Luiz Carlos Azedo: Cuidado com a palavra

“Na opinião pública mundial, os heróis não são os militares, são os índios, que têm suas terras invadidas e, agora, de novo, estariam ameaçados de extinção. Como? Pela covid-19”

A palavra genocídio, substantivo masculino, significa extermínio de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso (Houaiss). O maior de todos, no século passado, foi o Holocausto, o assassinato em massa de judeus pelos nazistas, que defendiam a superioridade racial dos arianos. Genocida era, por exemplo, o médico alemão Josef Menguele, que morreu em Bertioga (SP), em 1979, com o nome falso de Wolfgang Gerhard. Ele realizava experiências genéticas no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, durante a II Guerra Mundial. Estima-se que morreram no Holocausto 6 milhões de judeus, de um total de 21 milhões de prisioneiros assassinados pelos nazistas na II Guerra Mundial.

O genocídio foi tipificado como crime contra a humanidade em 1951, quando foi criada a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. A partir daí, assassinatos em massa como consequência de diferenças étnicas, nacionais, raciais e religiosas passaram a ser qualificados como tal, especialmente quando se trata de limpeza étnica. Houve genocídio na colonização das Américas e da África; no século passado, na Turquia (armênios), Camboja (oposição ao regime comunista), Timor Leste (nacionalistas), Kosovo (albaneses), Ruanda (tutsis), Bósnia (muçulmanos) e Iraque (curdos). O Brasil reconhece o genocídio como crime desde 1956.

Por isso mesmo, não foi gratuita a reação dos militares às declarações do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que criticou duramente o general de divisão Eduardo Pazzuelo, um graduado oficial da ativa, por sua atuação à frente do Ministério da Saúde: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”, disse.

Povos indígenas

O Ministério da Defesa anunciou, em nota, que encaminhará uma representação na Procuradoria Geral da República (PGR) contra o ministro. O presidente Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão e o chefe do gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, manifestaram apoio à nota, no mais novo contencioso entre as Forças Armadas e um ministro da Corte. A nota foi assinada pelo ministro Fernando de Azevedo e Silva, que é general da reserva do Exército, e pelos comandantes do Exército, general Edson Leal Pujol; da Marinha, almirante Ilques Barbosa Junior; e da Aeronáutica, brigadeiro Antonio Carlos Bermudez.

Os bombeiros de sempre entraram no circuito para circunscrever a crise à nota dos militares, que o ministro Gilmar Mendes tirou por menos. No Twitter, disse que tem apreço pelas Forças Armadas, mas reiterou a crítica à presença de Pazuello no Ministério da Saúde, um assunto que também não é pacífico entre os militares da ativa. O general comanda a pasta interinamente. A pretexto de cuidar da logística do combate à epidemia, na prática, opera a “imunização de rebanho”.

É aí que mora o perigo. Estados Unidos e Brasil são responsáveis por metade dos novos casos de coronavírus registrados nas últimas 24 horas em todo mundo. Pazzuelo está perdendo a guerra, camuflado de burocrata no seu gabinete da Esplanada, por mais que a nota do Ministério da Defesa enalteça seu trabalho. No plano internacional, o Brasil virou um pária ambiental e sanitário. Na opinião pública mundial, os heróis nessa história não são os militares, são os índios, que têm suas terras invadidas e, agora, de novo, estariam ameaçados de extinção. Como? Pela covid-19. Bolsonaro é demonizado por seu desapreço pelas florestas e pelos índios.

A população indígena em 1500 era de aproximadamente 3 milhões, divididos entre 1.000 povos diferentes, sendo 2 milhões no litoral. Em 1650, esse número caiu para cerca de 700 mil indígenas, chegando a 70 mil em 1957. Cerca de 80 povos indígenas desapareceram no Brasil no século XX. Segundo o IBGE, atualmente, há no Brasil cerca de 817 mil indígenas. Desse total, 502 mil encontram-se na zona rural e 315 mil nos centros urbanos. Em apenas 10 das 505 reservas indígenas (12,5% do território brasileiro), somente dez apresentam uma população indígena maior do que 10 mil habitantes.

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Luiz Carlos Azedo: A rede do ódio

“O Facebook revelou que as contas canceladas estavam envolvidas com a criação de perfis falsos e ‘comportamento inautêntico’, ou seja, enganavam os usuários das redes sociais”

O chamado “gabinete do ódio”, grupo de funcionários da Secretaria de Comunicação da Presidência da República que opera o jogo bruto do presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e principais apoiadores nas redes sociais, foi praticamente desmantelado no Facebook, que cancelou 35 contas, 14 páginas e um grupo; e no Instagram, no qual eliminou 38 contas. O grupo reunia, aproximadamente, 350 pessoas, que eram seguidas por 883 mil bolsonaristas no Facebook e 917 mil, no Instagram. O Facebook revelou que as contas canceladas estavam envolvidas com a criação de perfis falsos e “comportamento inautêntico”, ou seja, enganavam os demais usuários sobre quem eram e o que faziam nas redes sociais. Foram gastos US$ 1,5 mil em anúncios por essas páginas, pagos em real.

Segundo a empresa, foi possível identificar as ligações dessas pessoas com funcionários dos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro, do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos -RJ) e também dos deputados estaduais Anderson Moraes e Alana Passos, do PSL no Rio de Janeiro. “A atividade incluiu a criação de pessoas fictícias fingindo ser repórteres, publicação de conteúdo e gerenciamento de páginas fingindo ser veículos de notícias”, diz o Facebook. A empresa antecipou-se às conclusões do inquérito presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que investiga ameaças à Corte e aos ministros que a integram, e também da CPMI das Fake News, cujo relator, deputado Angelo Coronel (PSDD-BA), comemorou a decisão.

O grupo usava uma combinação de contas duplicadas e contas falsas para evitar a aplicação de políticas de combate ao conteúdo de ódio e perfis falsos. Não houve divulgação das contas, mas, entre elas, estão os perfis “Jogo Político” e “Bolsonaro News”, no Facebook. Nos Estados Unidos e na Europa, está havendo uma forte reação à utilização das redes sociais para manipular as eleições, como aconteceu nas eleições de 2016, que elegeram Donald Trump. O Congresso norte-americano investigou a suposta interferência da Rússia naquelas eleições, em favor de Trump, e convocou o presidente do Facebook, Mark Zuckerberg, para explicar o caso da Cambridge Analytica, que teria utilizado informações sigilosas dos usuários das redes para manipular as eleições e recebeu uma multa de US$ 5 bilhões da Free Trade Comission (comissão reguladora dos Estados Unidos), por vazamento de dados.

Mais controle

Para evitar complicações judiciais, o Facebook e o Twitter, desde então, resolveram adotar novos procedimentos. No fim do ano passado, o presidente e fundador do Twitter, Jack Dorsey, baniu anúncios políticos da rede social. O presidente e fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, porém, manteve os anúncios. Twitter e Facebook têm nos anúncios ou posts patrocinados mais de 80% de suas receitas.

Impulsionamentos fazem com que uma postagem chegue a mais pessoas. O anunciante consegue delimitar seu público, por idade, região, interesses. Com isso, os políticos alcançam públicos específicos e formam bolhas de seguidores. Bolsonaro estruturou sua campanha fazendo isso com eficiência, mas sempre jogando pesado contra os adversários. A rede de perfis falsos e robôs desmantelada, ontem, servia para isso. O modelo era o mesmo da campanha de Trump: fake news.

Em 2016, o portal Breitbart espalhou notícias falsas sobre a candidata democrata Hillary Clinton. O homem forte do Breitbart era Steve Bannon, que foi chefe de campanha de Trump. Aqui no Brasil, nas eleições de 2018, ele também foi o estrategista de Bolsonaro nas redes sociais. Entretanto, o principal canal utilizado foi o WhatsApp. Os disparos em massa patrocinados por empresários fizeram a diferença. Pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com a Agência Lupa, analisaram mais de 300 grupos de WhatsApp sobre política e constataram que 56% das imagens eram enganosas.

Ontem, o Facebook revelou que os conteúdos publicados nas contas canceladas no Brasil eram sobre notícias e eventos locais, incluindo política e eleições, memes políticos, críticas à oposição, organizações de mídia e jornalistas e sobre a pandemia de coronavírus. O Facebook também removeu contas nos Estados Unidos e na Ucrânia, que miravam audiências internas. No Canadá e no Equador, foram canceladas contas que operavam em outros países: El Salvador, Argentina, Uruguai, Venezuela, Equador e Chile.

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Luiz Carlos Azedo: A Lava-Jato não morreu

“Paira como espada de Dâmocles sobre a cabeça dos políticos enrolados com caixa dois eleitoral e outros ilícitos, tendo Sergio Moro como símbolo”

Com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro na planície, amargando o que talvez tenha sido seu grande erro — deixar a carreira de juiz para ser ministro do governo Bolsonaro —, e a força-tarefa de Curitiba sob pressão administrativa por parte do procurador-geral da República, Augusto Aras, que pretende unificar todas as forças-tarefa numa coordenação sob sua supervisão, a Operação Lava-Jato parecia perto do fim. Entretanto, na sexta-feira, mostrou que está vivíssima e continua sendo uma variável a ser considerada do processo político brasileiro. A bola da vez foi o senador José Serra (PSDB-SP), acusado de receber propina para garantir contratos da construtora Odebrecht com órgãos públicos em São Paulo.

A Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços ligados ao parlamentar. Serra foi deputado federal, ministro da Saúde, prefeito de São Paulo, de 2005 a 2006, e governador do estado entre 2007 e 2010. Segundo a Lava-Jato, teria se beneficiado com propina em duas vezes: o primeiro repasse teria sido de R$ 4,5 milhões, e o segundo, de R$ 23,3 milhões. De acordo com a PF, era identificado pelo codinome “Vizinho” nas planilhas de pagamentos ilegais da empreiteira, porque morava perto de Pedro Novis, suposto contato dele com a Odebrecht. “Vizinho” aparece em planilhas de repasses ilegais relacionados às obras do Rodoanel de São Paulo, segundo a denúncia oferecida à Justiça contra o parlamentar e a filha dele, Verônica Serra. Ao todo, o senador teria recebido R$ 27,8 milhões ao longo dos anos.

A Justiça também autorizou o bloqueio de R$ 40 milhões de uma conta na Suíça supostamente atribuída a Serra. O dinheiro seria proveniente de contratos superfaturados da Dersa, uma empresa que opera rodovias para o governo do estado de São Paulo. Os repasses eram depositados por meio da Circle Technical Company, empresa offshore, no Corner Bank da Suíça. José Serra negou ter cometido qualquer ilegalidade e disse que as ações da Polícia Federal causam “estranheza e indignação”. Em nota, afirmou que houve “uma ação completamente desarrazoada”. Sua defesa alega que a Lava-Jato “realizou busca e apreensão com base em fatos antigos e prescritos e após denúncia já feita, o que comprova falta de urgência e de lastro probatório da acusação.”

Bandeira

A denúncia atinge diretamente o PSDB, do qual Serra é um dos fundadores e líderes mais importantes, tendo sido prefeito, por duas vezes, candidato a presidente da República. Do ponto de vista jurídico, pode ser que não dê em nada, pois o que ocorreu há mais de dez anos já prescreveu, independentemente de comprovação. Politicamente, porém, mostrou o poder de fogo da Lava-Jato, desta vez, via força-tarefa de São Paulo.

A queda de braço do procurador-geral Augusto Aras com os procuradores do Paraná, de São Paulo e do Rio de Janeiro não tem um desfecho definido. A enfrenta grande resistência dos procuradores. Mesmo que a extinção das mesmas e a unificação do combate à corrupção numa coordenação centralizada em Brasília venha ocorrer, a Lava-Jato permanecerá como um fantasma assombrando os políticos, porque a bandeira da ética continua sendo um divisor de águas na política nacional. Graças a ela, mas não somente, Jair Bolsonaro se elegeu presidente da República; mesmo saindo de suas mãos, a Lava-Jato continuará pairando como espada de Dâmocles sobre a cabeça dos políticos enrolados com caixa dois eleitoral e outros ilícitos, tendo Sergio Moro como símbolo. Desconstruir a imagem do ex-juiz, como parece ser a intenção de Aras, não será uma tarefa fácil.

O saldo da Lava-Jato é o maior expurgo já promovido na política brasileira num ambiente democrático, desde a Proclamação da República. Houve outros dois grandes expurgos, um na ditadura Vargas e outro no regime militar, mas não com base no chamado “devido processo legal”. Nas eleições passadas, o papel da Lava-Jato foi alimentar a narrativa antissistema e impulsionar o tsunami que levou Bolsonaro ao poder. Nas eleições desse ano, que ocorrerá na rebordosa da pandemia de coronavírus e em meio à recessão econômica, com certeza, manterá sua força de inércia, graças à legislação criada sob sua influência, alijando das eleições os políticos com a “ficha suja” (condenados em segunda instância), por antecipação, e queimando o filme dos suspeitos de corrupção.

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Luiz Carlos Azedo: Poderia ser pior

“O afrouxamento do distanciamento social, por descoordenação entre os entes federados e forte pressão social, mostra o risco da imunização de rebanho”

Em meados de março passado, um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido — a mesma que desenvolve a vacina que está sendo testada por aqui — previa a ocorrência de 478 mil mortes pelo novo coronavírus no Brasil, o que foi e ainda é considerado um exagero. Chegaram a essa conclusão analisando os casos da Itália e da Coreia do Sul e comparando os perfis demográficos desses países com os do Brasil e da Nigéria.

Na mesma época, dois pesquisadores brasileiros montaram um modelo matemático em Python, que previa a ocorrência de 2 milhões de mortes no Brasil, caso o isolamento social não fosse adotado. José Dias do Nascimento Júnior, professor e doutor em astrofísica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e astrônomo associado ao Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, e Wladimir Lyra, doutor da New Mexico State University, compartilharam os dados com o conceituado Centro de Ciências de Sistemas e Engenharia (CSSE, em inglês) da Universidade Johns Hopkins.

Então, os indicadores de contaminação da Itália registravam que um infectado passava o vírus a três ou quatro pessoas, em média, antes de se curar ou morrer pela doença; com isso, o número de casos dobrava a cada quatro dias. Diante das projeções, Lyra concluiu que haveria duas maneiras de finalizar essa epidemia. A primeira é quando muitas pessoas fossem infectadas e desenvolvessem a imunidade ao se curar. Obviamente, nesse caso, o número de mortos poderia ser assustador. A segunda maneira seria quando a taxa de infecção fosse menor do que a taxa de remissão. A quarentena (ou vacina) funciona por diminuir a taxa de infecção. O tratamento aumenta a taxa de remissão. Sem capacidade de tratamento ou vacina, temos apenas a quarentena como medida eficaz.

Na época, no Brasil, cada pessoa infectada estava, em média, infectando seis. Caso nada fosse feito, em dois meses, 53% da população estaria infectada ao mesmo tempo. Isso significaria mais de 100 milhões de casos e 2 milhões de mortos. Esses e outros estudos foram decisivos para a adoção da estratégia de isolamento, com objetivo de achatar a curva da epidemia e permitir que o sistema de saúde se estruturasse para enfrentar a doença.

Caso a estratégia de “imunização de rebanho” tivesse sido adotada, como o presidente Jair Bolsonaro ainda defende, a situação atual seria muito pior, diria o humorista Barão de Itararé, na sua Teoria das duas hipóteses, segundo a qual tudo pode piorar. Apparício Fernando Brinkerhofer Torelly, genial criador do jornal A Manha, sabia das coisas. Ou seja, é falsa ideia de que a quarentena não funcionou, mesmo aos trancos e barrancos. E o afrouxamento da política de distanciamento social, por descoordenação entre os entes federados e forte pressão social sobre governadores e prefeitos, está mostrando o risco que a imunização de rebanho ainda representa.

Tragédia anunciada

Quando os estudos foram divulgados, o Brasil tinha 413 casos confirmados, sendo 291 em São Paulo, e registrava a primeira morte, um homem de 62 anos, na capital paulista. Hoje, estamos próximos de 1,5 milhão de brasileiros infectados, com quase 50 mil novos contaminados e mais de 1.200 mortes por dia. Somente o estado de São Paulo confirmou mais 12.244 casos nas últimas 24 horas e mais 321 óbitos.

Metade das unidades federativas do país já registrou mais de mil mortes pelo novo coronavírus. O Rio de Janeiro tem 116.823 casos e 10.332 mortes. O Pará bateu mais de cinco mil perdas, com 5.004 registros. O Ceará tem 6.284; Pernambuco, 4.968 mortes. Amazonas, 2.862; Maranhão, 2.119; Bahia, 1.947; Espírito Santo, 1.728; Rio Grande do Norte, 1.103; Alagoas, 1.091; Minas Gerais; 1.059; e Paraíba, 1.044. A epidemia, agora, avança nos estados do Centro-Oeste e no Distrito Federal.

Como na economia o estrago é enorme — a massa salarial perdeu R$ 52 bilhões, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)—, prefeitos e governadores entraram numa espécie de salve-se quem puder. Em muitas cidades, o isolamento social está sendo substituído pela distribuição de um coquetel à base de hidrocloroquina, para a população de baixa renda, que se contamina na volta ao trabalho.

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Luiz Carlos Azedo: Eleições em novembro

“Bolsonaro não deu sinais de que pretende interferir diretamente nas eleições municipais, mas já pululam candidatos bolsonaristas de primeira hora”

A Câmara aprovou ontem, por 402 votos a favor e 90 contra, com quatro abstenções, a emenda constitucional que adia as eleições de 4 e 25 de outubro para 15 e 25 de novembro, em primeiro e segundo turnos, respectivamente. A proposta foi articulada com êxito pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, e os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Houve resistência por parte do Centrão, principalmente do PL, com 41 deputados, cujo líder na Câmara, Wellington Roberto (PB), comandou a oposição à mudança. O texto volta ao Senado para promulgação.

O adiamento das eleições era pedra cantada, em razão da pandemia da covid-19. Além do risco de contaminação dos eleitores nas seções eleitorais, existe a dificuldade criada pela situação sanitária do país para preparação do pleito por parte da Justiça eleitoral. O mais importante na discussão sobre o adiamento foi evitar a prorrogação de mandatos de prefeitos e vereadores, como alguns defendiam, inclusive, com propostas de coincidência do pleito com as eleições gerais de 2022. Esse risco foi afastado, embora o texto aprovado tenha um gatilho que permite ao Congresso, caso um município ou estado não apresente condições sanitárias para realizar as eleições em novembro, editar um decreto legislativo designando novas datas para a realização do pleito, tendo como data-limite o dia 27 de dezembro de 2020. A proposta original atribuía essa prerrogativa ao TSE, mas foi modificada.

Com isso, as regras do jogo para as eleições municipais estão finalmente definidas: o prazo de registro das candidaturas foi adiado de 15 de agosto para 26 de setembro; os partidos escolherão seus candidatos entre 31 de agosto e 16 de setembro, por meio virtual. No embalo, a legislação que proibia propaganda institucional das prefeituras no período de 90 dias anteriores ao pleito foi alterada. Atos e campanhas destinadas à luta contra a pandemia do coronavírus poderão ser feitos, mas sob rigorosa fiscalização da Justiça eleitoral, para evitar abusos.

A propaganda eleitoral começa apenas depois de 26 de setembro. Até lá, quem pedir voto antecipadamente ou gastar muito dinheiro em redes sociais corre o risco de ter a candidatura impugnada ou até mesmo ter o mandato cassado, se eleito, por campanha antecipada ou abuso de poder econômico, respectivamente. Expressões como “peço seu apoio”, “conte comigo”, “me dê um voto de confiança” e outras, nas redes sociais, podem servir de prova contra os candidatos.

Cenários
Serão eleições atípicas, por causa da pandemia. Teoricamente, os prefeitos que se candidatarem à reeleição terão a avaliação de sua gestão impactada pela pandemia, talvez mais até do que suas realizações anteriores. Levam a vantagem, porém, de que a campanha terá muito pouco corpo a corpo, o que em eleições municipais era decisivo, principalmente nas cidades de médio e pequeno portes. Mas os que não podem se reeleger e pretendem fazer o sucessor, em contrapartida, terão as mesmas dificuldades com seus candidatos. Além disso, com o fim das coligações proporcionais, haverá maior número de candidatos.

Mesmo nas grandes cidades, que influenciam os destinos da política nacional, como São Paulo, não se sabe ao certo qual será o grau de “nacionalização” da disputa eleitoral. De certa forma, a politização do combate à pandemia protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro é uma realidade, bem como o impacto da ajuda emergencial do governo de R$ 600 (que terão um total de cinco parcelas), principalmente nas periferias dos grandes centros e municípios do sertão. Quanto mais profundo o grotão, maior esse impacto.

O presidente Jair Bolsonaro ainda não deu sinais de que pretende interferir diretamente nas eleições municipais, mas já pululam candidatos que se dizem bolsonaristas de primeira hora. Nas eleições passadas, também não tinha candidatos, com exceção dos filhos Eduardo, em São Paulo, e Flávio, no Rio de Janeiro, e alguns poucos aliados, mas eles apareceram durante a campanha e surfaram a onda da sua eleição, nas disputas de vagas nas assembleias legislativas, na Câmara e no Senado, além de governos estaduais. O nanico PSL, por exemplo, emergiu com a segunda bancada da Câmara; novatos na política se elegeram até a governador, como Wilson Witzel, no Rio de Janeiro. As pesquisas de imagem com resultados negativos para Bolsonaro, por causa da pandemia, podem pôr em xeque essa vinculação, mas isso, ainda, é apenas uma especulação.

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Luiz Carlos Azedo: “Meritocracia”

“Bolsonaro nunca quis um educador reconhecido, mas alguém que pudesse confrontar ideologicamente a oposição nas universidades e demais órgãos da Educação”

Em absoluto descrédito, por ter fraudado o próprio currículo, o ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, entregou a carta de demissão ao presidente Jair Bolsonaro, antes mesmo de tomar posse oficialmente. Foi uma saída até honrosa, depois de idas e vindas do Palácio do Planalto e tentativas de justificar o injustificável por parte de Decotelli. Jair Bolsonaro havia anunciado o seu nome como uma espécie de contraponto à passagem histriônica e turbulenta de Abraham Weintraub pelo cargo. Parecia um reposicionamento estratégico na pasta, substituindo a ideologia na escolha do ministro por uma suposta meritocracia. O problema é que o currículo do ministro era fake.

Bolsonaro chegou a publicar uma carta nas redes sociais elogiando a capacidade do ministro; na noite de segunda-feira, porém, já havia se convencido de que era preciso voltar atrás. Desde a indicação de Decotelli, a cada dia surgia uma nova informação desmoralizadora, de alguma instituição acadêmica, desmentindo os títulos que constavam no seu currículo Lattes. Três desmentidos foram demolidores: a denúncia de plágio na dissertação de mestrado da Fundação Getulio Vargas (FGV); a declaração da Universidade de Rosário desmentindo um título de doutorado na Argentina, que não teria obtido; e o pós-doutorado na Alemanha, não realizado. Trocando em miúdos, o professor não era sabichão, era apenas sabido.

É óbvio que a situação é desmoralizante também para Bolsonaro e os serviços de inteligência do governo, a Agência Brasileira de Informações (Abin), que falhou na checagem do nome, e o “serviço particular” do presidente da República, que pode até ter atuado com sinal trocado, indicando ou referendando a indicação de Decotelli. O vício de origem do problema, porém, é o conceito adotado por Bolsonaro para a Educação. Ele nunca quis um educador reconhecido no mundo acadêmico, sempre buscou alguém que pudesse confrontar ideologicamente a oposição nas universidades e demais órgãos do Ministério da Educação. A opção Decotelli, supostamente para “despolitizar” o Ministério da Educação, foi embasada por uma “visão tecnocrática” dos militares do Palácio do Planalto: já que Weintraub perdeu a batalha política na sociedade, optou-se por levar a disputa para o terreno da gestão. Deu errado.

Bolsonaro examina, agora, a possibilidade de nomear Anderson Ribeiro Correia, reitor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), renomada instituição militar de ensino, cargo para o qual foi escolhido em lista tríplice pelo Comando da Aeronáutica, entre 11 candidatos, após rigorosa seleção. Por três anos, o atual reitor do ITA havia exercido a Pró-Reitoria de Extensão e Cooperação. Para conquistar o posto, apresentou cinco propostas de trabalho: melhorar o relacionamento institucional com a FAB e com a sociedade; modernizar o ensino de engenharia; fortalecer a pós-graduação e a pesquisa em conjunto com a graduação; modernizar a gestão; e oferecer mais resultados à sociedade.

Ou seja, uma metodologia impessoal e meritocrática completamente diferente da adotada por Bolsonaro para formar sua equipe. Correia é graduado em engenharia civil pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em engenharia de infraestrutura aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e concluiu doutorado em engenharia de transportes pela University of Calgary, no Canadá. É membro do Conselho de Administração da Organização Brasileira para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Controle do Espaço Aéreo (CTCEA); do Comitê Transportation Research Board — USA; e do Conselho Deliberativo da Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes (Anpet).

Negacionismo
Passando de pato a pandemia, o Brasil deve ultrapassar as 60 mil mortes por coronavírus hoje. Ontem, eram 58.927, de um total de 1,383 milhão de casos confirmados. De acordo com um monitoramento da universidade norte-americana Johns Hopkins, o mundo já tem mais de 19 milhões de infectados e 500 mil mortos, sendo que o Brasil é responsável por 11% das mortes ocorridas no planeta. Esse indicador está fazendo com que as autoridades sanitárias de todo o mundo voltem os olhos para o Brasil. Os brasileiros, por exemplo, já não podem mais viajar para a Europa.

A comissária de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, que, por duas vezes, presidiu o Chile, criticou o negacionismo do governo Bolsonaro e incluiu o Brasil entre os países que não lidam bem com as consequências sociais da pandemia da covid-19. “Na Belarus, Brasil, Burundi, Nicarágua, Tanzânia e nos Estados Unidos — entre outros —, estou preocupada com declarações que negam a realidade do contágio viral e pela crescente polarização em temas-chave, que pode intensificar a severidade da pandemia por torpedear esforços para conter o surto e fortalecer os sistemas de saúde”, afirmou.

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Luiz Carlos Azedo: Aras versus Moro

“A base de dados da força-tarefa de Curitiba guarda informações obtidas por escutas telefônicas, apreensão de documentos, celulares e computadores”

Tudo indica que o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidiu mesmo domar a Operação Lava-Jato, neutralizando completamente o que ainda resta de influência junto ao Ministério Público do ex-ministro da Justiça Sergio Moro — idealizador e líder da operação, quando juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. Nos bastidores, Aras vem repetindo a interlocutores que sua principal missão à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR) é “despolitizar” o órgão. Na avaliação dele, a PGR vinha sendo palco de disputas políticas entre grupos internos. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o cargo, fora da lista tríplice eleita pelos procuradores, parece ter sido esse o grande pacto firmado entre ambos.

O problema é que a Lava-Jato é uma linha de força do processo político brasileiro, uma espécie de fronteira entre a ética e a política, que deveriam andar de mãos dadas, mas não é bem assim que acontece. Mesmo que os procuradores da Lava-Jato percam o protagonismo nas investigações, permanecerão tendo enorme influência no comportamento da opinião pública e no processo eleitoral. Quando nada porque já promoveram um notável expurgo na vida política brasileira, ao conseguir a aprovação da Lei da Ficha Limpa e denunciar boa parte da atual elite política do país. É ilusão imaginar que Moro e seus aliados serão carta fora do baralho nas eleições de 2022. Eles já têm até um partido pronto para oferecer uma alternativa: o Podemos, do senador Álvaro Dias (PR).

Por isso mesmo, é bom prestar atenção na queda de braço entre a subprocuradora da República Lindora Maria de Araújo, atual responsável pela condução da Lava-Jato na PGR, e a força-tarefa de Curitiba. Na sexta-feira, os procuradores Hebert Reis Mesquita, Victor Riccely Lins Santos e Luana Macedo Vargas pediram exoneração das funções, permanecendo no grupo que trabalha com Lindora apenas Alessandro José Fernandes de Oliveira e Leonardo Sampaio de Almeida. Antes, a procuradora Maria Clara Noleto, também por divergências, já havia chutado o balde. A crise foi provocada por uma visita de Lindora Araujo à força-tarefa de Curitiba, na quarta e na quinta-feiras, que gerou, inclusive, uma reclamação desses procuradores junto à Corregedoria Nacional do Ministério Público Federal, “como medida de cautela” e “para prevenir responsabilidades”.

Caixa-preta
Segundo o coordenador da operação no Paraná, procurador Deltan Dallagnol, a chefe da Lava-Jato na PGR buscou acesso a procedimentos e bases de dados da força-tarefa “sem prestar informações” sobre a existência de um processo formal no qual o pedido se baseava ou o objetivo pretendido. “Diante do caráter inusitado das solicitações, sem formalização dos pedidos e diligências”, os procuradores do Paraná realizaram uma reunião virtual para discutir o caso. Para Dallagnol, era preciso adotar cautelas formais para a transferência, a fim de evitar questionamentos e arguição de nulidades sobre informações e provas. Segundo ele, a corregedora Elizabeta Ramos os informara de que não há qualquer procedimento ou ato no âmbito da Corregedoria que embase o pedido de acesso da subprocuradora-geral aos procedimentos ou dados da força-tarefa.

A base de dados da força-tarefa de Curitiba guarda grande quantidade de informações e provas obtidas por meio de escutas telefônicas, apreensão de documentos, celulares e computadores, além de depoimentos de testemunhas e investigados pela Lava-Jato. Lindora pretendia ter acesso também ao sistema de escutas telefônicas utilizado pela força-tarefa. Os procuradores de Curitiba recusaram-se a ceder as informações. Em nota, a PGR negou a busca de “compartilhamento informal de dados”, mas assumiu, sim, a intenção de obter “informações globais sobre o atual estágio das investigações e o acervo da força-tarefa, para solucionar eventuais passivos”. De acordo com a PGR, a visita foi agendada previamente, e a corregedora Elizabeta Ramos somente não participou da comitiva porque estava doente.

Autor de Corpo e alma da magistratura brasileira, o professor Luiz Werneck Vianna, certa vez, classificou os integrantes da Lava-Jato como uma espécie de “tenentes de toga”, comparando-os aos jovens oficiais que integraram o Tenentismo, movimento de insubordinação militar que resultou na Revolução de 1930 e, depois, na ditadura do Estado Novo (1937). “Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o país. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral”, comparou, em 2016. Quatro anos depois, os militares estão de volta ao poder, sem um programa, e os “tenentes de toga” ensaiam um projeto próprio de poder, com Moro.

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Luiz Carlos Azedo: Mudança de rota

“A nomeação de Decotelli para a Educaçao e a passagem do general Ramos para a reserva sinalizam um correção de rumo no governo Bolsonaro”

Aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro deixou a rota de iminente colisão contra os demais poderes. A mudança ocorreu após forte reação das lideranças do Congresso e dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas, sobretudo, após a prisão de Fabrício Queiroz, seu amigo, ex-assessor parlamentar de seu filho Flávio Bolsonaro (PR), quando o senador ocupava uma cadeira na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ambos são investigados no caso das rachadinhas daquela Casa legislativa. Dois fatos assinalam a mudança de curso: a nomeação do novo ministro da Educação, o economista Carlos Alberto Decotelli da Silva, e a passagem para a reserva do general de divisão Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, que anunciou a intenção na reunião do Alto Comando do Exército, ontem.

Decotelli substituirá Abraham Weintraub, protagonista de uma gestão espalhafatosa e desastrosa à frente da pasta, com uma narrativa ideológica afinada com o grupo de extrema direita liderado pelo escritor Olavo de Carvalho, guru dos filhos de Bolsonaro. Como prêmio de consolação, o ex-ministro foi indicado para o posto de diretor representante do Brasil no Banco Mundial, mas sua nomeação está sendo questionada por funcionários do órgão. Até para sair do país e entrar nos Estados Unidos, Weintraub foi atabalhoado, pois viajou como se ainda fosse ministro, quando já havia deixado o cargo. Comportou-se como um fugitivo. Weintraub é investigado por causa de suposto envolvimento com grupos de extrema direita que ameaçavam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem chamou de “vagabundos”, na reunião ministerial de 22 de abril passado.

Primeiro ministro preto do governo Bolsonaro, Decotelli será o terceiro titular da pasta em menos de 1 ano e meio. O primeiro ocupante do posto foi Ricardo Velez, que permaneceu apenas três meses no cargo. Oficial da reserva não-remunerada da Marinha, o novo ministro atuou na Escola de Guerra Naval como professor. Bacharel em ciências econômicas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é mestre pela Fundação Getulio Vargas (FGV), doutor pela Universidade de Rosário (Argentina) e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Tem um perfil muito mais de gestor do que de educador, sua nomeação é uma esperança de um comportamento mais conciliador e menos ideológico à frente da pasta, embora seja um conservador e tenha apenas breve passagem pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), entre fevereiro e agosto do ano passado. Depois, comandou a Secretaria de Modalidades Especializadas do Ministério.

Verde-oliva
Outra notícia importante foi o anúncio de que o general de exército Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e principal articulador político do Planalto, passará à reserva. Ele já havia anunciado essa intenção, mas só agora foi oficializada. Sua situação era um fator de tensão entre o presidente Jair Bolsonaro e o Alto Comando, porque circulavam rumores de que o presidente da República pretendia nomeá-lo para o Comando do Exército, no lugar do general Edson Leal Pujol. Ramos era o 6º na hierarquia de comando, o que resultaria na passagem antecipada para a reserva dos principais generais hoje na ativa. Bolsonaristas fomentavam a intriga, provocando mal-estar entre os militares.

Pelo regulamento atual, militares da ativa somente podem permanecer dois anos fora dos quadros regulares de comando, mesmo ocupando função para as quais, tradicionalmente, são designados militares, no Ministério da Defesa, criado originalmente para ser chefiado por uma autoridade civil, no Gabinete de Segurança Institucional e na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. A situação era meio esquizofrênica, porque Ramos é um dos ministros mais poderosos do governo Bolsonaro e, ao mesmo tempo, era subordinado a Pujol na hierarquia militar. Outro alto oficial da ativa praticamente na mesma situação é o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, general de divisão.

Ambos são ligados ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo, como o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Neto, que também era do Alto Comando, mas passou à reserva logo após assumir o cargo. Quando Azevedo foi o comandante do Leste, Ramos comandou a Vila Militar; Pazuello, a Brigada de Paraquedistas; e Braga Neto era o chefe de Estado-Maior.

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Luiz Carlos Azedo: Saudades do Mandetta

“A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Trump, que também defendeu o uso de cloroquina e se opôs ao isolamento social”

O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, ontem, um relatório do ministro Vital do Rêgo que resume o que todo mundo estava vendo: falta de diretrizes e coordenação entre entes federados e órgãos oficiais no combate à covid-19, por culpa do governo federal. Esse era o ponto forte da gestão de Luiz Henrique Mandetta, defenestrado do cargo porque o presidente da República ficou enciumado da popularidade adquirida pelo então ministro da Saúde e discordava da estratégia de isolamento social que havia adotado. Bolsonaro queria distribuir cloroquina a todos os infectados e implementar a atual estratégia de “imunização de rebanho”.

Quando Mandetta saiu da Saúde, em 16 de abril, o Brasil contabilizava 1.924 mortes; hoje, já são quase 54 mil, uma tragédia anunciada. Na ocasião, as pesquisas mostravam que 76% dos entrevistados aprovavam o desempenho do ministro da Saúde, que antes era avaliado positivamente por 55%. A pandemia havia catapultado sua popularidade, graças ao excepcional desempenho na liderança do Sistema Unificado de Saúde (SUS). Ao contrário, a atuação de Bolsonaro, que havia entrado em guerra com os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e se descolado de Mandetta, havia oscilado para baixo, de 35% para 33%. Os ciúmes do clã Bolsonaro — verbalizado nas redes sociais e entrevistas do presidente da República — puseram tudo a perder. Para substituir Mandetta, Bolsonaro escolheu o médico oncologista Nelson Teich, que ficou apenas um mês na pasta e caiu fora, depois da fatídica reunião ministerial de 22 de abril, cujas imagens revelam seu espanto com o que aconteceu na ocasião. A essa altura da pandemia, já eram mais de 14 mil mortos.

Os ministros militares do Palácio do Planalto — os generais Augusto Heleno (GSI), Rego Barros (Casa Civil), Fernando Azevedo (Defesa) e Luiz Ramos (Secretaria de Governo) — bem que tentaram segurar Mandetta no cargo, mas foi um esforço em vão. A ala radical do governo, liderada por Carlos Bolsonaro — que não faz parte do governo, mas tem grande influência no governo — já havia selado o destino de Mandetta. No início de abril, Bolsonaro disse à rádio Jovem Pan que o subordinado deveria “ter mais humildade” e “ouvir um pouco mais o presidente”. Ao saber da crítica, Mandetta falou com o chefe por telefone e ouviu dele que deveria “pedir demissão”. Respondeu: “O senhor que me demita”. Era o fim da linha.

Efeito Orloff
No relatório apresentado ao Tribunal de Contas, Vital do Rêgo critica a ausência de integrantes técnicos da área de saúde no comitê de gestão da pandemia pelo governo: “Os cargos-chave do Ministério da Saúde, de livre nomeação e exoneração, não vêm sendo ocupados por profissionais com essa formação específica”. Segundo ele, isso pode levar a decisões não baseadas em questões médicas e científicas, o que resulta em “baixa efetividade das medidas adotadas de prevenção e combate à pandemia, desperdícios de recursos públicos e aumento de infecções e mortes”. O TCU recomendou a inclusão, como membros permanentes do Comitê de Crise da Covid-19, dos presidentes do Conselho Federal de Medicina, da Associação Médica Brasileira e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, com direito a voz e a voto. Entretanto, o governo não é obrigado a cumpri-la.

O relatório também destaca a ausência de ampla divulgação das ações de enfrentamento à crise de saúde pública e recomenda a inclusão de um representante da Secretaria de Comunicação Social no Centro de Coordenação de Operações do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 (CCOP). O TCU determinou, porém, que a Casa Civil passe a divulgar no prazo de 15 dias na internet as atas das reuniões do Comitê de Crise e do CCOP.

A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, que também defendeu o uso de cloroquina e inicialmente se opôs ao isolamento social, embora agora tente se reposicionar, depois de ver sua reeleição caminhar em direção ao brejo. Hoje, Trump amarga 14 pontos atrás do seu concorrente democrata, Joe Biden. Agora, o principal aliado de Bolsonaro na política externa, embora se declare seu amigo, cita o Brasil como mau exemplo a ser seguido no combate à pandemia.

Bolsonaro cometeu um erro fatal ao demitir Mandetta, com quem dividiria o prestígio. Como diria o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz em O Primo Basílio, as consequências sempre vêm depois. A flexibilização precoce do isolamento social por governadores e prefeitos, pressionados por Bolsonaro, está provocando o aumento do número de casos da covid-19, inclusive, onde a pandemia estava sendo controlada. Além disso, o governo perdeu o rumo na economia em meio à recessão.

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Luiz Carlos Azedo: A praga e a peste

A pandemia da covid-19 atingiu 57 mortes por hora, quase uma por minuto. O relaxamento do isolamento social e a imunização de rebanho caminham de mãos dadas

Uma nuvem de gafanhotos ronda a fronteira do Brasil com a Argentina, ameaçando as lavouras do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, depois de atacar as do Paraguai, onde os insetos destruíram plantações de milho. As principais regiões atingidas na Argentina são as províncias de Santa Fé, Formosa e Chaco, onde existe produção de cana-de-açúcar e mandioca e a condição climática é favorável. Uma nuvem de gafanhotos, em um quilômetro quadrado, pode ter até 40 milhões de insetos, que consomem, em um dia, pastagens equivalentes ao que 2 mil vacas ou 350 mil pessoas consumiriam.

Na Bíblia, nuvens de gafanhotos são uma das 10 pragas do Egito (Êxodus), lançadas por Deus para obrigar o faraó a libertar os hebreus. Moisés foi o portador da mensagem divina: “Assim diz o Senhor, o Deus dos hebreus: ‘Até quando você se recusará a humilhar-se perante mim? Deixe ir o meu povo, para que me preste culto. Se você não quiser deixá-lo ir, farei vir gafanhotos sobre o seu território amanhã. Eles cobrirão a face da terra até não se poder enxergar o solo. Devorarão o pouco que ainda lhes restou da tempestade de granizo e todas as árvores que estiverem brotando nos campos. Encherão os seus palácios e as casas de todos os seus conselheiros e de todos os egípcios: algo que os seus pais e os seus antepassados jamais viram (…)”.

Mas o Senhor disse a Moisés: “Estenda a mão sobre o Egito para que os gafanhotos venham sobre a terra e devorem toda a vegetação, tudo o que foi deixado pelo granizo”. Moisés estendeu a vara sobre o Egito, e o Senhor fez soprar sobre a terra um vento oriental durante todo aquele dia e toda aquela noite. Pela manhã, o vento havia trazido os gafanhotos, os quais invadiram todo o Egito e desceram em grande número sobre toda a sua extensão. Nunca antes houve tantos gafanhotos, nem jamais haverá. Eles cobriram toda a face da terra de tal forma que ela escureceu. Devoraram tudo o que o granizo tinha deixado: toda a vegetação e todos os frutos das árvores. Não restou nada verde nas árvores nem nas plantas do campo, em toda a terra do Egito.

Em julho do ano passado, uma nuvem de gafanhotos invadiu Las Vegas, nos Estados Unidos. Simultaneamente, no Iêmen, devastado pela fome e pela guerra civil, outra nuvem de gafanhotos destruiu as plantações. Os gafanhotos circularam por mais de 60 países, principalmente na África, no Oriente Médio e na Ásia Central. Os cientistas acreditam que as mudanças climáticas estão fazendo os insetos agirem de maneira mais destrutiva e imprevisível. Estudo publicado por cientistas americanos na revista Science mostrou que o clima mais quente torna os gafanhotos mais ativos e reprodutivos.

Um gafanhoto adulto é capaz de comer o equivalente ao seu peso corporal por dia. Plantações de trigo, arroz e milho são um banquete para os insetos. Um ataque de gafanhotos à nossa agricultura em plena pandemia pode ser um desastre. O agronegócio é o setor mais dinâmico da nossa economia. Em 2004, na África, os insetos causaram danos no valor de US$ 2,5 bilhões para as lavouras. O historiador romano Plínio, o Velho, registrou a morte de 800 mil pessoas na região que atualmente engloba Líbia, Argélia e Tunísia por causa da devastação das lavouras por essa praga bíblica. A China acaba de Anunciar a mobilização de 100 mil patos para combater uma nuvem de 400 bilhões de gafanhotos que se aproxima da fronteira com a Índia e o Paquistão.

A pandemia
Já nos basta a peste. Aqui no Brasil, a pandemia da covid-19, ontem, atingiu a marca de 57 mortes por hora, ou seja, quase uma por minuto. O relaxamento precoce do isolamento social e a política de imunização de rebanho não-declarada caminham de mãos dadas, estamos longe do pico. Ontem, em audiência no Congresso, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pozuello, garantiu que o governo dará “transparência infinita” às informações e anunciou que o Ministério da Saúde passará a considerar o diagnóstico dos médicos, e não apenas os testes, para contabilizar os casos confirmados. Ou seja, jogou a toalha em relação à política de testagem em massa para monitoramento dos infectados.

Os números oficiais de ontem são 52.645 mortes e 1.145.906 casos confirmados, sendo 1.374 mortes e 39.436 novos casos nas últimas 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, há 479.916 pacientes em acompanhamento, enquanto 613.345 foram recuperados, o que não deixa de ser uma boa notícia. A notícia pior é a queda de anticorpos em pacientes assintomáticos dois meses após a infecção por covid-19. Em artigo publicado pela Nature Medicine, o cientista Ai-Long Hua, da Universidade Médica de Chongqing, na China, constatou em 37 pacientes assintomáticos com o Sars CoV-2 que, oito semanas depois, os níveis de anticorpos neutralizantes diminuíram 81,1%. O estudo não é conclusivo, mas acendeu uma luz amarela para a possibilidade de as pessoas contraírem a doença mais de uma vez.

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Luiz Carlos Azedo: Mortes em vão

“Bolsonaro limitará o auxílio aos “invisíveis” a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como 36 milhões poderão permanecer em casa?”

Para o sanitarista Luiz Antônio Santini, pesquisador da Fiocruz e ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (INCA), a metáfora da guerra não é a mais adequada para abordar os desafios da saúde. Segundo ele, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Por essa razão, cabe à ciência “responder com vacinas, medicamentos e o que mais estiver ao seu alcance ou que ainda venha a desenvolver de conhecimentos e tecnologias”.

Enquanto isso não ocorre, a melhor alternativa continua sendo o isolamento social, o rastreamento dos casos e o tratamento adequado aos infectados, o que pressupõe restrições de atividades econômicas e circulação de pessoas, testes em massa e um serviço médico operacional e capacitado. É que o conceito de guerra impõe decisões estratégicas nas quais as prioridades não são necessariamente as vidas humanas, ou seja, o tratamento daqueles que precisam de assistência médica, mas outros objetivos, no caso, o retorno das atividades econômicas e/ou os interesses eleitorais, como estamos assistindo. A morte é apenas o efeito colateral. O fato de já não se restringir aos grupos de risco é mera consequência. A maior vulnerabilidade da população de baixa renda nas favelas, periferias, grotões e aldeias indígenas, reflexo de nossas desigualdades, é considerada uma contingência contra qual nada se pode fazer, quando deveria ser exatamente o contrário.

Esse é o raciocínio. O presidente Bolsonaro, por exemplo, deixou o Palácio da Alvorada, no fim de semana, para velar o corpo de um soldado cujo paraquedas não abriu, no Rio de Janeiro, gesto louvável, mas é incapaz de decretar luto oficial por atingirmos a espantosa marca de mais de 50 mil mortos e quase 1,1 milhão de casos confirmados, em respeito às suas famílias. Muito menos homenagear os médicos e demais profissionais de saúde que morreram na linha de frente das UTIs e àqueles que se arriscam todos dias, nos hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs), muitos dos quais depois de terem contraído o vírus e se recuperado. No gesto de Bolsonaro havia mais cálculo político do que humanismo.

Rebanho
Recentemente, o professor de direito Lucas de Melo Prado, no site justificando.com, citou uma passagem do livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari, sobre a síndrome “nossos rapazes não morreram em vão”, comum durante as guerras. Referia-se à participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, com objetivo de recuperar os territórios de Trento e Trieste, em poder do Império Austro-Húngaro. O Exército austro-húngaro encastelou-se ao longo do Rio Isonzo e resistiu a todos os ataques. Na primeira batalha, morreram 15 mil italianos. Na segunda, 40 mil. Na terceira, 60 mil. E assim prosseguiu a guerra por dois anos. Na 12ª Batalha, em Caporeto, os austríacos passaram à ofensiva, só parando às portas de Veneza. Morreram 700 mil soldados italianos, mais de um milhão foram feridos. Inebriados pelo patriotismo, em busca das glórias romanas, “por Trento e por Trieste”, políticos e generais mandaram seus jovens para a morte. A analogia faz sentido.

Nos 40 dias à frente do Ministério da Saúde, o general de divisão Eduardo Pazuello opera uma política de “imunização de rebanho” não-declarada. Militarizou a pasta, para a qual levou duas dezenas de militares — os da ativa, em desvio de função —, a maioria neófitos em política sanitária. Quando assumiu, em 15 de maio, o Brasil contabilizava 14,8 mil mortos e 218 mil casos confirmados. Esses números quase quintuplicaram no período. Não será surpresa se duplicarmos o número de mortos até o fim de agosto, com o relaxamento da política de isolamento social, como queria Bolsonaro.

Na ativa, Pazuello cumpre ordens. Sua prioridade é uma devassa na pasta da Saúde, que subsidie investigações e denúncias contra governadores e prefeitos que adquiriram equipamentos médicos com preços acima das cotações de mercado. Como de fato houve casos de superfaturamento e desvio de recursos por parte das máfias que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS), a pandemia já virou pauta policial. Quem pagará com a vida, porém, são as vítimas da covid-19, cujo número aumenta exponencialmente, em razão da flexibilização precipitada do isolamento social. Bolsonaro já anunciou que limitará o auxílio aos chamados “invisíveis” — 36 milhões de trabalhadores informais que ficaram sem nenhuma renda — a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como poderão permanecer em casa?

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Luiz Carlos Azedo: Aposta do fracasso

“Houve uma mudança de contexto, ao qual Bolsonaro não se adaptou, em razão de um projeto de poder em bases ideológicas incompatíveis com a realidade”

O governo Jair Bolsonaro pode ter chegado a um ponto de inflexão, em razão da estratégia adotada pelo presidente para impor suas vontades aos demais Poderes e entes federados. As ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF), os desentendimentos com o Congresso e as frequentes retaliações a governadores e prefeitos, a partir de uma concepção de poder centralizado e vertical, incompatível com a Constituição de 1988, são fatores de instabilidade político-institucional. Ainda mais num ambiente dramático, de crise sanitária e econômica, agravado pelo negacionismo da política de isolamento social para combater a pandemia de coronavírus e pelo colapso do projeto de reformas ultraliberais, diante da recessão econômica.

Houve uma grande mudança de contexto político, econômico e social, ao qual o presidente da República não se adaptou, em razão de um projeto de poder em bases ideológicas incompatíveis com a realidade brasileira e nossas relações com o mundo. Esse projeto sempre foi minoritário na sociedade, mas parecia se impor pela audácia e virulência com que Bolsonaro mobilizou seus apoiadores mais radicais e militarizou seu governo. Tornara-se uma ameaça ao Estado de direito democrático e à coesão nacional, além de um fator de isolamento e desmoralização do Brasil perante as demais nações, sobretudo do Ocidente.

A aposta num governo de viés bonapartista, vanguardeado por setores de extrema direita, como forma de intimidar e se impor aos demais Poderes e entes federados, aproveitando-se da desmobilização da sociedade em razão da pandemia, parece que bateu no teto. As afrontas aos fundamentos do Estado de direito democrático, ao atribuir ao Executivo um predomínio exorbitante em relação aos demais Poderes e personificá-lo na figura do presidente República, acabaram provocando ampla e forte reação da sociedade, que transcende em muito os partidos de oposição. Como num passe de mágica, a sociedade civil passou a defender o Congresso e o Supremo, dos quais havia se distanciado. Deu-se conta dos verdadeiros riscos da situação.

À margem do grupo de generais que formam o Estado-Maior de Bolsonaro — Luiz Eduardo Ramos, na Secretaria de Governo; Braga Neto, na Casa Civil; Fernando Azevedo, na Defesa; e Augusto Heleno, no Gabinete Segurança Institucional (GSI) —, havia um “subgoverno”, que opera contra as instituições democráticas e aposta na ruptura institucional, com métodos de atuação incompatíveis com a ordem democrática. Esse “subgoverno”, comandado pelos filhos do presidente Jair Bolsonaro, está sendo desnudado pelas investigações conduzidas pelo ministro Alexandre de Moraes, com endosso de todo o Supremo Tribunal Federal (STF), sobre as chamadas fake news e as ameaças às autoridades do Legislativo e do próprio Judiciário.

O escândalo
Entretanto, nada é mais comprometedor do que o envolvimento de Bolsonaro e seus filhos com o amigo e “faz tudo” da família, o policial militar reformado Fabrício Queiroz, preso na quinta-feira em Atibaia (SP), por determinação da Justiça fluminense, no inquérito das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Por mais que o presidente da República tente se desvincular do caso e seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, diretamente envolvido no escândalo, jure inocência, o fato abalou o esquema de poder de Bolsonaro, porque exuma velhas e perigosas relações com milicianos do Rio.

O potencial catalisador do caso Queiroz alterou a correlação de forças políticas não só fora como dentro do governo. Os militares que ocupam o Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios, em número muito maior do que os de qualquer governo do regime militar, não têm como endossar as desculpas do presidente da República sem arrastar as Forças Armadas para o pântano político. Os sinais de que isso estava começando a acontecer foram dados pelas negociações com o chamado Centrão, que reúne os partidos mais fisiológicos do Congresso, uma estratégia de sobrevivência e blindagem política de Bolsonaro que envolve o loteamento de cargos na Esplanada e a distribuição de verbas públicas.

Ao longo da história, até 1985, os militares sempre ocuparam o centro das crises políticas, condicionando seus desfechos. Submeteram-se administrativamente aos governos, como instrumento do Estado, mas, em termos políticos, ocorria exatamente o contrário: os políticos é que dependiam deles para se manterem. Foram um fator de preservação da integridade territorial e da construção do Estado nacional, mas plasmaram um modo de pensar a nação, a sociedade, a política e gestão que não é apenas um repertório de glórias e vitórias. Coleciona, também, muitas escolhas equivocadas e ações condenáveis. Historicamente, eis o drama do “partido fardado”, formado pelos militares com gosto pela política: sempre fracassa, por se colocar acima da sociedade e das instituições, inclusive as suas, que se baseiam na lei e na ordem, na hierarquia e na disciplina.

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