José Monserrat Filho: A China e o Direito Internacional

 A história do Direito Internacional na China tem duas fases distintas, mas com pontos em comum: 1) a fase de 1949-78, iniciada com o triunfo da revolução liderada por Mao Tsé-Tung (1893-1976) e a posse do novo governo, por ele presidido. Nesta fase, a China foi privada do assento de Membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), reassumindo-a graças à resolução 2.758 da Assembleia Geral da ONU, de 25 de outubro de 1971; e 2) a fase de 1978-2011, quando a China partiu para amplas reformas econômicas e recuperou sua presença na maioria das organizações multilaterais, onde se tornou ator cada vez mais ativo, inclusive no âmbito do Direito Internacional, invariavelmente muito polêmico nas altas esferas globais.
Foto: Agência Xinhua
Foto: Agência Xinhua

“Isso não pertence apenas à China, mas também ao mundo.” Xi Jinping

A história do Direito Internacional na China tem duas fases distintas, mas com pontos em comum: 1) a fase de 1949-78, iniciada com o triunfo da revolução liderada por Mao Tsé-Tung (1893-1976) e a posse do novo governo, por ele presidido. Nesta fase, a China foi privada do assento de Membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), reassumindo-a graças à resolução 2.758 da Assembleia Geral da ONU, de 25 de outubro de 1971; e 2) a fase de 1978-2011, quando a China partiu para amplas reformas econômicas e recuperou sua presença na maioria das organizações multilaterais, onde se tornou ator cada vez mais ativo, inclusive no âmbito do Direito Internacional, invariavelmente muito polêmico nas altas esferas globais.

O tema foi desenvolvido pelo juiz chinês Xue Hanqin, da Corte Internacional de Justiça, na palestra que proferiu em 08 de março de 2013 na própria Corte, sobre “Sumário de Direito Internacional – A China e o Direito Internacional: Revisando 60 Anos” (International Law Summary – China and International Law: 60 Years in Review). Falemos um pouco das duas etapas referidas, levando em conta informações e conceitos do juiz Xue Hanqin.

Em 1978, as universidades chinesas retomaram o estudo do Direito, abandonado durante a “Revolução Cultural” da época maoísta. Para o juiz Xue Hanqin, “a reconstrução do Direito Nacional na China teve impacto substancial nas atitudes do governo chinês com relação ao Direito Internacional”. Em 2009, quando a República Popular da China festejou o 60º aniversário de sua revolução, promoveu uma pesquisa em todo o país sobre o ensino do Direito Internacional nas Faculdades de Direito e constatou “uma mudança dramática” na comparação com a fase 1949-1978.

Hoje, na China, 600 Universidades mantêm cursos de Direito Internacional; 64 Escolas de Direito e instituições jurídicas oferecem Programas de Mestrado em Direito Internacional; e 16 oferecem Programas de Doutorado nessa matéria. O fato é que as mudanças sociais e econômicas da China, nas três últimas décadas, transformaram a visão chinesa do Direito Internacional, porque as reformas domésticas impuseram negociações e cooperação em várias áreas. Isso aprofundou ainda mais a participação da China na elaboração dos princípios e normas internacionais.

A nova China começou a construir suas relações internacionais a partir do zero, na busca de promover uma política exterior independente, seguindo a metáfora chinesa “Primeiro limpe a casa, só depois convide as visitas”. Pequim adotou então uma política exterior calcada em três princípios fundamentais – igualdade, benefício mútuo e respeito recíproco pela soberania e integridade territorial – incorporados à primeira Constituição chinesa. Em 1954, em Nova Déli, o Primeiro Ministro chinês, Zhou Enlai (1898-1976), e o Ministro da Índia, Jawaharlal Nehru (1889-1964), firmaram um acordo inédito nas relações internacionais, estabelecendo os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica: 1) “Respeito pela integridade territorial e a soberania; 2) Não agressão; 3) Não-intervenção nos assuntos internos; 4) Igualdade e Cooperação em Benefício Mútuo; e 5) Coexistência pacífica entre países com sistemas sociais e ideologias diferentes. No ano seguinte, em 1955, a União Soviética adotou a Coexistência Pacífica como cerne de sua política externa; e a Conferência Afro-Asiática de Bandung, realizada na Indonésia de 18 a 24 de abril do mesmo ano, tratou do posicionamento internacional comum dos países do Terceiro Mundo, em favor da descolonização, do desenvolvimento econômico e do repúdio aos blocos militares da Guerra Fria.

O criador da diplomacia chinesa Zhou Enlai, o indiano Nehru, o birmanês U Nu, o indonesiano Sukharno, o egípcio Nasser, o iugoslavo Tito e o ganês N’Krumah foram os principais líderes do Movimento dos Não-Alinhados e divulgadores de seus princípios. Esse Movimento desempenhou importante papel nas relações internacionais dos anos 50, 60 e 70. Aprovou, por exemplo, em 1975, na Assembleia Geral da ONU, uma resolução criando uma “Nova Ordem Econômica Internacional”, que previa a transferência de tecnologia aos países do Terceiro Mundo.

A nova China lutou muito por seu reconhecimento Internacional. Ela é hoje, com 1,411 bilhão de habitantes, a segunda potência econômica mundial, depois dos EUA. As chamadas potências ocidentais, lideradas por Washington, custaram a aceitá-la. Preferiram apoiar a facção derrotada na revolução de 1949, que se transferiu para Taiwan, assumindo o nome de “República da China”. Taiwan é uma pequena ilha localizada a 180 km a leste da China Popular, tendo hoje 23,55 milhões de habitantes (Censo de 2017). Ela se manteve até 1971 como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Só em 1971 a China Popular foi admitida como membro permanente do Conselho de Segurança, em lugar do regime de Taiwan. Desde 1949, a China orienta-se, na questão de seu reconhecimento, por três princípios: 1) O reconhecimento de um Estado independe do Direito Internacional; 2) Para ser reconhecido por outro Estado, um país deve ser considerado como único representante legítimo de seu povo nas relações internacionais; e 3) Uma vez reconhecida, a China enfatiza “os efeitos jurídicos do reconhecimento”, por exemplo, com relação aos bens e ao patrimônio da China em outros países. Todos passam a pertencer à China Popular.

Para a China, a promoção dos direitos humanos é, ao mesmo tempo, causa e processo. A questão tem sido constantemente explorada pelos países interessados em diminuir a relevância da China. Pequim entende que, como os direitos humanos são imprescindíveis ao progresso social, eles devem ser perseguidos incansavelmente, o tempo todo. Por outro lado, os direitos e liberdades individuais não podem ser efetivados, na realidade, sem condições sociais particulares, como também não podem ser avaliados devidamente sem levar em conta o contexto social.

De 1949 até hoje, a China teve quatro Constituições, de 1954, 1975, 1978 e 1982. A de 1982 recebeu quatro emendas. Duas outras foram aprovadas em 1999 e 2004, dedicadas à proteção dos direitos humanos. A emenda de 1999 incluiu na Carta Magna o princípio pelo qual a China será governada de acordo com a lei. A emenda de 2004 incluiu no Artigo 33 o compromisso de que “o Estado respeita e protege os direitos humanos”. Para o juiz Xue Hanqin, tais emendas transformam a proteção dos direitos humanos em princípio fundamental do sistema jurídico chinês.

“Socialismo com Características Chinesas na nova Era.” A expressão, cunhada pelo Presidente Xi Jinping, foi aprovada pelo 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, como nova emenda constitucional, em outubro de 2017. O documento de conclusão do evento, assinado por Xi Jinping, não se referiu diretamente ao Direito Internacional, mas deixou claras as posições jurídicas internacionais adotadas pela China. Veja estes dois parágrafos – um misto mais otimista que pessimista:

“A China vai erguer no alto a bandeira de paz, desenvolvimento, cooperação e relação ganha-ganha, observar o propósito da política diplomática de defender a paz mundial e promover o desenvolvimento comum, desenvolver de forma inabalável as cooperações amistosas com os demais países com base nos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, bem como impulsionar a construção de um novo tipo de relações internacionais baseado no respeito mútuo, equidade, justiça, cooperação e relação ganha-ganha.”

“O mundo está passando por um período de grande desenvolvimento, transformação e ajustes, e a paz e o desenvolvimento continuam sendo os temas principais da época. A multipolarização mundial, globalização econômica, informatização social e diversificação cultural se desenvolvem profundamente; o sistema de governança global e a transformação da ordem internacional progridem de forma acelerada; os contatos e a interdependência entre os países se aprofundam cada dia mais; o poder internacional evolui na direção do equilíbrio; e é irreversível a tendência de paz e desenvolvimento.”

A fase 1978-2011 será apresentada em mais detalhes no segundo artigo desta série, sob o título de “A China e o Direito Internacional (II)”. É a época em que o tigre asiático se torna a segunda potência mundial. Veremos como isto se deu no campo dos acordos e ações jurídicas internacionais.

 

* José Monserrat Filho, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?, Vieira & Lent Casa Editorial, 2017. E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.

 

 

 

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