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Ana Maria Machado: Quebradeira, rachadinha e ruptura

A incompetência do governo passa dos limites. Outros países já vacinam há mais de um mês, enquanto aqui se enrola

 ‘O Brasil está quebrado, e eu não posso fazer nada’, afirmou o presidente. E jogou a culpa na mídia por exagerar a pandemia. Já se falou na leviandade e nas possíveis consequências econômicas dessas palavras. Não faltou quem, com todas as letras e dados numéricos, demonstrasse que, além de irresponsabilidade, trata-se de mentira pura e simples. Afinal, ele corta impostos de videogames, armas e igrejas, dá aumentos a policiais, anistia desmatadores e criminosos ambientais, multiplica privilégios a militares. Tudo em crescente aumento de gastos públicos e perda de arrecadação. E, ainda por cima, não faz nada para melhorar o ambiente de negócios ou diminuir o custo Brasil — o que ficou evidente com os anúncios da saída da Mercedes e da Ford do país, ou o PDV do Banco do Brasil.

No entanto a aparente besteira dita por Sua Excelência atinge seu objetivo — sempre o mesmo. O de criar polêmica, fazer discutir o irrelevante, distrair a plateia e desviar as atenções dos problemas de sua família na área criminal. Enquanto se discute a quebradeira, não se fala em rachadinha. E ele manobra para manter o cargo, ser reeleito e assegurar impunidade a todos os seus.

Entre quebras e rachaduras, adquire proporções nacionais o fenômeno da cidade partida. Na sociedade dividida deste país partido, de riqueza não repartida, multiplica-se a segregação, apartando privilegiados e ferrados. De quebra, o pessoal das quebradas se vira como pode, multiplicando quebra-galhos. Juntando os cacos. Ora caindo no papo furado, ora indiferente. Por quanto tempo mais vai funcionar esse lero-lero?

Os mortos da Covid-19 se aproximam de 210 mil. A incompetência do governo passa dos limites. Outros países já vacinam há mais de um mês, enquanto aqui só começou ontem. Até quando essa conversa para despistar ainda vai colar?

Chega uma hora em que os trincamentos viram ruptura, e os pés de barro não sustentam mais ídolos, mitos e mentiras. Então eles quebram a cara. Ou tudo se esfacela de uma vez.


Ana Maria Machado: Nota, corda e tom

Temos é que caminhar lado a lado pela democracia

Entre notas e entrevistas recentes, ficou no ar a frase do general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, advertindo o outro lado a não esticar a corda.

O problema de dividir a gente brasileira em dois lados é que todos passamos automaticamente a ser o outro lado para alguém. Então há uns 70% achando que quem estica corda é o lado do governo. Mas não vou discutir lados, estou farta disso. Acho que temos é que caminhar lado a lado pela democracia no Brasil. Prefiro refletir sobre a corda. E sobre a necessidade de esticá-la. O tom de advertência do ministro é de quem vê corda como um cabo de guerra, puxado com força até rebentar ou derrubar gente. Mesmo essa, se não for esticada, não permite brincadeira.

Mas há outras. De paz. Corda bamba da esperança equilibrista, por exemplo. Se não for esticada, o tombo é fatal, e o abismo espreita.

Há corda de todo tipo. De enforcado, em cuja casa não se deve falar. Corda de amarrar. De dar corda para que as coisas andem. De fazer despertador acordar pessoas. Mas para a maioria da gente comum na nossa cultura, este soft power que pulsa em nós, as cordas que contam são as que recordam nossa música, de outras notas e outros tons. Cordas de concórdia e de estar de acordo, não de amarrar e prender. As cordas do meu violão que só o amor procurou. Com essas aprendemos que é preciso esticar, sim senhor. Não demais, que rebentam com a tensão exagerada. Mas se estiverem frouxas não há música, pois sem esticar para afinar não há acordes em harmonia.

Também no país, as instituições, a imprensa e a cultura não podem deixar corda solta. Precisam esticar. Apertar na medida justa. Sem passar pano nem agredir mas sem cair no afrouxar geral, de vista grossa ao que não pode ser ignorado nem endossado.

Samba de uma nota só era apenas brincadeira de Tom Jobim. Outras notas devem entrar. Sempre. Democracia pede todas as notas e acordes, todos os tons, cores, ritmos, vozes e palavras. E cordas esticadas. Bem justinhas e firmes.


Ana Maria Machado: Tentando respirar

Contra quem quer nos asfixiar, crescem movimentos suprapartidários

Sei que opinião individual não interessa. Não importa que, ao contrário do presidente, eu jamais tenha tido o impulso de ouvir filho atrás da porta e sinta engulhos diante de quem acha isso recomendável. Mas confesso uma posição pessoal: sou contra prorrogar mandatos. Por isso, não gostei nada quando se falou em adiar para outro ano as eleições municipais, a pretexto da pandemia.

Ainda bem que Rodrigo Maia também pensa assim. E o ministro Barroso, agora presidente do TSE, está firme na busca de alternativas que garantam a continuidade democrática no pleito, sem irresponsabilidade sanitária. Acaba de autorizar convenções virtuais para escolha dos candidatos. E como os testes das urnas eletrônicas devem ser presenciais, que haja condições seguras de trabalho para os funcionários da Justiça Eleitoral neles envolvidos.

Pode-se fazer a votação em horário dilatado ou em mais de um dia. Talvez postergar um pouco a data, mas permitindo que a posse dos novos eleitos fique dentro do previsto na legislação. Talvez até valha considerar a hipótese de suspender a obrigatoriedade do voto neste pleito. Claro, a palavra final é do Congresso. Vejo que outros se preocupam com isso, não estou sozinha.

A mostrar que não estamos sós e inertes nestes tempos de perdas dolorosas, de Covid e de violência como a que matou George Floyd, também os democratas se mexem para tentar respirar. Contra quem quer nos asfixiar, crescem movimentos suprapartidários dispostos a passar por cima de mágoas antigas e defender as instituições. Irmanados na resistência capaz de unir diferenças. Sem alimentar confrontos, projetos pessoais ou veleidades hegemônicas. Já vêm tarde e são muito bem-vindos.

Definem-se a favor da Constituição, da vida, da saúde, da justiça, da educação, da arte, da ciência, da igualdade, da Amazônia, da responsabilidade na economia, da sustentabilidade, das instituições, da liberdade de imprensa.

Está difícil respirar democracia. Mas somos muitos. Juntos ganhamos alento e força.


Ana Maria Machado: Aprendendo a jogar

Chegamos à metade dos tais cem dias de lua de mel do governo. Teve de tudo: Davos, caso Queiroz/ Flávio, cirurgia, Brumadinho, pacote penal, circo no Senado, incêndio no CT do Flamengo, laranjal no PSL desmentido, fritura. E o país, como na canção: vivendo e aprendendo a jogar.

Estamos todos aprendizes. Eles, a governar. Nós, a sermos governados por algo diferente. Com a perspectiva de um Estado menor. Um ministério com menos sindicalistas e mais militares. Situando-nos em outro mapa. Alguns, a desconfiar que talvez exista um caminho liberal, diverso do ideal socialista da esquerda e do autoritarismo da direita. Talvez, abandonar rótulos e ofensas da história recente e reconhecer que andamos chamando o centro de direita, que FH é diferente de Bolsonaro, Tony Blair não era Thatcher, Clinton não era Trump, Macron não é Le Pen. E, a partir daí, examinar o que estamos vivendo.

Por um lado, há recuos sensatos. Declarações atabalhoadas dão espaço a teleprompter e porta-voz. Já o Twitter…

Nas relações exteriores, a realidade mostra os riscos de bravatas. A ambiguidade em relação à intervenção militar na Venezuela periga ter consequências nefastas. Restrições árabes às exportações brasileiras ensinam a ir devagar com o andor a caminho de Jerusalém.

Por aqui, Brumadinho e os efeitos do temporal no Rio provam que cuidado com meio ambiente é coisa séria, vai muito além de retórica ou indústria de multa. Também a tragédia no Ninho do Urubu reforça o dever e a responsabilidade de prevenção, manutenção, fiscalização.

Num governo com reduzida base de apoio no Congresso, as redes sociais entram em campo. Senadores fotografam e postam seus votos — que o STF, cumprindo a lei derretida, determinara que fossem secretos. Dão uma surra nos velhos caciques. Algo diferente de ganhar no grito e na manobra.

Aprende-se na marra. Com direito a reviravoltas nascidas de palpites do que está sendo chamado de núcleo biruta. Indo para onde?

Que outras batatas estarão assando nesse forno?


Ana Maria Machado: Acabar com isso

Precisamos pensar em saídas. E o ideal seria conseguirmos pensar juntos, buscando um entendimento nacional

Por vezes, está tão forte a sensação de não aguentar mais conviver com a crise no país, que a vontade de acabar logo com isso extrapola dos limites e foge ao controle. Só isso, o absoluto esgotamento de paciência com a realidade, na saturação completa com a situação, pode explicar equívocos como gente que fica pedindo intervenção militar. Em todos os níveis, da política ao caos policial do Rio. Em fenômenos como a ascensão de candidatos como Bolsonaro, nas pesquisas recentes e nos testemunhos de quem convive com jovens revoltados e adultos indignados, de memória curta ou ignorância histórica longa. Não é possível que a cultura do ódio esteja levando a desmoralização dos ideais a esse ponto.

É bom não confundir os canais. Nada justifica apelar para isso. Mas é bom também que todos tenham um pouco de sensatez e parem de evitar o debate sério, limitando-se a repetir palavras de ordem que impedem a circulação do pensamento. Pura tentativa de desqualificar opiniões diferentes e rotular os outros. Em vez disso, é essencial trocar ideias e procurar se informar. É a única coisa que pode ajudar a sair do atoleiro. Precisamos pensar em saídas. E o ideal seria conseguirmos pensar juntos, buscando um entendimento nacional amplo — como a Espanha ao fim do franquismo, a Colômbia ao encerrar a guerra civil.

Em recente artigo, José Paulo Cavalcanti cumpriu o dever cívico de arrolar algumas razões para não esquecermos o que significou no país a intervenção militar, dos métodos de tortura ao número de mortos e desaparecidos, da supressão dos direitos humanos à censura à imprensa e à cultura em geral.

Não é porque a utopia também foi corrompida que se deve abrir mão do sonho de uma sociedade menos desigual, que não sirva a interesses partidários espúrios nem implante um mecanismo para a ocupação sistemática da máquina pública de forma a se perpetuar no poder. Talvez essa tenha sido a maior roubalheira dos tempos recentes: roubaram os sonhos generosos da juventude, (da nossa e das seguintes), distorcendo-os pela mentira, a ponto de se tornarem irreconhecíveis, forçados a coincidir com o corporativismo e o autoritarismo populista. Como se o altruísmo da utopia tivesse que se reduzir às experiências unipartidárias e totalitárias, do stalinismo ao bolivarianismo. No afã de desmoralizar a social-democracia xingada de neoliberalismo, sequestraram o projeto de reduzir a desigualdade, recusando os meios racionais de lidar com a economia de modo a aumentar a produtividade e a riqueza. Misturaram tudo com o primarismo da concentração do poder estatal e com a mais deslavada corrupção. Na arrogância de estar acima da lei, se vê qualquer limite legal como perseguição, e o fim passa a justificar os meios.

Os fatos de cada dia, chocantes e assustadores, viram metáfora. Como o bebê, vítima da certeza de que o mais forte tudo pode e fica impune, o Brasil do futuro é atingido, asfixiado e paralisado antes de nascer. Como as senadoras que tiveram a audácia de se apropriar da nossa voz, pretendendo falar em nosso nome ao ocupar a mesa parlamentar, ficamos na escuridão e vamos sendo apagados do debate.
A violência desenfreada em nossas cidades tem causas complexas mas é também a outra face da impunidade do mais forte e armado, no vale-tudo do poder. Na política, da mesma forma, afirma-se a tática de se impor pela força ou pela pretensa malandragem — no grito, no cuspe, na raiva, na mentira e na compra de votos.

Essa distorção cínica contribui para a perda de esperança, o apagão da crença no futuro do país, o desalento de estarmos sem rumo, à deriva, sem projeto. Até isso nos surrupiaram, ao usarem a utopia e os sonhos de justiça social, igualdade e crescimento para encobrir espertezas de desvio de dinheiro a serviço de um projeto partidário de manutenção no poder. Ainda por cima, a se fingir de vítima coitadinha.

Isso tudo é que tem que acabar, sabe-se lá como. Mas vai ter de ser de acordo com a Constituição. E ao que tudo indica, vamos ter que antes passar pelo processo de fazer emendas à Carta Magna numa reforma eleitoral, para podermos escolher melhor nas próximas eleições. Com essa gente que aí está, para as primeiras medidas, que jeito? Com as que elegermos em seguida, para completar a faxina. Vai depender também de cada um de nós, fazendo as pressões certas nos pontos precisos, em vez de apenas gritarmos palavras vazias, uns contra os outros.

Não podemos perder a oportunidade de começar a dar fim a esse descalabro, sem nos limitarmos ao marasmo estéril da repetição de slogans ou ao delírio de achar que a Justiça pode se dar ao luxo de ficar discutindo firula sem resolver sobre sentenças fundamentais para a democracia.

Que os juízes tenham juízo. Precisamos acabar com isso. Pode ser do interesse de alguns acusados que o processo se arraste, em troca de vantagem pessoal. Mas será catastrófico para o Brasil. Justiça que tarda falha.

- O Globo

* Ana Maria Machado é escritora