Day: dezembro 4, 2021

Procuradora vê riscos em tentativa de manter teto global de despesas

João Vitor*, da equipe FAP

A tentativa de manter o teto global de despesas a qualquer preço pode custar o próprio aniquilamento do Estado Democrático de Direito, de acordo com a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo (MPC-SP) Élida Graziane Pinto. Ela abordou o assunto em artigo produzido para a revista Política Democrática online de novembro (37ª edição).

Élida avalia que muitas outras regras fiscais brasileiras têm sido submetidas a um cenário de terra arrasada por conta da equivocada decisão de manter o teto vintenário. “Com isso, implodem-se, pouco a pouco, os pilares institucionais e civilizatórios do país”, explica.

A revista Política Democrática online é editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. A instituição disponibiliza, gratuitamente, em seu portal, todo o conteúdo da publicação mensal na versão flip. Em seu artigo, a autora diz que o teto tem constrangido o custeio de políticas públicas amplas.

Clique aqui e veja a revista Política Democrática online de novembro

A procuradora Élida, que também é professora de Finanças Públicas da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), questiona o fato de o teto global de despesas primárias para a União, fixado pela Emenda 95/2016, chegar a cinco anos de vigência em 2021, com impasses que foram se acumulando desde sua criação.

Ela alerta para a revisão, com urgência, do teto, uma vez que, sem motivos, ele limita a capacidade estatal de cumprimento da Constituição de 1988 e impacta na dívida pública de forma opaca e ilimitada.

A procuradora destaca que foram rejeitadas a transparência e a aderência ao planejamento das emendas de relator (Orçamento Secreto) e das transferências especiais definidas pela Emenda 105/2019. “Propiciou a ampliação significativa do balcão fisiológico de negócios no ciclo orçamentário brasileiro” diz.

Segundo Élida, a histórica desigualdade em patamar ainda mais extrativista foi acirrada pelo diagnóstico de que a crise das finanças públicas brasileiras estaria centrada apenas em despesas que amparam direitos sociais e serviços públicos universais.

A procuradora afirma que a suposição para a crise fiscal brasileira em 2016 era a de que se precisava reduzir o tamanho do Estado.

“Em 2021, há clareza de que os vieses na identificação do problema e na proposta aprovada para sua resolução a partir da Emenda 95 agravaram a realidade fiscal do país tão frágil, quanto suscetível à captura de curto prazo eleitoral e de compadrio nas relações do Estado com o mercado e com o terceiro setor”, escreve Élida Graziane, no artigo para a revista da FAP.

Na avaliação da professora, o aprendizado de mais de duas décadas da Lei de Responsabilidade Fiscal tem sido corroído, tanto quanto se vive uma espécie de efeito dominó na mitigação de diversas balizas normativas em que se assentam as contas e as políticas públicas do país.

Veja lista de autores da revista Política Democrática online de novembro

A íntegra do artigo de Élida Graziane Pinto pode ser conferida na versão flip da revista, disponível no portal da FAP, gratuitamente.

A nova edição da revista da FAP também tem reportagem especial sobre as novas composições familiares e entrevista especial com o economista Bernard Appy, além de artigos sobre economia, cultura e política.

Compõem o conselho editorial da revista o diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo, o jornalista e escritor Francisco Almeida e o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. A Política Democrática online é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado.

*Estagiário integrante do programa de estágios da FAP, sob supervisão do jornalista Cleomar Almeida

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Veja todas as edições da revista Política Democrática online! 


Marcus Pestana: Orçamento público e democracia

Marcus Pestana / Congresso em Foco

Nunca é demais repetir: os pilares fundamentais das democracias modernas são a Constituição e o orçamento público. A Constituição, fixando direitos e deveres; erguendo o sistema de freios e contrapesos; regulando as relações entre Estado, sociedade e mercado; e, limitando o poder do Estado. Já o orçamento, regulando a capacidade de tributação dos governos; dando transparência as receitas e despesas públicas e ordenando o planejamento anual das ações governamentais.

O orçamento lida com uma linguagem árida para leigos. Poucas pessoas têm capacidade e paciência para analisar o calhamaço de informações, números, dotações, rubricas, projetos e programas. Os recursos disponíveis não são ilimitados, as demandas são múltiplas e a elaboração do orçamento exerce o papel de organizar as escolhas entre fins alternativos. O populismo fiscal é danoso, e, em geral, produz efeitos negativos inversos às boas intenções iniciais que patrocinam a gastança desenfreada.

Essa realidade vem à tona quando o Congresso Nacional brasileiro está mergulhado, nas últimas semanas, em discussões como as da emenda secretas, PEC dos Precatórios e Piso Salarial Nacional para os Profissionais da Enfermagem. 

Orçamento secreto é, na verdade, uma contradição em termos. Afinal o orçamento público visa exatamente dar total transparência à alocação dos recursos. Não faz sentido algum transformar o relator do orçamento numa espécie de “ordenador de despesas”, que tem uma chave secreta para autorizar gastos. O Congresso Nacional e o STF estão em negociações para corrigir o rumo do assunto.

A PEC dos Precatórios é outro assunto polêmico. Agride a Lei de Reponsabilidade Fiscal, tenta driblar o Teto de Gastos, pressupõe o “calote” em dívidas líquidas e certas, materializadas nos precatórios, e cria espaço para a ampliação de despesas em ano eleitoral para um Estado bastante endividado e com déficits orçamentários recorrentes. Certamente, outras formas existem para financiar o Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família. O Senado Federal está procurando formas de minimizar os danos.

Por último, o Piso Nacional Salarial da Enfermagem. Como ex-secretário da saúde de Minas, como poucos, sei da centralidade dos profissionais da enfermagem no sistema de saúde. São profissionais abnegados e dedicados. Mas, o piso salarial aprovado pelo Senado Federal, nesta semana, implicará em um gasto adicional para o SUS estimado em 16 bilhões de reais, recaindo sobretudo sobre municípios e santas casas. Ninguém apontou de onde sairá o dinheiro. E pior, a direção da Câmara dos Deputados acenou com a redução da jornada de trabalho de 40 para 30 horas semanais, o que aumentará significativamente o impacto orçamentário, sem o suporte de novos impostos ou o corte de outras despesas. Os efeitos futuros poderão ser graves.

É evidente que é muito mais simpático falar em ampliação de gastos com obras, salários melhores, novos programas governamentais. Quem fala em restrição orçamentária geralmente vira um chato desmancha prazeres. Mas estamos urgentemente precisando de estadistas que tenham clareza e coragem para tirar o Brasil da profunda crise fiscal em que nos encontramos. A sociedade agradecerá, porque é ela que está pagando o preço da irresponsabilidade fiscal com a volta da inflação, juros altos, desemprego e fuga de investimentos.  

*Presidente do Conselho Curador ITV – Instituto Teotônio Vilela (PSDB)

Fonte: Congresso em Foco
https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/colunistas/orcamento-publico-e-democracia/


Marco Antonio Villa: Os evangélicos e a política

Marco Antonio Villa / Revista IstoÉ

A cada dois anos se repete um ritual nada republicano — muito menos em um País laico. Candidatos vão visitar líderes evangélicos em busca de votos. Visitar, não é o problema. É até um gesto de civilidade. Contudo, o objetivo é de cabalar apoio no velho sistema do voto de cabresto, como se estivéssemos no túnel do tempo rumo à República Velha. O “rebanho” estaria pronto a votar no que for indicado pelo pastor, sem refletir, questionar ou conhecer o que o candidato pretende realizar.

A República brasileira é laica desde a sua fundação. A separação entre Igreja e Estado foi um dos primeiros atos do governo Provisório. Posteriormente, a Constituição de 1891 consagrou este princípio rompendo com o direito do Padroado presente na Constituição de 1824. A jovem República teve como referência ideológica o laicismo tão presente na Terceira República francesa.

Se tivemos muitos padres — da Igreja católica — participando da vida política desde o processo independentista, a ação era com base em uma determinada visão de mundo no universo ideológico laico e não como representantes de alguma confissão religiosa.

O que assistimos nos últimos vinte anos é um processo novo e que se confronta com os princípios laicos da Constituição de 1988. Porém, os partidos políticos e seus candidatos resolveram deixar de lado a Carta Magna e se adaptar à selvageria eleitoral. O que importa é ser eleito mesmo à custa de tenebrosas transações, pouco republicanas e que minam as bases
do Estado democrático de Direito.


Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
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Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
André Mendonça e Jair Bolsonaro. Foto: Agência Brasil
André Mendonça. Foto: Secom/PR
André Mendonça. Foto: Secom/PR
André Mendonça. Foto: Anderson Riedel/PR
André Mendonça e Jair Bolsonaro. Foto: Secom/PR
André Mendonça. Foto: Secom/PR
André Mendonça. Foto: Secom/PR
André Mendonça. Foto: Pablo Jacob
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Sabatina de André Mendonça na CCj do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
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O inusual e claramente anticonstitucional voto de cabresto religioso não passa — e nem deveria passar — pelas mediações do sagrado. Há uma clara oposição entre os dois mundos, o profano e o sagrado. Durante cem anos de República esteve claro esta distância. E não há nada de mais antirrepublicano do que a sacralização da atividade política.

Há um oportunismo dos dois campos, o religioso e o político. O pastor tem no político um sócio na negociação do voto. E o fiel é instrumento de venda e cooptação, retirando a independência do voto, em um grande salto histórico para trás, como se o Jeca Tatu lobatiniano tivesse migrado para as cidades, mas mantendo seu alheamento dos grandes problemas nacionais. Afinal, cabe ao pastor definir a sua vontade de eleitor. Esta transferência é criminosa, inaceitável, em uma república democrática. E não cabe o falso argumento de perseguição religiosa. A questão é o uso da religião para sequestrar um dos princípios do Estado democrático de Direito.

Fonte: Revista IstoÉ
https://istoe.com.br/os-evangelicos-e-a-politica/


Miguel Reale Júnior: A aritmética de Hitler

Miguel Reale Júnior / O Estado de S. Paulo

Em 23 de março de 1944, na Rua Rosella, em Roma, ocupada por tropas alemãs, 32 soldados nazistas foram mortos em atentado preparado pela resistência italiana. Por ordem de Hitler, para cada alemão morto deveriam ser fuzilados dez italianos. Assim, aleatoriamente, 335 romanos foram levados às Fossas Ardeatinas, ao sul da cidade, e lá executados.

Conforme o oficial responsável pelo massacre, Priebke, condenado anos depois, na Itália, à prisão perpétua, a ordem de Hitler consistia em “represália ao atentado organizado pela resistência”.

O médico Attilio Ascarelli, autor da autópsia das vítimas do massacre, bem definiu: “Foi a cruel satisfação dum brutal espírito de vingança”.

A vingança, seja a calculadamente arquitetada, seja a de imediato aplicada, ao não ter proporção com o mal antes sofrido, visa apenas ao deleite do espírito perverso com a crueldade imposta.

Assim se deu com Hitler, assim se tem dado nas ações repetidas da polícia brasileira em operações-vingança, marcadas por malvadeza, acentuadas no governo Bolsonaro.

Essas operações-vingança atingem em geral pessoas pobres, negras e moradoras das favelas ou da periferia destituídas de cidadania, pois reputadas como “não sujeitos de direitos”, passíveis, por consequência, de ter violadas sua vida, sua integridade física e moral. Quem os ataca, com violência sanguinária, são soldados ou inspetores de origem também humilde, mas que pretendem ser alheios a esta categoria dos desprovidos de direitos, sobre os quais afirmam sua “autoridade e superioridade”.

Operação de cumprimento de mandado de prisão na favela do Jacarezinho transformou-se em operação-vingança, resultando em 27 pessoas mortas. Foto: EFE/André Coelho

Fiquemos em exemplos deste ano: no dia 6 de maio, em operação da Polícia Civil, 200 policiais a pé, quatro blindados, com apoio de helicópteros, entraram na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, para cumprir 21 mandados de prisão. Logo no início, deu-se o infausto homicídio de policial civil atingido por um tiro. A operação de cumprimento de mandado de prisão transformou-se em operação-vingança, resultando em 27 pessoas mortas.

Muitos, rendidos ou recolhidos em casa, foram executados a sangue frio. Atingiram-se aleatoriamente pessoas com ou sem antecedentes criminais (como se ter antecedente significasse a permissão para ser executada), e, dos 27 mortos, apenas 3 constavam dos mandados de prisão. Cenas horripilantes foram protagonizadas. A comunidade ficou entregue à agressividade destruidora.

De forma irresponsável, o presidente da República elogiou a operação e publicou nas redes este comentário: “Ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os igualam ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo”. Na verdade, dos assassinados pela polícia, poucos tinham relação com o tráfico.

Para reafirmar a prevalência do direito e em apoio ao Supremo

Tribunal Federal (STF), em 20 de maio seis ex-ministros da Justiça, entre os quais eu, lançaram carta aberta: “Como ex-ministros e cidadãos, estamos convencidos da necessidade de atuação do Supremo Tribunal Federal para garantir a força normativa da Constituição e limitar a ação estatal em segurança pública que não esteja pautada pelo respeito à vida e às ordens judiciais”. No dia seguinte, o STF, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, em voto do relator, reafirmou a permissão para operação policial apenas em caso excepcional, com aviso prévio ao Ministério Público. Pouco adiantou!

Em 12 de junho de 2021, na cidade de Tabatinga (1.106 km de Manaus), bairro da Baixada, houve troca de tiros: atirador e sargento da PM, à paisana, morreram. Policiais militares entraram no bairro em busca de cúmplices e mataram sete pessoas, sendo três jogadas no lixão. Durante a invasão do bairro, um PM disse a familiares das vítimas: “Agora é a lei do Bolsonaro, bandido bom é bandido morto”.

No mês passado, como represália à morte do soldado Leandro da Silva, assassinado em patrulhamento, policiais militares, desconfiando estar o assassino no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, executaram aleatoriamente nove pessoas dessa comunidade, deixando os corpos no mangue. E o pior: instalado o terror, os policiais festejaram com churrasco e cerveja.

Em 2017, o Brasil, por não se apurar o massacre na Favela Nova Brasília, foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Nenhum efeito reeducativo: pouco se investigam massacres e muitos inquéritos são arquivados. A aritmética de Hitler continua impune.

O que resta fazer? Deve-se cobrar de governadores o ensino de direitos humanos na formação dos quadros das instituições policiais. A prevenção e repressão penal nada perdem, só ganham, se policiais respeitarem os direitos fundamentais: a polícia que se teme abre estrada para o crime organizado.

Medida eficaz está em ser o trabalho do policial monitorado por câmeras corporais, que revelam os fatos como eles são. De outra parte, entidades da sociedade podem promover a responsabilidade civil do Estado pela violação a preceitos fundamentais, visando, assim, a constranger o Tesouro estadual.

Quanto a Bolsonaro, este é um caso perdido.

*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-aritmetica-de-hitler,70003915347


João Gabriel de Lima: O ‘Superbigode’, o Papai Noel e a vida real

João Gabriel de Lima / O Estado de S. Paulo

Um novo super-herói viralizou nesta semana no Youtube, em seu embate contra um vilão loiro instalado na Casa Branca. O americano platinado e seus asseclas não têm como resistir à força do “Superbigode”, que usa sunga de Super-homem, destrói os inimigos com sua “mão de ferro” literal – e tem o rosto e os trejeitos do presidente venezuelano Nicolás Maduro.

Nas democracias saudáveis, a luta pelo poder se dá com o objetivo de resolver problemas concretos dos eleitores. Em democracias deterioradas, como a venezuelana, os governantes negam os problemas, atribuindo-os a um vilão externo – no caso, o ex-presidente Donald Trump, que nem está mais na Casa Branca – e propõem soluções mirabolantes. A anedota do super-herói bigodudo zomba da tragédia humanitária vivida pelo país vizinho.

Já no Brasil, dois fatos importantes marcaram esta semana. O primeiro foi a divulgação dos números do Produto Interno Bruto, que revelaram que estamos entre a estagnação e a recessão. Como mostrou o Estadão em editorial, nosso desempenho está entre os piores do mundo, deixando claro que a culpa não é da pandemia, mas da má gestão do governo federal.

O segundo fato foi que, com a definição das prévias do PSDB, formou-se o grid de largada das eleições de 2022 – o cientista político Carlos Melo, do Insper, entrevistado no minipodcast da semana, analisa o cenário. Há muitas desvantagens em antecipar a campanha eleitoral, mas existe algo de bom: teremos tempo para discutir os problemas concretos do País.

Eles se expressam em números como o da inflação, que passou dos dois dígitos, e do desemprego, acima de 12%. Na vida real, são tão dramáticos como as cenas de cidadãos brasileiros procurando comida em lixões ou usando fogareiros a lenha, por não ter como pagar o preço do botijão de gás.

Em plena crise econômica, há quem perca tempo – caso da Câmara dos Vereadores de Ribeirão Preto – escrevendo moções contra um comercial do Papai Noel veiculado na Noruega, em que o bom velhinho saúda os 50 anos da união civil homossexual no país nórdico.

Os candidatos estão posicionados para as eleições do ano que vem. Que o debate se dê em torno de questões reais. Desviar o foco ou buscar soluções mirabolantes é zombar das agruras vividas pelos cidadãos, que votam em busca de soluções concretas para seus dramas. Elas passam longe de mitos natalinos ou candidatos que, como o “Superbigode” venezuelano, acham que sua própria presença, travestidos de super-heróis, resolverá os problemas da vida real.

*ESCRITOR, PROFESSOR DA FAAP E DOUTORANDO EM CIÊNCIA POLÍTICA NA UNIVERSIDADE DE LISBOA

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-superbigode-o-papai-noel-e-a-vida-real,70003916647


Bolívar Lamounier: Entre duas armadilhas

Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo

O Brasil deve ser o único país onde duas armadilhas se engalfinham, cada uma querendo se sobrepor à outra. O leitor está cansado de saber quais são as duas armadilhas a que me refiro; sou forçado a falar delas, embora minha preferência fosse escrever sobre alguma opereta. Falo, evidentemente, da “armadilha do baixo crescimento” e da polarização política que se configurou a partir da eleição presidencial de 2018.

Suponhamos que nossa renda anual por habitante ande pela casa dos US$ 10 mil anuais. O fato de estarmos aprisionados na “armadilha do baixo crescimento” significa que, mesmo crescendo 3% ao ano (hipótese remota), levaremos algo como 23,3 anos para duplicarmos essa renda ridícula e atingir o nível ainda ridículo de US$ 20 mil anuais. Com o sistema institucional, a máquina de Estado e a classe política que nos subjugam, é assaz duvidoso que tal milagre possa acontecer. Mas essa primeira parte da história já lhes contei uma dúzia de vezes. Passo à segunda, para evitar a monotonia.

Nosso sistema econômico permanece anêmico, incapaz de dar um passo substancial à frente. Robustez, no Brasil, existe é na miséria. Essa, sim, caminha a passos largos, só que, infelizmente, para trás. Pobre e brutalmente desigual nosso país sempre foi, mas, salvo se eu for um desmemoriado, certas coisas não me lembro de ter presenciado. Semanas atrás, em Araçatuba, grande e próspera cidade do oeste paulista, várias quadrilhas até então independentes associaram-se para assaltar a cidade, mantendo-a aterrorizada durante várias horas. Não me lembro de ter visto miseráveis comprando ossos que lhes sirvam como alimento na sopa da noite. No dia 29 de novembro, o canal UOL trouxe uma informação provavelmente mais corriqueira, mas que não posso deixar de mencionar no presente contexto: pessoas famintas desmaiando na fila enquanto esperam atendimento em postos de saúde.

São muitos os fatores que nos mantêm aprisionados na “armadilha do baixo crescimento”, mas não há dúvida de que outra armadilha entrou em cena, ao que tudo indica fazendo questão de nos garrotear com a mesma força da primeira. Refiro-me, aqui, à estrábica polarização política que se instalou entre nós desde a eleição presidencial de 2018, contrapondo, de um lado, um populista para quem esperteza é tudo o de que se necessita para governar um país e, do outro, um estulto que vive numa condição de permanente desnorteio. Volto a pedir desculpas por trafegar sobre o óbvio: falo, naturalmente, de um país que até o momento não descortinou uma saída para um desastre de muitos anos, na hipótese de o ringue de 2022 ser novamente ocupado por Bolsonaro e pelo PT (agora personificado por seu chefe, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva). Se Bolsonaro for derrotado no primeiro turno e o restante da classe política se unir para afastar Lula no segundo, pode ser que nos qualifiquemos para grandes investimentos a partir de 2023. Pode ser.

Bruxas talvez não existam, mas retrocessos eu lhes asseguro que são uma ocorrência frequente nos cantos do mundo. As causas variam de um país a outro, mas os resultados são sempre muito parecidos: queda quase sempre abrupta no nível de vida da população, anarquia política, conflitos se multiplicando, violência e ditaduras. Essa história será, aliás, abundantemente relatada nas próximas semanas. O cenário será a Venezuela, outrora um dos países mais ricos da América Latina. O enredo, a revolução “bolivariana” deflagrada por Hugo Chávez e ainda hoje personificada por Nicolás Maduro. Pois bem, a história que vamos ouvir é a de que a outrora pujante Venezuela fechará o ano com a renda per capita mais baixa do hemisfério, atrás até do Haiti, que todos julgávamos imbatível nesse quesito.

As causas do desastre venezuelano são bem conhecidas. A perda de rumo dos dois principais partidos abriu o caminho para a eleição (em 1998) de um militar destrambelhado. Daí em diante, presenciamos o habitual cortejo de anarquia e liquidação das instituições políticas, o suficiente para a ascensão de Nicolás Maduro e seus fidelíssimos generais.

A destruição dos partidos políticos é uma parte invariável em tais tragédias, mas em nossa história ela sempre se apresentou com traços singulares. É que, em nosso caso, cada golpe levou de roldão todo o sistema partidário existente, não um ou dois partidos, mas todos eles. Assim foi na passagem do Império para a República e da República democrática para o ciclo militar iniciado em 1964, para ficarmos só nesses dois casos. A singularidade do presente quatriênio é que agora, sob a ação combinada da polarização política com a desfaçatez da maior parte da classe política, atingimos um patamar de ridículo que não julgávamos possível. Estamos com mais de 30 partidos registrados, número que certamente continuará subindo, e o impulso para tal vem dos próprios parlamentares: daqueles que elegemos para conferir coerência às ações do Estado e para exercer por nós o direito de representação, que só a nós pertence.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,entre-duas-armadilhas,70003915369


Alvaro Costa e Silva: Bolsonaro sem fantasia nos braços do centrão

Alvaro Costa e Silva / Folha de S. Paulo

Da mesma maneira que a realidade tem superado a imaginação dos ficcionistas, os cartunistas recebem presentes todos os dias. O governo se transformou num cartum da Laerte ou do Jaguar: um sujeito bizarro plantado à beira da estrada, tal e qual uma laranja bichada, acenando para os motoristas que passam. Uma cena suficientemente ridícula, mas que logo avança até um segundo quadro não menos constrangedor.

Uma mulher, no banco de passageiro de um carro, xinga o sujeito parado na rodovia. Este é ninguém menos que o presidente da República, que determina a abordagem e a prisão da mulher. Na ocorrência consta que ela "gritou palavras de calão direcionadas a ele, mais especificamente berrou 'Bolsonaro filho da p...'". Fim do cartum e do país.

O episódio só ocorreu porque o presidente, para variar, não estava trabalhando. Tinha ido a Resende participar da formatura de cadetes da Aman. Ao despir a fantasia de super-herói antissistema, com a qual foi eleito, para cair nos braços do centrão, Bolsonaro ganhou mais tempo para não fazer nada. E ainda arranjou um jeito de não ser incomodado: entregou a chave do cofre.

Para justificar o orçamento secreto —que repassa recursos públicos sem transparência a um grupo privilegiado de parlamentares—, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, disse que as emendas de relator vão "salvar o Brasil". Faltou explicar a que Brasil ou a que brasileiros ele se refere.

O governo caricatural continua afundando a economia —o país registrou um crescimento próximo de zero em dois trimestres consecutivos— e avançando em seu plano autoritário. Usando até as forças da terceira via, Bolsonaro cumpriu a promessa de pôr no STF um ministro "terrivelmente evangélico". E recebeu um mimo de Arthur Lira, o presidente da Câmara: desencavar um projeto de 2016 contra ações terroristas que cria uma polícia política.

Se for xingar, tenha cuidado.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alvaro-costa-e-silva/2021/12/bolsonaro-sem-fantasia-nos-bracos-do-centrao.shtml


Cristina Serra: André Mendonça apequena o STF

Cristina Serra / Folha de S. Paulo

A aprovação do reverendo André Mendonça para o STF viola a laicidade do Estado e a corte constitucional. O simples fato de Bolsonaro ter usado a religião como critério de escolha deveria ter ensejado a rejeição do nome de seu ex-ministro. A separação entre igreja e Estado é esteio civilizatório. O Senado da República não poderia ter sido coautor da violação de tal princípio. Um perigoso limiar foi ultrapassado.

No Executivo, Mendonça ajudou o chefe a degradar a democracia, perseguindo críticos do governo, atacando esforços de governadores e prefeitos no combate à pandemia. Como AGU, fez inflamada defesa da abertura de templos e igrejas enquanto o vírus matava 4.000 brasileiros por dia.

Quando delinquentes atacaram o STF com fogos de artifício, um compassivo Mendonça pediu compreensão para a "manifestação". Para ele, Bolsonaro é um "profeta no combate à criminalidade". Não dá nem para ironizar, porque tudo é muito sério e grave.


Plenário do Senado aprova André Mendonça para o STF. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
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Plenário do Senado aprova André Mendonça para o STF. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Plenário do Senado aprova André Mendonça para o STF. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Plenário do Senado aprova André Mendonça para o STF. Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
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Nos últimos anos, foi o Supremo, mais do que o Congresso, que fez avançar a agenda da cidadania. A liberação de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, a permissão para o aborto de fetos anencéfalos e a constitucionalidade das cotas sociais e raciais nas universidades são alguns exemplos.

A pauta que o Supremo tem pela frente será decisiva para nos moldar como sociedade. Direito ao aborto, posse de armas, marco temporal para as terras indígenas, drogas para uso pessoal são temas à espera do discernimento e da decisão de suas excelências.

Perdas e danos no Executivo e no Legislativo podem ser corrigidos de quatro em quatro anos. No Judiciário, erosões democráticas têm efeito bem mais longevo. André Mendonça e Kassio Nunes Marques dão ao bolsonarismo o poder de desequilibrar o jogo a favor da agenda obscurantista. As consequências poderão alcançar gerações. O STF se apequena. O país retrocede. Perdemos todos.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/12/andre-mendonca-apequena-o-stf.shtml


Demétrio Magnoli: 'Censura do bem' chegou com força ao Brasil

Demétrio Magnoli / Folha de S. Paulo

José De Paula Ramos Jr., professor do curso de editoração da ECA-USP, dedica-se a (re)descobrir e oferecer ao público textos literários de qualidade que foram esquecidos pelo mercado editorial.

Na disciplina que ministra, orienta o trabalho dos alunos na edição dessas obras para publicação pela parceria Com-Arte/Edusp, na coleção Reserva Literária. Contudo, o romance que selecionou no semestre em curso não chegará às livrarias. Motivo: os alunos julgaram a obra culpada de crimes de preconceito.

"Romance Tropical", de 1944, foi escrito por Théo-Filho, autor que fez sucesso antes da Guerra Mundial mas, depois, saiu do radar das editoras.

Os alunos, do segundo ano de graduação, decidiram conservá-lo no exílio literário pois identificaram passagens "sexistas" e "machistas", além de outras pouco respeitosas com religiosidades afro-brasileiras e católica.

O romance será editado, como trabalho acadêmico, mas não publicado. Todos ficarão protegidos da palavra desviante.

O caso poderia ter ocorrido nos EUA, pátria da "censura do bem". A moda, porém, chegou com força ao Brasil, importada pelas políticas identitárias.

Inconformado, De Paula experimentou diversos argumentos. Vocês censurariam as obras libertinas do Marquês de Sade? Proibiriam "Lolita", de Nabokov? O que fariam com Monteiro Lobato? O cinto de castidade da moral deve cingir a literatura, a estética?

Finalmente, sugeriu salvar a publicação pela adição de notas editoriais inscrevendo as passagens heréticas no contexto das atitudes e preconceitos da época. Nada: os novos evangelistas não admitem conciliações. "Estamos diante da cultura a-histórica do cancelamento", concluiu De Paula.

O herói de "Romance Tropical" é um contrabandista de madeiras nobres e um invasor de terras —mas isso passou incólume pela censura dos alunos. A caneta vermelha tem, exclusivamente, alvos identitários.

Comporta-se, no fundo, como a dos fundamentalistas religiosos, invertendo apenas os sinais da virtude e do vício.

Censura é, antes de tudo, um julgamento sobre a inteligência dos outros. Ao vetar a obra, os jovens estudantes de editoração dizem que a sociedade não é constituída por cidadãos plenos, mas por idiotas incapazes de datar as ideias, distinguindo passado e presente.

A implicação é que a democracia não funciona: um poder intelectual superior –no caso, eles mesmos– deve traçar um círculo de giz em torno das ideias proibidas. Quantos milhares de livros os "censores do bem" terão que queimar numa fogueira purificadora até completar a tarefa da limpeza das almas?

Os alunos não são pioneiros. O "Index Librorum Prohibitorum" da Igreja Católica sedimentou-se após o Concílio de Trento, sob Pio 4º, em 1564.

Sua versão derradeira, de 1948, vetava a leitura de cerca de 4.000 obras, inclusive de Dante Alighieri, Kant, Locke, Maquiavel, Stuart Mill, Gibbon, Victor Hugo e John Milton.

O objetivo era evitar a corrupção da moral e a contaminação da fé. Os livros proibidos foram rotulados como heréticos, imorais ou libertinos. Os evangelistas da ECA operam com critérios similares, apenas adaptados à sua religião secular.

A literatura, como as demais artes, reflete a experiência humana, nas suas dores e delícias, nos seus caminhos retos e, principalmente, nos seus tortuosos desvios.

A busca pela purificação coletiva empreendida pela turma que censurou "Romance Tropical" é uma tácita declaração de guerra à cultura. Os jovens censores não se engajam na ampliação das estantes, pela produção de textos novos, mas na rarefação das bibliotecas, por meio do extermínio de textos antigos.

O Index da Igreja foi abolido em 1966, quando a Congregação para a Doutrina da Fé entregou à consciência dos fiéis a decisão sobre quais livros precisariam ser evitados. Os novos evangelistas não concordam, pois só confiam na própria consciência.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/12/censura-do-bem-chegou-com-forca-ao-brasil.shtml


Ascânio Seleme: O último cargo de Bolsonaro

Ascanio Seleme / O Globo

Terminou na quarta-feira com a aprovação de André Mendonça o poder inabalável do presidente Jair Bolsonaro sobre aspirantes a uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Seus aguerridos aliados Augusto Aras, procurador-geral da República, e João Otávio de Noronha, ministro do Superior Tribunal de Justiça, podem se julgar livres a partir de agora, a menos que acreditem em Papai Noel ou na reeleição de Bolsonaro. Vamos saber em breve se os dois homens eram mesmo leais e confiavam cegamente no presidente, a ponto de colocarem a mão no fogo por ele, ou apenas atendiam à sua própria ambição.

Nenhum cenário é bom para eles. Mas, suspender a blindagem de Bolsonaro e de seus filhos, tarefa que Aras e Noronha vêm cumprindo com excelentes resultados até aqui, pelo menos os dignificaria diante do Brasil e dos brasileiros. Ficaria provado que antes agiam de olho no cargo que acabou com aprovação de Mendonça, mas aos dois sempre restaria a desculpa de que é melhor corrigir o rumo do que seguir errando em direção ao precipício.

Por isso, de modo a manter o controle sobre potenciais aspirantes ao posto, para Bolsonaro seria melhor dispor do cargo do que efetivamente preenchê-lo. Talvez tenha sido esta a razão da displicência do presidente em defender no Congresso o seu indicado. Na verdade, Bolsonaro ganharia se Davi Alcolumbre mantivesse Mendonça em banho-maria por mais alguns meses. Se adiasse outras duas ou três semanas, a sabatina do indicado só iria ocorrer depois do recesso. Enquanto isso, os candidatos à vaga que ainda sonhavam com a desistência de Mendonça ou um recuo do presidente permaneceriam de mãos amarradas. E leais.

A verdade é esta e serve para todos os governantes, melhor ter o cargo disponível e disputado do que ocupado. Até porque, depois de sabatinados e aprovados, ministros do Supremo normalmente sentem-se à vontade para agir de acordo com as suas próprias convicções, mesmo que sejam opostas às do presidente que os indicaram. Da mesma forma que pode ter mentido na sabatina da CCJ para ser aprovado, Mendonça pode ter jurado em falso a tal lealdade permanente a Bolsonaro. De agora em diante, não haverá nada que o capitão possa fazer para impedir que o novo ministro siga no cargo até completar 75 anos.

À exceção de Nunes Marques, todos os demais ministros do STF são independentes dos presidentes que os nomearam e do seu grupo político. Mas, de acordo com quem acompanha as atividades do Supremo, até mesmo Nunes Marques mais cedo ou mais tarde vai surpreender. O exemplo mais clássico desta independência foi conhecido no julgamento do mensalão. O relator e todos os demais indicados por Lula e Dilma votaram em algum momento (quase todos) ao longo do processo contra o PT e seus aliados. A “traição” da criatura ao criador vai sempre ocorrer, é apenas uma questão de tempo.

Tempo, aliás, é o que não faltará a Marques e Mendonça. Ambos serão ministros até 2047, ou mais 26 anos. Terão sete mandatos presidenciais pela frente e conviverão com pelo menos quatro presidentes, se todos se reelegerem. É quase uma eternidade em política. Nenhuma fidelidade dura tanto. Mais fácil e provável que o pastor ministro permaneça fiel ao Evangelho do que à pauta reacionária de Bolsonaro. Neste caso, faz parte do jogo e as cartas já foram dadas. Como disse o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso sobre a aprovação de André Mendonça, “na democracia tem lugar para conservadores e progressistas, no STF também”.

Congresso forte

São poucos os parlamentos em regimes presidencialistas com o poder que detém o Congresso brasileiro. Governos podem funcionar bem sem apoio parlamentar, há inúmeros casos de convivência harmoniosa e produtiva entre executivos e legislativos antagonistas políticos. No Brasil, entretanto, nenhum presidente consegue governar sem negociar permanentemente com o Congresso. O melhor exemplo do poder parlamentar no Brasil são os dois impeachments produzidos por aqui e os outros dois abortados. Em pouco menos de 40 anos, o Congresso cassou os mandatos de Fernando Collor e Dilma Rousseff e poupou os de Michel Temer e Jair Bolsonaro. E, atenção, os incontáveis crimes de Bolsonaro são muito mais graves do que os de Collor e Dilma. Por isso também, todos os presidentes acabam se sentando, compondo e se desfigurando com o Centrão. No caso de Bolsonaro, este desfiguramento foi até positivo, tirando temporariamente o presidente do extremo.

Direita extrema

Nenhuma dúvida de que a extrema direita cresceu no Brasil. Quem acompanhou as manifestações de 2013 e as de repúdio a Dilma Rousseff, três anos depois, percebeu como eram minúsculos e insignificantes os grupos que pediam intervenção militar. Estavam sempre no fim da fila, no fundo do pacote, merecedores de pouca atenção e até de algum deboche. Com a subida de Bolsonaro, foram recebendo agregados a ponto de ameaçarem invadir o STF em algumas ocasiões, especialmente no 7 de Setembro. Mesmo assim, os verdadeiros fascistas, os ideológicos, são grupos menores que não ganhariam uma eleição majoritária. A multidão que os acompanha pode até ser de direita, mas não quer uma ditadura. É formada por ignorantes políticos que estão prontos para mudar de orientação, mesmo sem perceber, e seguir com um candidato de centro viável na eleição presidencial. Já a direita inteligente abandonou Bolsonaro e seus extremistas há muito tempo.

Moro e o Congresso

A maior dificuldade de Sergio Moro, se conseguir se eleger presidente, será conviver com o Congresso. E não por causa de deputados e senadores porventura ressabiados com a saga justiceira do ex-juiz da Lava-Jato, estes se adaptam a qualquer um. De Lula a Bolsonaro, não importa, os parlamentares brasileiros seguem seu curso. Se eleito, Moro terá de suportar a pressão, que não será pequena, do PT e da esquerda, e se entender com a gula cada vez maior da turma do Centrão. Pode até ser presidente, mas perderá a identidade. Não será mais Moro, muito menos justiceiro.

Leite derramado

O governador do Rio Grande do Sul não esperou sequer uma semana depois de derrotado na convenção do PSDB para iniciar o processo de fritura de João Doria, o rival vitorioso. Na primeira entrevista, concedida a Bianca Gomes e Sérgio Roxo, do GLOBO, Eduardo Leite disse que o seu partido precisa “ajudar o país a encontrar uma alternativa à polarização” entre Lula e Bolsonaro. Em outras palavras, sugeriu que Doria busque um candidato a presidente. Será que Leite produziria o mesmo raciocínio se fosse ele o vencedor da convenção? Em seguida, marcou almoço com Sergio Moro, embora tenha dito que não pretende ter protagonismo na campanha. Parece que Eduardo é leite derramado no PSDB.

Aras irritado

Quem viu disse que Augusto Aras ficou furioso com a aprovação de André Mendonça para a vaga no STF. Parecia uma noiva abandonada no altar, tamanha a surpresa que teve. Aras acreditou que Davi Alcolumbre tinha mesmo tudo sob controle. Faltou ao procurador um pouco mais de visão sobre a planície por onde transita muito bem Jair Bolsonaro, coisa que sobrava a antecessores da estatura de Aristides Junqueira.

Escola intimada

A intimação da escola municipal Getulio Vargas, em Resende, é um escândalo. Não pela denúncia absurda feita pela turma de Damares Alves, de que a escola estaria ministrando “conceitos comunistas” e “ideologia de gênero” aos seus alunos, mas por ter sido acatada pela polícia que intimou o seu diretor para prestar esclarecimentos. Segundo reportagem de Arthur Leal, a autoridade policial que ouviu o diretor da escola informou que “queixas como esta se multiplicam no país”. São denúncias sem substância, disse o diretor, que leu a queixa. Mesmo assim, a polícia intimou a escola. Lembra a história do cabo na ditadura.

Caso Henry

A editora Máquina de Livros lança na semana que vem o livro “Caso Henry - Morte anunciada”, da jornalista Paolla Serra. Trata-se de uma grande reportagem que expõe de maneira ainda mais clara a frieza dos assassinos condenados pela Justiça, o padrasto, Dr. Jairinho, e a mãe do menino, Monique Medeiros. O livro traz a única entrevista de Monique, concedida a Paolla dentro do Instituto Penal Ismael Pinheiro, onde ela está recolhida.

50 anos

No intervalo de 50 anos em que o Atlético Mineiro ficou sem ganhar um título nacional, o Brasil se livrou de uma ditadura, escreveu nova Constituição, teve um presidente morto antes de tomar posse e afastou outros dois do cargo.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/o-ultimo-cargo-de-bolsonaro-25305749


Oscar Vilhena Vieira: Marcha sobre o Supremo

Oscar Vilhena Vieira / Folha de S. Paulo

Ao longo de três décadas de democracia constitucional, do conturbado governo Collor à controvertida prisão do ex-presidente Lula, fomos nos condicionando à ideia de que decisões judiciais, ainda que contestáveis, são para ser cumpridas, especialmente quando proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Essa premissa básica do Estado democrático de direito, que designa que ninguém está acima da lei, começou a sofrer um perigoso processo de erosão em 2018, quando o então comandante do Exército sentiu-se à vontade para ameaçar o Supremo, caso concedesse um habeas corpus que permitiria ao ex-presidente Lula participar do pleito eleitoral.

A postura sistematicamente afrontosa do presidente Bolsonaro ao STF tem incentivado o desrespeito à jurisdição constitucional, não apenas por parte do "guarda da esquina", que se arvora a intimidar professores e jornalistas ou prender aqueles que se manifestam contra o presidente, mas também por instituições que deveriam ter clareza de suas obrigações em relação às regras do jogo democrático. Lembrando sempre que a sobrevivência da democracia está intimamente associada à lealdade dos atores políticos às instituições constitucionais.

Nas últimas semanas dois casos de afronta ao Supremo Tribunal Federal acenderam a luz vermelha. A chacina do Complexo do Salgueirocomo a de Jacarezinho que lhe antecedeu, demonstra que as forças policiais e as autoridades de segurança pública do estado do Rio de Janeiro vêm se negando reiterada e deliberadamente a cumprir decisão do Supremo, que estabeleceu uma série de condicionantes para a realização de operações policiais nas comunidades do estado, enquanto prevalecer a pandemia.

É fato que setores significativos das forças de segurança de alguns estados jamais se submeteram pacífica e ordeiramente às obrigações de assegurar os direitos à segurança e à vida da população, especialmente no que se refere aos jovens negros, que lhe foram impostas pela Constituição. A falta de cerimônia com que isso tem sido feito pela polícia do Rio, após a chamada ADPF das Favelas, aponta para uma estratégia mais ampla de afronta à autoridade do Supremo.

Esse processo de naturalização do descumprimento de decisões da Corte torna-se ainda mais preocupante quando decorre de uma ação do centro nevrálgico do sistema representativo, que é o Congresso Nacional. Embora conflitos entre parlamentos e tribunais sejam comuns em regimes democráticos, pois é da natureza do sistema de freios e contrapesos que os poderes entrem em choque, temos aqui uma situação mais grave.

Ao flertarem com a possibilidade de negar publicidade aos nomes daqueles parlamentares beneficiados pela chamada emenda do relator, os presidentes das duas casas do Congresso Nacional não apenas afrontaram explicitamente a autoridade do Supremo, mas também demonstram disposição para encobrir artifícios ilegítimos para fraudar a formação da vontade parlamentar. Se no presidencialismo de coalizão é natural que os membros da base de apoio ao governo tenham acesso a determinados cargos e recursos governamentais, o processo de cooptação não pode se dar de forma indevassável ao escrutínio público.

Embora não se possa eximir o Supremo por parcela da responsabilidade pelo declínio de sua autoridade, os recentes desacatos à jurisdição da Corte decorrem, sobretudo, dos seus acertos, consistindo, portanto, numa constante tentativa de amesquinhar nosso sistema de freios e contrapesos.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/12/marcha-sobre-o-supremo.shtml


Inflação corrói a renda dos brasileiros e é mais cruel com quem tem menos

Naiara Galarrafa Gortázar / El País

É quinta-feira no fim da manhã e uma feira de produtos frescos em uma rua de Santo Amaro, região de classe média baixa de São Paulo, está quase deserta por culpa de um fenômeno que o Brasil não vivia há um quarto de século: uma inflação que chega aos dois dígitos, sobe a cada mês e ainda não foi contida. O aumento dos preços que percorre o mundo após a chegada da pandemia é sentido em cheio por aqui. Afasta a clientela, obriga a fechar barracas e, em um efeito perverso, aumenta a desigualdade que corrói o país. A inflação atinge com mais dureza o estômago dos brasileiros pobres do que o bolso dos ricos. Uma cliente aqui e outra ali compram um pouco de fruta ou verdura enquanto uma terceira mulher recolhe discretamente o que encontra de aproveitável entre os produtos descartados pelos feirantes.

Dayane Ferreira, de 38 anos, era analista financeira até que a pandemia a deixou sem trabalho, então ela entende um pouco de preços e de inflação. Depois de terminar a compra, apoiada no carrinho da filha, estima que nesta feira os preços de muitos produtos subiram entre 30 e 40%. Sua receita para equilibrar as contas inclui os seguintes ingredientes. Um, comprar menos quantidade dos produtos cujos preços dispararam. “Antes pagávamos entre 9 e 10 reais por meio quilo de café, agora custa 17; o preço do tomate dobrou”, detalha. Dois, procurar todo tipo de oferta e ir onde estiverem. Três, “não desperdiçamos nada. Só compramos o que vamos comer”. Ela está procurando trabalho, até agora sem sucesso. Portanto, nem pensar em viajar ou em qualquer outro luxo que antes podia pagar.

Com aumentos mensais nos últimos 12 meses, o Brasil acumula uma inflação de 10,7%, menor do que a inflação da Venezuela ou da Argentina, mas altíssimo para um país que manteve os preços notavelmente estáveis nas últimas duas décadas — é o dobro da meta do Banco Central. Além disso, esse número médio esconde o impacto muito desigual entre os mais privilegiados, os menos favorecidos e todos os que estão entre eles. Para os mais pobres (que ganham menos de 1.800 reais), a alta dos preços é de 11,39%, como detalha Maria Andreia Lameira no último relatório de conjuntura do Ipea. Por outro lado, para os que ganham mais de 17.000 reais por mês, a inflação é dois pontos porcentuais a menos, 9,32%.

Para os mais pobres, os aumentos nas contas de luz, gás, aluguel, e os preços da batata, café ou açúcar os atinge como um míssil supersônico, levando à insegurança alimentar. Todos os dias 19 milhões de brasileiros acordam sem saber como conseguirão ou se conseguirão a próxima refeição.

Em contraste, os aumentos nos produtos essenciais afetam pouco os orçamentos dos ricos. Os aumentos que mais os prejudicam são os da gasolina, das passagens aéreas (agora que voltam a planejar férias, festas de Ano Novo ou até Carnaval) e do transporte do tipo Uber, conforme o relatório do Ipea.

Quem conheceu os tempos da hiperinflação não os esquece. Rosa Lopes Masomoto, de 77 anos, que trabalhou em um banco até se aposentar, é uma delas. “Foram terríveis, piores do que hoje. O poder aquisitivo era pequeno, tínhamos de chegar à feira correndo, antes que mudassem os preços. Era uma loucura, os aumentos eram galopantes”, recorda enquanto procura verduras frescas. As generosas pensões que os brasileiros mais favorecidos da elite recebem amorteceram para eles um golpe que impacta, como sempre, de maneira desproporcional os milhões que ganham a vida no mercado informal. São aquelas senhoras idosas que ficam nas esquinas para vender doces caseiros.


Foto: Lela Beltrão / El País
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Foto: Lela Beltrão / El País
Foto: Lela Beltrão / El País
Foto: Lela Beltrão / El País
Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Foto: Bruno Cecim/Agência Pará/Fotos Públicas
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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Ou os protagonistas de uma das cenas que mais horrorizou os cidadãos deste país orgulhoso de ter saído do mapa mundial da fome há alguns anos. As pessoas das filas de ossos, aquelas que aguardam em fila para receber os descartes do açougue para matar a fome.

Para milhões de famílias, como a da empresária Jéssica Batista, de 30 anos, a pandemia e a consequente queda de renda obrigou a mudar a dieta alimentar. Ela conta que em sua casa consomem “mais carne branca e menos carne vermelha”, já que a pandemia reduziu a renda familiar à metade. Mais frango e mais porco.

Arnaldo Silva, de 59 anos e 40 como açougueiro, afirma que nunca na vida tinha visto um quilo de contrafilé a 178 reais. É o produto que mais subiu. Parte dos clientes passou a comprar cortes mais baratos, outros desapareceram. No meio da manhã, seu açougue está vazio. Ele diz que as entregas em domicílio são o que os manteve a salvo.

A feira de Santo Amaro está entrando em um círculo perigoso, explica o fruteiro Rogério Fernández, de 53 anos. Sem clientela, as barracas de carne e de peixe fecharam como uma das barracas de fruta, outra de banana, outra de pastéis... “São onze horas e veja como está”, diz, apontando para o vazio deixado pelos outros feirantes. “E daqui a pouco todo mundo vai almoçar e ninguém mais virá aqui”. Seu medo é que, à medida que a oferta diminua, a clientela pare de comprar lá e leve os que ainda sobrevivem à ruína.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/economia/2021-12-02/a-inflacao-corroi-a-renda-dos-brasileiros-mas-ela-e-mais-cruel-com-quem-tem-menos.html