últimos anos, era chefe de gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
O nome de Pedro Nunes surgiu naturalmente porque ele sucedeu ao capitão Jorge Francisco na chefia de gabinete de Bolsonaro na Câmara. Major reformado da Polícia Militar, assim como Oliveira, Pedro é advogado, formado em Direito na Universidade Cidade de São Paulo (Unicid).
Por sua vez, para assumir o lugar de Pedro, na chefia do gabinete presidencial, Bolsonaro promoveu Célio Faria, que também foi seu assessor legislativo. Ex-assessor parlamentar da Marinha, Célio é economista, e até então, coordenava a assessoria especial do presidente.
O reconhecimento pelos anos de lealdade, dedicação e discrição transpôs os limites dos postos palacianos, levando Bolsonaro a também nomear Pedro e Célio para assentos concorridos nos conselhos das estatais e empresas públicas.
Até março deste ano, Pedro ocupou uma cadeira no Conselho Fiscal do BNDESpar, braço do banco de fomento, com remuneração de R$ 8,1 mil pelas participações nas reuniões. O valor reforçava sua remuneração mensal como assessor palaciano.
Célio Faria, por sua vez, exerce um dos cargos mais concorridos entre os políticos: uma vaga no conselho de administração de Itaipu Binacional, com remuneração de R$ 14,9 mil, valor que incrementa o salário de auxiliar palaciano. A vaga no conselho de Itaipu é tão concorrida que Célio a divide com dois veteranos da política nacional: o ex-ministro Carlos Marum (MDB) e o ex-deputado José Aleluia (DEM).
Vale sublinhar que o núcleo militar palaciano também é formado por velhos conhecidos de Bolsonaro. Sabe-se que o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos - no momento sob fogo cruzado do ministro Ricardo Salles, com amparo da área ideológica - foi contemporâneo do presidente na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).
Já o vice-almirante Flávio Rocha, que deverá suceder a Jorge Oliveira na Secretaria-Geral, frequentava o gabinete do deputado Bolsonaro quando era assessor parlamentar da Marinha - cargo que Célio Faria também exerceu.
No núcleo militar, um ponto fora da curva foi o ex-ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz, que Bolsonaro chamava de “irmão”. Mas não teve laço de sangue que o segurasse no cargo quando Bolsonaro cismou que a confiança já era.
Pablo Ortellado: Guerras culturais
Declaração do papa a favor da união civil homossexual não altera engajamento da igreja nas guerras culturais
Causou controvérsia a declaração do papa Francisco a favor da união civil homossexual no documentário "Francesco", que estreou no último dia 21 de outubro na Itália.
Apesar do impacto, a declaração não era nova nem inédita. O papa já tinha dado declarações anteriores em defesa da união civil homossexual e tinha publicamente apoiado uma lei de união civil quando era arcebispo de Buenos Aires.
O posicionamento a favor da união civil na Argentina, porém, era uma tentativa de impedir medida mais ampla, a extensão do direito de casamento, que terminou aprovada no país em 2010.
Já como papa, em 2013, Francisco deu uma declaração demonstrando respeito aos homossexuais no voo de volta de sua viagem ao Rio de Janeiro: "Quem sou eu para julgar?".
A declaração que está no documentário ("O que temos que ter é uma lei de convivência civil. Dessa forma, eles [homossexuais] são legalmente cobertos") foi extraída de entrevista à TV mexicana Televisa, em 2019.
O fato de o trecho não ter ido ao ar em 2019 pode indicar dificuldades políticas. A emissora mexicana alegou que, na época, considerou o conteúdo sem interesse jornalístico, mas a transcrição oficial no site do Vaticano também apareceu editada sem o trecho.
Grupos conservadores reagiram criticamente à declaração publicada agora, dizendo que ela não altera as posições doutrinárias da igreja e cria confusão e incerteza na orientação dos fiéis.
Seja como for, a posição do papa de respeito e acolhimento aos homossexuais tem sido consistente. Mas também tem sido consistente sua batalha em defesa do casamento tradicional entre homem e mulher e contra a chamada "teoria de gênero".
Teoria de gênero é uma construção conceitual da teologia católica que acredita que o feminismo e o movimento LGBTQ —ou pelo menos parte deles— estão engajados em promover na sociedade e nas escolas a ideia de que a distinção entre os gêneros não está assentada na divisão biológica dos sexos, mas que seria apenas questão de opção individual.
Essa crença toma a defesa do respeito à diversidade feita pelos movimentos por uma campanha organizada para embaralhar os papéis de gênero e a orientação sexual das crianças com o intuito de destruir a família.
Embora a declaração do papa no documentário colabore para promover a tolerância com os homossexuais que é bastante presente em países de maioria católica, sua batalha reiterada contra o moinho de vento da teoria de gênero alimenta as guerras culturais e, indireta e involuntariamente, fortalece a posição dos violentos e dos preconceituosos.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Joel Pinheiro da Fonseca: Trump ou Biden - Quem é melhor para o Brasil?
Com o democrata, país seria forçado a abandonar a estratégia de bajulação
Biden é um candidato moderado, pró-globalização, dotado de vasta experiência pública e com uma agenda de desenvolvimento sustentável para seu país.
Trump é um populista isolacionista e que governa pensando apenas em sua popularidade imediata. Não tenho muita dúvida de qual seria melhor presidente para os EUA. Mas, dado que Bolsonaro construiu uma relação especial com Trump, será que, do ponto de vista brasileiro, a reeleição do presidente americano seria melhor?
Não seria. Primeiro porque a nossa relação de subserviência para com os EUA não nos tem rendido muitos frutos. Às vezes ganhamos um afago —como a simplificação aduaneira—, mas Trump bem sabe que dependemos muito mais dele do que ele de nós e por isso impõe tarifas a nossos produtos sem pensar duas vezes. Ao mesmo tempo, nossa relação com as outras nações só piora. Com Biden, seríamos "forçados" a abandonar a estratégia da bajulação e nos portar novamente como nação altiva em busca de seus interesses.
Interesses como o estreitamento de laços comerciais com todos: China, EUA, UE, países árabes, Israel. Para isso, uma OMC atuante (hoje está, por iniciativa americana, capenga) nos ajuda; já um mundo marcado por guerras comerciais intempestivas, e se fechando cada vez mais, nos atrapalha.
Trump é o rei da bravata vazia. Fala grosso com a China, inicia uma guerra comercial. Mas não entrega resultados. O déficit comercial dos EUA aumentou. No início de seu mandato, Trump saiu das negociações da Parceria Transpacífica, que uniria comercialmente diversas nações do oceano Pacífico, excluindo a China.
Desde então, os demais países fecharam um acordo entre si, e os EUA ficaram de fora. O "colocar a América em primeiro lugar" de Trump significou, na prática, fechar e isolar o país, tornando o mundo menos interconectado e mais caótico.
No debate do dia 22, a diferença entre os dois candidatos era clara: ambos entendem que a ascensão chinesa apresenta ameaças, mas enquanto Trump apela para a mistificação do "vírus chinês", ponta de lança retórica para um cabo de guerra indefinido, Biden dá os termos de estratégia pensada: enquadrar a China nas regras globais —seja no meio ambiente, propriedade intelectual, práticas comerciais, etc. Com Biden, acordos econômicos substantivos se tornam mais prováveis.
Por fim, o governo Biden seria melhor para nós também na pauta ambiental. Trump encoraja a irresponsabilidade destrutiva de Bolsonaro e Ricardo Salles. Já corremos o risco real de perder o acordo comercial com a UE se nada for feito para reverter o quadro de devastação. Empresas internacionais começam já a boicotar produtos brasileiros que possam estar ligados ao desmatamento. Caso se torne presidente, Biden será mais uma liderança que nos ajudará a seguir a direção certa, conforme ele próprio disse no primeiro debate.
No meio ambiente, como em tantas outras pautas, nosso interesse de longo prazo é harmônico com o do resto do mundo: a Amazônia é uma fonte de riqueza e prestadora de serviços ambientais que beneficiam mais o Brasil do que qualquer outro país.
O mundo que beneficia o Brasil é um mundo de relações amistosas entre os países, mediadas por regras e instituições internacionais. Em que a diplomacia tem precedência sobre as armas.
Se Biden vencer, o mundo respirará aliviado. No Brasil, será motivo para celebrar duplamente.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Cristina Serra: O Chile de Isabel Allende
Chilenos escolheram se livrar da Constituição, que ainda era a de Pinochet
Em agosto de 1986, entrevistei a escritora chilena Isabel Allende, recém-convertida em sucesso editorial com seu livro de estreia, "A Casa dos Espíritos". Afilhada do presidente Salvador Allende, morto no golpe do general Pinochet, em 1973, Isabel vivia com a família em Caracas (Venezuela).
Entre vários assuntos, Isabel falou sobre as organizações de mulheres na resistência à ditadura em seu país, antevendo que elas teriam atuação decisiva num Chile que não tardaria a se reencontrar com a democracia. "O povo chileno se pôs de pé", afirmou. De fato, dois anos depois, um plebiscito disse não ao ditador, que deixou o poder em 1990.
O Chile passou a ser visto como exemplo de estabilidade política, alternando governos mais à esquerda ou à direita, sem que nenhum deles, contudo, conseguisse sanar a fratura da profunda desigualdade social. Até que, um ano atrás, o aumento das passagens de metrô levou o povo de volta às ruas, de onde não mais saiu.
O "estallido" incorporou reivindicações como saúde, educação e previdência públicas. E teve participação ativa de coletivos feministas, com a pauta de igualdade de gênero e fim da violência contra as mulheres. Uma das organizações tornou-se fenômeno mundial com o refrão: "El violador eres tú".
As manifestações acabaram desaguando em outro plebiscito histórico, neste domingo (25). Os chilenos escolheram se livrar da atual Constituição, que, apesar de reformada, ainda era a de Pinochet. Também decidiram que a nova carta será escrita por uma assembleia constituinte a ser eleita no ano que vem, composta meio a meio por homens e mulheres, tendo ainda uma cota para indígenas mapuches. Será a primeira vez no mundo que uma assembleia paritária irá redigir uma Constituição.
Até que a nova carta seja aprovada, em 2022, há um longo percurso. Desde já, porém, o Chile aponta caminhos, reacende esperanças e inspira todos os que acreditam na democracia. Isabel Allende acertou na mosca.
Ricardo Noblat: Um regime como o da Venezuela para Bolsonaro chamar de seu
Líder do governo na Câmara quer uma nova Constituição
Chico Rodrigues (DEM-RO), sim, o do dinheiro na cueca e entre as nádegas, foi destituído da função de vice-líder do governo no Senado porque o que ele fez poderia respingar na imagem do presidente Jair Bolsonaro. Não seria o caso, agora, e pelo mesmo motivo, de Bolsonaro destituir também Ricardo Barros (PP-PR) da função de líder do governo na Câmara dos Deputados?
Ex-ministro da Saúde do governo Michel Temer, Barros pegou carona no plebiscito do Chile que aprovou por quase 80% dos votos a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte para sugerir que algo parecido ocorresse por aqui. Para ele, a atual Constituição, em vigor desde 1988, deve ser reescrita porque é impossível governar com ela, tantos são os seus defeitos.
Trata-se, segundo o ex-ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, da “opinião de alguém que não sabe o que é Constituição, não sabe o que é política, não sabe o que é governabilidade”. Se política tem a ver com dinheiro sujo no bolso, Barros entende. Em meados do mês passado, ele foi alvo de operação que investiga crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
A operação teve como base os depoimentos de dois ex-executivos do grupo Galvão que fecharam acordos de delação premiada com a Lava Jato. Segundo os delatores, Barros recebeu mais de R$ 5 milhões em propina da empresa Galvão Participações, de 2013 a 2014. Na época, ele era secretário de Indústria e Comércio do Paraná. O deputado jura que é inocente.
Assembleia Nacional Constituinte só faz sentido quando há uma ruptura institucional. Aqui houve quando se esgotou em 1985 a ditadura militar de 64 e o Brasil reconciliou-se com a democracia. Era preciso uma nova carta para regular o novo regime. A democracia no Chile foi restabelecida em 1990, mas o país vive até hoje sob uma Constituição herdada da ditadura.
O Congresso tem como fazer mudanças pontuais na Constituição de 1988 por meio de propostas de emendas – e muitas já foram feitas. A Constituição suportou dois processos de impeachment de presidente da República – o de Collor e o de Dilma. E tem sobrevivido incólume às investidas de Bolsonaro contra ela. Não há sequer sinais de uma ruptura institucional por estas bandas.
Então para quê reformá-la de ponta a cabeça? Para aumentar os poderes de um presidente adepto da ditadura e defensor da tortura? Era só o que faltava. Bolsonaro denuncia os males do regime venezuelano de Chávez e Maduro e, no entanto, gostaria de poder cloná-lo. É porque esse é seu sonho que ele não destituirá Barros. Se não dá agora, quem sabe em um segundo mandato?
Vida é o que importa, o mais é negacionismo ou estupidez
A obrigatoriedade da vacina
Roga-se ao ministro da Justiça, ao advogado geral da União e ao Procurador-Geral da República que orientem o presidente Jair Bolsonaro em tudo o que diga respeito ao ordenamento jurídico do país, assunto que é de supor que eles dominem. Ou não?
Em mais um ato do seu teatro mambembe à entrada do Palácio da Alvorada, dessa vez Bolsonaro afirmou que nenhum juiz pode decidir “se você vai ou não tomar a vacina” contra a Covid-19. Disse ainda que seria mais fácil investir na cura do que na vacina.
Se ele admite que ministro do Supremo Tribunal Federal é também juiz, é bom que saiba que 7 dos 11 ministros do Supremo são a favor da vacinação obrigatória. E por uma razão muito simples: interesses coletivos estão acima de interesses individuais.
Quem se recusa a ser vacinado pode contrair o vírus e infectar outras pessoas. Não há garantia de que alguém que já teve a doença não possa voltar a ter. A imunização também não é para sempre. O vírus poderá ser para sempre como tantos outros.
Em abril último, Bolsonaro tentou impedir que estados e municípios pudessem decretar medidas de isolamento. Perdeu no Supremo por 9 a zero. Perderá outra vez se tentar. Quanto a sair mais barato investir na cura do que na vacina…
Por estúpido, o argumento dispensa comentários.
Merval Pereira: Não há base legal nem política para uma Constituinte
Não é a primeira vez, nos últimos anos, que a proposta de uma Assembleia Constituinte surge no debate político brasileiro, e nunca vingou, como essa não vingará, porque não há base legal nem política para tal convocação.
Muito antes da direita, a esquerda levantou essa tese em várias ocasiões. O ex-presidente Lula propôs uma Constituinte para fazer a reforma política por meio de Fernando Haddad, candidato do PT na campanha à Presidência da República em 2018.
A então presidente Dilma Rousseff apresentou a Constituinte como uma solução quando houve as manifestações de 2013. Mais recentemente, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, propôs uma Constituinte para fazer as reformas que o Congresso considerasse necessárias. Ninguém deu ouvidos, e a proposta foi fulminada por um comentário do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que disse na ocasião: “Vamos caminhar para o que Chávez fez? Foi por isso que a Venezuela chegou aonde está”.
Agora vem o líder do governo, Ricardo Barros, com uma proposta dessas, baseado numa leitura equivocada dos acontecimentos políticos no Chile, que acaba de aprovar a convocação de uma Constituinte para enterrar a Constituição em vigor, oriunda da ditadura militar de Pinochet.
Nesse ponto é que começa a se deteriorar a sugestão de Barros, pois nossa Constituição foi gerada justamente no começo de um novo ciclo democrático no país, depois de 21 anos de ditadura militar. O Chile virou uma democracia sob a mesma Constituição que regia o regime militar, embora ela não tenha impedido o país de prosperar nesse período, tornando-se modelo para seus vizinhos na América do Sul.
Os diversos presidentes de esquerda que governaram o Chile desde então não mexeram na Constituição, nem mesmo para aperfeiçoá-la, especialmente no que toca aos direitos sociais dos cidadãos. O deputado Ricardo Barros, ao defender uma Constituinte entre nós, alegou que a nossa é um obstáculo aos governos, cheia de direitos e poucos deveres, como aliás denunciou o então presidente José Sarney.
Pode ter até razão em certos aspectos, mas essas atualizações podem ser feitas por emendas constitucionais, como já vem sendo feito há anos. E, no Chile, os que aprovaram a Constituinte por larga maioria querem mesmo é uma Constituição-cidadã como a nossa, cheia de compromissos sociais.
A tese de Constituinte levantada por Barros não encontra respaldo na própria Constituição, que não prevê essa possibilidade. Depois de promulgada, em 1988, ela poderia ter sido revisada pelo Congresso cinco anos depois, mas não foi. A partir daí, não há como mudá-la sem a utilização de uma proposta de emenda constitucional (PEC) a ser aprovada pelo Congresso.
Como a exigência para uma emenda constitucional é grande — três quintos dos votos na Câmara e no Senado, em duas votações —, essa é a garantia que temos de que a Constituição não será alterada a qualquer momento.
É claro que uma PEC poderia, em tese, revogar a Constituição e convocar uma Constituinte, mas uma decisão desse tipo só seria aceitável em caso de ruptura institucional, como aconteceu nos anos 1980, após o fim da ditadura militar, resultando na atual Constituição. Foi o que aconteceu no Chile agora, quando mais de um ano de manifestações nas ruas desaguou na proposta da Constituinte.
De outra maneira, o Supremo Tribunal Federal impediria a ação do Congresso ou do Executivo, porque estariam sendo revogadas diversas cláusulas pétreas que são o pilar do nosso sistema democrático.
A convocação de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política, que já foi proposta pelo PT em diversas ocasiões nos últimos anos, parecia ser uma saída para a efetivação de uma reforma que, de outra forma, jamais sairá de um Congresso em que o consenso é impossível para atender a todos os interesses instalados, com 33 partidos constituídos e mais 37 na fila de espera.
Mas a proposta não foi para frente porque houve quem suspeitasse de que, no bojo dessa Constituinte, a base aliada do governo petista naquele momento tentaria aprovar não apenas a possibilidade de um terceiro mandato para Lula, mas também o reforço do poder do Executivo, como aconteceu na Venezuela de Chávez e na Bolívia de Evo Morales. Agora é o Centrão, na sua versão bolsonarista, que apresenta a proposta, com o mesmo objetivo: fortalecer o poder do governo.
Luiz Carlos Azedo: O golpismo disfarçado
Nossa Constituição é fruto de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, derrotados com a eleição de Tancredo Neves
O Chile decidiu em plebiscito convocar uma Constituinte formada por homens e mulheres, meio a meio, e sem a participação dos atuais mandatários, somente cidadãos. Foi o desfecho de um processo de insatisfação popular com o “Estado mínimo” chileno, uma herança do ditador Augusto Pinochet, consagrada na Constituição de 1980. Muita coisa mudou desde então, com sucessivas reformas constitucionais, mas o estigma de uma Carta pinochetista, ou seja, de inspiração fascista, havia permanecido, assim como o caráter privatista de uma legislação que não contemplava os direitos sociais. A convocação da Constituinte chilena, portanto, era uma questão de tempo e representará o fim de um ciclo político de 40 anos de transição do autoritarismo para a democracia plena.
É uma situação completamente diferente da nossa. Temos uma Constituição social-liberal, cujo preâmbulo diz que o nosso Estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Nossa Constituição é fruto, simultaneamente, de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, que haviam sido derrotados com a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, mas se retiraram do poder em ordem.
Entretanto, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), ontem, no embalo das notícias sobre o Chile, propôs um plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o nosso país. Não é uma tese nova. A ex-presidente Dilma Rousseff, após as manifestações de junho de 2013, por exemplo, namorou essa ideia, que foi prontamente rechaçada pelos políticos e pelos juristas. Agora, a proposta vem do outro lado do espectro político, com propósitos igualmente suspeitos, porque sabemos que o presidente Jair Bolsonaro gostaria de uma Constituição que lhe desse mais poderes em relação ao Judiciário e ao próprio Legislativo.
Muitos criticam a Constituição de 1988 porque é social-liberal. O pomo da discórdia é o seu artigo 3º, segundo o qual “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o desenvolvimento nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A existência desses dispositivos, principalmente quanto à economia e aos direitos sociais — ou seja, exatamente aquilo que os chilenos, ao aprovar a convocação da sua Constituinte, pleiteiam —, sempre incomodou os setores mais conservadores da nossa sociedade.
Mais poderes
No nosso caso, muitos podem achar que papel aceita tudo e que as coisas não funcionam por causa da Constituição de 1988. Não é verdade. Como diz o ex-deputado Miro Teixeira, um dos constituintes, nosso problema é cumpri-la. O que vem acontecendo ao longo dos anos é que o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja missão é zelar pelo respeito à Constituição, vem sistematicamente tomando decisões que obrigam ao cumprimento de diversos dispositivos desse artigo, sobretudo em relação às liberdades e à igualdade de direitos. Uma parte das críticas à “judicialização da política” e às decisões do Supremo resulta do exercício desse papel, como “poder moderador”, ainda mais quando atua para garantir direitos relativos a mudanças nos costumes ou para conter abusos dos governantes.
Pode ser que Ricardo Barros tenha anunciado a proposta para agradar ao chefe, mas é ilusão imaginar que o líder do governo é um bobo da corte. Parlamentar experiente, que há muitos anos lidera setores conservadores do Congresso, viu no plebiscito chileno uma oportunidade. Muitos gostariam de mudar a Constituição por maioria simples, como acontece nas constituintes. Hoje, essas mudanças só podem ser feitas por três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em duas votações, sendo que são cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas: (I) A forma federativa de estado; (II) O voto secreto, direto e universal; (III) A separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias individuais.
Agora mesmo, a propósito da polêmica sobre a obrigatoriedade da vacina contra o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro investiu contra o Judiciário, com o argumento de que a Justiça não pode decidir sobre esse assunto, embora esteja diretamente relacionado à teoria do dano direto e imediato, consagrada no nosso Código de Processo Civil. Bolsonaro, por diversas vezes, investiu contra o Supremo por acreditar que o fato de ter sido eleito presidente da República lhe dá poderes maiores do que aquele que a Constituição lhe atribuiu. Mudar a Constituição, inclusive para alterar a composição da Suprema Corte e amordaçar a imprensa, reprimir a oposição e se reeleger sucessivas vezes foi o estratagema de muitos mandatários eleitos que governam seus países autoritariamente.
O Estado de S. Paulo: Líder do governo Bolsonaro na Câmara diz que Constituição tornou Brasil 'ingovernável'
Ao comentar votação no Chile, Ricardo Barros defende plebiscito no País e afirma que a Carta brasileira 'só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação'
Breno Pires e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), defendeu a realização de um plebiscito para que os cidadãos brasileiros decidam sobre a elaboração de uma nova Constituição, sob o argumento de que a Carta Magna transformou o Brasil em um “País ingovernável”. Barros citou como exemplo o Chile, que foi às urnas no domingo, 25, e definiu que uma nova Assembleia Constituinte deverá ser eleita para a criação de uma nova constituição do país.
“Eu pessoalmente defendo nova assembleia nacional constituinte, acho que devemos fazer um plebiscito, como fez o Chile, para que possamos refazer a Carta Magna e escrever muitas vezes nela a palavra deveres, porque a nossa carta só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação”, disse Barros nesta segunda-feira, 26, em um evento chamado "Um dia pela democracia”.
No começo da tarde, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), rebateu a declaração de Barros. "A situação do Chile é completamente diferente da do Brasil. Aqui, o marco final do nosso processo de redemocratização foi a aprovação da nossa Constituição em 1988. No Chile, deixaram está ferida aberta até hoje", disse ele ao Broadcast Político/Estadão. Maia tem nacionalidade brasileira, mas nasceu em Santiago, no Chile, em 1970, durante o exílio do pai, o também político brasileiro Cesar Maia. O vereador e ex-prefeito do Rio de Janeiro era militante do Partido Comunista Brasileiro e havia fugido por ser perseguido pela Ditadura Militar no País.
Ricardo Barros, que representa os interesses do governo federal na Câmara dos Deputados, disse que a Constituição tornou o País “ingovernável”, ao afirmar que o Brasil hoje tem uma “situação inviável orçamentariamente". "Não temos mais capacidade de pagar nossa dívida, os juros da dívida não são pagos há muitos anos, a dívida é só rolada e com o efeito da pandemia cresceu muito, e esse crescimento nos coloca em risco na questão da rolagem da dívida”, disse. Emendas à Constituição, segundo ele, não são o suficiente.
“A nossa Constituição, a Constituição cidadã, o presidente (José) Sarney já dizia quando a sancionou, que tornaria o país ingovernável, e o dia chegou, temos um sistema ingovernável, estamos há seis anos com déficit fiscal primário, ou seja, arrecadamos menos do que gastamos, não temos capacidade mais de aumentar a carga tributária, porque o contribuinte não suporta mais do que 35% da carga tributária, e não demos conta de entregar todos os direitos que a Constituição decidiu em favor de nossos cidadãos”, disse.
O outro problema, na visão do parlamentar, é que “o poder fiscalizador ficou muito maior que os demais” e, por isso, seria necessário também “equilibrar os Poderes” no país. O deputado, que é alvo de investigações do Ministério Público Federal, diz que é preciso punir quem apresentar denúncias sem prova.
Conhecido crítico à Operação Lava Jato, Barros acrescentou que, apesar de ser um desejo dos brasileiros, o combate à corrupção não pode ser feito “cometendo crimes”. O deputado disse também ser a favor do parlamentarismo. “Seria um regime de governo muito mais efetivo, que nos permitiria ajustar rapidamente as crises, retomar mais rapidamente o rumo quando existe um impasse, mas vamos ainda lutar por isso”, disse.
O discurso do deputado foi feito em evento organizado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), que contou com a presença de ministros do Supremo Tribunal Federal, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e de juristas.
Integrante do Centrão, deputado federal por seis legislaturas e ex-ministro da Saúde de Michel Temer, Ricardo Barros foi nomeado como líder em agosto, no lugar de Major Vitor Hugo (PSL-GO).
Folha de S. Paulo: Vitória no plebiscito é recado a políticos do Chile e líderes estrangeiros, diz Lagos
Para ex-presidente, aprovação de mudança da Constituição mostra que 'modelo chileno' é falsa solução
Sylvia Colombo Folha de S. Paulo
SANTIAGO - Para o ex-presidente do Chile Ricardo Lagos, 82, o plebiscito que derrubou a Constituição da época da ditadura de Augusto Pinochet é um recado a líderes estrangeiros, como o presidente Jair Bolsonaro, que consideram ou chegaram a considerar que o “modelo chileno” seria um exemplo a ser seguido.
Lagos presidiu o país entre 2000 e 2006. Tentou convocar uma Assembleia Constituinte, mas, na época, partidos de direita se mantiveram unidos e não permitiram a realização de um referendo. O socialista, então, alterou, ponto por ponto, aspectos mais autoritários da Carta hoje em vigor.
Além do tom liberal, a Constituição de 1980 dava muito poder aos militares, o que colocava obstáculos a decisões do Legislativo e do Executivo. Entre as 58 modificações realizadas por Lagos estavam a redução do mandato presidencial de seis para quatro anos, o aumento do peso do poder do Congresso em detrimento da participação das Forças Armadas e o fim da designação de senadores vitalícios.
Como o senhor avalia o resultado do plebiscito?
Estou muito orgulhoso por termos honrado uma tradição chilena de institucionalidade. Este foi um processo que teve momentos de violência nos últimos meses, mas que não foram preponderantes ao final. Tivemos uma eleição massiva se considerarmos a pandemia e o histórico recente do Chile, de comparecimento muito baixo. Os cidadãos votaram com paz, inclusive os idosos, que poderiam ter temido o vírus e ficado em casa. Votou-se com entusiasmo, alegria e respeito.
Por que foi possível aprovar uma Assembleia Constituinte agora e não em seu período como presidente?
No meu tempo, a direita estava unida, e, portanto, era impossível aprovar um processo como este. Hoje, temos um setor da direita que concorda com a necessidade de renovar a Constituição. Demorou, mas chegamos a esse momento. Esses direitistas que mudaram de opinião, que poderiam ser considerados traidores em seu ambiente, deram-se conta de que as mudanças são necessárias. A explosão social do último ano colaborou para que abrissem os olhos para a inevitabilidade de ter de acompanhar as transformações dos tempos. Agora vamos assistir a uma reorganização da direita para a eleição constituinte e para as próximas presidenciais [em novembro de 2021].
O senhor considera que este plebiscito foi um recado à classe política?
Sim. É importante notar que boa parte de quem votou pelo “rejeito” ainda assim escolheu, na segunda cédula, a Assembleia Constituinte integralmente eleita. Ou seja, admitiu que, caso a Constituinte passasse, preferiam que fossem eleitos novos legisladores para redigi-la. Nesse sentido, foi um recado a legisladores e partidos que estão no poder agora. É um número interessante de ser analisado. Porque se os que votaram pelo “rejeito” estivessem contentes com os atuais políticos, pediriam que a assembleia fosse mista, pois assim os partidos de sempre poderiam ter controle da situação. Essa hipótese foi derrotada, portanto, tanto pelos que votaram “aprovo” quanto pelos que votaram “rejeito”.
Quais são os desafios do governo agora?
A votação gerou grande expectativa, mas é preciso que a população tenha paciência, porque a nova Constituição não ficará pronta neste mandato. É preciso eleger os membros da constituinte, que eles redijam a nova Carta e que depois ela seja aprovada. Portanto, os problemas da população seguirão presentes nos próximos dois anos, e o desafio do governo é atender a essas questões mais urgentes agora. No momento, o foco deve estar na recuperação econômica e em vencer a pandemia. O trabalho da assembleia constituinte seguirá paralelo, e seu efeito não é imediato.
O que o senhor diria para líderes como Jair Bolsonaro, que chegaram a defender a aplicação do chamado “modelo chileno”?
Respondi a essa questão a vários líderes, um deles foi o ex-presidente dos EUA George W. Bush. Quando você mexe num tema como a Previdência, por exemplo, adotando a capitalização em vez da repartição, você diminui muito aquilo que a pessoa receberá no futuro. E, no final das contas, isso acaba virando um problema novo para o Estado. A ex-presidente [Michelle] Bachelet teve de fazer aportes novos, com o sistema de “pilares solidários”, que foram repasses de benefícios para quem não tinha com o que viver depois de aposentado. O mesmo acontece em outras áreas quando você quer retirar o Estado de tudo. No final, o Estado tem de arcar com as contas. Ou seja, é uma falsa solução, muito imediata, que não funciona a longo prazo. Isso explicaria ao sr. Bolsonaro. Bush entendeu, nunca mais me perguntou.
O senhor acredita que as manifestações continuarão?
É possível, pois os problemas imediatos seguirão, temos muito a percorrer até a Constituição ficar pronta. Ela pode ser uma solução para o futuro, mas não para o presente. O governo tem de lidar com as urgências. Se não conseguir, as pessoas voltarão às ruas.
*Ricardo Lagos, 82, primeiro presidente socialista do Chile depois de Salvador Allende (1908-1973), que foi deposto pela ditadura de Augusto Pinochet, governou o país de 2000 a 2006. Advogado e economista, anunciou candidatura para as eleições de 2017, mas desistiu pouco depois por falta de apoio dentro de sua coalizão.
Entenda o plebiscito
O que foi votado?
No dia 25 de outubro, a população chilena decidiu se o país aprovava ou rejeitava a elaboração de uma nova Constituição. O plebiscito também perguntou se a nova Carta deveria ser elaborada por uma comissão constituinte formada apenas por representantes eleitos ou por uma comissão mista, que inclua também os atuais membros do Congresso.
Quais são as críticas à Constituição atual?
Liberal, a Carta não obriga o Estado a fornecer diretamente saúde, educação e proteção social aos chilenos, o que estimula a atuação privada nessas áreas. Uma mudança constitucional poderia obrigar o governo a ser mais atuante e ampliar o acesso da população a serviços básicos. Outra crítica é a de que ela foi feita pela ditadura de Augusto Pinochet, em 1980, com pouca participação popular, e que refazê-la permitirá incluir demandas de mais grupos, especialmente das mulheres.
E quais eram as razões para não mudá-la?
Defensores do "não" dizem que uma mudança radical pode comprometer a estabilidade econômica e argumentam que a Constituição poderia ser apenas reformada. Os críticos da mudança apontam que expandir a atuação social do governo depende muito mais de ter dinheiro em caixa do que das intenções da Constituição e consideram que ela não deveria ser tão detalhista, como apontar em quais questões sociais o governo deve agir.
Como se chegou ao plebiscito?
A mudança da Constituição foi uma das demandas dos protestos realizados no país a partir de outubro de 2019. O estopim foi a alta da tarifa do metrô em Santiago, mas logo se tornou um movimento contra a alta do custo de vida e a dificuldade de acesso à educação e saúde e o baixo valor das aposentadorias. O Congresso aprovou a realização de um plebiscito constitucional em novembro, que seria votado em abril. Por causa da pandemia, ele foi adiado para outubro.