Day: abril 19, 2022

Foto: EBC

Revista online | Balanço do mês da janela partidária 

Arlindo Fernandes de Oliveira*, especial para a revista Política Democrática online

Como se esperava, uma grande quantidade de agentes políticos valeu-se da licença legal chamada “janela partidária”, também conhecida como “janela de infidelidade”, para trocar de partido durante o mês de março deste ano de 2022. 

Vale breve memória sobre como o tema vem sendo tratado pela lei e sua leitura judicial: no ano de 2007, o Poder Judiciário havia decidido que o mandato eletivo obtido nas eleições proporcionais pertence ao partido pelo qual o mandatário foi candidato. Na época, a decisão foi saudada como algo muito positivo e inovador, pois “finalmente alguém coloca alguma ordem nesta barafunda partidária”.  

Perde o mandato quem alterar sua filiação partidária, decidiu, sob aplausos, o Supremo Tribunal Federal (STF). No caso, a decisão veio em respaldo à outra, adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Havia a ressalva da justa causa, e sua definição. Depois esse entendimento foi, por pouco tempo, estendido aos mandatos obtidos pelo sistema majoritário. 

Em seguida, aos poucos, vieram as mitigações desse entendimento: decidiu-se, em 2010, excluir do dever de fidelidade partidária quem houvesse sido eleito pelo sistema majoritário, vale dizer, prefeito, governador e presidente, e, no plano legislativo, senador. São agentes políticos que recebem um voto também pessoal, alegou-se então. 

Quanto aos eleitos pelo sistema proporcional, a Lei dos Partidos havia sido alterada para ensejar, na forma como definira o TSE, que também estaria autorizado à infidelidade, isento de qualquer pena, quem saísse de um partido para participar da criação de outro. Essa decisão foi, certamente, um dos principais motores da proliferação de partidos políticos que veio a ocorrer na década seguinte. 

Daí termos, por algum tempo, poucas situações em que o detentor de mandato eletivo pudesse alterar sua filiação partidária sem ônus jurídico: caso detentor de mandato majoritário; caso participasse de criação de novo partido; caso seu partido participasse de processo de fusão ou incorporação; na hipótese de mudança substancial ou desvio reiterado da sigla do programa partidário original; e, finalmente, caso fosse reconhecida pela Justiça Eleitoral uma situação de perseguição dentro do partido. 

Na chamada Lei da Minirreforma Eleitoral (n° 13.615, de 2015), acrescentou-se nova norma à Lei dos Partidos para permitir ao parlamentar alterar sua filiação partidária, sem necessidade de justificação, no prazo de 30 dias, seis meses antes das eleições, ou seja, até o mesmo prazo exigido de filiação partidária e domicílio eleitoral para concorrer ao pleito. O chamado “transfugismo partidário” passou a dispor de uma nova e ampla licença.  

No mesmo momento, foram excluídas da Lei Partidária duas hipóteses permissivas de mudança de filiação sem ônus jurídico da perda do mando, a participação em fusão ou incorporação ou a criação de novo partido. 

Os parlamentares passaram a contar, portanto, com um mês a cada quatro anos para pular a janela da fidelidade partidária, na bem-humorada definição dos jornalistas que cobriam o Congresso.  

No texto da lei, somente poderia alterar a filiação partidária, em tese, aqueles parlamentares que ocupam um dos cargos que estará em disputa nas eleições seis meses depois, ou seja, deputados federais e deputados estaduais/distritais. Entretanto, neste ano de 2022, detentores do cargo de vereador, que não estarão em disputa no pleito de outubro, valeram-se da licença legal para também mudar de partido. Desconhecemos questionamentos judiciais a esse respeito. 

Chamam muito a atenção do observador, na análise do período da janela de infidelidade do mês de março de 2022, dois aspectos muito relevantes e pouco comentados: em primeiro lugar, praticamente desaparecem os questionamentos de natureza ética ou moral sobre a incoerência político-ideológica, o desrespeito ao eleitor e a fraude contra sua vontade de quem altera a filiação partidária como quem muda de camisa.  

Como esse comportamento, antes famigerado e denunciado como imoral e antiético troca-troca, promovido à custa de manipulações e corrupção, passou a ser do interesse de grupos políticos governantes, esse fato, de súbito, começa a ser descrito como algo inevitável, como se evento da natureza fosse observado por muitos de forma desprovida de qualquer senso crítico. 

O segundo aspecto a considerar é que as análises respectivas ao processo se limitaram a uma descrição aritmética sobre quem ganha e quem perde nas bancadas, especialmente na Câmara dos Deputados, sem apreciar outros aspectos desse contexto, os efeitos legais inclusive, como os denominadores e os divisores dos recursos dos fundos partidário e eleitoral e do tempo de propaganda no rádio e na TV. 

Por exemplo, um partido que elegeu 60 deputados federais em 2018 e perdeu 20 no troca-troca de 2022 é visto como perdedor, por ver diminuída sua bancada na Câmara. Não se vê, por exemplo, que as mudanças produzem um efeito bastante limitado na definição dos recursos do Fundo Eleitoral, e nenhum efeito na definição do volume de recursos do Fundo Partidário, que tem como referência a votação para deputado federal obtida pelo partido no pleito de 2018. Ou seja, na prática, os 40 deputados que remanesceram nesse partido terão a seu dispor os recursos que correspondem à bancada de 60 federais, pois os deputados que saíram não carregam consigo os recursos respectivos ao seu mandato (Fundo Eleitoral) ou aos votos (Fundo Partidário). 

O mesmo ocorre com relação do tempo de propaganda eleitoral na televisão e no rádio: o tempo é repartido de duas formas, 10% igual para todos os partidos e 90% na proporção da bancada de cada partido na Câmara dos Deputados, que, neste caso, é a bancada resultante da eleição anterior. 

Ou seja, ganha, em ambas as situações, o deputado federal ou o candidato a deputado federal (ou a qualquer outro cargo) que permaneceu filiado ao partido original, pois haverá um contexto de menos candidatos à reeleição com mais recursos e mais tempo de antena, ao passo que os que pularam a janela da infidelidade afluíram normalmente para partidos com bancadas mais numerosas. Serão, ao fim das contas, candidatos com menos recursos e menos tempo de TV e de rádio para suas campanhas. 

Faz sentido. Alguma coisa, afinal, deve haver para prestigiar quem se manteve coerente com o mandato partidário que a cidadania lhe concedeu. 

Saiba mais sobre o autor

Foto: Fundação Astrojildo Pereira

*Arlindo Fernandes de Oliveira é consultor do Senado e especialista em Direito Eleitoral

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.


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Imagem: reprodução

Nas entrelinhas: Áudios rompem o silêncio militar sobre torturas

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense 

Questionado sobre os áudios divulgados pela jornalista Míriam Leitão em sua coluna no jornal O Globo, que mostram sessões do Superior Tribunal Militar (STM) na época do governo ditatorial, nas quais os ministros generais que integravam o órgão falam sobre torturas, o vice-presidente Hamilton Mourão respondeu: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. (risos). Vai trazer os caras do túmulo de volta?”

General da reserva, Mourão traduziu uma espécie de senso comum entre os militares: o silêncio das Forças Armadas em relação à questão das torturas, dos assassinatos e dos desaparecimentos de oposicionistas durante o regime militar. Colocou-se uma pedra sobre esse assunto. As Forças Armadas se recusam a revisitá-lo publicamente, com um olhar autocrítico e democrático, como ocorreu em outros países.

Essa atitude é legitimada pelo pacto de aprovação da “anistia recíproca”, pelo Congresso, em 1979. O acordo entre o governo militar e a oposição, que beneficiou “subversivos” e torturadores, é um assunto sacramentado, também, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Àquela época, a anistia foi um efetivo avanço em direção à democracia, pois possibilitou a libertação de presos políticos e a volta dos políticos exilados. Entretanto, enfrentou reações dos “porões” do antigo regime militar, inclusive por meio de atentados à bomba, entre os quais o do Rio Centro, que fracassou.

Naquela noite de 30 de abril de 1981, um show comemorativo do Dia do Trabalho reunia 20 mil pessoas no Rio Centro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, quando uma bomba explodiu no estacionamento. O sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu na hora, e o capitão Wilson Luís Chaves Machado, gravemente ferido, preparavam o artefato no interior de um veículo Puma com placa fria, utilizado pelo Doi-Codi. Segundo as autoridades militares da época, estavam num serviço de rotina. Outra bomba colocada na casa de força do prédio não chegou a explodir.

Aquele episódio acabou sendo um divisor de águas do processo de abertura política, que iria desaguar na eleição de governadores oposicionistas, em 1982; na campanha das Diretas Já; e na eleição de Tancredo Neves, em 1985, no colégio eleitoral, que pôs fim ao regime militar. Caso o atentado fosse bem-sucedido, resultaria num massacre de artistas, estudantes e sindicalistas. Nada ocorreu com o capitão Wilson Machado, que se recuperou dos graves ferimentos, continuou no serviço ativo e chegou a ser professor no Colégio Militar de Brasília.

Vez por outra, como agora, o militar terrorista é lembrado. Reformado como coronel, é a única testemunha viva do atentado do Rio Centro. Ao contrário do que disse o general Mourão, outros 97 militares envolvidos com as torturas também estão vivos, segundo lista divulgada pelo Instituto Vladimir Herzog, criado em memória do jornalista assassinado nas dependências do Doi-Codi, na Rua Tutóia, em São Paulo, em 1975.

Política de Estado

O presidente Jair Bolsonaro trata-os como heróis, a começar pelo falecido coronel Carlos Brilhante Ustra, sob cujo comando registram-se 434 oposicionistas mortos pelo Doi-Codi. Os áudios das sessões do STM revelam que a cúpula militar tinha conhecimento das torturas e dos assassinatos e não mandou investigar, inclusive no governo do presidente Ernesto Geisel, que chegou a admitir a existência de torturas num longo depoimento a Maria Celina D’Araújo e Celso Castro. Somente após a morte de Herzog, que provocou ampla mobilização da sociedade civil, Geisel reagiu à linha-dura e impôs sua autoridade aos quartéis.

Os áudios foram reunidos e analisados pelo professor Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que pesquisa a memória do regime militar. Só foram liberados pelo STM em razão de decisão do Supremo Tribunal Federal, a pedido do advogado Fernando Fernandes. A ministra Maria Elizabeth Rocha, do STM, classificou como positiva a divulgação: “Importante serem revelados esses áudios porque tudo faz parte da história do país, memória do país — e para que erros não se repitam”, declarou.

A tortura e a eliminação física de oposicionistas foram uma política de Estado, denunciada por suas vítimas e respectivos advogados nos tribunais. Não eram divulgadas pela imprensa como deveriam porque havia censura. O que chegava às redações oficialmente eram relatos fantasiosos, típicos das estratégias militares de contrainformação. As denúncias de prisões e sequestros, feitas por advogados e familiares, não podiam ser publicadas. Os registros oficiais, lacônicos, eram publicados nas páginas de notícias policiais.

As denúncias, entretanto, circulavam por meio de publicações clandestinas, como o boletim Notícias Censuradas, com informações colhidas nas redações, e o jornal Voz Operária, órgão central do antigo PCB, que deixou de ser impresso no Brasil após os órgãos de repressão localizarem sua principal gráfica, em Campo Grande, em janeiro de 1975, numa operação que deixou um rastro de prisões, torturas e assassinatos, entre os quais o de Orlando Bomfim Junior, responsável pela publicação, cujo corpo nunca foi encontrado nem sua prisão reconhecida.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-audios-rompem-o-silencio-militar-sobre-torturas/