Luiz Carlos Azedo: O tempo ruge

Com 35% de intenções de votos, Lula largou na frente. Colheu os frutos de suas andanças pelo Nordeste e de uma estratégia de enfrentamento da Operação Lava-Jato

O presidente Michel Temer tem ainda 14 meses de mandato; na prática, sua “sombra de poder” pode não passar de seis meses, porque as articulações de 2018 começaram para valer e os políticos começam a se movimentar para decidir o que fazer nas eleições presidenciais. A pesquisa eleitoral do Ibope de domingo mostra, digamos assim, o estado da arte da sucessão presidencial. Com 35% de intenções de votos, Lula largou na frente. Colheu os frutos de suas andanças pelo Nordeste do país e de uma estratégia de enfrentamento da Operação Lava-Jato que busca desqualificar as acusações contra ele.

Nessa tarefa, foi ajudado, e muito, pelos ex-adversários citados nas delações premiadas de Marcelo Odebrecht e Joesley Batista, pela atuação do presidente Michel Temer para a Câmara rejeitar a denúncia do ex-procurador da República Rodrigo Janot e até pelo senador Aécio Neves (PSDB), presidente licenciado do PSDB, ao reverter no Senado a decisão da Segunda Turma do STF que o havia afastado do mandato.

É óbvio que ninguém quis pôr azeitona na empada de Lula, mas a política é assim mesmo, tem complexas relações de causa e efeito. O mais surpreendente na pesquisa, nesse caso, foi o fato de a economia não ter atrapalhado a vida de Lula. Inflação baixa e juros igualmente em queda livre, fim da recessão e a retomada do crescimento não tiveram impacto na vida dos eleitores que têm saudades de Lula. Esperto, o petista tratou de se desvincular do desastre causado pela política econômica de Dilma Rousseff, que jogou o país numa recessão profunda e desempregou milhões de brasileiros.

Lula aparece na pesquisa de Ibope como real alternativa de poder. Para os analistas, estará no segundo turno das eleições, porque já tem 26% de intenções de votos na pesquisa espontânea, ou seja, tem uma base eleitoral consolidada, apesar de todo o desgaste da Operação Lava-Jato. O que pode afastá-lo da disputa não são os eleitores, mas uma sentença judicial que o tornasse inelegível com base na lei da Ficha Limpa. Essa possibilidade começa também a ser embaçada, embora já esteja condenado em primeira instância. Nos bastidores do Judiciário, são cada vez mais fortes os rumores de que a inelegibilidade por condenação em segunda instância estaria com os dias contados no Supremo Tribunal Federal (STF). É sensato trabalhar com cenário de que o petista estará no segundo turno.

O segundo fenômeno é o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que aparece com 13% das intenções de votos e ocupa o lugar do anti-Lula, ultrapassando Marina Silva (Rede), que tem 8%. Teoricamente, disputariam a segunda vaga, mas há que se considerar o ambiente eleitoral para apostar nessa hipótese. Sem Lula no cenário, empatariam em 15% de intenções de votos. Mas há uma diferença muito interessante. Na pesquisa espontânea, Bolsonaro teria os votos consolidados de 9% dos eleitores, enquanto Marina tem apenas 2%. Como explicar uma situação como essa, em se tratando de uma ex-candidata a presidente da República com votação expressiva em 2010 e 2014?

O vazio

A reforma eleitoral beneficiou os grandes partidos, garantindo-lhes muito mais tempo de televisão e recursos financeiros. Bolsonaro e Marina são candidatos de pequenos partidos, não terão esses recursos disponíveis, a não ser que consigam armar coligações que revertam essa situação, o que é improvável, ou utilizem as redes sociais com mais sucesso do que os adversários, o que é possível. A propósito, tudo indica que Marina foi ultrapassada porque se ausentou do debate político, enquanto Bolsonaro se manteve o tempo todo em evidência com suas atitudes e declarações polêmicas. Marina ainda pode voltar a crescer, Bolsonaro talvez tenha batido no teto. Essas são apenas conjecturas, como a ida de um dos dois para o segundo turno.

Não será surpresa, porém, se ambos acabarem fora do segundo turno. O chamado centro político não foi ocupado. Nas pesquisas espontâneas, os demais candidatos aparecem com 1% ou têm traço. O governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin, na pesquisa induzida aparece, com 5%, empatado com Luciano Hulk (sem partido). A seguir, o prefeito de São Paulo, João Doria, com 4%; Ciro Gomes (PDT), com 3%; Álvaro Dias (Podemos), com 2%; e Ronaldo Caiado (DEM) e Chico Alencar (PSol). Pode ser que surja dese grupo o nome que vai para o segundo turno; por enquanto, o campo está em aberto.

Convite

Lanço hoje o livro O Impeachment de Dilma Rousseff — Crônicas de uma queda anunciada (Editora Verbena/Fundação Astrojildo Pereira), de minha autoria, no restaurante Carpe Diem (SCL 104, Bloco D, Loja 1, ASA Sul, Brasília). Conto com a presença dos amigos e leitores, a partir das 19h.


Luiz Carlos Azedo: Não é o que parece

O presidente Temer comemora a rejeição da segunda denúncia de Janot, mas quem emerge com uma “sombra de futuro” para além de 2018 é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia

Um dos erros mais crassos na política brasileira é confundir a força do governo — qualquer governo, inclusive o pior deles — com o poder pessoal do governante ou do partido. O governo será sempre a forma mais concentrada de poder, como ensinou Norberto Bobbio, porque arrecada, normatiza e coage, mesmo quando nada mais funciona a contento numa administração. Isso cria uma ilusão, uma espécie de autoengano, que muitas vezes acaba numa grande derrocada, como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff, ou leva ao progressivo enfraquecimento, até que o governante perca qualquer capacidade de influir na própria sucessão, o caso do ex-presidente José Sarney.

Esse força é exacerbada pelas características do Estado brasileiro, que se antecipou à nação, e os laços tecidos com as oligarquias e corporações em razão de nosso velho iberismo. A elite brasileira é dura na queda quando está unida, mesmo que contra ela se oponha a maioria do povo. Historicamente, sempre foi pelo alto que se deu a modernização. O grande problema é que o moderno na economia manteve a exclusão social e as desigualdades regionais, embora a sua força avassaladora se impusesse sempre que um ciclo econômico se encerrava para dar lugar a outro, esgotado um determinado modelo. Em todos esses momentos, houve forte conexão com os fluxos da economia mundial, agora ainda mais acentuada pela globalização.

Um dos grandes erros do governo Dilma Rousseff, por exemplo, foi acreditar no adensamento da cadeia industrial brasileira, na contramão da transnacionalização da produção mundial. Não tinha a menor chance de dar certo. A estratégia fadada ao fracasso provocou o colapso da economia do petróleo e do setor automotivo, setores mais dinâmicos de nossa indústria, que somente agora iniciam a recuperação. A transnacionalização da produção industrial é a única saída. O melhor exemplo é a nossa indústria aeronáutica, que está integrada à economia mundial de forma competitiva, porque a Embraer não embarcou na canoa furada da verticalização total da produção. O leilão do pré-sal de sexta-feira mostrou que até a Petrobras já entendeu que a transnacionalização da cadeia produtiva pode ser um bom negócio para nossa indústria.

Mas voltemos à política. Há um ano das eleições, o governo Temer restabeleceu a blindagem constitucional contra a crise ética. Se não houver nenhum outro escândalo, estão dadas as condições para chegarmos às eleições de 2018 em um quadro de normalidade institucional, no qual o primado da política progressivamente voltará a se impor diante da economia e da crise ética. Engana-se, porém, quem imagina que o governo protagonizará o debate eleitoral. Seria até falta de inteligência de parte do próprio presidente Temer ter essa pretensão, porque sua “sombra de futuro” encolhe a cada dia. É muito difícil projetar um candidato a partir do interior do governo. Quanto mais próximo da eleição, mais importante será perceber a diferença entre o poder do Estado e a capacidade de hegemonia dos seus ocupantes.

Temer comemora a rejeição da segunda denúncia do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, mas quem emerge desse processo com uma “sombra de futuro” que se projeta para além de 2018 é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que lhe tomou a bandeira das reformas. Se o processo de modernização for adiante na velocidade e na envergadura necessárias e o país voltar a crescer de forma expressiva, o mérito será de Maia; se fracassar, a culpa, antecipadamente, é de Temer. Como acreditar que o governo saiu fortalecido da votação desta semana, na qual obteve apenas 251 votos, ou seja, menos da metade dos deputados da Câmara.

Descolamento
A votação revelou uma tendência de descolamento progressivo dos partidos da base governista. É um processo irreversível, porque segue a lógica eleitoral, na qual as alternativas serão tecidas à margem do poder central. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) são a expressão de candidatos que buscam apoio na sociedade e encontraram o espaço vazio. No chamado centro democrático, ninguém conseguiu ainda se oferecer como real alternativa de poder, nem mesmo Marina Silva (Rede), que, nas últimas duas eleições, bateu na trave e não foi ao segundo turno. Surgem candidatos, como Alvaro Dias (Podemos-PR), e pré-candidatos, como Cristovam Buarque (PPS-DF), sem falar em Luciano Huck (ainda sem partido). O governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) é um caso à parte, porque representa um sistema de poder estruturado nacionalmente a partir de São Paulo.

É forçar muito a barra comparar as eleições do próximo ano às de 1989, que foi solteira e resultou num segundo turno entre dois candidatos sem grandes estruturas partidárias: Collor de Mello e Lula se aproveitaram de um governo sem energia e da divisão entre PMDB, PSDB e PDT. Será que alguém deseja o apoio ostensivo de Temer nas próximas eleições? Se o governo conseguir reverter a altíssima impopularidade, é possível, pois há quem aposte abertamente nisso. Mas isso é improvável. O governo Temer foi contaminado pela crise ética e não tem como se livrar dela, porque não pode jogar ao mar os envolvidos na Operação Lava-Jato.

 


Luiz Carlos Azedo: E agora, presidente?

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia DEM-RJ), pôs o dedo na ferida, ao afirmar que Temer terá que recompor seu ministério

Adeus, senhor Presidente, do ex-ministro de Planejamento Carlos Matus, foi uma espécie de livro de cabeceira dos bons gestores públicos brasileiros logo após a redemocratização. Ensaio romanceado sobre a sua experiência de administrador no governo de Salvador Allende, descreve a trajetória de um típico presidente latino-americano. O protagonista assume o poder com grandes expectativas de mudança e termina o mandato sem fazer o que prometeu — o único consolo é saber que o sucessor está fracassando. Ao longo desse processo, descreve reuniões surreais de gabinete e até uma tentativa frustrada de golpe militar.

Pululam no romance arquétipos da nossa política: sindicalistas, políticos de esquerda e de direita, empresários, tecnocratas, acadêmicos, idealistas, jornalistas, amigos corruptos e muitas polêmicas como as que frequentam o nosso noticiário, principalmente sobre como equilibrar as finanças públicas e, simultaneamente, estimular o crescimento. O personagem se parece muito com Allende, mas o figurino se aplica a outros presidentes, como os brasileiros Dilma Rousseff e Michel Temer. A diferença é que a primeira não pode ainda rir por último, porque foi apeada do poder pelo impeachment, e Michel Temer, aos trancos e barrancos, já conseguiu escapar de dois impeachments, que seriam a consequência natural de seu afastamento caso as denúncias do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot tivessem sido aceitas.

Dilma não teve habilidade para escapar da cassação, embora estivesse dormindo com o inimigo, pois Temer, vice-presidente da República, conspirou para assumir a Presidência. Faltou à Dilma, também, o mesmo empenho revelado pelos caciques do PMDB na atuação dos líderes do PT, apesar do alarido que foi feito durante as sessões da Câmara e do Senado. Seu partido fez muita agitação na rua, mas sua atuação no parlamento somente aumentou o isolamento de Dilma. Nos bastidores, não era incomum parlamentares petistas dizerem que estava muito mais fácil “trabalhar a rua” depois do afastamento de Dilma. De certa forma, a recente entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jornal espanhol El País, na qual disse que Dilma traiu seus eleitores após a reeleição, nada mais foi do que a confirmação dessa avaliação. Pano rápido.

Jaula de cristal

Em outra obra — O líder sem Estado-Maior —, Matus aprofunda suas reflexões de forma objetiva, faz uma crítica antológica aos governantes latino-americanos. Nela, descreve os gabinetes presidenciais na América Latina (bonitos e bem decorados, com muita gordura e pouco músculo, imponentes, mas frágeis), comparando-os a uma “jaula de cristal”, na qual o presidente se isola, prisioneiro de uma corte que o controla. “Um homem sem vida privada, sempre na vitrine da opinião pública, obrigado a representar um papel que não tem horário. Não pode aparecer ante os cidadãos que representa e dirige como realmente é, nem transparecer seu estado de ânimo.”

“O governante sente-se satisfeito com seu gabinete: nem sente que precisaria melhorá-lo, nem saberia como fazê-lo porque o desacerto está no comando”, descreve Matus. Na tentativa de realizar o impossível, continua, “deteriora a governabilidade do sistema e não aprende, porque não sabe que não sabe. Encontra-se entorpecido por uma prática que acredita dominar, mas que na realidade o domina. Acumula experiência, mas não adquire perícia; tem o direito de governar, sem ter a capacidade para governar. Nesse caso, pode ser que seu período eficaz de governo resulte nulo, pela impossibilidade de combinar, ao mesmo tempo, o poder para fazer e a capacidade cognitiva para fazer”.

Da fatídica reunião com o empresário Joesley Batista, da JBS, que gravou uma conversa no mínimo esquisita, à retenção urológica que o levou ao Hospital do Exército, na quarta-feira, Michel Temer foi o exemplo perfeito de prisioneiro de uma “jaula de cristal”. Todos os movimentos que fez para evitar o afastamento do cargo e sustar as investigações sobre as denúncias do doleiro Lúcio Funaro foram narrados nas rádios, tevês, redes sociais e jornais. Conseguiu manter o cargo, mas saiu mais enfraquecido das escaramuças, uma vez que manteve o apoio de apenas 251 deputados, ou seja, menos da metade da Câmara, que 513 integrantes eleitos. Foi suficiente para barrar a segunda denúncia e restabelecer sua blindagem constitucional (não pode ser investigado por fatos anteriores ao mandato), mas não é o bastante para governar. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia DEM-RJ), pôs o dedo na ferida, ao afirmar que Temer terá que recompor seu ministério, se quiser aprovar qualquer coisa no Congresso.


Luiz Carlos Azedo: O susto de Temer  

Uma “obstrução urológica”, eis o diagnóstico oficial do mal-estar que o presidente Michel Temer sofreu ontem e o levou ao Hospital do Exército, no qual foi submetido a exames e passou por uma “sondagem vesical de alívio por vídeo”, segundo nota oficial do Palácio do Planalto. A notícia vazou quando os deputados começavam a apreciação da segunda denúncia do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot contra Temer, na qual também estão arrolados os ministros da Casa Civil, Eliseu Padilha, e da secretaria-geral da Presidência, Moreira Franco.

Temer chegou andando ao hospital, mas uma ambulância do Exército fez todo o percurso da Praça dos Três Poderes ao Setor Militar Urbano. Seu mal-estar interrompeu uma agenda movimentada, que havia sido iniciada bem cedo, toda focada na votação que haveria na Câmara. Recebeu os deputados Caio Nárcio (PSDB-MG), Aluisio Mendes (Pode-MA), Ademir Camilo (Pode-MG) e Jozi Araújo (Pode-AP), Sinval Malheiros (Pode-SP) e Maurício Quintella (PR-AL); o governador de Tocantins, Marcelo Miranda (PMDB); além de Moreira e Padilha.

Quando o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen, chegou ao gabinete, Temer já estava sentindo muitas dores, o que levou o militar responsável pela segurança pessoal do presidente da República a acionar o dispositivo médico e de segurança. Entre os políticos, o diagnóstico era unânime: Temer havia sentido o ritmo de trabalho, que incluiu muitos almoços e jantares, e somatizou a pressão política. O presidente da República sempre teve votos para barrar a denúncia, mas foi chantageado pela própria base e obrigado a fazer muitas concessões. O deputado mineiro Fábio Ramalho (PMDB), que oferecera um jantar para o presidente na terça, comentava que Temer, não era de dispensar um leitãozinho à pururuca, mas se recusara a comer na confraternização.

No final da tarde, o Palácio do Planalto minimizava a situação, anunciando que o presidente da República deixaria o hospital caminhando por volta das 18h. Não foi o que aconteceu. Também informava que o médico do presidente, Roberto Kalil Filho, estava em contato com a equipe do Hospital do Exército para avaliar se haveria necessidade de Temer ser transferido para São Paulo. Informada da situação, Marcela Temer foi para o hospital no meio da tarde para acompanhar o marido.

Uma obstrução urinária pode ser uma coisa simples ou algo muito grave, dependendo da causa. A obstrução urinária aguda começa com um desconforto na bexiga, com dores abdominais. A sondagem vesical e esvaziamento da bexiga proporcionam alívio imediato, mas não resolve a causa do problema. A causa mais comum entre os homens com mais de 60 anos é a hiperplasia prostática benigna (HPB), o aumento da próstata, que estreita o canal da uretra. É um mal do envelhecimento que pode ser tratado com medicamento ou cirurgia. O problema é facilmente detectado nos exames de PSA e de toque.

Cálculos
Cálculos renais também pode provocar obstrução urinária. A urolitíase (pedra no rim) desenvolve-se quando o sal e as substâncias minerais contidas na urina formam cristais, que se aderem uns aos outros e crescem em tamanho. Normalmente, são removidos do corpo pelo fluxo natural da urina, mas, em certas situações, aderem ao tecido renal ou se localizam em áreas de onde não conseguem ser removidos. Esses cristais podem crescer variando desde o tamanho de um grão de arroz até o tamanho de um caroço de azeitona. A maior parte dos cálculos inicia a sua formação dentro do rim, mas alguns podem deslocar-se para outras partes do sistema urinário, como o ureter ou a bexiga, e lá crescem. Existem cinco tipos predominantes: oxalato de cálcio, fosfato de cálcio, ácido úrico, cistina, estruvita (infectado) e cálculos de tipos mistos.

Carne vermelha, crustáceos e pouco líquido favorecem a formação dos cálculos, que podem ser tratados com dieta e muito líquido. Noventa por cento dos cálculos saem do rim e passam ao ureter dentro de três a seis semanas. Os cálculos que não passam através do ureter podem ser removidos através de cateteres especiais ou através da desintegração com ultrassom. Em ambos os casos, o médico coloca um aparelho na bexiga (cistoscópio) ou no ureter (uretroscópio) para facilitar a remoção. Se a sonda não funcionar, a opção é a cirurgia ou um novo tipo de tratamento, chamado litotripsia extracorpórea, no qual os cálculos são “despedaçados” por ondas de choques, que dispensam anestia e hospitalização.

Mas a causa pode ser mais grave. Uma estenose uretral, por exemplo, pode ser provocada por traumas ou lesões uretrais, uretrites e, principalmente, câncer. Temer tem 77 anos, está sob forte pressão, em plena seca de Brasília, com uma agenda carregadíssima. Os próximos dias dirão o que realmente houve.

- Correio Braziliense


Luiz Carlos Azedo: Ganhos de véspera

Hoje será um dia de muita tensão na Câmara, porque a tropa de choque governista está com os dentes arreganhados. Temer mandou de volta para a Casa oito ministros que são deputados federais

As análises sobre a votação da denúncia do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer, com base na delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, são unânimes: o plenário da Câmara rejeitará amanhã a denúncia e a investigação será congelada até que termine o mandato presidencial. Mas Temer sairá mais enfraquecido, porque uma parte da base se ausentará do plenário. A oposição não tem os 342 votos de que necessitaria para afastá-lo; porém, ao contrário do que aconteceria em outras circunstâncias, caiu o número de aliados incondicionais do presidente de República.

É um non sense. Governistas e oposicionistas querem Temer mais fraco, mas não desejam que ele saia do Palácio do Planalto. Muitos parlamentares têm o discurso de defesa do governo na ponta da língua. Falam em retomada do crescimento, avanço das reformas, defendem o governo de transição, advertem que substituir o presidente novamente seria pôr em risco a democracia, abrir caminho para uma intervenção militar etc. Mas, na hora agá, mesmo assim, votarão a favor da denúncia ou não aparecerão para votar. O nome disso é medo do eleitor, temor de entrar na lista de parlamentares que serão atacados nas redes sociais nas eleições do próximo ano, por movimentos engajados na luta contra a corrupção, como o Vem Pra Rua, por exemplo.

Temer tem se reunido com os aliados que compõem seu estado-maior (houve reuniões ontem e no domingo) e fará um corpo a corpo ainda hoje para amarrar os votos de que necessita. Pelas contas dos próprios aliados, terá em torno de 20 votos a menos do que na votação da primeira denúncia. Parece um mau resultado, mas não é. Bastaria o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se movimentar a favor de seu afastamento para a vaca ir para o brejo. A relação entre os dois já esteve pior, o deputado Heráclito Fortes (PSB-PI), porém, conseguiu costurar um armistício entre eles, que já andavam trocando farpas publicamente. Mas quem quiser que se iluda, a relação é um cristal quebrado. Maia quer distância de Temer.

Dia tenso

Hoje será um dia de muita tensão na Câmara. A oposição promete fazer muito barulho, mas não convocou nenhuma manifestação; a tropa de choque governista também está com os dentes arreganhados. Temer mandou de volta para a Casa oito ministros que são deputados federais: Antônio Imbassahy (PSDB-BA), da Secretaria de Governo; Leonardo Picciani (PMDB-RJ), do Esporte; Ronaldo Nogueira (PTB-RS), do Trabalho; Sarney Filho (PV-MA), do Meio Ambiente; Marx Beltrão (PMDB-AL), do Turismo; Maurício Quintella Lessa (PR-AL), dos Transportes; Mendonça Filho (DEM-PE), da Educação; e Bruno Cavalcanti (PSDB-PE), das Cidades. A missão é mobilizar as respectivas bancadas, quem fracassar pode não voltar ao cargo.

O contencioso de Temer não é pequeno, porque muitos dos acertos feitos na votação anterior não foram cumpridos. Mas o Palácio do Planalto se esforçou na última semana para agradar aos segmentos que o apoiam, principalmente os ruralistas. Esse esforço se traduziu em retrocessos inimagináveis, como reduções significativas de multas ambientais e uma espécie de “liberou geral” na nova legislação sobre combate ao trabalho escravo. As ameaças de retaliação aos deputados considerados infiéis também recrudesceram. Estão no radar do palácio do Planalto as bancadas do PSD, de Gilberto Kassab, e o PR, de Valdemar Costa Neto, sem falar na do PSDB, que continua rachada. A estratégia de Temer foi estreitar a aliança com o senador Aécio Neves (PSDB-MG), presidente licenciado do partido, que prometeu retribuir o apoio que teve do PMDB na rejeição das “medidas cautelares” que haviam sido estabelecidas pela primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF). A suspensão de seu mandato foi revogada pelo Senado com o apoio maciço dos seus colegas peemedebistas.


Luiz Carlos Azedo: A lógica do medo

A “unidade dos contrários” acontece entre o ex-presidente Lula e o deputado Bolsonaro, que parecem manter um acordo tácito quanto à estratégia de campanha

Na política a unidade dos contrários é mais comum do que se imagina. Por exemplo, por trás do debate sobre a denúncia do ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente Michel Temer, que tem por base a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, nem os governistas, nem a oposição, em sua maioria, querem que haja o afastamento e a continuidade das investigações. Daria muito trabalho reorganizar o governo tendo à frente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a um ano apenas das eleições de 2018; de igual maneira, um governo com 3% de aprovação, desgastado pela crise ética, sobre o qual pode-se jogar a responsabilidade pelas dificuldades enfrentadas pela população, interessa à oposição.

A mesma “unidade dos contrários” ocorre na relação entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que parecem manter um acordo tácito quanto à estratégia de campanha. Exploram o medo da população em relação a um suposto retrocesso político e social, o que é facilitado pelo fato de a continuidade do governo não ser uma alternativa de poder para 2018, nem ter condições de construí-la a partir de seu núcleo principal, seja por meio da candidatura à reeleição do próprio presidente Temer, seja lançando outro nome do governo, como o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que não consegue esconder essa ambição.

Essa estratégia é facilitada pela crise do PSDB, que vive um dos seus piores momentos na política brasileira, mesmo que o impeachment da presidente Dilma Rousseff parecesse pôr tudo a seu favor. Aécio Neves (PSDB-MG), que chegou a bater na trave em 2014, está fora da sucessão presidencial, assim como o senador José Serra (PSDB-SP), ambos desgastados pela crise ética. A bola da vez é o governador Geraldo Alckmin, de São Paulo, que ocupa o vértice do sistema de poder sob controle do PSDB, mas não tem o mando do partido. Presidente licenciado da legenda, Aécio sobreviveu às medidas cautelares do Supremo Tribunal Federal (STF), que foram rejeitadas pelo Senado, é o aliado principal de Temer e tem uma carta na manga, a eventual candidatura de Luciano Hulk, de quem é compadre, correndo por fora da legenda. Para complicar ainda mais, o prefeito de São Paulo, João Doria, pode ir à luta se estiver em melhores condições do que Alckmin.

Discurso único

Com Temer e Alckmin neutralizados, Lula e Bolsonaro nadam de braçada, cada qual ampliando a influência eleitoral à custa do medo que o outro provoca em parcelas do eleitorado que se vê sem alternativas robustas na disputa. Até agora, Lula explorou principalmente a resiliência dos militantes do partido e da base eleitoral cativa, sobretudo os 13 milhões de famílias beneficiadas por seu programa de transferência de renda. Isso o manteve à tona, mesmo já estando condenado pelo juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, na Operação Lava-Jato. Agora, Lula parte para a ofensiva, restabelece conexões com as oligarquias nordestinas e explora o crescimento de Bolsonaro, para reagrupar os setores de esquerda que haviam se descolado do PT na crise ética e que começam a vê-lo novamente como alternativa de poder e “um mal menor”.

Bolsonaro também se aproveita dessa recidiva de Lula, se colocando como a única alternativa capaz de barrar a volta de Lula ao poder e o bolivarianismo, ao mesmo tempo em que adota um discurso autoritário e moralista, seja em relação aos costumes, seja quanto aos métodos de combate à corrupção. Também resgata velhas bandeiras nacionalistas, que já estiveram nas mãos de Lula, mas foram perdidas por causa dos escândalos, como a defesa da Petrobras e do pré-sal, além da Amazônia e suas jazidas minerais. Mas do ponto de vista da narrativa eleitoral, está funcionando. Candidato dos setores que defendiam uma intervenção militar, Bolsonaro inverte a equação: seria um militar no poder eleito por um regime civil. Isso seduz setores que deixam de vê-lo como ameaça à democracia, sem considerar que o golpe pode vir depois, mas que também não estão muito preocupados com isso, desde que seus interesses econômicos imediatos sejam atendidos.

O discurso único da elite política contra a Lava-Jato facilita muito a vida de Lula e Bolsonaro. Nada disso significa, porém, que ambos cheguem juntos ao segundo turno das eleições, isso é muito difícil, porque o medo que ambos disseminam pode convergir para outro candidato, com perfil ético e democrático, no decorrer do debate eleitoral.


Luiz Carlos Azedo: O cisne negro

A Operação Lava-Jato “coesiona” a base do governo e a política econômica reaproxima as elites empresarial e política, refazendo o pacto de governabilidade em favor de Temer

O cientista político Marcus André Melo, num ensaio instigante intitulado “A malaise política no Brasil: causas reais e imaginárias” (Journal of Democracy, outubro de 2017), compara a crise brasileira a um cisne negro, resultado de uma rara conjugação: “Uma crise econômica de grande envergadura e um escândalo de corrupção de proporções ciclópicas”. A situação foi agravada pelo impacto fiscal das desonerações e subsídios do governo Dilma, pelo fato de que as Olimpíadas e a Copa do Mundo possibilitaram a expansão fiscal acelerada e devido à exposição da corrupção sem paralelo em regimes democráticos. A reeleição de Dilma, nesse contexto, para ele, foi um “estelionato eleitoral”.

Crise econômica e corrupção corroeram a popularidade do governo Dilma, o que levou a um inédito enfraquecimento do Executivo, em razão da mobilização das ruas e do esfacelamento da base de sustentação parlamentar do governo. Melo destaca esses elementos para contestar avaliações que ignoram o cisne negro, ou seja, a excepcionalidade da crise. Contesta avaliações de que o sistema político brasileiro entrou em falência. Para ele, “a fragilização inédita do Executivo e de autonomização das instituições de controle lato sensu”, no caso o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, jogaram um papel decisivo no impeachment de Dilma, que somente ocorreu porque houve um choque frontal entre o Executivo e o Congresso. “Não havia nada inexorável em jogo”, ressaltou.

O impeachment não foi resultado do colapso do presidencialismo de coalizão brasileiro, mas fruto da interação estratégica entre seus atores, sob condições extraordinárias. “A bomba atômica não era para ser usada: era só arma dissuasória — para atores como o PSDB — ou de extração de rendas — para o PMDB — em típica lógica hospedeiro-parasita. Mas a barganha não prosperou, entre outras razões, pela incapacidade do Executivo em oferecer promessas críveis de que podia conter a Lava-Jato.”

Resumo da ópera: Dilma foi à lona por causa da Lava-Jato, da recessão, do encolhimento eleitoral do PT na sua reeleição, do estelionato eleitoral e dos custos sociais de seu ajuste fiscal. Mas, sobretudo, da teimosia de Dilma Rousseff ao confrontar o PMDB, especialmente dois caciques que estavam mais alinhados entre si do que se imaginava: Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, e Michel Temer, vice-presidente da República. O primeiro foi pego pela Lava-Jato e está preso; o segundo, porém, está na cadeira de presidente da República, apesar das duas denúncias contra ele, a segunda em vias de ser rejeitada pela Câmara.

As diferenças

Chegamos ao ponto que mais nos interessa. Michel Temer assumiu o governo com o país em recessão e seu governo acuado pela Lava-Jato, mas as circunstâncias do impeachment, que poderia ter sido evitado por Dilma, não se repetiram em sua gestão, apesar do mal-estar político que o país ainda vive. Há, pelo menos, duas grandes diferenças: a Operação Lava-Jato “coesiona” a base de seu governo; não provoca a sua completa desestruturação. A nova equipe econômica sob comando do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, reaproximou a elite econômica da elite política, refazendo o pacto de governabilidade. Essa é a razão da sobrevivência de Temer, o primeiro presidente da República a ser denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) no exercício do cargo, duas vezes.

Melo conclui que não houve um esgotamento do presidencialismo de coalizão. “É um truísmo”, dispara. Depois de resgatar os autores do conceito — Afonso Arinos, no pós-1945, com seu “presidencialismo de transação”; e Sérgio Abranches, que cunhou a nova expressão, após a Constituição de 1988) —, destaca que dois terços das atuais democracias do mundo são presidencialistas ou semipresidencialistas e governadas por coalizões multipartidárias. A diferença de uma situação para a outra, porém, é que a primeira não tinha uma instância de arbitragem entre o Legislativo e o Executivo, grande lacuna apontada por Arinos, um dos fatores das crises que desaguaram no golpe militar de 1964.

Ao contrário, agora, constata-se a emergência do Supremo Tribunal Federal (STF) como moderador dos conflitos entre o Executivo e o Legislativo e protagonista de uma mudança que pode realmente implodir a corrupção sistêmica, com os julgamentos da Operação Lava-Jato. Executivo e Legislativo, porém, se uniram para conter esse protagonismo, o que também corrobora a tese de que o presidencialismo de coalizão sobreviverá. Basta chegar ao pleito de 2018.

 


Luiz Carlos Azedo: O pacto da transição

Há uma espécie de pacto tácito entre governistas e oposicionistas para continuar se beneficiando da máquina federal e capitalizar o desgaste do governo, respectivamente

A rejeição da denúncia do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara era pedra cantada. O Palácio do Planalto sempre teve maioria para isso, tanto que indicou o relator da matéria, deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), à revelia de sua própria bancada, com o apoio velado do presidente licenciado do PSDB, senador Aécio Neves (MG). Em nenhum momento a decisão esteve ameaçada.

Isso significa que a situação de Temer no plenário da Câmara será mais confortável do que na primeira denúncia? Não, por três razões que precisam ser levadas em conta. Primeira: o realinhamento de forças no interior da base do governo, que começou na primeira denúncia e deve se consolidar agora. Segunda: a maior proximidade das eleições dificulta a mobilização dos aliados da antiga oposição para o voto aberto contra a investigação. Terceira: até a tropa de choque de Temer tem interesse em que o Palácio do Planalto saia do processo mais enfraquecido e dependente do seu apoio.

Os atritos do grupo palaciano com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), no decorrer da semana passada, foram um sinal claro de que há um estranhamento entre o presidente da República e seu principal aliado, apesar das juras de amor de ambas as partes nos últimos dias. Maia já deixou mais do que claro que não cobiça o lugar de Temer na Presidência, embora seja o seu sucessor natural em caso de aceitação da denúncia, que implicaria no afastamento imediato de Temer do cargo.

Houve uma espécie de demarcação de posições. Maia sinalizou para Temer que pretende ser tratado como um aliado com autonomia e dono da pauta da Câmara. Já havia mandado recado nesse sentido, ao avisar que não devolveria uma medida provisória que implicasse em elevação de impostos. Nos bastidores, há inquietação no partido de Maia em relação às eleições de 2018, principalmente em alguns estados importantes, nos quais a legenda pode apresentar candidatos competitivos, como ocorre na Bahia, com o prefeito de Salvador, ACM Neto; em Goiás, com o senador Ronaldo Caiado; e no Rio de Janeiro, com Cesar Maia, pai do presidente da Câmara.

Alternativa de poder

Ao contrário do que muitos imaginam, o enfraquecimento de Temer na própria base parlamentar não é resultado da escassez de cargos no governo, nem de recursos do orçamento para liberação de verbas. É a progressiva redução de seu mandato, o recurso mais escasso de que dispõe, pois estamos a um ano das eleições. A “sombra do futuro” de Temer encolhe a cada dia que a eleição se aproxima. E o governo ainda não tem uma alternativa de poder a oferecer, ou seja, um candidato competitivo que possa chamar de seu. No fundo, o grupo palaciano gostaria mesmo era que Temer enchesse as velas da sua própria reeleição com o vento pela popa da queda da inflação e da taxa de juros. O que mais atrapalha isso é o desemprego.

Apesar da retórica, a oposição também não deseja a saída de Temer. Prefere vê-lo sangrando no cargo. Os duros ataques de seus representantes da Comissão de Constituição e Justiça, ontem, em nenhum momento foram acompanhados da tentativa de mobilização popular para pressionar os integrantes dela. É certo que existe um ambiente de melhoria na economia que ajuda a dissipar os protestos de massa, como as mobilizações “espontâneas” do impeachment de Dilma Rousseff. Mas as velhas bandeiras vermelhas e cartazes das centrais sindicais eram para tremular na Praça dos Três Poderes, porém, não é o que se vê.

Há uma espécie de pacto tácito entre governistas e oposicionistas para continuar se beneficiando da máquina federal e capitalizar o desgaste do governo, respectivamente. Essa já era uma tendência por ocasião da votação da primeira denúncia, mas se acentuou ainda mais agora, porque o debate das reformas perdeu completamente o protagonismo. O Palácio do Planalto ainda acena essa bandeira para os agentes econômicos, mas seus avanços são na direção do atendimento de interesses dos grupos de pressão com forte atuação fisiológica, corporativa e patrimonialista. O exemplo mais recente foi a mudança em relação à legislação sobre trabalho escravo, para beneficiar a bancada ruralista.


Luiz Carlos Azedo: Escrito nas estrelas

A vitória de Aécio consolidou a aliança da ala tucana ligada ao presidente Michel Temer, que trabalhou intensamente para que a bancada do PMDB votasse em peso a favor do senador mineiro

O Senado rejeitou por 44 votos a 26 a decisão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que havia determinado o afastamento do mandato do senador Aécio Neves (MG), presidente licenciado do PSDB, além de obrigá-lo ao recolhimento noturno. Foi uma sessão rápida (durou menos de três horas), mas precedida de muitas reuniões e negociações, além das duas sessões do Senado que foram abortadas para esperar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a prerrogativa constitucional de os senadores decidirem sobre a aceitação ou não das “medidas cautelares”.

Hoje ainda, Aécio poderá voltar ao plenário do Senado. Foi o grande vitorioso na queda de braço com os ministros Luís Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber, que decidiram pelo afastamento na primeira turma do STF, contra os votos do relator do caso, Marco Aurélio Mello, e Alexandre de Moraes. A decisão chegou a colocar em rota de colisão os poderes da República, mas seu desfecho terá consequências que extrapolam o caso Aécio Neves. A primeira delas foi reposicionar o próprio Supremo em relação ao Executivo e ao Legislativo, pois blindou os políticos com mandato popular contra o próprio STF. Doravante, as punições a parlamentares — senadores, deputados federais, estaduais e distritais e vereadores — terão que ser submetidas às casas legislativas, em todos os níveis.

A segunda, uma espécie de “alto lá” aos protagonistas da Operação Lava-Jato, tanto no Ministério Público Federal quanto na própria magistratura, que terão menos apoio no próprio Supremo. Estava escrito nas estrelas. Riu por último o relator do caso na primeira turma, ministro Marco Aurélio Mello, que insistiu em pautar o caso mesmo advertido pelo ministro Alexandre de Moraes de que seriam derrotados no colegiado. Segundo mais antigo na Corte, Mello sabia a comoção política que a decisão poderia causar e antevia o que aconteceu. Além dos dois derrotados na primeira turma, votaram contra as medidas cautelares Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Na defesa de Aécio, ontem, o senador Jader Barbalho (PMDB-PA) várias vezes enfatizou que acompanhava os votos dos cinco ministros que se opuseram à adoção das medidas cautelares.

Apesar de ausente na votação, Aécio trabalhou muito nos bastidores. Depois da votação, disse que “recebeu com serenidade a decisão do plenário que lhe permite retomar o exercício do mandato conferido pelo voto de mais de 7 milhões de mineiros”. Segundo ele, “a decisão restabeleceu princípios essenciais de um Estado democrático, garantindo tanto a plenitude da representação popular, como o devido processo legal, assegurando ao senador a oportunidade de apresentar a defesa e comprovar cabalmente na Justiça a inocência em relação às falsas acusações das quais foi alvo”. Aécio foi acusado de obstrução da Justiça e de participar de organização criminosa pelo ex-procurador-geral Rodrigo Janot, mas ainda não foi julgado.

Temer
A vitória no Senado consolidou a aliança entre a ala tucana ligada ao senador Aécio Neves e o presidente Michel Temer, que trabalhou intensamente para que a bancada do PMDB votasse em peso pela rejeição das medidas cautelares. A contrapartida é o apoio dos deputados do PSDB sob influência de Aécio à rejeição do pedido de investigação de Temer pela Câmara. O relator do pedido em discussão na Comissão de Constituição e Justiça, deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), homem ligado a Aécio, recomendou a rejeição da medida e desqualificou as acusações feitas por Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer.

A propósito, ontem, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), minimizou os atritos recentes com o advogado de Temer, Eduardo Carnelós, que chamou de criminosa a divulgação dos vídeos da delação premiada do doleiro Lúcio Funaro contra o peemedebista. Disse ainda que reagiu às declarações do advogado de Temer para garantir “uma relação de respeito”. Maia chamou Carnelós de “irresponsável” e “incompetente” no domingo, mas ontem fez questão de dizer que o bate-boca não teve nada a ver com Temer: “Confundem a defesa da Câmara com qualquer conflito com o presidente Michel Temer. O meu partido faz parte da base do presidente. Mas eu sou presidente da Câmara. Tenho que reagir em nome da instituição. Nada disso afeta minha relação com o presidente. Nós trabalhamos com total harmonia”.

 


Luiz Carlos Azedo: Raquel investiga 

Com Lúcio arrastado para o olho do furacão, teme-se no Palácio do Planalto que Geddel resolva falar para salvar o irmão

O estilo soft power da nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, alimentou expectativas no Congresso de que as operações de busca e apreensão da Operação Lava-Jato contra políticos eram uma página virada. Errado. No mesmo dia em que o presidente Michel Temer (PMDB) distribuía uma carta aos seus aliados denunciando uma suposta conspiração para destituí-lo da Presidência capitaneada pelo ex-procurador-geral Rodrigo Janot, a Polícia Federal fazia uma devassa no gabinete do deputado Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA) e nas residências do parlamentar.

Foi a primeira operação contra um político na gestão de Raquel Dodge, que deu continuidade às investigações sobre os R$ 51 milhões encontrados em setembro, pela Polícia Federal, num apartamento de Salvador, supostamente pertencentes ao ex-ministro Geddel Vieira Lima, irmão do parlamentar, que está preso preventivamente no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Durante toda a manhã os policiais permaneceram na Câmara, deixaram o gabinete de Lúcio com uma mala e um malote de documentos.

A operação foi realizada a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). Os mandados de busca e apreensão foram expedidos pelo ministro Luiz Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF. Investiga se há relação entre Lúcio e os R$ 51 milhões. Os investigadores querem saber se ele poderia ser beneficiário ou intermediário do dinheiro, daí as buscas na residência em Brasília e no apartamento em que ele vive com a família em Salvador.

Job Ribeiro Brandão, secretário parlamentar lotado no gabinete de Lúcio, é o suposto elo entre o parlamentar e as malas de Salvador. Foram encontradas digitais dele no apartamento em que estavam escondidos os R$ 51 milhões e até em parte do dinheiro. Lúcio é um dos mais influentes parlamentares do PMDB na Câmara, destacando-se como articulador da base do governo. Sempre bem-humorado, não se deixou alquebrar pela prisão do irmão e descarta qualquer possibilidade de ele recorrer à “delação premiada”. Agora, porém, com Lúcio arrastado para o olho do furacão, teme-se no Palácio do Planalto que Geddel resolva falar para salvar o irmão.

Afastamento
A operação foi como uma bomba para os governistas, que durante o fim de semana planejaram uma contraofensiva às denúncias envolvendo o presidente Temer e dois de seus mais importantes auxiliares, o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, e o secretário-geral da Presidência, Moreira Franco. Ao mesmo tempo em que procuram “fulanizar” e desacreditar as acusações, administram a crise de relacionamento com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que subiu de temperatura no fim de semana, em vez de baixar.

Às vésperas da Comissão de Constituição e Justiça apreciar os termos da denúncia, a Câmara divulgou a íntegra dos áudios da delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, que citam Temer. Os anexos da delação foram enviados pelo ministro Fachin para Maia, que entendeu não haver restrição e o liberou na página da Câmara dos Deputados internet.

A defesa de Temer incluiu a divulgação dos áudios na sua teoria conspiratória e fez duras acusações contra o suposto “vazamento” dos áudios. Maia meteu a carapuça e deu um chega para lá no advogado de Temer, Eduardo Carnelós, que agiu como macaco em casa de louças no episódio.

A carta de Temer de certa forma corroborou a acusação de Carnelós, pondo mais lenha na fogueira: “Tenho sido vítima desde maio de torpezas e vilezas que pouco a pouco, e agora até mais rapidamente, têm vindo à luz. Jamais poderia acreditar que houvesse uma conspiração para me derrubar da Presidência da República. Mas os fatos me convenceram. E são incontestáveis.”


Luiz Carlos Azedo: Eles eram justos e puros

Faltava tudo em Moscou e os mineiros de Donetsk, na Ucrânia, estavam em greve, inclusive na legendária Mina Outubro, onde surgiu o movimento stakhanovista. A vaia em Gorbachëv na Praça Vermelha, em pleno desfile de Primeiro de Maio, fora o sinal de que a Revolução de Outubro havia se esgotado.

Voltava de Moscou para Buenos Aires lendo As Mil e Uma Noites (Editora Brasiliense), num longo e enfumaçado voo da Aeroflot lotado de pescadores, que bebiam desesperadamente e fumavam papiroskas como caiporas. A frota soviética do Pacífico Sul era formada por verdadeiras fábricas flutuantes de pescado enlatado.

“Você vai morrer!”, repetiu o rei. “Aliás, agora você morreria nem se fosse apenas para eu ouvir sua cabeça falar depois de separada do corpo.” Dubane, o médico suspeito de espionar, fora condenado à morte, mas desafiou o rei a ler um livro que faria sua cabeça falar após ter sido decapitada.

“O rei obedeceu, molhando os dedos com a própria saliva para separar as páginas do livro... E o veneno foi penetrando em seu corpo. Viram-no ensaiar um passo, vacilar e cair”. A cabeça de Dubane, exangue num prato, então, compreendeu que a droga havia produzido seus efeitos e recitou estes versos:

Eles julgaram a seu modo
E se acumpliciaram nesse trabalho
Dentro em pouco, seu poder parecerá que
nunca existiu
Poderiam ter permanecidos justos e puros
mas abusaram do poder
e o mundo por seu turno os oprimiu
assim como a adversidade e a provação

Ei-los vivendo na miséria. Seu presente
É tão-somente o fruto do seu passado.
Quem pensará em censurar o mundo
Por os ter tratado assim.

A poesia foi um raio na minha cabeça, parecia que o avião ia cair: Somos nós, os comunistas, pensei. Eu voltava atordoado pelo que vira e ouvira em Moscou e Leningrado (hoje novamente chamada pelo seu nome de batismo, São Petersburgo). Era o mês de maio de 1990, Mikhail Gorbachëv ainda gozava de enorme prestígio mundial, mas a União Soviética já estava se desmanchando. A viagem fora um choque terrível, que eu ainda não conseguia digerir. Sentia-me o próprio homem das cavernas da fábula de Platão, quando estava cego pela luz e não sabia se voltava para a escuridão, onde já não enxergava mais, ou permaneceria definitivamente à superfície.

A vaia na Praça Vermelha

Havia viajado para uma reunião de representantes dos jornais comunistas de todo o mundo em Moscou, no auge da perestroika. A Voz da Unidade havia sido convidada, apesar de ser um pequeno semanário, insignificante até, diante do L'Humanité, do PCF, fundado por Jean Jaurès, o líder socialista francês assassinado ao tentar evitar a Primeira Guerra Mundial, ou o l’Unità, fundado por Antônio Gramsci, do PCI, que morreu nas masmorras do fascismo italiano de Mussolini. Modesto ainda mais diante do poderio do Pravda, cujo novo diretor, Ivan Frolov, era a estrela do encontro. Ele havia substituído Victor Afanasiev, que comandou o jornal de 1976 a 1989, quando entrou em rota de colisão com Gorbachëv.

Havia uma esquizofrenia no cerimonial do evento, que seguia a hierarquia do partido para o tratamento dado aos convidados. Como eu era membro da Comissão Executiva e do secretariado do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), deram-me importância maior do que aquela que o jornalista realmente merecia. Sabia disso porque, no ano anterior, havia feito a cobertura da XIX Conferência Política do PCUS, na qual Gorbachëv derrotara seus adversários para poder avançar com a perestroika.

O tratamento era outro, o apartamento no qual me alojaram era o mesmo no qual se hospedara Giocondo Dias, pela última vez, segundo me disse a tradutora, Natália Kffeinia, que era dublê de informante da KGB, como quase todos os tradutores do PCUS. A lógica soviética era de que a hierarquia do partido se sobrepunha à do Estado. Desse modo, nessa viagem, estava sendo tratado como se fosse ministro no Brasil, onde o partido estava isolado e fraco, mas tinha um candidato à Presidência da República, o líder do PCB na Câmara, Roberto Freire.

Minha primeira grande surpresa na viagem foi saber que faltava tudo em Moscou e que os mineiros de Donetsk, na Ucrânia (que hoje se declara uma república independente e quer ser anexada à Rússia), estavam em greve, inclusive na legendária Mina Outubro. Foi nela que surgiu o movimento stakhanovista, símbolo da produtividade do trabalho na Era Stálin. Aliás, havia greves por todas as regiões da União Soviética.

Anatole Petrovitch Evchenco, o membro do Comitê Central do PCUS encarregado das relações com o Brasil, me contou que fora obrigado por Gorbachëv a negociar o fim de uma paralisação de mineiros nos Urais, onde fica a Rússia profunda. “Depois de fechar o acordo, eles exigiram que distribuíssemos o estoque de conhaque Napoleon que havia no armazém do partido para voltar ao trabalho. Veja que absurdo, os dirigentes da mina tinham do bom e do melhor e os mineiros passavam necessidades com suas famílias”, disse-me. Anatole hoje é um dos donos de uma fábrica de helicópteros, cujas ações “herdou” do pai.

O meu maior espanto aconteceu nas comemorações do Primeiro de Maio, na Praça Vermelha, cujo desfile assistiria ao lado de outros comunistas do mundo inteiro. Jamais imaginei que Gorbachëv, que arrancara aplausos de populares em todos os lugares onde esteve, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos, fosse receber uma bruta vaia na festa mais importante para os trabalhadores de todo o mundo. No alto de um palanque ao lado do mausoléu de Lênin, os líderes comunistas assistiam ao desfile de pioneiros, estudantes e trabalhadores quando surgiram os protestos. Gorbachëv retirou-se do desfile sob apupos, após ver os manifestantes trazendo faixas nas quais se lia: "Abaixo Gorbachëv! Abaixo o Socialismo e o Império Vermelho fascista".

O líder soviético não era um ator como Ronald Reagan, o presidente dos Estados Unidos, mas era um governante carismático, que irradiava simpatia e estava sempre sorridente. Não parecia sinistro como Stálin, não era grosseiro como Kruschev, ou senil como Brejnev. Muito menos temido, como Andropov ou, simplesmente, apático como fora Chernenko. Assim eram seus antecessores na secretaria-geral do PCUS. Encarnava o sonho de democratização do “socialismo real” para a opinião pública mundial e, creio, para a maioria dos comunistas. Simbolizava o fim da guerra fria, pois o acordo de desarmamento nuclear lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz. Representava o sonho de renovação do movimento comunista.

No dia seguinte ao desfile, numa reunião com diretores dos jornais, os discursos dos funcionários do partido eram de duras críticas à oposição, cujos líderes foram chamados de sujos, vagabundos e provocadores. Mas a grande preocupação era com a repercussão da vaia nas demais cidades soviéticas e o destaque dado ao fato pela mídia mundial, relatara-me Oleg Tsukanov, professor de Economia na Escola de Quadros do PCUS, muito querido entre os brasileiros. Ele acabou por morrer voltando ao Brasil, onde procurou trabalho depois que os comunistas deixaram o poder (morava em Brasília e dava aulas na Universidade Católica).

Ao longo da Rua Arbat, a rua de pedestre mais famosa da capital, não se falava de outra coisa, a não ser na vaia do Primeiro de Maio, para espanto de outro camarada, Hudson Correia de Lacerda, que era locutor da Rádio Central de Moscou e me levara para ver a situação na cidade sem os filtros do aparatchik. Ele falava russo sem sotaque e vivia como um autêntico moscovita. A agitação era impressionante. Havia de tudo, de comícios relâmpagos a protestos individuais e silenciosos. Aquilo me lembrava o centro do Rio de Janeiro entre a campanha das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves, já nos estertores do regime militar.

A crise de desabastecimento

Numa conversa após o Primeiro de Maio, o economista Ygor Gaidar, um dos editores de Economia do Pravda, que mais tarde viria ser o ministro da Fazenda de Boris Yeltsin, fez-me um balanço da situação. Ele criticava o que chamou de grande equívoco de Gorbachëv na condução do país: entregar o comando da economia aos engenheiros que dirigiam os grandes combinados industriais.

“Eles cortaram 10% das importações de bens de consumo e compraram máquinas e equipamentos que vão ficar por aí enferrujando”, disparou. Segundo ele, a reforma deveria começar pelas privatizações de serviços e manufaturas, além da liberação da pequena produção mercantil e do comércio em geral para os empreendedores familiares, e pela abertura da economia para a entrada das montadoras de automóveis e fábricas de eletroeletrônicos das multinacionais, como a China acabou fazendo depois.

A “aceleração”, como Gorbachëv batizara inicialmente a sua reforma econômica, estava sendo um fracasso. De imediato, pensei na polêmica do Bukharin com Stálin. O líder russo, assassinado nos processos de Moscou, defendia um modelo de “acumulação socialista” que se baseava na produção capitalista no campo e no barateamento da produção da indústria ligeira para formação da poupança necessária ao financiamento da industrialização pesada.

Diante da necessidade de armar o país para enfrentar a guerra iminente com a Alemanha, porém, Stálin deu um basta a isso, com as "coletivizações forçadas" no campo, que expropriou a pequena burguesia rural. O movimento stakhanovista era uma espécie de trabalho compulsório, mascarado de emulação socialista. Também rasgou a Constituição de 1935, que transformaria a URSS num Estado de direito socialista. Bukharin foi processado e fuzilado como traidor, depois de obrigado a assinar a própria confissão, em meio à onda de assassinatos do grande expurgo promovido pelos chamados “Processos de Moscou”.

A ascensão de Stálin se deu sobre os cadáveres de milhares de quadros bolcheviques. Começou após a morte de Sverdlov, vítima de tifo, quando Lênin perdeu o principal organizador do partido bolchevique, que foi substituído por uma comissão na qual Stálin despontaria. Mas a liderança absoluta viria mesmo após a morte de Lênin, com o assassinato de Kirov, o secretário do comitê de Leningrado, que era o mais popular dos bolcheviques. O crime, mais tarde atribuído ao próprio Stálin, deu início à onda de expurgos que consolidaria o poder do ditador soviético.

Voltemos, porém, à crise do modelo soviético. No verão russo de 1982, durante o Congresso do Konsomol, no Kremlin, Leonid Brejnev quase caiu ao discursar. O velho líder soviético já estava meio gagá, mas gozava de uma conjuntura econômica favorável: havia abundância de frutas tropicais nas ruas de Moscou e as lojas do GUM (Glavny Universalny Magazin), na Praça Vermelha, estavam abarrotadas de produtos importados, dos perfumes franceses aos sapatos italianos. A URSS faturava com a elevação do preço do petróleo e do gás.

Na crise do petróleo, que a liderança soviética erroneamente interpretou como uma nova crise geral do capitalismo, Brejnev havia lançado a consigna “Estado de todo o povo, rumo ao comunismo”. Os americanos haviam sido derrotados no Vietnã e foram corridos do Irã; os comunistas estavam no poder nas colônias portuguesas. A América Latina fervia com a revolução sandinista na Nicarágua e a ofensiva guerrilheira dos comunistas em El Salvador. Até que a invasão do Líbano por Israel mostrou que o outro lado ainda era capaz de arreganhar os dentes.

Vinte anos depois, porém, a conta do atraso havia chegado. O velho problema detectado por Bukharin, e que fora atalhado por Stálin, estava estrangulando a economia soviética: a produção do campo não era suficiente para alimentar o povo e a indústria de bens de consumo, padecia de baixa produtividade e péssima qualidade. Enquanto isso, o mundo capitalista ingressara na terceira revolução industrial, com o toyotismo, os sistemas de produção flexíveis, os novos materiais e supercondutores, a microeletrônica e a telemática. Os grandes combinados russos, engessados pelos planos quinquenais, já tinham ficado para trás.

Nas ruas de Moscou, as “bichas” se formavam do nada. O sujeito chegava com uma sacola e entrava na fila, esperava alguém mais chegar e pedia para guardar o seu lugar. Só então verificava o que estava sendo vendido. Se achasse que era algo que iria faltar, comprava o que os rubros permitissem e ele conseguisse carregar, para estocar ou fazer câmbio negro. O povo aproveitava para falar mal do Gorbachëv e dos comunistas. O abastecimento se tornara completamente caótico.

O despejo do Smolni

No dia seguinte, me despacharam para Leningrado. Fui recebido por um membro da direção do partido no berço da Revolução de 1917, que neste 7 de novembro de 2017 completará 100 anos anos. Com muita gentileza, mas meio sem jeito, disse-me que o secretário-geral do partido não poderia me receber: “Você não sabe da maior, acabamos de ser despejados do Smolni; está a maior confusão por aqui”.

O Instituto Smolni, antigo convento da aristocracia russa, foi a primeira sede do governo soviético, o local onde se realizou o II Congresso dos Sovietes. Nele, os comunistas tomaram o poder e Lênin anunciou as primeiras medidas da revolução: proposta de paz imediata a todas as nações beligerantes; entrega da terra aos camponeses; controle operário de toda a produção e distribuição de bens e o controle estatal das instituições bancárias. Em seguida, outras medidas de larga repercussão foram sendo tomadas, tais como a abolição de todas as desigualdades de classe, sexo, nacionalidade ou credo religioso, nacionalização dos bancos e das estradas de ferro, entre outras. Foram dez dias que abalaram o mundo, como disse John Reed em seu livro famoso.

Com a transferência da sede do governo para Moscou, os bolcheviques se instalaram no local e nunca mais saíram. Ocorre que Gorbachëv havia aprovado um decreto apartando os bens do partido dos bens do Estado e o prefeito de Leningrado, Gavril Popov, aliado de Yeltsin, rompeu com o PCUS e mandou a milícia pôr os dirigentes e funcionários do partido na rua. Não havia nada que legitimasse a posse do imóvel, nem mesmo uma conta de luz ou água paga pelos comunistas desde a tomada do prédio, manu militari, pelos soldados e marinheiros que garantiram o poder dos comunistas em 1917.

Diante do constrangimento, minha viagem a Leningrado virou um grande passeio turístico. Fundada por Pedro, o Grande, às margens do rio Neva, São Petersburgo é a primeira grande cidade planejada do mundo e a quarta da Europa em população, atrás apenas de Londres, Paris e Moscou. Fui ao Hermitage, à Catedral de Pedro e Paulo, conheci o legendário cruzador Aurora e me encantei com o balé Kirov. Caminhei pela famosa Avenida Nevski até a famosa Estação Finlândia, pensando em Maiakovski, na Flauta Vertebrada:

Eu medito.
Os pensamentos, coágulos de sangue,
enfermos, ardendo,
porejam de meu crânio.
Eu,
criador de tudo que é festa,
não tenho com quem ir à festa.
Agora mesmo irei atirar-me
de cabeça
no empedrado da avenida Nevski.

A desintegração da URSS

De volta a Moscou, tinha um encontro marcado com o brasilianista russo A. Karavaiev, autor do livro Brasil, passado e presente do capitalismo periférico, que havia me chamado a atenção porque defendia uma tese heterodoxa diante dos cânones da III Internacional: a de que o nosso país poderia se tornar desenvolvido por uma via não-socialista. No dogma comunista, nenhum país dependente teria chance de chegar lá por outra via que não fosse a tomada do poder numa revolução nacional-libertadora, seguida da construção do socialismo.

“Não vou conversar com você sobre o Brasil, que é um grande país e hoje tem menos problemas que o nosso”, disse-me Karavaiev. Tenso, o que ele queria falar era outra coisa: “a União Soviética está à beira da dissolução”. Fiquei perplexo: “Como assim, vocês não resolveram a questão das nacionalidades?” A resposta dele foi nua e crua. “Com o regime de partido único, a União Soviética não sobreviverá. Os comunistas das repúblicas serão os primeiros a declarar independência para permanecer no poder”, disparou. Não deu outra.

No dia 8 de dezembro de 1991, Yeltsin, sem consultar Gorbachëv, comunicaria ao presidente Bush, o pai, que acabara de extinguir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Para Eric Hobsbawn, a queda da URSS e do socialismo no Leste Europeu selou o fim do próprio século XX. Ninguém esperava isso, mas também não foi um passe de mágica, foi o esgotamento de um modelo de sociedade. O colapso político se deu quando os militares sequestraram Gorbachëv e tentaram um golpe de Estado, entre 19 e 21 de agosto daquele ano. Era outra pedra cantada, na qual não quis acreditar.

A conspiração dos militares

O primeiro cara a me falar do golpe foi o jornalista brasileiro José Arbex, então correspondente da Folha de São Paulo, em Moscou. Eu o havia convidado para almoçar no novo hotel do partido, que o povo chamava de Spaciba Bolshoi, considerado então o mais luxuoso de Moscou e destinado aos dirigentes do PCUS e não aos empresários e turistas que chegam à capital soviética. Era um hotel cinco estrelas como outro qualquer, mas comparado ao Hotel Moscou, da época de Stálin, ou ao velho Spaciba nos fundos do Teatro Bolshoi, o hotel do partido desde a década de 1920, aquilo era um escândalo. Tanto que o secretário geral Yuri Andropov, que foi o grande padrinho de Gorbachëv, recusou-se a inaugurá-lo.

Arbex entrou no hotel observando tudo, pois nunca antes havia posto os pés por lá. Mas conhecia a fama do lugar e fez uma gozação ao ver o buffet farto do hotel, enquanto tudo faltava para o povo lá fora. “Quanta mordomia, camarada Azedo!”. Foi uma longa e divertida conversa. Não acreditei no que ele me falou sobre os militares: “Azedo, você prestou atenção no pronunciamento do ministro da Defesa no Dia da Vitória?”. O desfile do Exército Vermelho, no dia 9 de maio, é o ponto alto das comemorações da Grande Guerra Patriótica, como os russos chamam ainda hoje a II Guerra Mundial. Eu prestara atenção, fora um discurso duro contra a oposição, o imperialismo e em defesa do socialismo, mas dentro da velha retórica soviética. Não interpretei aquilo como a senha para um golpe de Estado.

“Você está com teorias conspiratórias, esses generais são heróis de guerra e velhos bolcheviques, vão fazer o que o partido decidir”, disse-lhe. Arbex riu e rebateu: “Esse é o problema, o partido está contra o Gorbachëv". É óbvio que eu não acreditei no que ele estava falando. Tudo indicava que o golpe realmente estava em marcha, mas eu me recusava a encarar a realidade.

Mais tarde, já no Brasil, durante um encontro de partidos de esquerda com Fidel Castro em São Paulo, da qual participei ao lado do então secretário-geral do PCB, Salomão Malina, o líder cubano disse com todas as letras que estava contra o Gorbachëv e que tinha informações de que era crescente a resistência do partido, inclusive dos militares, à perestroika -- que ele também considerava uma traição ao socialismo. O dirigente cubano sabia do que estava falando.

O equilíbrio estratégico-militar

A Revolução Russa de 1917 foi a maior tentativa já feita de superação do capitalismo, depois da brevíssima Comuna de Paris de 1871, que inspirou Lênin. Na verdade, tomou o rumo dado pelos bolcheviques em consequência da Primeira Guerra Mundial, que interrompeu a primeira experiência de governo socialdemocrata do mundo, na Alemanha. A II Internacional, que reunia num só movimento os principais líderes operários e a intelectualidade marxista do começo do século passado, implodiu.

A Socialdemocracia Alemã, ao aprovar os créditos de guerra, “traiu” o restante do movimento socialista. O Partido Trabalhista britânico, obviam ente, engajou-se no esforço de guerra da Inglaterra. Na França, Jaurès, o grande líder socialista que lutava pela manutenção da paz, fora assassinado. Lênin, então, opôs-se ferozmente à participação da Rússia na guerra, A velha consigna bolchevique lançada por ocasião da Guerra da Criméia estava mais válida do que nunca: “Pão, paz e terra!”.

Foi nessa esquina da História que o chamado “socialismo real” se impôs como alternativa para a construção de uma nova sociedade, em contraposição à experiência fascista em diversos países, cuja ascensão começou com a chegada de Mussolini ao poder na Itália. Depois da derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, a expansão comunista veio no rastro dos tanques soviéticos. O “socialismo real” no Leste Europeu funcionou como uma via de industrialização tardia. Só não se contava com o sucesso do Plano Marshall, que possibilitou a retomada da experiência socialdemocrata na Europa Ocidental, com seu Estado de Bem-estar Social, e com a guerra-fria, que submeteu a economia soviética a um esforço permanente de guerra com a chamada “corrida armamentista”.

Na doutrina comunista, o equilíbrio estratégico militar entre a URSS e os EUA era a chave do avanço revolucionário no resto do mundo. Permitiria neutralizar o imperialismo ianque e avançar nas lutas de libertação nacional, como aconteceu na China, em Cuba e no Vietnã. Do ponto de vista do Ocidente, a visão não era muito diferente, apenas tinha sinal trocado. No histórico encontro de julho de 1945, em Potsdam, nos arredores de Berlim, Josef Stálin, Harry Truman e Winston Churchill, respectivos líderes da URSS, dos EUA e da Inglaterra, traçaram o destino do mundo - especialmente a partilha da Alemanha, que havia se rendido em maio, e o desfecho da guerra contra os japoneses, que ainda não haviam se rendido.

Truman comentou com Stálin que os EUA estavam de posse de uma nova arma, com "inusitado poder destrutivo". Como bom jogador, o líder soviético agradeceu a informação e desejou que os americanos usassem o novo artefato com "sucesso contra o Japão". Um mês depois, as primeiras bombas atômicas foram lançadas em Hiroshima e Nagasaki.

A decisão de lançar as bombas sobre o Japão não teve como objetivo apenas abreviar o desfecho da Segunda Guerra. Era o começo de um novo tipo de tensão mundial: a Europa seria dividida em duas zonas de influência: a Ocidental, capitalista, sob atração dos EUA, e a Oriental, comunista, ajudada pela URSS. A fronteira entre "as duas Europas" seria a própria Alemanha, também dividida. O que realmente estava em jogo era a hegemonia mundial. Os EUA adotaram uma estratégia de domínio indireto; o intervencionismo militar da URSS, ao contrário do que aparentava, porém, seria muito mais frágil.

A debacle do socialismo real

Os comunistas chegaram ao poder na Polônia, Hungria, Bulgária, Romênia, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental com o apoio dos tanques soviéticos, diante de uma economia em frangalhos e elites locais que na maioria dos casos havia colaborado com o nazismo. O preço a ser pago pela igualdade econômica era a perda da liberdade política. Foi assim na Hungria, em 1956, e na Tchecoslováquia, em 1968 - a famosa Primavera de Praga. A antiga Iugoslávia e a China eram casos à parte.

Na Europa Ocidental, Berlim Ocidental era uma vitrine reluzente, uma ilha capitalista encravada na República Democrática Alemã. Quando percebeu que a tal "vitrine" exercia uma enorme atração sobre os berlinenses, que preferiam trabalhar no lado ocidental da cidade, a administração do setor oriental viu-se obrigada a erguer, em 1961, o Muro de Berlim.

Como se sabe, entre a década de 1930 e o início da década de 1960, a consolidação da URSS como potência industrial foi feita com base num "crescimento extensivo", com muita mão de obra barata e abundância de recursos naturais. Na década de 1970, no Ocidente, fábricas projetadas para produzir em série determinados produtos passaram a ser substituídas por plantas industriais automatizadas e muito mais flexíveis, capazes de se adaptar às variações de demanda no mercado consumidor.

A linha de montagem criada por Henry Ford já não já dava conta do recado. Mas fora a fonte de inspiração de Lênin para conceber todo o arcabouço do chamado “socialismo real”, do modelo de partido único, da estrutura do Estado soviético e dos sindicatos como correias de transmissão do partido. O socialismo tornara-se anacrônico.

Ao mesmo tempo, havia uma batalha ideológica entre o chamado “americanismo” do Ocidente e a “proletarização” do Leste Europeu. Essa batalha ganhou uma nova dimensão quando o cardeal polonês Carol Wojtyla foi eleito papa. Como João Paulo II, ele desempenharia um papel importante na desestabilização dos regimes socialistas do Leste Europeu, a começar pela Polônia. Um pouco da crise da URSS se deve também a isso, por causa da independência da Estônia, Letônia e Lituânia, republicas de maioria católica da URSS que haviam sido anexadas por Stálin.

Em agosto de 1980, no estaleiro Lenin, na cidade de Gdansk, o eletricista Lech Walesa anunciou a criação do Solidariedade - o primeiro sindicato independente de um país comunista. O dogma de que a vanguarda da classe operária eram os comunistas veio abaixo no Leste Europeu. O partido deixara de ser “a consciência do proletariado”, se tornara uma espécie de nova classe dominante, uma burocracia autoritária e corrompida, encastelada no poder.

Num dos intervalos do encontro promovido pelo Pravda, fui procurado por um dos diretores da agência de notícias Tass, uma das maiores do mundo. Ele era casado com a filha do ministro da Pesca e queria um contato com um grande estaleiro do Brasil para iniciar um grande negócio: criar uma joint-venture para prestar serviços à frota de pesqueiros russa do Atlântico Sul, que passariam a ser reabastecidos e sofreriam reparos em Niterói. Ou seja, a plutocracia que enriqueceria com as privatizaçoes de Yeltsin já estava em posição de combate.

O presidente americano na época, Ronald Reagan, e a primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher, diante da crise, perceberam a oportunidade de uma grande ofensiva neoliberal. O comunismo já era um animal ferido de morte. Encararam como missão resgatar a reputação do capitalismo no Ocidente e afastar de vez o fantasma comunista que rondava o mundo desde o Manifesto de Marx e Engels de 1848. Gorbachëv, que chegou ao poder em 1985, era uma resposta a essa ofensiva, mas já era tarde demais. A reestruturação econômica (perestroika) e a transparência política (glasnost) não teriam o mesmo sucesso que os acordos de desarmamento que o fizeram um notável líder mundial, até hoje respeitado no Ocidente.

Gorbachëv surpreendia o mundo com discursos liberalizantes e democráticos, mas a pressão interna no Leste Europeu crescia. A explosão começou em 1989, ano do bicentenário da Revolução Francesa. Em junho, depois que o líder soviético deu a entender ao novo primeiro-ministro da Hungria que reconhecia que a revolta de 1956 tinha começado em virtude da insatisfação do povo, mais de 200 mil húngaros sentiram-se à vontade para ir à cerimônia do "novo funeral" de Imre Nagy, que liderara a revolta e fora executado por ordem de Kruschev. Três meses depois, com a retirada da cerca de arame farpado ao longo da fronteira entre a Hungria e a Áustria, milhares de alemães orientais cruzaram o território húngaro para o Ocidente.

Na Polônia, o sindicato Solidariedade ganhou as eleições; em Berlim Oriental, no dia 9 de novembro, ou seja há 25 anos a completar neste domingo, o mundo inteiro assistiu pela TV a derrubada do Muro de Berlim. Na Bulgária, Todor Zhivkov, no poder desde 1954, anunciou seu afastamento. Sete dias depois, na Tchecoslováquia um governo de coalizão liderado por Alexandre Dubcek, líder da Primavera de Praga em 1968, tomou o poder dos comunistas pelos braços do povo. Na Romênia, o líder Nicolau Ceausescu, foi destituído e enforcado ao lado de sua mulher, depois de uma revolta popular que terminou com o seu julgamento sumário.

Finalmente, Gorbachëv foi vítima de sequestro, numa tentativa deu golpe militar. A resistência democrática foi liderada por Boris Yeltsin - o mesmo homem que, no dia 8 de dezembro de 1991, decretaria o fim da URSS. No Natal daquele ano, o pai da perestroika passou a Yeltsin os códigos necessários para disparar um ataque nuclear. E assinou o decreto oficial do fim da URSS, no dia 31 de dezembro de 1991.

A travessia do deserto

Numa das passagens de As Mil e Uma Noites, o vizir diz para Sherazade o seguinte:

“Aquele que não sabe adaptar-se às realidades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não soube evitar. Aquele que não prevê a consequência dos seus atos não pode conservar os favores do século.”

Aparentemente, esses foram os erros de Gorbachëv, mas isso não passa de uma simplificação de tudo o que ocorreu. Velhos camaradas culpam o líder soviético, mas há muitas interpretações sobre o que houve de fato. Entre os comunistas, como sempre, as divergências são profundas.

Os trotskistas veem a restauração capitalista no Leste Europeu como a confirmação das teses de Leon Trotsky, o líder bolchevique assassinado por ordem de Stálin durante o exílio no México e que acaba de ter sua memória resgatada pelo fabuloso romance O homem que amava os cachorros, do escritor cubano Leonardo Padura.

Os maoístas, mais pragmáticos, corroboram a velha tese chinesa de que Kruschov havia traído a revolução ao denunciar o culto á personalidade e os crimes de Stálin. Sobre isso é muito interessante o relato de Henry Kissinger no livro Sobre a China, na qual mostra como a liderança do PCCh se aliou aos Estados Unidos para derrotar a União Soviética em plena guerra-fria.

Os antigos eurocomunistas, críticos do modelo soviético, aprofundaram suas análises e tentam encontrar um caminho para um projeto transformador assentado na ampliação da democracia, porém, cada vez mais distante do que poderia se chamar de socialismo.

Os comunistas viraram uma espécie de alma penada, com um enorme fardo histórico sobre os ombros. A perplexidade de Lúcio Magri, da esquerda do PCI, diante da dissolução da URSS e do próprio partido italiano, muito bem retratada na sua obra autobiográfica, intitulada o Alfaiate de Ulm, levou o líder do grupo Il Manifesto à depressão e ao suicídio.

Aqui no Brasil, a colapso da União Soviética implodiu o PCB, que já vinha de duas crises na década de 1980, uma provocada pela saída de Luiz Carlos Prestes e outra, pela dissidência do grupo renovador de Armênio Guedes.

Como dirigente do partido, diante da situação que se colocava, tinha minhas próprias opiniões, mas fui muito influenciado por duas pessoas próximas: minha mãe, Aparecida Azedo, ex-camponesa que virou pintora naïf, e Salomão Malina, o então secretário-geral do PCB, com quem trabalhava diretamente.

Ao chegar de Moscou, em conversa com a minha mãe, relatei-lhe o que estava acontecendo e, para minha surpresa, a antiga bóia-fria e operária textil, que havia sobrevivido ao Massacre de Tupã e passara por tantas agruras pessoais e políticas, disse-me sem mais delongas: “meu filho, o partido está morrendo, não consigo recrutar mais ninguém!” Era a tradução de que o poder de atração do "socialismo real" deixara de existir com o colapso do Leste Europeu.

Por causa dessa conversa, escrevi um artigo para o Jornal do Brasil defendendo uma renovação radical no PCB, com o abandono do símbolo da foice e do martelo e a mudança de sigla. Malina soube do artigo quando passei o jornal para ele, num comício de Roberto Freire, na Cinelândia, em plena campanha presidencial de 1989. Ficou muito contrariado.

Eu era o coordenador do grupo encarregado de elaborar as teses do 9º Congresso do PCB, da qual participavam os historiadores Alberto Aggio e José Antônio Segatto e os economistas, Eduardo Rocha e Raul Paixão. Durante oito anos, convivera com Malina quase diariamente, na sede do partido em São Paulo, e sabia que ele comungava do mesmo ponto de vista, mas precisava convencer os demais dirigentes históricos do PCB de que era preciso dar um passo audacioso nessa direção.

Atalhar a discussão, na sua avaliação, organizaria a resistência interna antes que a maioria no Comitê Central estivesse consolidada. Ele tinha certa razão, mas a pressão para a mudança precisaria ser feita de fora para dentro, porque a força de inércia do dogmatismo era grande. A mudança não seria possível com uma discussão intramuros.

Os trunfos da renovação, porém, eram a liderança de Roberto Freire, que seria o sucessor natural de Malina depois do congresso, e de seu candidato a vice, o médico sanitarista e cientista Sérgio Arouca. Foi dramática a reunião do Comitê Central do PCB que aprovou as teses do Congresso, intituladas “Novo socialismo, novo partido".

Velho judeu comunista, herói da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na tomada de Montese, na Itália, Malina teve um papel decisivo na direcão e no congresso. Ele era um dos que mais estudava os novos marxistas, lia os alglo-saxões nos originais em inglês. Havia ficado dois anos preso, na década de 1950. Nesse período, na cadeia, porém, só podia ler a Bíblia. Sua intervenção foi inspirada na saga dos hebreus:

“As mudanças no capitalismo ainda estão em curso, não temos massa crítica para produzir uma nova síntese teórica. Mas temos algumas bandeiras e uma cultura política a preservar, até que uma nova geração encontre o caminho para a sociedade desejada”, disse Malina. Citando Moisés, disse que nós estamos como os judeus “que, por terem sido escravizados, não tinham cabeça para construir uma sociedade livre” após aqueles 40 anos de travessia do deserto. Será preciso que uma nova geração o faça.


Luiz Carlos Azedo: Salomônica

Se a prisão de parlamentares precisa de aprovação do parlamento, por que as medidas cautelares não seriam também sujeitas a isso?

Terceiro rei de Israel, Salomão é um personagem bíblico citado como um mantra: “Tudo neste mundo tem seu tempo; cada coisa tem sua ocasião”. Por exemplo, tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las; tempo de rasgar e tempo de remendar. Segundo a Bíblia, Salomão assumiu o trono muito jovem e pediu ajuda a Deus, que lhe deu sabedoria e, sem que sequer pedisse, riqueza e glória. Governou por 40 anos, mas sua fama de sábio veio logo no começo do reinado, quando foi procurado por duas mulheres que brigavam.

Ambas moravam na mesma casa, com duas crianças recém- nascidas, uma das quais morreu. Uma acusava a outra de ter trocado a criança durante a madrugada. Diante da situação, Salomão chamou um soldado e mandou que cortassem o bebê vivo em dois, dando metade para cada mulher: “Não!”, gritou a mãe verdadeira. “Por favor, não matem o bebê. Deem-no a ela!”. Salomão, então, falou: “Não matem o menino! Deem-no à primeira mulher. Ela é a mãe dele. ” A verdadeira mãe amava tanto o bebê que estava disposta a dá-lo à outra mulher para que não fosse morto.

Por causa dessa passagem bíblica, a expressão “salomônica” é atribuída a decisões difíceis e contraditórias, como o voto decisivo da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármem Lúcia, no julgamento de quarta-feira passada, que atribuiu ao Senado e à Câmara a palavra final sobre a aplicação a parlamentares de medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal. O julgamento estava empatado. Os ministros Luís Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Édson Fachin (relator) e o decano da Corte, Celso de Mello, defendiam a plena aplicação das medidas, sem aval do Congresso. Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello sustentavam a tese de que somente a prisão em flagrante é constitucional.

A sessão começou pela manhã e avançou pela noite, o voto conciliador de Cármem Lucia acabou sendo o mais polêmico. Não foi à toa que a ministra foi questionada pelos pares e teve muita dificuldade para chegar à sentença final, o que somente conseguiu com ajuda de Celso de Mello. Em resumo, ela apoiou a aplicação das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal, mas não na Constituição, ou seja, parte do relatório do ministro Edson Fachin, mas endossou em parte os argumentos de Alexandre de Moraes e outros ministros, quanto à tese de que o Supremo deveria submeter suas decisões ao Congresso, quando impedissem o exercício do mandato popular.
Entretanto, a presidente do Supremo não considerou as medidas cautelares, como afastamento do mandato e recolhimento noturno, inconstitucionais.

Se a prisão de parlamentares precisa de aprovação do parlamento, por que as medidas cautelares não seriam também sujeitas a isso? Esse questionamento estava pondo em rota de colisão o Supremo e o Senado, o que poderia resultar numa grave crise institucional. Há toda uma discussão sobre o equilíbrio entre os poderes e o papel de “poder moderador”, que é reivindicado tanto pelo Senado como pelo Supremo. Há todo um debate teórico sobre isso, calcado nas experiências francesa e norte-americana, mas o pano de fundo da discussão é o feijão com arroz da política brasileira e o caso Aécio Neves (MG), presidente licenciado do PSDB. Na prática, o futuro imediato do ex-governador mineiro está nas mãos dos seus pares.

Os poderes
Tudo indica que o tempo de espalhar pedras da Operação Lava-Jato e de o Supremo rasgar a cortina de proteção do Congresso já passou, com a mudança no comando da procuradoria-geral da República, agora nas mãos de Raquel Dodge, e essa decisão do Supremo. Cármem Lúcia tenta recolher as pedras e remendar as relações entre os poderes. Com certeza, haverá uma grande reação na sociedade contra isso, mas faz parte do processo. O professor José Honório Rodrigues dizia que, no Império e na República, os poderes formaram sempre um círculo de ferro, concentrado nos conservadores e liberais moderados, e nos conservadores moderados, liberais e o grupo mineiro-paulista, respectivamente. Esse círculo se rompeu na proclamação da República (1889), na Revolução de 1930, na Revolta Constitucionalista (1932), no suicídio de Vargas (1954), na renúncia de Jânio Quadros (1961) e no golpe de 1964.

“Dentre os poderes, o Executivo sempre foi mais progressista e receptivo às aspirações populares; o Congresso, mais antirreformista e mais retardatário; o Judiciário esteve quase sempre a favor das forças dominantes”, destacou em Teses e Antíteses da História do Brasil. A Constituição de 1988 alterou essa relação, ao possibilitar um novo protagonismo do Judiciário. O velho professor dizia, porém, que a rigidez das instituições garantia a sobrevivência das elites políticas; em contrapartida, o divórcio entre o poder e a sociedade era a principal causa de instabilidade política, o que continua válido. Ainda bem que as eleições de 2018 estão logo ali.