Luiz Carlos Azedo: Colhendo a tempestade

“Weintraub é o terceiro ministro que deixa o governo com projeção na base eleitoral de Bolsonaro. Mandetta, da Saúde, e Moro, da Justiça, passaram à oposição”

Nas circunstâncias atuais, qualquer presidente da República já estaria diante de uma grande borrasca, em razão da pandemia de coranavírus e da recessão econômica dela decorrente. Jair Bolsonaro, porém, conseguiu transformar a crise sanitária e econômica numa tempestade perfeita, ao agregar às contingências exógenas de seu governo uma crise política multifacetada, que, ontem, resultou na saída do polêmico ministro Abraham Weintraub, da Educação. O 10º ministro a deixar o governo, o segundo da pasta, que agora virou objeto dos desejos dos partidos do Centrão.

A saída do Weintraub — histriônico, incompetente e politicamente trapalhão —, desde a semana passada, era pedra cantada. Para a turma do deixa disso, serviria para desanuviar as relações do Palácio do Planalto com o Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, foi eclipsada pela prisão de Fabrício Queiroz, amigo de Bolsonaro e ex-assessor parlamentar e motorista do seu filho, senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que estava escondido num sítio em Atibaia (SP). O caso Queiroz tira Bolsonaro do sério, pois o amigo e ex-assessor do filho é um homem-bomba: além de suspeito de ser operador financeiro do clã, é peça-chave nas históricas relações do presidente com as milícias do Rio de Janeiro.

Há três dias, Bolsonaro alterna momentos de apatia e grande irritação. Com o apoio dos ministros militares do Palácio do Planalto, bateu de frente com o Supremo Tribunal Federal (STF) e tentou intimidar os ministros da Corte. Nesta semana, deu tudo errado: por 10 a 1, o Supremo resolveu dar prosseguimento ao inquérito das fake news presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, que Bolsonaro considera um desafeto. O magistrado vem promovendo sucessivas ações contra os bolsonaristas radicais.

Moraes determinou a prisão da ativista Sara Winter e outros militantes do grupo autodenominado 300 do Brasil, que defendem uma intervenção militar e realizavam protestos contra o Supremo e Congresso, com ameaças a magistrados e parlamentares. Também mandou realizar operações de busca e apreensão em residências e escritórios de empresários, blogueiros, dez deputados e um senador supostamente ligados ao chamado Gabinete do Ódio, a máquina de propaganda bolsonarista nas redes sociais.

Bolsonaro está numa saia justa. Não pode dobrar a aposta contra os demais Poderes sem provocar uma crise institucional sem precedentes desde a democratização. A própria saída de Weintraub havia se tornado imperativa, em razão de suas declarações contra o Supremo na reunião ministerial do dia 22 de abril, quando chamou os ministros da Corte de vagabundos e disse que eles deveriam ser presos. No domingo, a gota d’água foi sua participação numa manifestação proibida na Esplanada, sem máscara, o que lhe valeu uma multa de R$ 2 mil aplicada por ordem do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).

Investigações
O Palácio do Planalto temia a prisão de Weintraub, a qualquer momento, por desafiar o STF. Ao mesmo tempo, o ministro se tornou referência para a ala ideológica do bolsonarismo, por causa dos ataques ao Supremo. Sua despedida do cargo, ontem, foi um constrangimento para Bolsonaro, que lhe ofereceu um cargo de diretor do Banco Mundial. É o terceiro ministro importante que deixa o governo com projeção política na base eleitoral de Bolsonaro. Os outros foram Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e Sergio Moro, da Justiça, que passaram à oposição. Não é o caso de Weintraub, que ganhou um cargo no exterior como prêmio de consolação.

Bolsonaro sentiu o golpe: “É um momento difícil, todos meus compromissos de campanha continuam de pé e busco implementá-los da melhor maneira possível. A confiança você não compra, você adquire. Todos que estão nos ouvindo, agora, são maiores de idade e sabem o que o Brasil está passando. O momento é de confiança. Jamais deixaremos de lutar por liberdade. Eu faço o que o povo quiser”, disse Bolsonaro, na gravação da despedida de Weintraub.

Agora, a dificuldade se chama Fabrício Queiroz. Ex-assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa fluminense, é apontado como operador de um esquema de rachadinha, que supostamente ocorria no gabinete do filho do presidente da República, quando era deputado estadual no Rio. O policial militar reformado foi preso em um imóvel do advogado Frederick Wassef, que atua na defesa de Flávio, mas não é advogado de Queiroz, acusado de manipular provas e pressionar testemunhas, pelos procuradores do Rio de Janeiro que investigam o caso. O Palácio do Planalto tenta se desvincular, mas o fato de Queiroz ter se escondido numa propriedade do advogado de Flávio, mesmo que isso não seja crime, cria um tremendo problema político.

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Luiz Carlos Azedo: A alegoria de Camus

“A epidemia de meningite só acabou após a vacinação de 80 milhões de pessoas, o que seria impossível com a manutenção da censura sobre a doença”

Publicado em 1947, A Peste, do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), é uma alegoria da ocupação nazista. Por isso, fez tanto sucesso não só na França como na Europa do pós-guerra e também na América Latina, inclusive no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970. Camus foi um militante da Resistência, mas teve uma posição muito moderada em relação aos que colaboraram com os invasores alemães durante a II Grande Guerra, condenando os “justiçamentos”. Já era um escritor consagrado, com duas obras elogiadíssimas pela crítica: O estrangeiro e O mito de Sísifo.

Albert Camus nasceu em 7 de novembro de 1913 na Argélia, à época uma colônia francesa, cenário de seu romance, que conta a história de uma epidemia na cidade de Oran, no norte daquele país. Em 1940, um médico encontrou um rato morto ao deixar seu consultório. Comunicou o fato ao responsável pela limpeza do prédio. No dia seguinte, outro rato foi encontrado morto no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanatório. A quantidade de ratos aumentou exponencialmente. Em um único dia, oito mil ratos foram coletados e encaminhados para cremação.

Em pânico, a cidade declarou estado de calamidade, as pessoas tinham febre e morriam em massa. Os muros foram fechados, em quarentena, ninguém entrava ou saía; os doentes foram isolados, as famílias, separadas. Enquanto o padre apregoava que tudo aquilo era um castigo divino, prisioneiros eram mobilizados para enterrar os cadáveres, que empilhavam nas ruas: velhos, mulheres e crianças morriam. O livro é uma alegoria da condição de vida regulada pela morte, fez muito sucesso porque era uma crítica ao fascismo e relatava as diferenças de comportamento diante de situações-limite. Fora escrito durante a ocupação militar alemã. Camus foi editor do jornal clandestino Combat, porta-voz dos partisans.

Em 1951, Camus lançou o livro O homem revoltado, no qual condenava a pena de morte e criticava duramente o comunismo e o marxismo, o que provocou uma ruptura com seu amigo e filósofo Jean-Paul Sartre, que liderou seu linchamento moral por parte da intelectualidade francesa. Mesmo depois do Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, continuou sendo um renegado para a esquerda. Seu discurso na premiação foi profético. Permanece atual nestes tempos de epidemia de coronavírus.

“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer”, disse Camus.

Epidemia
Em comemoração aos 60 anos de sua morte, divulgou-se na França um de seus textos da época da resistência, cujo original foi encontrado nos arquivos do general De Gaulle, o presidente francês que liderara a Resistência do exílio. O documento era destinado às forças que combatiam o marechal Pétain e trata de dois sentimentos presentes no contexto da ocupação: ansiedade e incerteza. A ansiedade “em uma luta contra o relógio” para reconstruir o país; a incerteza, em razão do fato de que, “se a guerra mata homens, também pode matar suas ideias”.

A alegoria de A Peste também serve de advertência diante de certas manifestações de apoio ao regime militar implantado após o golpe de 1964, cujo aniversário foi comemorado ontem. Em 1974, o Brasil enfrentou a pior epidemia contra a meningite de sua história. Para evitar o contágio, o governo decretou a suspensão das aulas e cancelou os Jogos Pan-Americanos de 1975, que foram transferidos de São Paulo para o México. A epidemia começou em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Com dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.

Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes, como no “Cinturão Africano da Meningite”, que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas, com apenas 300 leitos disponíveis, chegou a internar 1,2 mil pacientes. Na época, eu era um jovem repórter do jornal O Fluminense, de Niterói (RJ). Com a cumplicidade de um acadêmico de medicina, conseguimos fotografar pela janela uma enfermaria lotada de crianças com meningite, no Hospital Universitário Antônio Pedro (UFF). A foto foi publicada com a matéria, mas gerou a maior crise política para a direção do jornal, porque a meningite era um assunto censurado pelos militares. A epidemia só acabou no ano seguinte, após a vacinação de 80 milhões de pessoas, que seria impossível com a manutenção da censura sobre a meningite pelo governo do general Ernesto Geisel.

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Luiz Carlos Azedo: Resolvam isso aí!

“A carreira militar é um canal de ascensão social, mas não é nem deve ser uma rampa de acesso direto ao poder político”

O aperto de mãos entre o falecido general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, e o recém-empossado presidente José Sarney, em 1985, na transição do regime militar à democracia, simbolizou o momento em que a tutela militar sobre a nação, iniciada pouco antes da Guerra do Paraguai(1864 a 1870), ainda no Império, havia acabado. Durante mais de um século, até então, militares da ativa atuaram politicamente e se pronunciaram sobre a vida institucional do país, muitas vezes de forma truculenta e brutal. O gesto pôs um ponto final na ditadura implantada após a destituição do presidente João Goulart, em 1964.

Na madrugada de 15 de março de 1985, com a nação perplexa diante da internação de Tancredo Neves no Hospital de Base de Brasília, o então ministro do Exército, com a Constituição na mão, convencera as lideranças políticas da época de que o vice-presidente eleito, José Sarney, deveria tomar posse. Havia controvérsias, alguns achavam que Ulysses Guimarães, o líder do MDB, deveria assumir interinamente e convocar novas eleições. O então chefe da Casa Civil, ministro Leitão de Abreu, ajudou a dirimir dúvidas entre os dois principais protagonistas da democratização: Sarney queria que Ulysses assumisse. Seria o caos. Para evitar a crise, Ulysses sempre defendeu o contrário. O general comunicou a decisão da maioria: “Boa noite, presidente!”, disse-lhe ao telefone.

Nos bastidores do finado governo Figueiredo, alguns generais pretendiam aproveitar a situação para manter o regime. Além do próprio presidente da República, o ministro do Exército, Walter Pires, e o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Octávio Medeiros. Durante a madrugada, Pires ameaçou movimentar as tropas para manter João Batista Figueiredo, mas Leitão de Abreu disse-lhe que já não era mais ministro. Sua demissão viria publicada no Diário Oficial. Leônidas Pires Gonçalves era o novo chefe militar. Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, não transmitiu o cargo. À Presidência, Sarney convocou uma Constituinte e passou o cargo ao sucessor eleito pelo voto direto, Fernando Collor de Mello, com a Constituição de 1988 em plena vigência. Presidiu o país em meio a turbulências, uma hiperinflação galopante e milhares de greves operárias e ocupações de terras, mas ajudou a construir um Estado democrático.

Certos momentos parecem congelar a História, como aquele do aperto de mãos do general e o político. No século passado, o principal foi Conferência de Yalta, na Crimeia, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, o segundo de três encontros entre Franklin Roosevelt (Estados Unidos), Winston Churchill (Reino Unido) e Josef Stálin (União Soviética), com o objetivo de repartir as zonas de influência entre as três potências vitoriosas. Entretanto, com o fim da União Soviética e o colapso dos regimes comunistas da Europa, o fio da história foi retomado, descongelando um filme iniciado com o atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, no qual o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi morto por um nacionalista sérvio, pretexto para a Áustria-Hungria, da qual faziam parte a Bósnia e a Croácia, declarar guerra à Sérvia, um mês depois, dando início à I Guerra Mundial.

Ressentimentos

No Brasil dos anos 1980, os militares se retiraram do poder derrotados, mas em ordem. Foram mais bem-sucedidos na estratégia de abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel do que na condução da economia, devido ao fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), colapsado pela crise do petróleo. A anistia recíproca de 1979, consolidada pela nova Constituição, pôs uma pedra sobre o passado. Todas as tentativas de revisão que colocaram em risco esse pacto entre os militares e a antiga oposição foram rechaçadas, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Restaram a eterna dor dos familiares dos desaparecidos e a frustração e ressentimento daqueles que viam na caserna uma via de ascensão ao poder político, e não, exclusivamente, uma vocação militar, como acontece desde 1985. A vida militar, que exige estudo, disciplina e sacrifícios, é um canal de ascensão e mobilidade social, como certas profissões liberais e carreiras do serviço público, mas não é nem deve voltar a ser uma rampa de acesso direto ao poder político na democracia.

Somente durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que bajulou e foi bajulado pelos comandantes militares, voltou-se a discutir o papel das Forças Armadas, numa ótica de projeção nacional na globalização, além da atualização e modernização das forças armadas e suas doutrinas. O ressentimento em relação à marginalização imposta por governos anteriores, principalmente o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, porém, foi estimulado. Entretanto, o governo de Dilma Rousseff foi um desastre em relação aos militares. Havia ojeriza recíproca, por causa do passado, que os militares dissimulavam, mas a “presidenta” fazia questão de compartilhar, até nos elevadores. Quando o governo colapsou, com sua nova matriz econômica, em meio à recessão e a Lava-Jato, os militares lhe deram o troco. “Resolvam isso aí!”, dizia o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um grande líder militar, aos políticos que se queixavam. Era a senha para o impeachment.

Enfraquecido por denúncias, o presidente Michel Temer devolveu aos militares o Ministério da Defesa, nomeando o general Joaquim Silva e Luna para o cargo. O resto da história estamos assistindo. O engajamento dos militares na eleição de Jair Bolsonaro, na onda do descontentamento popular com a corrupção e a recessão; a formação de um governo assumidamente reacionário nas ideias, ultraliberal na economia e conservador nos costumes.

No Palácio do Planalto, generais pragmáticos, alguns com o cacoete do mandonismo, outros com gosto pela política do baixo clero, são comandados por um ex-capitão nostálgico dos tempos da linha-dura de Costa e Silva e Emílio Médici, o presidente errático. Certo estava o “Coronel Y”, nos idos da Revolução de 1930, que mais tarde viria a ser o marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do regime militar, ao defender uma Lei de Inatividade que obrigasse todo militar a se desligar definitivamente da carreira ao assumir funções civis e deixar a fila das promoções andar. Como a célebre fotografia dos Três Grandes e Yalta, a questão militar foi “descongelada”. No lugar da mão amiga, já estamos vendo o braço forte exibir seus músculos, como se fosse uma reprise cinematográfica.

Até breve: nas próximas duas semanas, em férias, novamente me ausentarei da coluna.

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Luiz Carlos Azedo: Dos meios e dos fins

“No Estado de direito democrático, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não se discute, cumpre-se. Quando isso não acontece, é um mau agouro”

O presidente Jair Bolsonaro vive num mundo só dele, que não é bem o país que governa. É difícil fechar um diagnóstico sobre as razões, mas é possível identificar os sintomas de que idealizou uma agenda, um governo e um Estado centralizador e agora se vê diante de uma realidade muito diferente daquela que imaginava. Primeiro, a agenda do país não é a sua, focada nos costumes e nos interesses imediatos de sua base eleitoral. Já lidava com dificuldades na economia quando a pandemia de coronavírus virou tudo de pernas para o ar.

Todas as suas prioridades foram alteradas. Ninguém sabe exatamente quando e como voltaremos à normalidade, mas sua insistência em antecipar esse processo de retomada da economia, num momento de aceleração da epidemia, vem se revelando um desastre do ponto de vista da saúde pública. É como aquele sujeito que erra de conceito: seus bons atributos, como iniciativa, coragem, combatividade, criatividade, força etc. só servem para aumentar o tamanho do desastre. A agenda do país é epidemia, epidemia e epidemia, pelo menos nas próximas duas semanas.

Também idealizou um governo no qual seu poder seria absoluto, como vértice do sistema. Está descobrindo que não é assim que funciona. Na democracia, há uma tensão permanente entre os que governam e a burocracia de carreira, responsável pela legitimidade dos meios empregados na ação político-administrativa. A ética das convicções, que motiva os políticos, não basta; ela é limitada pela máquina do governo, que foi organizada, treinada e instrumentalizada para observar as leis antes de agir, ou seja, zelar pela ética da responsabilidade. Bolsonaro não consegue lidar com isso. Em todas as frentes, tenta atropelar, substituir ou desmoralizar os que não aceitam decisões que são equivocadas tecnicamente e/ou contrariam a boa política e o interesse público.

Bolsonaro também tem dificuldade de lidar com os mecanismos de freios e contrapesos do Estado democrático de direito. Ontem, levou uma invertida do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que sustou a nomeação do novo-diretor da Polícia Federal, Alexandre Ramagem, por desvio de finalidade. Diante da decisão, revogou a nomeação para mantê-lo à frente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o que gerou uma situação de perda de objeto da ação do mandado de segurança acolhido por Moraes. Foi por essa razão que a Advocacia-geral da União desistiu de recorrer ao plenário do Supremo. Mesmo assim, Bolsonaro não caiu na real de que a Polícia Federal (PF) é técnica e judiciária, em cujas investigações não pode interferir.

Ontem, após a decisão do ministro do STF, mesmo assim, Bolsonaro disse que pretende recorrer da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e voltar a nomear Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal. “Eu quero o Ramagem lá. É uma ingerência, né? Vamos fazer tudo para o Ramagem. Se não for, vai chegar a hora dele, e vamos colocar outra pessoa”, declarou. Questionado sobre o posicionamento da AGU, disse que recorrer é um “dever do órgão”. E disparou: “Quem manda sou eu”. Se isso ocorrer, é muito provável que haja uma decisão unânime do STF contra a nomeação.

Recado claro
O que houve, ontem, foi um recado do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o sistema de freios e contrapesos da Constituiçao de 1988 está funcionando e que o Supremo ainda exerce o papel de Poder Moderador, em decorrência do fato de que cabe àquela Corte dar a palavra final em matéria constitucional. Como o STF é um poder desarmado, Bolsonaro provavelmente não se conforma muito com isso. Afinal, historicamente, esse papel foi exercido pelos militares, tanto na República Velha quanto na Segunda República. E seu governo tem mais generais do que qualquer outro no primeiro e no segundo escalões, mesmo comparado aos do regime militar. Quando diz que ainda vai nomear o Ramagem para o cargo de diretor-geral, Bolsonaro desnuda sua inconformidade, nos dois sentidos.

No Estado de direito democrático, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não se discute, cumpre-se. Quando isso não acontece, é um mau agouro. No governo Castello Branco, ou seja, após o golpe militar de 1964, o primeiro conflito sério com o Supremo ocorreu em 19 de abril de 1965. A Corte concedeu um pedido de habeas corpus impetrado pelo famoso jurista Sobral Pinto, católico e liberal, em favor do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, que estava preso na ilha de Fernando de Noronha, na costa daquele estado, desde a deposição do presidente João Goulart. Dias antes, o coronel Ferdinando de Carvalho, já prevendo a decisão, havia transferido o político pernambucano para a Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói (RJ).

O chefe do estado-maior do Exército, general Édson de Figueiredo, recusou-se a cumprir a decisão. O presidente do STF não teve outra alternativa a não ser mandar prendê-lo, o que provocou uma crise, somente debelada devido à intervenção pessoal de Castello, que chamou o magistrado e o general para uma conversa a três. Nesse meio tempo, um grupo de militares da chamada “linha-dura”, liderado pelo coronel Osneli Martinelli, sequestrou Arraes e levou-o para um quartel da Polícia do Exército. Foi preciso que Castello interviesse novamente, mandando soltá-lo. Arraes, que não era bobo, vendo que havia em marcha um golpe dentro do golpe, liderado pelo ministro da Guerra, o general Costa e Silva, tratou de pedir asilo na embaixada da Argélia. Era o começo de um processo que desaguou no Ato Institucional No. 5, em 13 de dezembro de 1968, mas isso isso já é outra história.

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Luiz Carlos Azedo: O que vem por aí

“Faltam leitos de UTI, respiradores e equipamentos de proteção, além de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, porque muitos estão se contaminando”

Em sua primeira entrevista coletiva, o ministro da Saúde, Nelson Teich, ontem, anunciou que o governo federal prepara uma diretriz para orientar cidades e estados na flexibilização do distanciamento social contra o novo coronavírus, que deverá ser anunciada na próxima semana. Argumentou que o total de pessoas infectadas com Covid-19 é baixo se comparado com o total da população e fez a previsão de que menos de 70% da população contrairão a doença, ao contrário das estimativas iniciais. Segundo o ministro, o Brasil tem 43,5 mil casos do coronavírus. “Se a gente imaginar que pode ter uma margem de erro grande — digamos que a gente tenha aí 100 vezes, isso é só um exemplo hipotético — a gente está falando em 4 milhões de pessoas. Nós hoje somos 212 milhões”, explicou.

Teich arrematou: “Fora da Covid tem 208 milhões de pessoas que continuam com as suas doenças, com os seus problemas, e que têm que ter isso tratado. E o que é que representam, hoje, 4 milhões de pessoas num país como esse? 2% da população”, disse. O ministro anunciou o novo secretário-executivo do Ministério da Saúde: o general de divisão Eduardo Pazuello, que hoje é comandante da 12ª Região Militar, principal unidade de logística do Exército na Amazônia, responsável por quatro hospitais, embarcações, manutenção, suprimentos e uma companhia de comando, para o apoio às unidades de combate do Comando da Amazônia. Integrante do grupo de generais paraquedista do Rio de Janeiro que hoje forma o Estado Maior de Bolsonaro, é um especialista em logística. Sua missão no Ministério da Saúde será operar a estratégia de saída da política de isolamento social em todo país, sem deixar que haja o colapso do sistema de saúde pública. Se houver precipitação, será uma missão impossível.

Como Teich ainda aparenta muita insegurança no comando do Ministério da Saúde, a entrevista foi protagonizada pelos ministros da Casa Civil, Braga Netto, e da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. O primeiro apresentou dois planos de retomada da economia, denominados Pró-Brasil Ordem e Pró-Brasil Progresso, para serem executados num período de dez anos. O viés é desenvolvimentista, na linha do famoso tripé Estado, iniciativa privada e investimentos estrangeiros. Em meio à recessão mundial provocada pelo coronavírus, é inevitável a comparação com o ambicioso II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) do presidente Ernesto Geisel, que foi abatido pela crise do petróleo. Braga Netto disse que o ministro da Economia, Paulo Guedes, que não estava presente na coletiva, endossou o plano.

O ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, roubou a cena. Resolveu puxar as orelhas da imprensa: “Nós, do governo do presidente Jair Bolsonaro, respeitamos muito a liberdade de imprensa e ela é fundamental para o processo democrático de todo o país. Porém, desde o começo dessa crise do coronavírus, nós temos observado uma cobertura maciça dos fatos negativos. Os noticiários entram nos lares brasileiros todos os dias. Com todo respeito, no jornal da manhã é caixão, é corpo. Na hora do almoço, é caixão novamente, é corpo. No jornal da noite, é caixão, é corpo e o número de mortos.”

Negociação
Falta ao governo um Aureliano Chaves, o vice-presidente civil do general João Baptista Figueiredo, para falar que não adianta tapar o sol com a peneira. O número de mortos aumenta e a situaão é critica nos hospitais do São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Roraima, estados nos quais afrouxar a política de isolamento social agora significa multiplicar o número de mortos por falta de assistência médica adequada. Faltam leitos de UTI, respiradores e equipamentos de proteção individual, além de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, porque muitos estão se contaminando. Talvez o general Pazuello seja mais importante para enfrentar o problema de logística no gerenciamento da falta de equipamentos e pessoal do que na estratégia de saída do isolamento, que necessariamente estará subordinada a governadores e prefeitos.

A propósito, foi simbólica a presença do governador de Brasília, Ibaneis Rocha (MDB), na entrevista. Sinaliza duas coisas: primeiro, que a situação do Distrito Federal é critica, do ponto de vista dos recursos disponíveis; segundo, que está havendo uma forte aproximação do MDB com o governo, de olho na sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara. Ontem, o presidente da legenda, Baleia Rossi (SP), esteve com Bolsonaro, como parte de uma rodada de conversas para rearticular a base do governo e esvaziar a liderança de Maia. Também haverá uma conversa de Bolsonaro com o presidente do DEM, ACM Neto, prefeito de Salvador (BA), agendada para hoje.

A operação de reaproximação com o Congresso tem apoio dos caciques do Centrão: Roberto Jefferson, PTB; Valdemar Costa Neto, PR; Gilberto Kassab, PSD; Ciro Nogueira, Progressistas; e Paulinho da Força, Solidariedade. A negociação envolve a entrega da Funasa, do Banco do Nordeste, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e dezenas de cargos de segundo e terceiro escalões para esses partidos.

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Luiz Carlos Azedo: Distopia no presente

“Nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa”

A pergunta de meu amigo Carlos Alberto Jr., jornalista e cidadão do mundo, numa live, inspirou a coluna de hoje: “Estamos vivendo uma distopia no presente?”. Normalmente, a distopia está associada ao futuro, porque é a negação da utopia, ou seja, da sociedade desejada, uma projeção pessimista do futuro. De certa forma, sim, estamos vivendo uma realidade distópica, como as que aparecem no cinema. A série inglesa Black Mirror (Espelho Negro), lançada há quase 10 anos, por exemplo, em cada um de seus episódios, que são independentes, nos deixa em situação muito desconfortável em relação à tecnologia, à globalização, ao poder e à “sociedade do espetáculo”.

Qual é a grande distopia que estamos vivendo aqui no Brasil? Uma pandemia de coronavírus ameaça sair do controle e seu combate começa a ser militarizado, com a substituição de uma política de saúde pública participativa por estratégias militares que se baseiam em grandes manobras, controle de informações e saídas racionais para situações fora do controle, como criar mais vagas nos cemitérios para evitar que o aumento do número de mortos gere outro grave problema sanitário: cadáveres insepultos. É uma hipótese sinistra, mas faz sentido, porque a concepção do combate à epidemia é a de que se trata de uma guerra. Em tese, militares estariam mais preparados para isso do que civis, o que, obviamente, é um equívoco em se tratando de saúde pública.

O inimigo invisível entre nós, no trabalho, no supermercado, na fila da lotérica, dentro de casa. Todos nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa, nem sempre um educado “por favor, chegue mais para lá”. Os mais aptos a conviver com o novo coronavírus — os contaminados assintomáticos —, hoje são a maior ameaça, não importa se é um antigo colega de trabalho, um parente querido, um amigo de infância, a pessoa amada; amanhã, porém, poderão ser os salvadores da pátria, portadores de anticorpos e perpetuadores da espécie, os primeiros a voltar ao trabalho.

A salvação virá dos mais fortes e do Estado Levitã, que pode tudo? Qual será o custo de tudo isso? Na lógica do presidente Jair Bolsonaro, é preferível um maior número de mortos do que o colapso da economia; é preciso salvar o comércio, a indústria, os pequenos negócios e os biscates. No fundo, seu raciocínio antecipa a escolha de Sofia do intensivista que seria obrigado a escolher quem vai ter acesso ao respirador na UTI quando o sistema de saúde entrar em colapso.

A República, de Platão, citada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta numa alusão irônica ao famoso Mito da Caverna (metáfora criada pelo filósofo grego para explicar a condição de ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para atingir o verdadeiro “mundo real”), inspirou Thomas Morus (1478-1535) a escrever Utopia. Publicada na Basiléia, em 1516, na época dos Descobrimentos, criticou a tirania e descreveu a sociedade ideal, prontamente associada ao Novo Mundo. Na Inglaterra, seu livro só viria a ser publicado em 1551, 17 anos após a morte do filósofo e estadista católico executado por ordem de Henrique VIII, da Inglaterra.

Tirania
Coube a outro inglês cunhar a expressão “distopia”, o liberal progressista John Stuart Mill, o primeiro a defender o direito ao dissenso e as prerrogativas das minorias, num famoso discurso no Parlamento britânico, em 1868, ao invocar os valores defendidos por Thomas Morus em confronto com a realidade do proletariado da Inglaterra durante a Revolução Industrial. O tema da distopia foi retomado no Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e em 1984, de George Orwell. Na primeira obra, a sociedade é domina por uma casta, que a submete a um condicionamento biológico e psicológico; no segundo, numa alegoria do burocratismo stalinista, um ditador muda a língua do povo, controla a vida dos cidadãos e manipula a imprensa.

Na literatura, portanto, a distopia é a denúncia da sociedade indesejada, autocrática, submetida à tirania e à ordem unida. Na vida real, voltando à pergunta inquietante do amigo, é uma ameaça latente, seria quase uma distopia do presente. Estamos vivendo uma situação inimaginável, num mundo globalizado, conectado em rede, onde todos acompanham tudo em tempo real. Trata-se de um colapso da economia mundial, provocado por um fenômeno da natureza que tem a ver com o “grande encontro” da teoria da evolução, a associação entre o vírus mutante e uma bactéria, que se reproduz em velocidade igual ou maior do que a moderna transmissão de dados.

A ficção distópica dos filmes de catástrofes vira realidade, com centenas de milhares de mortos. Ontem, o presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos vão suspender a imigração legal por dois meses. O “sonho americano”, inspirado na Utopia de Thomas Morus, entrou em colapso. Aqui no Brasil, a grande distopia seria o colapso do nosso regime democrático.

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Luiz Carlos Azedo: Os “dinossauros”

“Bolsonaro acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos”

Ninguém sabe como os dinossauros foram extintos. Entre 208 e 144 milhões de anos atrás, esses animais dominavam os ambientes de terra firme: eram herbívoros, em sua maioria, mas havia algumas espécies carnívoras que se alimentavam de anfíbios, insetos e até mesmo de outros dinossauros. No final do período Cretáceo, foram extintos juntos com diversas outras espécies de animais e plantas. Uma das teorias sobre essa extinção é a de que certos movimentos sofridos pelos continentes provocaram mudanças nas correntes marítimas e também no clima do planeta. Isso teria feito a temperatura baixar, o que causou invernos mais rigorosos. Outra, de que um asteroide colidiu com a Terra e provocou uma catástrofe, com terremotos, tsunamis e incêndios gigantes, que liquidaram a cadeia alimentar. Não existe nenhuma teoria de que tenham sido extintos por uma superbactéria ou um vírus mortal.

Já foram identificadas aproximadamente 3,6 mil espécies de vírus, que podem infectar bactérias, plantas e animais, bem como se instalar e causar doenças ao homem. Gripe, catapora ou varicela, caxumba, dengue, febre amarela, hepatite, rubéola, sarampo, varíola, herpes simples e raiva são as doenças viróticas mais conhecidas. Nenhuma delas se equipara, por exemplo, ao ebola, cuja letalidade é de 90%, ou ao HIV, que já foi de 100% e hoje está sob controle. Ambas não têm vacina reconhecida.

Uma epidemia acontece quando um determinado número de pessoas fica doente e o vírus se propaga exponencialmente. Para os epidemiologistas, o número mágico é 400 para cada 100 mil indivíduos. Esse é o rubicão natural de propagação de um vírus, a partir do qual, na linguagem dos sanitaristas, a epidemia “decola”. As gripes são as epidemias mais comuns, porque seus vírus sofrem permanentes mutações, exigindo campanhas anuais de vacinação. Os antibióticos são utilizados para combater infecções causadas por bactérias, que muitas vezes se propagam em simbiose com os vírus, mas não eliminam os vírus. Por isso, deveriam ter outro nome, talvez antibacterianos, o que facilitaria a vida dos médicos com seus pacientes, que não entendem a diferença entre uma coisa e outra e ficam querendo a medicação.

Os vírus são difíceis de combater. Como os tratamentos quimioterápicos para a infecções virais são limitados, descanso, hidratação e analgésicos são as alternativas mais comuns para reduzir os incômodos das doenças virais, exceto nas infecções respiratórias graves. A cura ocorre, entretanto, porque o sistema de defesa do organismo parasitado passa a produzir anticorpos específicos que combatem o vírus invasor das células. Os vírus são formados por proteínas diferentes daquelas no organismo parasitado, que acabam neutralizadas pelos anticorpos. Assim, caso o vírus invada o organismo novamente, a memória imunológica desencadeará rapidamente uma resposta imune específica contra o vírus, e a doença não se instalará novamente. Quando isso não ocorre, aí, sim, temos um grande problema pela frente.

Imunização

Vários membros da família Coronaviridae infectam humanos e causam uma infecção respiratória discreta. Alguns membros desta família que infectam animais silvestres, quando transmitidos aos humanos, causam uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (Sars), como é o caso do Sars-cov-1, da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do Sars-cov-2, responsável pela atual pandemia denominada Covid-19. O vírus pulou dos morcegos para animais silvestres que, ao chegarem ao mercado de Wuhan, na China, infectaram os homens. As teorias de que os chineses comeram morcegos ou fabricaram o vírus para dominar o mundo são mentirosas e racistas, disseminadas com o propósito de promover uma nova “Guerra Fria” entre o Ocidente e a China.

O mundo já teve outras pandemias, como a gripe espanhola, que matou 50 milhões de pessoas, mas que nem de longe se propagou com a velocidade no novo coronavírus, devido à globalizaçao. No Brasil, estamos vivendo um momento dramático por causa disso, com o sistema de saúde pública em estresse, devido ao aumento rápido do número de casos, com mais de 200 mortes por dia. A situação é delicada: o presidente Jair Bolsonaro é contra a política de isolamento social adotada por governadores e prefeitos para reduzir a velocidade de propagação da doença e preparar o sistema de saúde para receber seu impacto. Substituiu o ministro Luiz Henrique Mandetta pelo oncologista Nelson Teich, no Ministério da Saúde, com o claro propósito de flexibilizar o regime de quarentena e retomar as atividades econômicas paralisadas em razão da epidemia. Acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, porém devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos. Diz o samba: “quem acha vive se perdendo.”

O risco de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) é real. Mesmo que ocorra a tragédia anunciada, de fato, não devemos temer o fim da espécie. A maioria das pessoas está desenvolvendo seu sistema imunológico para se defender do vírus e com ele conviver, como acontece com outras doenças. O problema é que essas pessoas transmitem o vírus para as demais, inclusive os nossos “dinossauros”, ou seja, os mais idosos, que adquirem lesão pulmonar grave devido à produção de moléculas inflamatórias (citocinas) pelo sistema imune inato e têm também problemas de coagulação, devido à reação inflamatória sistêmica (coagulação intravascular disseminada) ou à produção de anticorpos contra fosfolipídeos (síndrome antifosfolipide).

Enquanto não se tem uma vacina, esses sintomas estão sendo tratados com drogas utilizadas para combater outras doenças, como a cloroquina, usada contra a malária, e drogas anticoagulantes, em especial a heparina. Muitos, porém, não resistem. Ou seja, é melhor os “dinossauros” ficarem bem espertos, em casa.

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Luiz Carlos Azedo: Três crises em uma

“Existe um tempo futuro em relação à epidemia, no qual Bolsonaro aposta todas as suas fichas. Estima-se que o seu pico deva ocorrer nas próximas três semanas”

A substituição do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, pelo renomado médico oncologista Nelson Teich, consumada, ontem, pelo presidente Jair Bolsonaro, resolve a crise no governo — decorrente do choque de orientações entre o ministério e a presidência —, mas não as crises na saúde, com a ameaça de colapso do sistema de Saúde nas regiões mais atingidas pela epidemia; na política, devido ao choque entre governo federal e os governadores e os prefeitos; e na economia, no contexto da recessão mundial provocada pela pandemia.

Bolsonaro e Mandetta pactuaram a transição de maneira a que o novo ministro possa contar com a colaboração da atual equipe da Saúde, enquanto Teich embrulha o paraquedas. O novo ministro não é um sanitarista nem infectologista, não tem experiência de gestão no setor público nem de políticas públicas na saúde. Assume o ministério como um médico especialista conceituado e bem-sucedido na medicina privada. Não conhece a engrenagem do Sistema Unificado de Saúde (SUS), cuja complexidade é sobretudo política, porque funciona em torno de três eixos: a cooperação entre a União, estados e municípios; a coordenação entre instituições públicas de pesquisas e uma relação assimétrica com as redes hospitalares e seguros de saúde privados.

Nunca o SUS foi posto à prova com a intensidade de agora. A política de distanciamento social adotada pelo ministro Mandetta, governadores e prefeitos foi uma estratégia de resistência para barrar o avanço acelerado da epidemia, principalmente nos grandes centros urbanos, sem que o sistema de saúde estivesse preparado para lidar com a pandemia. Para ganhar tempo, os governadores e prefeitos adotaram o regime da quarentena horizontal, porque são responsáveis pelo atendimento à população mais pobre e não havia capacidade instalada para atendê-la. A União responde por apenas 5% da rede hospitalar.

Entretanto, o novo ministro da Saúde tem vantagens em relação ao seu antecessor: a doença é mais conhecida, o sistema de saúde já foi ampliado, os insumos necessários foram adquiridos, as condições de resposta à epidemia, de certa forma, melhoraram muito nos últimos dois meses, em que a progressão exponencial do coronavírus foi contida. Além disso, apesar da adesão da maior parte da população à política de isolamento social, a paralisação da atividade econômica de fato gera uma pressão de baixo para cima no sentido de flexibilização do regime de quarentena, a grande exigência de Bolsonaro, com a qual o novo ministro deixou subentendido que concorda.

Ponto futuro
A queda de Mandetta, do ponto de vista político, foi absolutamente atípica. O ministro sai do governo como herói da luta contra epidemia e a popularidade muito maior do que a do presidente da República, que fez até aqui o papel de vilão. O ex-ministro conta com amplo apoio no Congresso e no Judiciário, além da solidariedade de governadores e prefeitos, aos quais acudiu durante a epidemia. Tornou-se um ator político nacional que rivaliza com Bolsonaro; talvez seja essa a principal causa de sua demissão. O panelaço de ontem, durante a fala de Bolsonaro, ao apresentar o novo ministro, corrobora isso. Há casos de ministros demitidos por incompetência técnica ou corrupção, é a primeira vez que um ministro é demitido em caso de sucesso. Mas, como diria o maestro Tom Jobim, isso é atentado ao pudor no Brasil.

O novo ministro foi responsável, nos anos 1990, pela fundação do Centro de Oncologia Integrado (Grupo COI), onde atuou até 2018. Prestou consultoria à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE) do Ministério da Saúde, comandada por Denizar Vianna, o integrante da equipe de Mandetta com quem tem fortes relações pessoais. Formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, foi residente no Instituto Nacional do Câncer, Teich estudou gestão da saúde na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez mestrado em oncologia na Universidade de York (Reino Unido) e prestou consultoria para o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Ou seja, tem relações para estruturar sua própria equipe.

Ninguém se iluda, a epidemia tem prazo de validade. Entre os especialistas, há um debate sobre a natureza do novo coronavírus, no qual há muito mais dúvidas do que certezas. Se não trombar com Bolsonaro, que já precificou a letalidade da Covid-19, Teich sobreviverá ao coronavírus. Existe um tempo futuro em relação à epidemia, no qual Bolsonaro aposta todas as suas fichas. Primeiro, estima-se que o pico da epidemia deva ocorrer nas próximas três semanas; se o sistema de saúde suportar essa travessia, acredita-se que o pior terá passado. Segundo, avançam estudos sobre o tratamento da doença e a cloroquina já está sendo largamente utilizada pelos médicos para mitigar seus efeitos, principalmente na rede privada. Terceiro, cresce entre os epidemiologistas e sanitaristas o debate sobre o tema da autoimunização da população pela doença. A longo prazo, a subnotificação reforça a narrativa de Bolsonaro de que a epidemia é mais branda no Brasil, ao mesmo tempo em que as comorbidades legitimam o discurso darwinista de que os mais idosos morrerão mesmo, por causa de outras doenças.

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Luiz Carlos Azedo: Não pede pra sair

“O governo corre contra o tempo para garantir leitos de UTI, respiradores, equipamentos de proteção, testes e medicamentos para o sistema de saúde”

O relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), divulgado ontem, estima para este ano uma recessão mundial pior do que a Grande Depressão de 1929, com uma redução de 3% no Produto Interno Bruto (PIB) global, contra uma expectativa de crescimento de 3,3% que havia antes da pandemia. No Brasil, segundo o FMI, o PIB deve encolher 5,3%, em vez de crescer 2,2%, como era esperado. Esse cenário pessimista passou a ser o eixo das preocupações do governo e do mercado financeiro, com repercussões muito fortes nas estratégias de saída da epidemia de coronavírus. E também acirrou o conflito de Bolsonaro com governadores e prefeitos.

É nesse contexto, por exemplo, que devemos examinar a queda de braço entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), na discussão sobre as medidas aprovadas na segunda-feira para ajudar estados e municípios. Nas projeções do FMI, o desempenho da economia brasileira será o pior desde 1901. Essa avaliação surpreendeu o mercado financeiro, que projetava uma queda de 1,96%, segundo o boletim Focus, do Banco Central. As projeções do FMI levaram o Palácio do Planalto a atuar mais fortemente para barrar, no Senado, a ajuda aos governadores e prefeitos.

A proposta de Guedes é um auxílio de R$ 77 bilhões para estados e municípios, o que aumentaria para R$ 127,3 bilhões as transferências da União, uma vez que R$ 49,9 bilhões já haviam sido anunciados em março. O ministro da Economia rechaça o projeto aprovado pelos deputados, que recompõe durante seis meses (entre maio e outubro), ao custo estimado de R$ 89,6 bilhões, as perdas de arrecadação dos estados e municípios relacionadas com a pandemia do coronavírus. Guedes pôs seus assessores em campo, criticando a Câmara, o que provocou dura reação de Rodrigo Maia.

O que mais irritou Maia foi a narrativa de farra fiscal da equipe econômica. No projeto da Câmara, foi estabelecido que os valores repassados pela União deverão ser aplicados pelos estados e municípios, exclusivamente, em ações para o combate à pandemia de coronavírus. Para receber, governadores e prefeitos terão de comprovar a queda da arrecadação, referentes aos meses de abril a setembro de 2020, em até 15 dias após o encerramento de cada mês. Nos meses de abril, maio e junho, receberão uma antecipação do auxílio de 10% da arrecadação dos impostos referentes aos meses de 2019.

Em relação ao ICMS, recolhido pelos estados, 75% seriam destinados aos estados e 25%, repassados aos municípios, sendo que a divisão será feita com base na participação de cada município na receita do ICMS do estado nos mesmos meses de 2019. Se esse percentual for maior do que o ente federativo deve receber, será deduzido no mês seguinte ou, após o fim do seguro, compensado nas distribuições do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

Contra-ataque
Guedes quer que o Senado aprove apenas R$ 40 bilhões em transferências diretas, sendo R$ 19 bilhões para os estados e R$ 21 bilhões para os municípios. Em contrapartida, seriam suspensas as dívidas com a União, de R$ 20,6 bilhões dos estados e de R$ 2 bilhões dos municípios; e com a Caixa Econômica Federal e com o BNDES neste ano, de R$ 10,6 bilhões dos estados e de R$ 4,2 bilhões dos municípios. Governadores e prefeitos avaliam que esses recursos não são suficientes. Argumentam que estão com a maior parte do ônus de manutenção do sistema de saúde e não terão como arcar com as despesas, inclusive, o pagamento de pessoal.

Maia defende que o governo emita títulos da dívida pública para financiar os gastos com a pandemia, mas os técnicos do Executivo não concordam com a escala em que isso teria de ser feito. Boa parte da resistência do presidente Jair Bolsonaro à política de distanciamento social vem das avaliações feitas por Guedes. O ministro é um ultraliberal, aceitou fazer transferências diretas de recursos para a população de baixa renda para injetar dinheiro na economia, mas não concorda com a transferência dos recursos a estados e municípios na escala aprovada pela Câmara.

A propósito da epidemia, ontem, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reapareceu na entrevista coletiva do Palácio do Planalto. O governo corre contra o tempo para garantir leitos de UTI, respiradores, equipamentos de proteção individual, testes e medicamentos para evitar o colapso do sistema de saúde.

Como os números continuam ascendentes — 1.532 mortes, eram 1.328 na segunda, aumento de 15%; 25.262 casos confirmados, eram 23.430 na segunda, aumento de 8% —, Mandetta continua no cargo. O ministro da Saúde não pede para sair, e o presidente Jair Bolsonaro, nesse contexto, também não arrisca tirá-lo.

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Luiz Carlos Azedo: Uma crise instalada

”A queda na arrecadação é tratada por Bolsonaro como uma espécie de castigo aos governadores que estão defendendo o isolamento social”

O choque entre o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é a face mais visível de uma crise de maiores proporções entre a União e os estados, numa recidiva da velha contradição centralização versus descentralização. A epidemia de coronavírus e a recessão mundial dela decorrente exacerbaram o conflito, que se manifesta na discussão sobre aprovação do chamado Plano Mansueto, ou seja, a ajuda a estados e municípios. Bolsonaro está em litígio aberto com os governadores e prefeitos que estão na linha de frente do combate à epidemia de coronavírus e não esconde o incômodo com o alinhamento entre eles e o ministro Mandetta.

Uma decisão de Bolsonaro é emblemática quanto às dificuldades que cria para os governadores na implementação da estratégia de distanciamento social adotada pelo Ministério da Saúde para conter a velocidade da epidemia. No fim de março, as operadoras de telecomunicações ofereceram ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) um mapa de calor para mostrar a geolocalização da população. O intuito era identificar aglomerações e situações de risco de contaminação do novo coronavírus. Bolsonaro vetou o uso das informações, que seria mais uma arma no combate à Covid-19, pois o georreferenciamento permite a pronta atuação das autoridades locais para reduzir essas aglomerações.

O ministro Marcos Pontes chegou a gravar um vídeo anunciando a implantação do sistema nesta semana. No sábado, porém, Bolsonaro ligou para Pontes e suspendeu tudo. Alegou que há riscos para a privacidade do cidadão e que a Presidência precisa estudar melhor o tema, apesar de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) aprovar o uso da ferramenta proposta pelas teles, uma solução semelhante à que foi adotada pela Coreia do Sul, um dos países com menores taxas de mortalidade pela Covid-19.

A decisão de Bolsonaro tem endereço certo: o governador tucano João Doria, que está controlando o nível de isolamento social no estado de São Paulo pelo monitoramento dos celulares. Para se ter uma ideia de como isso é útil, a diferença de 50% para 70% da população em regime de distanciamento social, para efeito da propagação da epidemia por pessoa, salta de uma média de dois para quatro novos contaminados, ou seja, um crescimento exponencial.

Nada disso importa. A tese que empolga Bolsonaro é a do ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, para quem a epidemia já atingiu o seu pico e entrará em declínio, acabando em maio, o que não bate com os modelos matemáticos da equipe do Ministério da Saúde. Segundo Terra, que é médico, o isolamento social não tem eficácia e apenas aprofunda a recessão, além de retardar a autoimunização da maioria da população. A tese também está sendo endossada pelo líder do governo na Câmara, deputado Victor Hugo (PSL-GO), que vem defendendo abertamente a saída de Mandetta do governo. Ontem, Mandetta não falou com a imprensa. Sua permanência no governo é incerta.

Ajudas
A estrela da entrevista de ontem no Palácio do Planalto foi a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, que anunciou medidas destinadas a proteger grupos de risco, como indígenas, quilombolas, ciganos, moradores de rua e idosos em asilos. Damares também contrariou a orientação do Ministério da Saúde e defendeu o chamado isolamento vertical, ou seletivo, focado nesses grupos. Na ocasião, anunciou a distribuição de cestas básicas e o confinamento de tribos indígenas, quilombolas e acampamentos ciganos, além de uma rede de proteção aos moradores de rua e outras populações de risco, formada por instituições filantrópicas e religiosas.

Mas o maior conflito é mesmo a negociação do Plano Mansueto. O ministro da Economia, Paulo Guedes, convenceu Bolsonaro a não ceder a governadores e prefeitos, que pedem socorro financeiro em razão da queda da arrecadação. Eles são responsabilizados pela recessão e o desemprego. A queda na arrecadação é tratada por Bolsonaro como uma espécie de castigo aos governadores que estão defendendo o isolamento social.

As negociações entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e os líderes partidários com o governo, nos últimos dias, foram muito tensas. Guedes foi duro: “O desenho deste projeto é muito perigoso, é um cheque em branco para governadores e prefeitos fazerem uma gestão descuidada, levando todo ônus para o contribuinte, justamente no momento em que mais precisamos da boa gestão para proteger os mais vulneráveis”, declarou.

Rodrigo Maia, entretanto, articulou mudanças no projeto para garantir a aprovação da nova versão do chamado Plano Mansueto, que foi limitada à instituição de um seguro-garantia de arrecadação para estados e municípios, com impacto estimado de R$ 80 bilhões. “A posição que ouvi majoritária entre os líderes é que nós façamos como se fosse um seguro. Se arrecadação era 100 e caiu pra 70, o governo recompõe 30. Se daqui a quatro meses a arrecadação era 100 e foi 100 (novamente), o governo não precisa dar um real”, afirmou Maia.

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Luiz Carlos Azedo: O bêbado e a borboleta

“Desafiar o novo coronavírus se tornou uma espécie de obsessão para o presidente da República, que se comporta como quem adquiriu imunidade contra a doença”

No livro O revólver que sempre dispara (Casa Amarela), Emanuel Ferraz Vespucci analisa as causas, os comportamentos e as consequências para a saúde de diversas dependências químicas, inclusive o alcoolismo e o tabagismo. É um livro despido de preconceito e, do ponto de vista clínico, como não poderia deixar de ser, serve de referência para os que lidam com o problema: usuários em busca de tratamento, seus familiares e terapeutas. O livro explica de maneira clara como as diversas drogas causam dependência física e psicológica, os problemas que acarretam e as maneiras de enfrentá-los, sem moralismo. A perda de controle sobre o álcool, a cocaína, o crack, a maconha, morfina, calmantes, inibidores de apetite e outros psicotrópicos é um problema muito mais amplo do que se imagina.

A dependência funciona como uma roleta russa. Em algum momento a bala que está no cilindro do rerólver será disparada, na medida em que o sujeito arrisca mais uma vez. Ou seja, o acaso tem um limite, quanto maior a frequência, maior a probalidade de ocorrência. Por causa da dependência, algo grave acontecerá na vida da pessoa, pode ser um acidente de carro, a perda do emprego, um surto psicótico, um infarto.

O que interessa aqui é a analogia da roleta-russa, ou seja, do revólver que sempre dispara. Durante a pandemia de Covid-19, por causa do risco de contaminação, sair de casa é uma espécie de roleta russa, mesmo que a pessoa utilize máscaras e luvas. Acontece que o presidente da República — com o objetivo declarado de desmoralizar a política de distanciamento social preconizada pelas autoridades médicas, inclusive seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e responsabilizar governadores e prefeitos pela recessão econômica — resolveu sair às ruas com frequência e, nesses passeios, visitar o comércio local para estimular proprietários e consumidores a manterem uma vida normal. Bolsonaro ignora uma epidemia que está matando mais de 100 pessoas por dia no Brasil, o equivalente a um desastre de grandes proporções.

Desafiar o novo coronavírus se tornou uma espécie de obsessão para o presidente, que se comporta como quem adquiriu imunidade contra a doença, como acontece com aqueles que já foram contaminados, se recuperaram e adquiriram anticorpos ou que, por qualquer outra razão, têm uma sistema imunológico mais robusto, geralmente mais jovens. Não se sabe se o presidente está imunizado; ele se recusa a revelar os resultados dos exames que fez. Bolsonaro age como um jogador compulsivo, o que não deixa de ser uma dependência, sem levar em conta que a maioria das pessoas não está preparada para lidar com o aleatório.

Teoria do caos

É aí que chegamos a O andar do bêbado (Zahar), o instigante livro do físico Leonard Mlodinow, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, sobre o acaso na vida das pessoas, ou melhor, sobre como funciona a aleatoriedade. O novo coronavírus se multiplica como um “Efeito Borboleta”, descoberto em 1960, pelo matemático Edward Lorenz, base para a Teoria do Caos. Mostra como pequenas alterações nas condições iniciais de grandes sistemas podem gerar transformações drásticas e significativas.

Lorenz, que também era meteorologista, realizava cálculos relacionado a padrões climáticos num computador. Em vez de colocar 0,000001, conforme fez na primeira vez, ele colocou 0,0001, alterando completamente o resultado da simulação, como se o bater de asas de uma borboleta na Austrália provocasse um furacão no Caribe. Foi o que aconteceu com o coronavírus na Alemanha e na Coreia do Sul, países que mais bem monitoraram a epidemia e conseguiram mantê-la sobre controle, com testes em massa e hospitalização dos contaminados. No primeiro caso, bastou que uma pessoa contaminada usasse o saleiro num almoço de família para a epidemia se propagar; no segundo, um único paciente, de 30 casos confirmados, escapou do isolamento e disseminou a doença.

Na Sexta-feira da Paixão contabilizamos 1.056 mortes e 19.638 casos confirmados, 44 dias após o primeiro caso registrado no país e 24 dias depois do registro da primeira morte. São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Amazonas estão em risco de colapso do sistema de saúde pública. Numa hora em que o país precisa de coesão social e alinhamento das políticas de combate ao novo coronavírus, para evitar o colapso do sistema de saúde, Bolsonaro aposta na autoimunizaçao pelo contagio e num medicamento de eficácia limitada nos tratamentos, a hidroxicloroquina, para evitar as mortes, e prega a retomada imediata das atividades econômicas, com adoção do chamado isolamento seletivo ou vertical. Essas apostas foram feitas em outros países, como os Estados Unidos, Inglaterra e Japão, e fracassaram.

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Luiz Carlos Azedo: Eleições na berlinda

“A epidemia não impediu a montagem de chapas de vereadores nem as pré-candidaturas a prefeito, mas muita gente torce pelo adiamento do pleito”

Se antecipando ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o juiz federal Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Cível da Justiça Federal em Brasília, detonou, ontem, as eleições municipais deste ano, para escolha de prefeitos e de vereadores, ao determinar o bloqueio dos recursos do fundo partidário (dinheiro destinado aos partidos políticos) e do fundo eleitoral (para custear campanhas eleitorais). Decidiu que os recursos ficarão à disposição do governo federal para serem usados em medidas de combate ao coronavírus ou em ações contra os seus reflexos econômicos, inviabilizando o funcionamento dos partidos e suas campanhas eleitorais. Ontem, o Brasil atingiu 14.018 casos confirmados do novo coronavírus, com 686 mortes.

“Os valores podem, contudo, a critério do Chefe do Poder Executivo, ser usados em favor de campanhas para o combate à Pandemia de Coronavírus — Covid-19, ou para amenizar suas consequências econômicas”, determinou o magistrado, que acolheu ação popular impetrada por um advogado paulista. Com R$ 959 milhões, o fundo partidário é usado para permitir o funcionamento das legendas. O fundo de financiamento de campanhas acumula R$ 2,034 bilhões, dinheiro que estava destinado às campanhas das eleições municipais de outubro.

A sentença, em tom de manifesto, soa como música para aquela parcela da opinião pública que odeia os políticos: “Dos sacrifícios que se exigem de toda a Nação, não podem ser poupados apenas alguns, justamente os mais poderosos, que controlam, inclusive, o orçamento da União”, argumentou o juiz federal. Segundo ele, a manutenção dos fundos “se afigura contrária à moralidade pública”, “aos princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” e, ainda, “ao propósito de construção de uma sociedade solidária”.

Nos bastidores do Congresso, que vota medidas de emergência para evitar que os trabalhadores informais fiquem sem nenhuma fonte de renda e para garantir a sobrevivência das empresas, também se discute o adiamento das eleições, em razão da epidemia. Até agora, o calendário eleitoral foi mantido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A epidemia não impediu a montagem de chapas de vereadores nem as pré-candidaturas a prefeito, com intensa troca de partidos e novas filiações, até o último domingo, mas muita gente torce pelo adiamento.

Calendário
Sempre houve no Congresso quem defendesse a coincidência das eleições, acenando com uma prorrogação de mandato por mais dois anos para prefeitos e vereadores. Essa ideia, porém, vem sendo rejeitada. Mexer na duração dos mandatos é considerado um precedente perigoso para a democracia, em qualquer hipótese, quando nada porque a história do Brasil associa essas mudanças a rupturas institucionais. Entretanto, a epidemia de coronavírus realmente coincidirá com o processo eleitoral.

As eleições municipais só ocorrerão em outubro, mas a contagem regressiva está em pleno curso. Para os eleitores, 6 de maio é o último dia para que regularizem a sua situação junto à Justiça Eleitoral. Pessoas que perderam o recadastramento biométrico e tiveram o título cancelado, que não justificaram a ausência nas últimas eleições ou desejem alterar o domicílio eleitoral têm até esse dia para resolver suas pendências nos cartórios eleitorais.

Em 15 de maio, começa a arrecadação facultativa de doações por pré-candidatos aos cargos de prefeito e vereador. Pré-candidatos que apresentem programas de rádio ou televisão ficam proibidos de fazê-los a partir de 30 de junho. A partir de 4 de julho, estão proibidas nomeações, exonerações e contratações, assim como transferências de recursos, entre outras, ou seja, a administração pública é engessada. As convenções partidárias para a escolha dos candidatos deverão ser realizadas de 20 de julho a 5 de agosto.

Segundo o calendário epidemiológico, nesse período, a epidemia estará ultrapassado o seu ápice, mas isso é apenas uma projeção estatística. Os registros de candidaturas devem ser protocolados na Justiça Eleitoral antes da meia-noite de 14 de agosto. Em 16 de agosto, começa a propaganda eleitoral, inclusive na internet. O horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão será veiculado de 28 de agosto a 1º de outubro. O primeiro turno de votação está previsto para 4 de outubro; o segundo turno, para a eleição de prefeitos em municípios com mais de 200 mil eleitores, ocorrerá no dia 25 do mesmo mês.

Hoje, as eleições não poderiam ser realizadas na maioria das capitais, sobretudo São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife, Manaus e Florianópolis, e alguns grandes cidades. Na maioria dos municípios, não haveria maiores dificuldades. Entretanto, não se sabe o que acontecerá até outubro. Na epidemia da “gripe espanhola”, que matou milhares de pessoas no Rio de Janeiro em 1918, somente 5 mil dos 36 mil eleitores compareceram às urnas em novembro daquele ano, na eleição para o Senado. Em março, na eleição presidencial, 22 mil haviam votado.

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