Artigo de opinião: Asas da Praia Vermelha

Praia Vermelha, Rio de Janeiro | Foto: Reprodução
Praia Vermelha, Rio de Janeiro | Foto: Reprodução

Liberdade não é um conceito, é um gesto. Está no caderno que se abre, no corpo que se ergue, no protesto que se escreve com spray nas paredes

Paulo Rogério dos Santos Baía*

No final da tarde acesa de maio, a Praia Vermelha abria seu ventre de sol e brisa para acolher a inquietação dos que ousam pensar o mundo com as próprias mãos. As escadarias da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lavadas de história e juventude, pareciam convidar os pés a subirem não apenas degraus, mas ideias. Nos corredores onde vozes ecoam desde os tempos do final do século 19 e da esperança que atravessa gerações, vi jovens com olhos que ardiam de perguntas, e que vestiam seus corpos com a coragem de quem decide não aceitar o tempo como prisão, mas como palco. Eles não caminhavam, dançavam dentro do agora, com a sede de quem sabe que a liberdade não mora em decretos, mas na ousadia de viver sem recear o amanhã.

Ali, no calor vivo da universidade, percebi que o pensamento não se dobra às fórmulas, e o sonho não aceita coleiras. As conversas sussurradas entre as árvores centenárias falavam de revolução íntima, de páginas escritas com o próprio sangue e não com tinta emprestada. Mas havia também um murmúrio mais áspero, um desabafo constante sobre a falta de recursos que corrói o dia a dia da universidade. Aqueles jovens não apenas sonhavam, também denunciavam. Falavam da goteira que insiste no teto da sala de aula, do laboratório sem insumos, do banheiro sem sabão. Falavam do desleixo com que os governos tratam a UFRJ, como se ali não germinasse o futuro. A indignação era concreta, tinha cheiro de mofo, de tinta descascada, de luz que apaga.

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Vi nos olhos de uma moça de cabelo azul a insurreição contra o silêncio. Escutei na fala trêmula de um rapaz negro a pulsação de mil vozes caladas. Testemunhei no riso leve de um estudante que ressignifica sua própria identidade a reinvenção de um mundo onde a existência não pede licença. Eles são o poema que se recusa à métrica, a canção que não cabe nas partituras velhas do mundo. Não querem verdades herdadas, querem verdades construídas. Não querem o futuro como destino, querem o presente como escolha. E, entre as palavras, vinha também a menção às brutalidades sofridas por Marina Silva no Parlamento Nacional, como se as cicatrizes da floresta também estivessem inscritas em seus corpos e seus olhos.

A liberdade ali não é um conceito, é um gesto. Está no caderno que se abre, no corpo que se ergue, no protesto que se escreve com spray nas paredes e nas entrelinhas dos trabalhos acadêmicos. É a liberdade de ser inteiro, mesmo que fragmentado, mesmo que ferido. Eles sabem que as asas não nascem no corpo, mas no desejo. E por isso voam, ainda que o céu insista em ser chumbo. Não se trata de escapar da dor, mas de enfrentá-la com beleza e com verdade. Porque é a beleza que salva, e a verdade que liberta.

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Naquele campus onde o vento sussurra histórias antigas, vi que os jovens da UFRJ não esperam que o mundo mude para mudarem com ele. Eles fazem do agora uma travessia. Carregam nas mochilas o peso da fome, da dívida, do racismo e da desigualdade, mas também da ausência de políticas públicas que garantam o mínimo para que possam estudar. E mesmo assim, não deixam que esses fardos matem o brilho nos olhos. E quando sorriem, mesmo sem motivo, oferecem ao mundo uma lição que só quem vive de fato pode ensinar: não há sistema que resista à ternura radical de um sonho insistente.

Ao deixar o campus, senti que algo em mim também se reabriu. Talvez tenha sido uma janela, talvez uma ferida. Mas ali, entre a juventude que se levanta como pergunta, como denúncia, como poema, voltei a compreender que liberdade é mais do que voar. É recusar a gaiola mesmo quando ela parece segura. É viver como se cada instante fosse o último, porque talvez seja. E mesmo que não seja, vale a pena como se fosse.
Paulo Baía em 29 de maio na cidade do Rio de Janeiro/RJ.

*Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (2001), doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2006). Professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ex-coordenador do Núcleo de Sociologia do Poder e Assuntos Estratégicos, pesquisador associado sênior do Laboratório Cidade e Poder da UFF, do Laboratório de Estudos de Gênero do IFCS/UFRJ e do Núcleo de Inclusão Social (NIS) – UFRJ.

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