Ana Maria Machado: Acabar com isso

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Precisamos pensar em saídas. E o ideal seria conseguirmos pensar juntos, buscando um entendimento nacional

Por vezes, está tão forte a sensação de não aguentar mais conviver com a crise no país, que a vontade de acabar logo com isso extrapola dos limites e foge ao controle. Só isso, o absoluto esgotamento de paciência com a realidade, na saturação completa com a situação, pode explicar equívocos como gente que fica pedindo intervenção militar. Em todos os níveis, da política ao caos policial do Rio. Em fenômenos como a ascensão de candidatos como Bolsonaro, nas pesquisas recentes e nos testemunhos de quem convive com jovens revoltados e adultos indignados, de memória curta ou ignorância histórica longa. Não é possível que a cultura do ódio esteja levando a desmoralização dos ideais a esse ponto.

É bom não confundir os canais. Nada justifica apelar para isso. Mas é bom também que todos tenham um pouco de sensatez e parem de evitar o debate sério, limitando-se a repetir palavras de ordem que impedem a circulação do pensamento. Pura tentativa de desqualificar opiniões diferentes e rotular os outros. Em vez disso, é essencial trocar ideias e procurar se informar. É a única coisa que pode ajudar a sair do atoleiro. Precisamos pensar em saídas. E o ideal seria conseguirmos pensar juntos, buscando um entendimento nacional amplo — como a Espanha ao fim do franquismo, a Colômbia ao encerrar a guerra civil.

Em recente artigo, José Paulo Cavalcanti cumpriu o dever cívico de arrolar algumas razões para não esquecermos o que significou no país a intervenção militar, dos métodos de tortura ao número de mortos e desaparecidos, da supressão dos direitos humanos à censura à imprensa e à cultura em geral.

Não é porque a utopia também foi corrompida que se deve abrir mão do sonho de uma sociedade menos desigual, que não sirva a interesses partidários espúrios nem implante um mecanismo para a ocupação sistemática da máquina pública de forma a se perpetuar no poder. Talvez essa tenha sido a maior roubalheira dos tempos recentes: roubaram os sonhos generosos da juventude, (da nossa e das seguintes), distorcendo-os pela mentira, a ponto de se tornarem irreconhecíveis, forçados a coincidir com o corporativismo e o autoritarismo populista. Como se o altruísmo da utopia tivesse que se reduzir às experiências unipartidárias e totalitárias, do stalinismo ao bolivarianismo. No afã de desmoralizar a social-democracia xingada de neoliberalismo, sequestraram o projeto de reduzir a desigualdade, recusando os meios racionais de lidar com a economia de modo a aumentar a produtividade e a riqueza. Misturaram tudo com o primarismo da concentração do poder estatal e com a mais deslavada corrupção. Na arrogância de estar acima da lei, se vê qualquer limite legal como perseguição, e o fim passa a justificar os meios.

Os fatos de cada dia, chocantes e assustadores, viram metáfora. Como o bebê, vítima da certeza de que o mais forte tudo pode e fica impune, o Brasil do futuro é atingido, asfixiado e paralisado antes de nascer. Como as senadoras que tiveram a audácia de se apropriar da nossa voz, pretendendo falar em nosso nome ao ocupar a mesa parlamentar, ficamos na escuridão e vamos sendo apagados do debate.
A violência desenfreada em nossas cidades tem causas complexas mas é também a outra face da impunidade do mais forte e armado, no vale-tudo do poder. Na política, da mesma forma, afirma-se a tática de se impor pela força ou pela pretensa malandragem — no grito, no cuspe, na raiva, na mentira e na compra de votos.

Essa distorção cínica contribui para a perda de esperança, o apagão da crença no futuro do país, o desalento de estarmos sem rumo, à deriva, sem projeto. Até isso nos surrupiaram, ao usarem a utopia e os sonhos de justiça social, igualdade e crescimento para encobrir espertezas de desvio de dinheiro a serviço de um projeto partidário de manutenção no poder. Ainda por cima, a se fingir de vítima coitadinha.

Isso tudo é que tem que acabar, sabe-se lá como. Mas vai ter de ser de acordo com a Constituição. E ao que tudo indica, vamos ter que antes passar pelo processo de fazer emendas à Carta Magna numa reforma eleitoral, para podermos escolher melhor nas próximas eleições. Com essa gente que aí está, para as primeiras medidas, que jeito? Com as que elegermos em seguida, para completar a faxina. Vai depender também de cada um de nós, fazendo as pressões certas nos pontos precisos, em vez de apenas gritarmos palavras vazias, uns contra os outros.

Não podemos perder a oportunidade de começar a dar fim a esse descalabro, sem nos limitarmos ao marasmo estéril da repetição de slogans ou ao delírio de achar que a Justiça pode se dar ao luxo de ficar discutindo firula sem resolver sobre sentenças fundamentais para a democracia.

Que os juízes tenham juízo. Precisamos acabar com isso. Pode ser do interesse de alguns acusados que o processo se arraste, em troca de vantagem pessoal. Mas será catastrófico para o Brasil. Justiça que tarda falha.

– O Globo

* Ana Maria Machado é escritora

 

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