Day: abril 19, 2021

Criminosos provocam tsunami de crimes virtuais na pandemia com ransomware

Reportagem especial da revista mensal Política Democrática Online também explica o que é ransomware

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Enquanto segue como um tsunami que já matou quase 400 mil pessoas no Brasil, a pandemia da Covid-19 tem sido explorada como uma grande aliada para a prática de crimes virtuais, aproveitando-se da vulnerabilidade das pessoas em meio à crise sanitária global.

É o que mostra reportagem especial da revista mensal Política Democrática Online de abril (30ª edição), lançada no último sábado (17/4). A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania, e tem acesso totalmente gratuito no site da entidade.

Veja a versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021

No ano passado, de acordo com a reportagem, relatos de crimes virtuais mais que dobraram, em relação a 2019. A Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, uma parceria da ONG Safernet Brasil com o Ministério Público Federal (MPF), recebeu 156.692 denúncias anônimas de crimes cometidos pela internet, em 2020. No ano anterior, foram 75.428.

A Polícia Federal investiga centenas de golpes envolvendo o auxílio emergencial. Nessa modalidade, os criminosos usam aplicativos falsos para simular o app da Caixa Econômica Federal e capturam informações pessoais dos usuários.

“Após obter esses dados, o criminoso consegue a carta coringa, literalmente, pois consegue dar vários golpes no nome da vítima e pedir o próprio auxílio emergencial”, explica o delegado Warley Ribeiro, em entrevista.

Pesquisas fraudulentas e links falsos

De acordo com a reportagem da revista Política Democrática Online de abril, além de golpes de auxílio emergencial e pesquisas fraudulentas sobre o coronavírus, os criminosos enviam links falsos.

Os links falsos são de supostas cervejarias com oferta fictícia de bebida gratuita a quem adere ao isolamento social e de lives de shows clonadas para desviar doações. Tudo para furtar dados do celular da vítima.

Os crimes virtuais, especialmente os estelionatos, dispararam desde o início da pandemia de Covid-19. No início da crise sanitária no país, pesquisa da Apura Cybersecurity Intelligence, empresa especializada em ameaças digitais, identificou salto de 41.000% de sites suspeitos sobre coronavírus e Covid com domínio no Brasil. Passaram de 2.236, em março de 2020, para 920.866, dois meses depois.

Ransomware

Em fevereiro deste ano, ataques cibernéticos causaram a suspensão do funcionamento de empresas do setor elétrico como a Copel e a Eletronuclear e levantaram alerta para demais companhias. Os crimes foram ransomware, cada vez mais sofisticados e que se caracterizam pelo sequestro de dados de dispositivos e liberação só com o pagamento de “resgate”

Há ainda ataques por meio do envio de arquivos por email, muitas vezes clonados e capazes de driblar os antivírus. Mensagens em SMS com links falsos que apontam para sites falsos também são utilizados.

Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online

Orientação

O consenso entre os especialistas, conforme alerta a reportagem, é de que, apesar de serem praticados de diversas formas, os crimes cibernéticos podem diminuir caso as pessoas, como a empresária de Brasília, Tatiane Gusmão, de 48 anos, que respondeu a um breve questionário por meio de ligação recebida em seu celular no início deste mês e teve o Whatsapp clonado, adotem, principalmente, dois parâmetros essenciais: desconfiar, sempre; compartilhar dados sigilosos virtualmente ou por telefone, jamais.

A edição de abril da Revista Política Democrática Online também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, análises de política nacional, política externa, cultura, entre outras, além da reportagem especial.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

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'Modelo de desenvolvimento focado em terreno atrai corrupção'

Declaração é do superintendente do Sebrae no DF, que vai realizar palestra de abertura do Seminário Brasília Cidadania, no dia 19/4

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O superintendente do Sebrae no Distrito Federal, Valdir Oliveira, avalia que o DF precisa repensar, de forma urgente, seu modelo de desenvolvimento, focado, exclusivamente, em terreno.

Confira o vídeo!



“Quando se faz modelo de desenvolvimento calcado em terrenos, atrai-se especulação [imobiliária] e corrupção”, alerta. “Não se pode mais se basear, única e exclusivamente, no terreno, no imóvel, como ativo de negócio”, asseverou.

Valdir Oliveira: "O Distrito Federal repensar, de forma urgente, seu modelo de desenvolvimento, focado, exclusivamente, em terreno". Foto: Sebrae/DF

Oliveira, que também é ex-secretário de Desenvolvimento Econômico do Distrito Federal (2017 e 2018), vai discutir, na segunda-feira (19/4), esse assunto, em palestra de abertura do Seminário Brasília Cidadania.

O evento será realizado na modalidade on-line, pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), das 19h às 21h, em parceria com a Zonal do Plano Piloto do Cidadania (veja mais detalhes do evento ao final desta reportagem).

De acordo com o superintendente, o DF precisa romper o modelo de desenvolvimento focado em terrenos e seus subsídios para alcançar um modelo mais amplo.

Risco de imobilização

 “Os modelos de negócio estão cada vez mais mobilizados e se preocupam com [risco de] imobilização de seu capital”, explica o representante do Sebrae.

O ex-secretário observa a tendência de superação de modelos retrógrados, como os focados em terrenos. “O modelo de negócios do mundo mudou, com a ideia da inovação, do mundo digital, da tecnologia. Você pode estar no DF e trabalhar no Vale do Silício, e vice-versa”, salienta.

Marcelo Aguiar: "O DF tem problemas até mesmo maiores que os das principais capitais brasileiras". Foto: Divulgação.

Um dos organizadores do evento on-line da FAP, o ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal (2017) e arquiteto Marcelo Aguiar avalia o debate como “de extrema importância para quem mora no DF”. “Aqui, há pessoas que produzem, tem seus negócios, trabalham em atividades produtivas”, diz.

“A discussão parte do princípio de que o Distrito Federal não é a ilha da fantasia, ao contrário do que muita gente pensa. O DF tem problemas até mesmo maiores que os das principais capitais brasileiras”, pondera.

Aguiar acentua, ainda, que, no Distrito Federal, “moram pessoas que não vivem única e exclusivamente da política”. Ele também foi secretário de educação do DF por duas vezes ( em 2010 e de 2013 a 2014).

Tarefa mundial

Presidente do Instituto Brasileiro de Cidades Humanas, Inteligente, Criativas e Sustentáveis, André Gomyde também participará do evento da FAP e observa que o debate sobre desenvolvimento das cidades “é uma tarefa que vem sendo fortalecida ao redor do mundo”.

André Gomyde: "Fazer essa discussão do ponto de vista do Distrito Federal, que é uma cidade-estado, é muito importante". Foto: Divulgação

O assunto ganhou ainda mais relevância desde o Fórum Econômico de Davos, em 2018, ano em que o tema entrou na agenda das principais pautas do século 21. Por isso, de acordo com a organização, a FAP cumpre sua função ao debater mais um tema atual e de interesse público.

“Fazer essa discussão do ponto de vista do Distrito Federal, que é uma cidade-estado, é muito importante para que a gente encontre uma agenda de desenvolvimento que ajude o DF a se inserir mais rapidamente no contexto da nova agenda desta nova era”, ressalta o presidente.

Mediação

O debate terá mediação da subsecretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria da Mulher do DF, Irina Storni. “É um evento de extrema importância para que a gente discuta os problemas da cidade, principalmente nesse momento de pandemia”, acentua ela.

Irina Storni: "É um evento de extrema importância para que a gente discuta os problemas da cidade, principalmente nesse momento de pandemia”. Foto: Divulgação

Irina, que também é ex-coordenadora-geral de Cidadania e Exercício de Direitos da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres do Ministério dos Direitos Humanos, afirma que o país enfrenta grandes problemas de ordem econômica e tem um número muito grande de pessoas mortas por causa da Covid-19. “A gente também precisa falar disso”.

SERVIÇO

Seminário Brasília Cidadania
Palestra de abertura: O Desenvolvimento do DF
Data: 19/4/2021
Horário: das 19h às 21h

Palestrante: Valdir Oliveira, superintendente do Sebrae-DF e ex-secretário de Desenvolvimento Econômico do Distrito Federal (2017 e 2018);

Contraponto: André Gomyde, presidente do
Instituto Brasileiro de Cidades Humanas, Inteligente, Criativas e Sustentáveis.

Mediador: Irina Storni, subsecretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria da Mulher do DF e ex-coordenadora-geral de Cidadania e Exercício de Direitos da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres do Ministério dos Direitos Humanos.

Transmissão: portal e redes sociais da FAP (Youtube e Facebook)

Observação: os vídeos ficam disponíveis no acerto da entidade nas redes sociais e no portal.


Urna eletrônica e pessoas | Foto: reprodução/Agência Brasil

Luiz Carlos Azedo: A nobreza, o povo e a plebe

Temos o regime de votação mais moderno e eficiente do mundo, o voto direto, secreto e universal na urna eletrônica, ao lado de uma sociedade extremamente desigual

A palavra isogênese — no dicionário, igualdade ou semelhança de origem ou desenvolvimento — é a linha que separa a democracia moderna das antigas, que se baseavam na participação direta apenas de uma elite de proprietários, como na República de Platão. É o fundamento ideal do regime democrático, que se baseia na concepção enraizada no Ocidente de que a natureza humana faz os homens originalmente iguais, não importa a condição social. Para que essa compreensão se tornasse hegemônica, muito contribuiu o fundamento cristão de que todos os homens são irmãos, porque são filhos de Deus.

Essa ideia-força foi um dos pilares da Revolução Francesa (1789-1799), que secularizou a fraternidade e ancorou o jusnaturalismo, ou seja, a doutrina de que os indivíduos são pessoas dotadas de moral e direitos inalienáveis e invioláveis, que lhes pertencem por natureza. Assim, a ideia de soberania popular se contrapõe à soberania do príncipe. Para se ter uma ideia de como as coisas avançaram neste terreno, basta lembrar que Nicolau Maquiavel, nas Histórias florentinas, dizia: “Em Florença se distinguem os nobres entre si, os nobres e o povo, e por último o povo e a plebe.”

Um pouco de filosofia e teoria política não faz mal a ninguém: o povo é uma abstração conceitual, consagrada em nossa Constituição de 1988 como fonte de todo o poder — que emana do povo, para o povo e em seu nome é exercido. A sutileza do enunciado está no fato de que a democracia moderna não é direta, é representativa, e os indivíduos, com seus defeitos e interesses, são de carne e osso. Não por acaso o respeito aos direitos humanos está no centro da dinâmica de funcionamento e das disputas dos regimes representativos. No Brasil, em razão do grande número de eleitores e do caráter direto e universal do nosso sistema eleitoral, vivemos numa democracia de massas. Além disso, o Estado brasileiro é ampliado, em razão da separação entre os Poderes, do regime federativo, da existência de uma burocracia profissional e de agências autárquicas. Os governantes eleitos não fazem o que querem e bem entendem; precisam governar com base na Lei e no compartilhamento de responsabilidades. A “moral política” é subordinada à ética.

Alguém já disse que o passado é como um diamante, ninguém joga fora. O nosso nos garantiu instituições políticas seculares – como o Senado e o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, pilares do Estado nacional, da integridade territorial e da conciliação entre as elites —; de outro, uma ordem social iníqua, em que a herança da escravidão até hoje se faz presente. Temos o regime de votação mais moderno e eficiente do mundo, o voto direto, secreto e universal na urna eletrônica, ao lado de uma sociedade extremamente desigual, na qual as distâncias abissais entre os ricos, a classe média e os pobres somente não são as da antiga república florentina — entre a nobreza, o povo e plebe — porque as eleições igualam todo mundo na hora do voto.

Solidariedade
O que conseguimos de progresso e redução de diferenças sociais ao longo de nossa República se deve a isso. Durante o regime militar, o milagre econômico alavancou o poder aquisitivo de nossa classe média, mas houve muita concentração de renda e foi exatamente isso, com o achatamento dos salários, que provocou a entrada em cena dos operários e seus sindicatos na luta pela democracia. Entretanto, nossa democracia nunca esteve tão ameaçada, desde a eleição de Tancredo Neves, em 1985.

Isso ocorre em todo o mundo, em razão das mudanças de regras de comportamento nas sociedades secularizadas; da não-integração plena dos estratos sociais de mais baixa renda; e dos avanços tecnológicos. Mas aqui a situação é mais grave. O presidente Jair Bolsonaro sonha com uma “ditadura do Executivo”. Vive fazendo ameaças aos demais Poderes e energiza grupos radicais, alguns verdadeiras milícias políticas armadas, dispostos a defendê-lo a qualquer preço contra a oposição. O agravamento da crise social pela pandemia é um terreno fértil para a violência social e política, por causa do desespero das famílias que passam por necessidades, daí a importância da solidariedade com os menos favorecidos, os “invisíveis”, para mitigar suas dificuldades nessa crise sanitária, sobretudo a fome.

Obs: Publicada domingo, dia 18 de abril, no Correio Braziliense e no Estado de Minas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-nobreza-o-povo-e-a-plebe/

Ludmilla: 'A fama e o poder não me livraram de sofrer com o racismo'

Cantora diz que decisão da Justiça em favor de Val Marchiori, que comparou seu cabelo a Bombril, dá força a racistas

Isabella Menon e Lucas Brêda, Folha de S. Paulo

No show que fez no início deste mês no Big Brother Brasil, Ludmilla disse uma frase simples, mas com mais significados do que aparenta em um primeiro momento“Respeitem o nosso cabelo”.

Ela falava do processo de injúria racial que, em março, perdeu para Val Marchiori —em 2016, a socialite comparou o cabelo da cantora à palha de aço Bombril. Mas o posicionamento no reality show também serviu como apoio ao participante do programa João Luiz, que ouviu algo semelhante sobre seu black power.

Frequentadora das listas de músicas mais tocadas do streaming, Ludmilla aproveita o sucesso para se posicionar.

“Verdinha”, ode não explícita à maconha, foi cantada por 1 milhão de pessoas no Carnaval de 2020 e rendeu denúncias por apologia de crime. “Numanice”, seu disco de pagode, só foi lançado porque ela diz que, agora, tem total controle sobre sua carreira. Seu show de pagode já custa mais que o de funk —sendo que ele ainda nem pôde ser apresentado por causa da pandemia.

Comportamento que impacta também na política. Em 2018, ela foi criticada por não se posicionar nas eleições —mas ela promete declarar voto no próximo pleito.

Em que ponto você está em relação ao comando da sua carreira? 
Antigamente, queria focar na música. Só que a gente vai crescendo e vê que tem muito mais coisa que depende da gente. Só lancei meu pagode [“Numanice”] porque a última palavra é a minha. “Rainha da Favela” também.

Cantores têm sido presos por fazerem shows ilegais, como o Belo. Como tem visto essa questão?
A gente quer que tudo isso passe logo, mas nem todo mundo consegue ficar em casa. As pessoas precisam pagar as contas também.

Mas gostam muito de marginalizar o pagode e o funk. Prenderam o Belo e queriam prender outros funkeiros. Mas ninguém foi atrás de quem montou o evento ou dos patrocinadores. A gente sofre isso desde sempre.

Muitos profissionais da área de entretenimento alegam que precisariam de um auxílio do governo. A gente ainda tem como se manter, mas e nossa equipe? Os roadies, produtores, músicos, as famílias deles. Precisamos de aglomeração para trabalhar. E não dá para aglomerar de jeito nenhum. E tem a demora da vacina. Está na casa dos 60 [anos] ainda. Eu tenho 25. É desesperador.

Aparecem propostas para fazer shows hoje? 
Apareceram alguns convites para coisas menores. Só que não dá, né?

Disse que funkeiros ou pagodeiros são os alvos preferenciais. Isso remete a uma discussão sobre a criminalização do funkO DJ Rennan da Penha e o MC Poze do Rodo foram recentemente presos por associação para o tráfico, por tocarem em áreas comandadas pelo tráfico. Como viu esses casos? 
Acho extremamente preconceituoso. O preconceito ativamente trabalhando e ganhando.

O Rennan da Penha foi indiciado porque estava tocando em um lugar dominado pelo tráfico, só que é um lugar carente. Você pega um DJ de rave, de eletrônico, que toca num evento fechado e tem droga até o talo. Ninguém é preso, porque os playboys dão o dinheiro a quem tem que dar.

Agora, com os menos favorecidos, eles chegam já batendo. Não temos culpa do que fazem no evento. Estamos fazendo o nosso, trabalhando, levando o som. Acho muito errado jogar a culpa no artista.

Já teve algum problema desse tipo com a polícia? 

Fiz uma música chamada “Verdinha” e veio o Palácio do Planalto todo atrás de mim, dizendo que eu estava fazendo apologia do crime. Tem tanto artista de MPB ou pop que fala diretamente sobre isso.

Tem coisas que eles têm realmente que se preocupar, mas não se preocupam. Não vi nenhum deputado se coçar porque a vacina está atrasada e os hospitais estão lotados.

Você processou o deputado Cabo Junio Amaral (PSL - MG) após ele associar sua imagem ao tráfico por causa de ‘Verdinha’. O STF julgou que não houve calúnia nem difamação.

Não posso falar muito, mas olha a ironia. Ele me acusa de traficante, de associação ao tráfico, me faz perder contratos por conta dessa mentira. Entro contra ele, mostro provas do que esse deputado causou na minha vida, mas eles [STF] recusam.

Qual sua opinião em relação à legalização da maconha? 
É um assunto que tem que ser discutido. Discutir é analisar os prós e os contras, mas acho que tem muito mais benefícios do que coisas ruins. Vários países de primeiro mundo já legalizaram. Já vi muitos amigos serem parados em blitz com dois beques e a polícia já querer levar preso —ou, então, você tem que dar o dinheiro. E, na maioria das vezes, os pretos é que são presos.

No desfile pela Salgueiro no Carnaval de 2016, a socialite Val Marchiori disse que seu cabelo parecia Bombril. Ela foi condenada pela Justiça a pagar R$ 30 mil, mas entrou com um recurso e, em março, o juiz a absolveu e considerou o comentário como liberdade de expressão. Como foi receber essa decisão? 

Foi muito triste, ainda mais vindo de uma pessoa que deveria estar ali protegendo os brasileiros, preservando e conservando uma luta que vem de anos. E, talvez, fazendo uma reparação que é histórica, porque o racismo estrutural é histórico.

Pessoas perderam empregos e oportunidades porque outras acharam que o nosso cabelo, por ser crespo, é parecido com uma coisa suja, fedida, ruim. Isso não é uma brincadeira, não é liberdade de expressão. Acontecer isso comigo só deixa mais claro que o racismo existe. Porque a fama e o poder não me livraram do racismo. Imagina o que acontece com pessoas que não têm a visibilidade que eu tenho. A decisão do juiz causa dor, raiva e cansaço.

Logo depois, teve o caso do Big Brother, em que você fez um show e disse ‘respeita o nosso cabelo’. Acharam que isso foi uma interferência no reality. Não tenho nenhum pingo de consciência pesada. Claro que só o João Luiz e a Camilla de Lucas se sentiriam representados, porque eles passaram por isso. Do resto, ninguém entendeu nada.

Estava falando da Val Marchiori. O racista não quer entender a dor do outro. Ele tenta reverter para ele, em vez de parar e escutar a nossa dor.

Eu me tornei isso aqui por conta dessas pessoas. Eu era a MC Beyoncé lá trás. Tem alguma propaganda com a MC Beyoncé? Não tem! Porque eu não era padrão. Não era aceita. Nenhuma marca queria ser representada pela MC Beyoncé. Por isso, tive que me mutilar, afinar meu nariz, porque queria ser aceita.

O funk, o pagode, a essência já estavam aqui, mas a capa não agradava. Quero que as pessoas não tenham que alisar o cabelo para agradar ninguém. Essa é a luta.

Em ‘Rainha da Favela’, várias mulheres foram reunidas, como Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda, MC Carol, negras que criaram uma tradição de falar abertamente sobre sexo na música, no funk. Qual influência que elas tiveram na sua carreira? 

Cresci ouvindo essas mulheres. Achava o máximo elas falarem “eu quero sexo, quero fazer isso, gosto disso, boto ali, boto aqui”. Então, elas foram minhas inspirações. Quis homenagear mesmo as mulheres empoderadas, da comunidade, da favela. Homenagear as que não são também, mas que reconheceram o seu lugar no mundo.

Em 2018, foram várias as cobranças para se posicionar politicamente, mas você não falou sobre seu voto. Hoje faria diferente? O que acha deste governo? 

Só gosto de falar de assuntos que eu sei. Queriam que eu me posicionasse, mas eu não estava pronta.

Foi ruim e foi bom termos esse governo, porque ele abriu os olhos de muita gente. Vivemos numa democracia, a galera tem que fazer o que tem vontade. Só que chegou num ponto em que é muito importante conversar sobre o assunto. Olha o que aconteceu.

Somos um dos últimos países a receber a vacina. Estamos parados. Então serviu para eu me interessar sobre o assunto. Não quero mais estar nessa de “não sei”. A gente não pode mais ficar nisso. Tem que ir para cima. O governo atual é péssimo. Estamos numa situação muito precária.

Espero conseguir sobreviver a isso e que sirva de lição, para a gente não dar mais nosso voto de bobeira, porque ele é o nosso futuro. Agora, eu estou aqui inteirada para, nas próximas eleições, falar sobre isso nas minhas redes sociais.



Ludmilla, 25

Cantora de funk, pop e pagode. Segunda mulher mais ouvida do Spotify no Brasil, foi a primeira negra a ganhar o Prêmio Multishow de melhor cantora, em 2019. Foi jurada do programa The Voice + e teve o bloco que reuniu mais público do Carnaval de 2020, com 1 milhão de pessoas


Basília Rodrigues: Se fosse loira e de olhos azuis, você não estaria enchendo o saco dela

Enegreci a TV: agora sou rosto, cabelo, corpo e, principalmente, cor

Basília Rodrigues, Analista de política da CNN Brasil

imagem de uma mulher preta que analisa política é inusitada, tanto quanto rara, ainda mais quando coroada por seu black power. Por 12 anos cobri política pelo rádio, mas, em uma daquelas mudanças que dividem a vida entre o antes e o depois, decidi fazer televisão. Tudo isso ainda sem saber que faltavam poucos dias para o início do pior momento das nossas vidas: uma pandemia.

Do contato diário pela voz com a notícia, agora sou um rosto, um cabelo, um corpo e, principalmente, uma cor. Enegreci a TV, e a editoria é de política —e não aquela em que negra é a cor padrão da tragédia brasileira.

Agora, prazer, na condição de espectador da notícia, pergunto-lhe: você é racista? Muito provavelmente, após uma rápida reflexão, responderá que não. Obrigada. Não somente eu, mas a sociedade de mais de 200 milhões de pessoas negras e brancas agradece.

Há 132 anos fechamos um capítulo da história em que negros eram vistos como objetos, e tudo o que os define era feio e inadequado em todos os horários da programação. Porém, essa pergunta não estará no cadastro da vaga de emprego que pleiteia, ou na seleção de vestibular, nem na agremiação do seu clube predileto. Ainda mais porque se houvesse um critério tão fácil de seleção sobre quem é racista e quem não é optaríamos, provavelmente, por não nos relacionar com um racista.

A resposta é mais difícil que a pergunta, neste caso. Altamente impossível de ser aferida totalmente certa ou errada; digo isso em ambientes comuns, em que se presume o mínimo de trato social.

Eis a dura realidade, porque esta nunca falha: não sabemos onde os racistas estão, mas estão em todos os lugares. Sendo assim, não é descartável dizer que pessoas certificadas como não racistas também podem reproduzir ações racistas.

Lá vem a sutileza do racismo, que de leve não tem nada. Ele distancia, afunda e invalida oportunidades, ao mesmo tempo em que é capaz de não ser visto. Um vírus sem vacina, apesar dos inúmeros casos.

Ninguém vê, mas olha ele ali contribuindo com mortes, desemprego, pobreza e deterioração do ambiente de trabalho.

Recentemente, o site Alma Preta divulgou que recebeu relatos de funcionários que seriam da CNN Brasil sobre um sentimento muito ruim. O assunto é tratado como prioridade pela empresa, que manifestou apoio e apura a situação. Não há materialidade nem culpados, mas vítimas. Ninguém vê, mas olha ele ali pesando o clima, criando situações ruins e incomodando quem o sente.

Uma hora todo balde cheio transborda. Você pode até fingir que não viu ou pensar que, enquanto existir a cultura do “se fosse loira e de olhos azuis, você não estaria enchendo o saco dela”, sempre haverá dúvidas derramando sobre o ambiente. Essa frase teria sido dita ao sinal de que algo “racista” poderia estar em curso: a redução do espaço de uma negra em sua tela de trabalho.

Não seja racista. Mas também não pareça racista, nem deixe margem do que pode ser apenas uma impressão. Observe-se. Já que não vê o que chamam de racismo, olhe para si. Ficar somente olhando o mal-estar acontecer pode sensivelmente colocar as pessoas em situações constrangedoras. E o mundo, este mesmo doente com uma pandemia, não é mais dos passivos.


El País: É o fim das cidades?

Longe de tornar as urbes algo obsoleto, como alguns previram inicialmente, a pandemia abriu um vasto potencial para seu renascimento. As recompensas são enormes, mas também os riscos

Carlo Ratti Richard, El País

A Rue de Rivoli, um bulevar que atravessa o coração de Paris, foi aberta aos trancos e barrancos. Napoleão Bonaparte começou a construção em 1802, depois de anos de planejamento e debate, mas os trabalhos ficaram em ponto-morto quando o imperador abdicou em 1814. O bulevar permaneceu no limbo até que outro homem forte militar, Napoleão III, concluiu o projeto na década de 1850. A construção voltou no século seguinte, desta vez para adequá-la aos automóveis, mas na primavera passada a Rue de Rivoli passou por sua mais rápida transformação até hoje.PUBLICIDADE

Com o tráfego em Paris reduzido pelo confinamento devido à covid-19, a prefeita Anne Hidalgo decidiu no dia 30 de abril fechar a rua ―de quase três quilômetros de extensão― aos carros para criar mais espaço para pedestres e ciclistas. Os trabalhadores repintaram o asfalto e transformaram uma das principais artérias do centro de Paris, que abriga o famoso museu do Louvre, praticamente da noite para o dia.

E não foi só a Rue de Rivoli: apenas com tinta e placas para aparafusar, quase 150 quilômetros de ruas parisienses foram temporariamente realocadas para ciclistas nos primeiros meses da pandemia ―uma revolução na reprogramação urbana. Posteriormente, foi anunciado que as mudanças seriam permanentes.

O exemplo parisiense destaca o grau em que a pandemia acelerou o ritmo da inovação urbana, comprimindo em meses, ou mesmo em semanas, o que teria levado anos. Para além de tornar visíveis as carências dos sistemas urbanos pré-pandêmicos ―como os elevados níveis de poluição―, permitiu que os líderes das cidades evitassem pesadas burocracias e respondessem com muito mais eficiência às necessidades das pessoas e das empresas.

Essas necessidades estão se alterando rapidamente. Uma das mudanças mais discutidas diz respeito à separação entre casa e trabalho: nas primeiras épocas da urbanização, as pessoas caminhavam até o trabalho, depois passaram a usar o transporte público. Foi somente depois da Segunda Guerra Mundial, com o auge da criação de subúrbios, que começaram a dirigir de suas casas até gigantescos complexos industriais e torres de escritórios.

Durante a pandemia, o trabalho remoto tornou-se norma em muitos setores e muitas empresas pensam continuar assim, pelo menos em grande medida. Essa reintegração do trabalho e da casa ameaça um dos últimos vestígios remanescentes da era industrial: os distritos centrais de negócios, que agrupam e comprimem os trabalhadores de escritório em arranha-céus.

Agora que é improvável que muitos trabalhadores voltem para seus cubículos, depois da pandemia as velhas torres de escritórios podem ser transformadas em moradias acessíveis muito necessárias. Os distritos comerciais unidimensionais poderiam se tornar bairros vibrantes.

As atividades não relacionadas com o trabalho também se transformaram: a gastronomia, o entretenimento e as atividades esportivas acontecem cada vez mais ao ar livre e ocupando espaços antes destinados aos automóveis. Assim como aconteceu com as ciclovias em Paris, a pandemia está criando protótipos de cidades que respondem a um modelo permanente pós-automóvel e centrado nas pessoas. De fato, as mudanças em Paris fazem parte de um plano mais amplo para criar uma “cidade de 15 minutos” (ville du quart d’heure), onde as atividades diárias centrais ―como o trabalho, o estudo e as compras― podem ser realizadas com uma curta caminhada ou de bicicleta desde a residência.

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Então, longe de tornar as cidades obsoletas, como alguns previram inicialmente, a pandemia liberou um potencial cada vez maior de renascimento ―a famosa “destruição criativa”, segundo o economista Joseph Schumpeter― em escala urbana. A crise não deu muita escolha aos governos, que tiveram de adotar uma abordagem acelerada de tentativa e erro. As extraordinárias inovações em matéria de espaços para pedestres, moradias acessíveis e zoneamento dinâmico que surgiram destacam o poder dos sistemas de retroalimentação positiva.

De qualquer forma, a abordagem shumpeteriana é fundamentalmente experimental e até as experiências mais bem desenhadas às vezes fracassam. Por outro lado, os custos de seus fracassos não são distribuídos de maneira equitativa: as pessoas menos influentes são as que mais tendem a sofrer. A pandemia de covid-19, por exemplo, afetou desproporcionalmente os pobres e os mais vulneráveis.

Nesta nova era de inovação urbana, os líderes devem se esforçar muito para minimizar os riscos para os grupos desfavorecidos e vulneráveis, e redistribuir as vantagens para eles. Isso implica, em primeiro lugar, ouvi-los. O movimento norte-americano Black Lives Matter é um poderoso exemplo de um grupo de pessoas desfavorecidas que exige ser ouvido. Em todos os lugares os líderes devem prestar atenção nas divisões raciais e de classe e tratar delas de maneira direta. O desenho urbano é um aspecto central em qualquer estratégia desse tipo.

Para apoiar esse processo ―e ajudar a manter a flexibilidade e a velocidade da inovação urbana depois da pandemia― os líderes devem considerar a criação de plataformas digitais participativas para permitir que os residentes comuniquem suas necessidades. Isso poderia fomentar políticas que melhorem a qualidade de vida nas cidades ―especialmente nos bairros desfavorecidos―, entre outras coisas, limitando tendências problemáticas como o aumento da poluição e a gentrificação. Somente com uma abordagem ágil e inclusiva poderemos aproveitar esse tipo de oportunidades tão pouco frequentes –ou, na verdade, fazer frente a essa obrigação urgente ―para “reconstruir melhor”.

Hoje, um passeio pela Rue de Rivoli de forma alguma revela a desolação e o tédio que muitas vezes esperamos nas ruas urbanas durante a pandemia. Pelo contrário, o bulevar oferece a agitação dos parisienses que passam como bólidos, com suas máscaras, de bicicleta, skate, bicicleta elétrica e patins, ou fazem uma pausa para tomar um café nas cafeterias e restaurantes. Reviveu uma rua atingida pela pandemia. Com planejamento cuidadoso, experimentação ousada e sorte, essas transformações podem ser apenas o ponto de partida para as cidades em todos os lugares.

Carlo Ratti é cofundador do Escritório Internacional de Design e Inovação Carlo Ratti Associati e diretor do Senseable City Lab do MIT. Richard Florida é professor da Escola de Cidades e da Escola Rotman de Administração da Universidade de Toronto.

Copyright: Project Syndicate, 2021.


El País: Raúl Castro, uma revolução diferente da comandada por Fidel

Consciente de que o carisma do irmão e sua forma de exercer o poder eram inimitáveis, ele promoveu uma forma de governar colegiada

Mauricio Vicent, El País

Quando em 31 de julho de 2006 Fidel Castro delegou provisoriamente a presidência a seu irmão Raúl, por causa de uma doença grave, os cubanos não podiam entrar nos hotéis de seu país nem alugar uma linha de celular, vender ou comprar casas, nem adquirir computadores nas lojas do Estado, nem viajar para o exterior sem pedir permissão das autoridades. Em Cuba só era possível acessar a internet no local de trabalho, e não havia nenhuma lei ou norma que impedisse Fidel de continuar a ser chefe de Estado e do Partido Comunista por muitos anos mais, embora estivesse dirigindo a ilha desde 1959.

Na época, George W. Bush era quem mandava na Casa Branca e as relações cubano-americanas viviam momentos de grande tensão. Os Estados Unidos eram o inimigo imperialista e ninguém teria dito então que Washington e Havana poderiam restabelecer relações se o bloqueio dos Estados Unidos não fosse levantado primeiro.PUBLICIDADE

A primeira missão de Raúl Castro ao substituir o irmão foi garantir uma sucessão ordeira e sem traumas e, mais ainda, demonstrar que a revolução poderia sobreviver sem Fidel no comando. Em 2006, muitas chancelarias estrangeiras acreditavam que o fidelismo sem Fidel era impossível, e até faziam apostas sobre quanto tempo levaria para a ilha se tornar um país “normal”. Mas Fidel morreu dez anos depois sem nunca ter voltado à frente da política em razão de seu delicado estado de saúde, e nada aconteceu.

Raúl, o eterno número dois e ministro das Forças Armadas por quase meio século, foi formalmente nomeado presidente em 2008 e, três anos depois, eleito primeiro secretário do Partido Comunista. Ciente de que o carisma do irmão e sua forma de exercer o poder eram inimitáveis, desde que chegou ao Palácio da Revolução Raúl designou o Partido Comunista como “o único herdeiro digno de Fidel” e promoveu uma forma colegiada de governar, acabando com o personalismo e reforçando a institucionalidade.

De início Raúl Castro dedicou tempo considerável a fazer com que os Conselhos de Estado e de Ministros recuperassem o protagonismo perdido, já que na época de Fidel muitas decisões importantes eram tomadas no gabinete do líder com um pequeno grupo de colaboradores. Simultaneamente a esse esforço de institucionalização, Raúl Castro empreendeu uma ofensiva singular para acabar com o que chamou de “proibições absurdas” e “gratuidades indevidas”.

Os cubanos finalmente puderam se hospedar nos mesmos hotéis que os turistas estrangeiros, ter celular, vender suas casas e carros. Pouco a pouco o uso da internet foi sendo ampliado e o Governo eliminou o humilhante ‘cartão branco’, a autorização de saída, obrigatório para qualquer cubano que viajasse. Discretamente, o novo presidente cubano também começou a desmontar todos os andaimes de subsídios, folhas de pagamento infladas e ajuda econômica a empresas não rentáveis que durante décadas sustentaram o sonho de Fidel de uma sociedade igualitária e, assim, numa bela manhã saiu a notícia de que no setor estatal havia um milhão de postos de trabalho a mais do que o necessário.PUBLICIDADE

Raúl optou pelo desenvolvimento do setor privado como forma de ajudar o país a sair da crise e reabsorver toda a força de trabalho excedente, depois de ter experimentado com sucesso o chamado “sistema de autogestão empresarial” nas corporações e indústrias das Forças Armadas, fórmula que dava maiores incentivos aos trabalhadores e mais autonomia à direção das empresas, visando maior eficiência econômica.

Ao contrário de Fidel, que durante a crise dos anos 1990 autorizou o trabalho autônomo, mas sempre o considerou um “mal necessário” e o asfixiou quanto pôde, Raúl deu estímulos com mais ousadia —em 2008 havia cerca de 150.000 autônomos em Cuba, hoje são mais de 600.000, ou seja, 13% da força de trabalho. Há quase uma década está sobre a mesa a constituição de pequenas e médias empresas e cooperativas não agrícolas, mas essa medida reformista de longo alcance, que tem sido defendida em inúmeras ocasiões por economistas para reativar o sistema produtivo, ainda não se concretizou. É uma das muitas tarefas pendentes que deixa aos seus herdeiros políticos na esfera econômica, onde a ilha enfrenta os desafios mais prementes no futuro imediato.

Em seus dez anos à frente do Governo (2008-2018), nada mudou substancialmente no campo político. Cuba continuou a ser um país de partido único, com um sistema estatal e planejamento central, mas as coisas mudaram no econômico, embora muito lentamente. Em mais de uma ocasião, Raúl Castro clamou contra a “velha mentalidade” instalada na parte mais obscura do partido e da burocracia do Estado, pedindo que não continuassem a impor empecilhos à roda das mudanças e que “as forças produtivas fossem destravadas”.

Ou não pôde ou não conseguiu, mas a verdade é que Raúl deixou aberto o caminho da reforma econômica, que é crucial para a sobrevivência da revolução cubana e um dos principais temas do VIII Congresso. Resta saber até onde seus sucessores estão dispostos a ir.

Outro momento importante de sua presidência foi a negociação da normalização das relações entre Cuba e os Estados Unidos. Em 2016, Raúl Castro recebeu uma visita à ilha que parecia impossível, a de Barack Obama —que, veladamente, foi depois criticado por Fidel em um comentário à imprensa. Mas logo em seguida Donald Trump chegou à Casa Branca e a reaproximação voou pelos ares. Antes de partir, também teve a iniciativa de estabelecer o limite máximo de dois mandatos de cinco anos para os altos cargos, o que, no seu caso, agora se cumpre. Se não houver surpresas, durante o VIII Congresso do PCC, que se realiza nestes dias em Havana, Raúl entregará a direção do Partido Comunista ao atual presidente do país, Miguel Díaz-Canel, que ele elevou a essa posição em 2018. É sua aposta pessoal para que a revolução sobreviva e continue sem o sobrenome Castro, sem dúvida o maior de todos os desafios.


Juan Arias: Por que Lula prefere que Bolsonaro chegue politicamente vivo às eleições?

Para entender esta estranha postura do petista, é preciso levar em conta que se trata de um estrategista que sabe observar a situação política em longo prazo

Muita gente acha estranho que Lula veja com desagrado a abertura da CPI da covid-19, que poderia acabar com uma condenação de Bolsonaro, e a abertura de um processo de impeachment presidencial no Congresso.

Lula não diz isso abertamente, mas é o que dá a entender através de seus assessores mais íntimos. Jacques Wagner, por exemplo, um dos caciques do PT a quem Lula mais escuta, causou surpresa ao se manifestar no Senado contra a abertura da CPI da Covid. Da mesma forma, Lula não demonstra nenhum interesse em que o Congresso abra um processo que possa resultar na destituição do capitão.

Para entender esta estranha postura de Lula, é preciso levar em conta que se trata de um estrategista que sabe observar a situação política em longo prazo. Nisso poucos ganham.

Assim, de olho na candidatura presidencial em 2022, ele considera, conforme confidenciou a alguns amigos que mais o frequentam, que definitivamente o melhor adversário para um duelo político tão crucial para ele seria Bolsonaro, mais do que qualquer outro.

Por isso prefere que o presidente não caia antes das eleições. Lula sabe que sua maior vitória, inclusive em nível internacional, seria destronar o genocida que arrastou o Brasil para o inferno. Para Lula, ganhar de qualquer outro candidato não teria a mesma força simbólica que derrotar o psicopata que está transformando o país um cemitério com seu negacionismo e com seu hábito de inclusive zombar da pandemia.

Lula sabe que, se Bolsonaro for impedido de disputar as eleições, a única alternativa à disposição do bolsonarismo seria seu vice, o general Hamilton Mourão, um militar duro, mas que tem um maior gabarito intelectual e uma maior capacidade de diálogo político.

Lula sabe que muitos direitistas que não votariam mais em Bolsonaro poderiam fechar com seu vice. Isso incluiria muita gente no mercado e no mundo das finanças que está desiludida com Bolsonaro e, embora em condições normais nunca votasse na esquerda, poderia optar por Lula se ele tiver um vice oriundo do mundo que domina a economia, como foi o caso do empresário José Alencar em seus mandatos anteriores (2003-2011).

Ao mesmo tempo, até os militares hoje em dia estão no mínimo perplexos com o capitão, que acabou desprestigiando a instituição com suas loucuras e seu afã de apresentar as forças armadas como “seu Exército”. Com Mourão, os militares poderiam ter um candidato mais confiável.

Lula sabe disso e por esse motivo prefere enfrentar Bolsonaro, que certamente, se não cair antes disso, chegará muito debilitado às eleições. Quanto aos militares, Lula já está tateando para abrir um diálogo com os quartéis. Pensou inclusive na hipótese de escolher um militar como vice.

Para Lula, seria paradoxalmente mais fácil derrotar Bolsonaro do que um candidato conservador que tivesse o apoio das elites econômicas, que começam a abandonar o presidente, mas ao mesmo tempo estão contra a bipolaridade entre esquerda e direita.

Para muitos, continua valendo o lema “nem Lula nem Bolsonaro”, mas, tendo que escolher entre um deles, afinal poderiam acabar apostando em um Lula que se apresente mais como centrista do que como representante da velha esquerda. Foi o que confirmou pessoalmente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao admitir que, se tivesse hoje que decidir entre Bolsonaro e Lula, votaria no petista, seu histórico adversário.

Na situação do ex-presidente FHC estão muitos que também hoje prefeririam votar em Lula a não no capitão, cada dia mais desprestigiado. Lula sabe que, hoje, quem desperta maior rejeição da direita democrática é Bolsonaro. Por isso seu instinto o leva a preferir desafiar o capitão ferido politicamente a qualquer outro candidato.

Para Lula na verdade seria melhor duelar com um Bolsonaro desmoralizado dentro e fora do país do que com um candidato do centro, que poderia ser o preferido daqueles que hoje rejeitam tanto as cavernas direitistas do bolsonarismo-raiz como a velha e desgastada esquerda. Por isso Lula já está flertando com o centro e até com a direita com a qual já governou.

Lula tem um olfato político que acaba desorientando até seus colaboradores mais próximos. 2022 já está às portas, e poderemos ver se ele tem ou razão em querer que Bolsonaro chegue ferido às eleições, mas politicamente vivo.


Marcelo Godoy: Brigadeiro chama de traidor general que se opõe a Bolsonaro

Clube Militar publica artigos que declaram guerra aos críticos do governo; Jobim é tratado como comunista e Sarney como esquerdista

As fragilidades do governo de Jair Bolsonaro e a perda de apoio que se consolida à medida que aumentam as mortes evitáveis da pandemia levaram o Clube Militar a atacar em sua revista pela primeira vez os militares que criticam o presidente, cuja reeleição cada vez se vê mais ameaçada. Caminha-se no Planalto ainda entre uma provável ida ao segundo turno e uma improvável vitória diante do antibolsonarismo majoritário que se forma no País, enquanto as forças de centro tentam se unir e ultrapassá-lo. E teme-se a CPI da Covid, que vai atrás dos generais do governo.

Com sua sede no centro do Rio, o Clube Militar se radicalizou, expondo-se como baluarte do bolsonarismo e das ações do partido militar, aquele que se pensava morto com o início da Nova República e com as reformas de Castelo Branco na estrutura das Forças Armadas. A entidade é presidida pelo general Eduardo José Barbosa, que acredita viver em um país majoritariamente saudosista da ditadura militar, uma nação que começaria na Avenida Brasil e terminaria na Avenida Rio Branco.

Com o título O Brasil Vencerá, a revista do Clube abre a sua edição com a Ordem do Dia do Ministro da Defesa, Walter Braga Netto,  para "saudar" o golpe de 31 de Março de 1964. A publicação lista os inimigos do bolsonarismo: ali estão a imprensa, as universidades e políticos de oposição, todos tratados – como sempre e indistintamente – como vermelhos. Vermelho é tudo o que limita os desejos liberticidas dos que sofrem de incontrolável medo hobbesiano? Fazer do triunfo despótico da vontade um objetivo indisfarçável não seria uma traição à República e à busca do bem comum? 

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é chamado na revista do Clube de "criptocomunista" e o ex-presidente José Sarney é qualificado como "enrustido esquerdista, líder da ala esquerda da União Democrática Nacional (UDN)". Está no texto Os Sovietes Brasileiros, do coronel Jorge Baptista Ribeiro, que termina a peça afirmando que Bolsonaro “foi obstado em seus propósitos” pela “ditadura das togas vermelhas”. 

Na Itália dos anos 1990, o direitista Silvio Berlusconi costumava chamar os magistrados da Operação Mãos Limpas de toghe rosse, togas vermelhas. No Brasil dos anos 2000, depois de o procurador-geral da República nomeado por Bolsonaro acabar com a Operação Lava Jato, os acólitos do presidente passaram a atacar os juízes – os mesmos que devem analisar o caso de Flávio Bolsonaro, o senador que comprou uma casa de R$ 6 milhões em Brasília – de idêntica maneira à dos aliados de Berlusconi. 

O coronel nos remete ainda mais ao passado ao citar Sarney e a UDN. Principal líder udenista, Carlos Lacerda manchetou uma vez em seu jornal, A Tribuna da Imprensa: “Somos um povo honrado, governado por ladrões”. Era 2 de agosto de 1954. Coronéis como o autor do artigo publicado pelo Clube Militar  subscreviam manifestos e liam provocações públicas aos chefes militares de então. Vivia-se um permanente alvoroço. A Força Terrestre se dividia em grupos, imperavam os peixes e os políticos na caserna.

Era nessa época que os relatórios reservados costumavam apontar criptocomunistas, inocentes úteis e abertamente comunistas como forma de deslegitimar quem se opunha aos desejos de radicais – como o almirante Pena Botto – que buscavam impor seus propósitos ao País. Lacerda, que planejou e apoiou a deposição de João Goulart em 1964, acabaria cassado em 1968 e preso. Ele disse: "A Revolução de 1964 destruiu-se a si mesma, na medida em que seus aproveitadores consolidaram o domínio das oligarquias". No passado, eram as oligarquias; no presente, o Centrão. No país sonhado pelo coronel, Lacerda seria cassado novamente. Quanto aos corruptos, estes sempre vicejam, desde que apoiem o Idi Amin Dada de plantão.

Em outro artigo da revista, o major-brigadeiro Jaime Rodrigues Sanchez chama de traidor “um oficial general” que, segundo ele, age como os “brigadistas incendiários” de Santarém – reparem que o oficial toma como verídicas as acusações do controverso inquérito do Pará. Diz que, se tudo o que mídia publica a respeito do tal oficial for verdade, "o general que protagonizasse essa traição não seria digno do que aprendeu na Academia, muito menos das estrelas que ostenta no ombro". O brigadeiro não teve a coragem de nomear o general em seu artigo, mas dez entre dez de seus colegas apostam que ele se referia a Carlos Alberto dos Santos Cruz. 

Sanchez continua sua argumentação, afirmando que "ordem absurda não se cumpre", mas afirma que não se deve "desmoralizar o comandante diante da tropa (Jair Bolsonaro), especialmente se provocado pelos inimigos, que todos sabemos bem quais são". Em 23 de outubro de 2020, pouco depois da famosa frase de Eduardo Pazuello (“Um manda e o outro obedece”), Santos Cruz escreveu: “Hierarquia e disciplina, na vida militar e civil, são princípios nobres. Não significam subserviência e nem podem ser resumidos a uma coisa 'simples assim, como um manda e o outro obedece'... Como mandar varrer a entrada do quartel". 

Sanchez culpa a imprensa por tentar indispor Bolsonaro com o vice-presidente, general Hamilton Mourão. Como se Bolsonaro precisasse da imprensa para tanto. A acusação do brigadeiro equivale a receber um aviso de cobrança e culpar o carteiro pelo dívida. Diz ainda não existir divisão nas Forças Armadas em razão do presidente. Para tanto, o estabelecimento militar deveria ter exatamente os mesmo anseios do partido militar. Se isso é verdade, a Nação espera ansiosa a explicação do brigadeiro para a decapitação da cúpula das Forças Armadas operada por Bolsonaro. Talvez diga que é encenação, que todos caminham juntos para preservar sinecuras e privilégios conquistados e mantidos em meio à mais grave crise do século. E a CPI nem começou...

Sanchez diz pertencer a um grupo, os 504 Guardiões da Nação. Seu artigo despertou reações entre militares que o leram. Viram no texto "falta de responsabilidade institucional", ideias saudosistas e afinadas com teorias da conspiração, que fazem de todos os que não são bolsonaristas traidores e comunistas. Enfim, textos marcados pelo fanatismo, enquanto o "Brasil está à deriva, voando no escuro e com o GPS quebrado". Não que a gritaria mude grande coisa; o que não falta nesse País é candidato a Simão Bacamarte. Para o consolo do brigadeiro, se for derrotado em 2022, Bolsonaro ainda poderá chamar a Casa da República de "meu Clube Militar".


José Roberto Mendonça de Barros: A novela do Orçamento

A questão do Orçamento é só mais um passo no sistema de enfraquecimento do Executivo

A frase é antiga, mas apropriada a esta situação: quando pensamos que já vimos de tudo, algo ainda mais inusitado ocorre. Digo isso a propósito do que se transformou a LOA para 2021.

Jamais havia acontecido uma demora de tal magnitude na aprovação da mais importante lei econômica de qualquer país. Como se sabe, no final do ano passado as lideranças políticas decidiram não votar o Orçamento para não criar problemas nas manobras que antecederam a eleição das mesas da Câmara e do Senado, que só ocorreriam em fevereiro deste ano. Foi o que aconteceu e os trabalhos legislativos a respeito só avançaram a partir de março.

Embora apenas isso já fosse complicado, as discussões, muito tensas, acabaram por produzir e aprovar uma peça orçamentária absolutamente equivocada, possivelmente contendo ilegalidades, e impossível de ser executada. Em resumo, as despesas obrigatórias foram grosseiramente subestimadas para que um volume sem precedentes de emendas parlamentares fosse incluído no Orçamento. Além disso, parâmetros conhecidos, como o valor do salário mínimo vigente, não foram levados em consideração, e ainda há outras impropriedades. 

Aprovada a lei, criou-se outra dificuldade: a área econômica passou a argumentar que a sanção sem vetos do Orçamento poderia levar a um crime de responsabilidade, enquanto que as lideranças parlamentares, especialmente as da Câmara, argumentavam que tudo que estava consignado na lei foi discutido e aprovado pelos representantes do Executivo, não abrindo mão da sua aprovação sem vetos. 

Daí o impasse criado, pois o governo rachou entre ministros favoráveis aos gastos e a área econômica e, de outro lado, a área parlamentar que, enquanto este artigo está sendo escrito, insiste na aprovação da lei tal como está. 

Temos aqui, portanto, quatro grandes problemas de uma única vez:

– Abriu-se um grave problema político, pois o Executivo, muito fragilizado, não consegue decidir se veta parcialmente a LOA ou se a sanciona e, em seguida, envia um projeto de lei para fazer os consertos necessários, como pedem as lideranças legislativas. Enfrentar o Legislativo pode custar caro.

– Por outro lado, sancionar o Orçamento e corrigi-lo com um projeto de lei pode resultar em ajustar os gastos obrigatórios ao real e, ao mesmo tempo, acabar por expandir largamente os gastos totais e os déficits, o que a área econômica não deseja. 

– Existe um problema orçamentário concreto, pois, na ausência de uma grande correção nos excessos praticados no Legislativo, o governo poderá ter enormes dificuldades e se inviabilizar no dia a dia por escassez absoluta de recursos em muitas áreas (apenas a título de exemplo, os recursos para o crédito da agricultura familiar, o Pronaf, foram zerados e os recursos para o Plano de Safra foram cortados pela metade).

– Finalmente, existe um grande problema fiscal, ou seja, mesmo que legalizados os excessos de gastos, via créditos extraordinários, ou alguma variante do chamado Orçamento de Guerra, esses terão efeitos deletérios sobre o crescimento da dívida e as expectativas dos agentes econômicos. E boa parte dessas despesas se destina a projetos paroquiais, sem maior relevância social ou econômica.

O que mais chama a atenção é o gigantesco grau de incompetência dos dois Poderes que gerou o monstrengo do Orçamento. O populismo desenfreado, a absoluta falta de coordenação no Executivo e o enfraquecimento crescente do ministro da Economia, Paulo Guedes, se somaram à falta de competência dos líderes do Legislativo. Dizer, como dizem estes, que tudo foi combinado com o Executivo não resolve a questão, pois não transforma um absurdo numa coisa razoável. Tem-se a impressão de que nenhuma das partes acaba por avaliar o volume de problemas que está sendo criado. 

A questão do Orçamento e suas consequências políticas representam apenas um passo a mais no sistemático enfraquecimento do Executivo. A incapacidade de lidar com a pandemia está contaminando e derrubando as perspectivas de crescimento, que se espraiam para o ano que vem. Todos os analistas têm reduzido as projeções de crescimento para este ano e para 2022.

O governo está esfarelando e fazendo água por todos os lados.

ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS


Afonso Benites: CPI da Covid mira falta de vacinas e promoção de cloroquina para buscar a digital de Bolsonaro

“Não será uma CPI abstrata, mas uma investigação que estará dentro da casa de cada brasileiro, pois todos conhecem alguém que morreu”, diz futuro presidente do colegiado, senador Omar Aziz. Ex-ministros devem ser convocados

“O dia que eu passei e você quer que eu sorria?” A reação nesta semana do presidente Jair Bolsonaro a uma simpatizante que pedia uma foto sintetiza um dos piores momentos de seu Governo. O mau humor do mandatário se deve ao cerco que se fecha em seu entorno e revela um presidente desalentado, em vias de ter a sua digital encontrada nas principais falhas de gerenciamento no país da maior crise sanitária da humanidade. A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid deve começar seus trabalhos entre 22 e 29 de abril, e parlamentares trabalham para sejam convocados ex-ministros, funcionários técnicos da Saúde, e que se avaliem investigações já iniciadas no Tribunal de Contas da União (TCU) e no Ministério Público Federal (MPF). O objetivo é já avaliar a compra de vacinas e a promoção por parte do Governo federal de remédios sem eficácia para o tratamento da covid-19, como a cloroquina. Até este sábado, 371.678 pessoas já perderam a vida para o vírus no Brasil, e os contágios continuam em ascensão. Apesar disso, e mesmo sob a ameaça de ser responsabilizado pela tragédia, o presidente promoveu mais uma vez aglomerações neste final de semana, ao visitar Goianópolis (Goiás) no sábado, onde sem máscara cumprimentou pessoas e segurou um bebê.

Ainda que Bolsonaro tenha tentado dividir a responsabilidade da crise com governadores e prefeitos, conseguindo incluir os repasses feitos a Estados e municípios no escopo de investigação da CPI, os trabalhos da comissão instaurada no Senado para apurar as ações e a omissão do Governo durante a pandemia devem jogar holofotes a sua conduta neste um ano de calamidade. Mais do que fustigar e trazer à tona as falhas de Bolsonaro, os parlamentares —a maioria de oposição— arrastarão a imagem de um líder inepto até 2022, quando Bolsonaro pretende concorrer a uma nova eleição presidencial. As últimas pesquisas de popularidade e de intenções de votos não têm sido nada favoráveis ao presidente. Levantamento do PoderData publicada no último dia 14 mostra que ele perderia a disputa em segundo turno para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apto novamente a concorrer ao pleito após decisão do Supremo que anulou suas condenações em Curitiba, e para o apresentador Luciano Huck (sem partido). E estaria empatado com outros três concorrentes: Ciro Gomes (PDT), Sergio Moro (sem partido) e João Doria (PSDB).

O futuro presidente da CPI, o senador Omar Aziz (PSD-AM), afirma que por mais que o cidadão brasileiro esteja acostumado a testemunhar esse tipo de investigação política, essa será diferente das outras dezenas que aconteceram desde a redemocratização, em 1988. “Essa não será uma CPI abstrata, na qual a pessoa olha para um político na TV e diz: ‘ah, são todos bandidos’. Essa CPI estará dentro da casa de cada brasileiro. Porque vamos tratar da morte de centenas de milhares de pessoas, não de crimes de corrupção. E todos os brasileiros conhecem alguém que morreu de coronavírus”.

Os 11 senadores titulares que compõem a CPI terão como missão delimitar onde o presidente acertou e onde errou durante a pandemia. Desde março de 2020, Bolsonaro ignorou praticamente todas as recomendações das autoridades de saúde do mundo: desestimulou o distanciamento social e o uso de máscaras de proteção facial, promoveu aglomerações como a deste sábado, incentivou o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento de covid-19, como cloroquina e ivermectina e negligenciou a compra de vacinas. Os parlamentares também investigarão se o Governo federal ignorou os alertas feitos no início do ano diante de um colapso sanitário de Manaus, quando dezenas de pessoas morreram porque as unidades de saúde onde elas estavam internadas não tinham cilindros de oxigênio.Quem persegue o Bolsonaro é o próprio Bolsonaro.

“O presidente acha que o estamos perseguindo e diz que ele não tem nada a esconder. Mas, quando ele se irrita com a abertura da CPI, é claro que ele veste a carapuça. Ou seja, quem persegue o Bolsonaro é o próprio Bolsonaro. Ele age contra si mesmo, sempre”, disse o senador Otto Alencar (PSD-BA), que presidirá a primeira sessão da comissão por ser o parlamentar mais velho. Nessa reunião, serão oficializados os nomes do presidente, vice e relator da CPI, papéis fundamentais para a condução da investigação, e que prometem ficar com oposicionistas.

Conforme os acordos que foram costurados ao longo da última semana, o MDB, que tem a maior bancada do Senado, ficará com a relatoria, responsável por produzir o relatório final sobre a investigação. O escolhido para esta função é Renan Calheiros (MDB-AL). O PSD, com a segunda maior bancada, ficaria com a presidência, com Aziz. E o vice-presidente será Randolfe Rodrigues (REDE-AP), que foi o autor do requerimento da comissão. Nos próximos dias, o Governo tentará alterar essa configuração. Aliados do presidente entenderam que a composição da cúpula da CPI ficou bastante desfavorável a ele e tentam convencer o PSD a indicar o bolsonarista Marcos Rogério (DEM-RR) para o cargo de relator. Mas dificilmente conseguirão. Cabe apenas ao presidente da CPI designar quem ocupará esta função. “Estamos fechados em um grupo de sete senadores. Temos a maioria e respeitamos a correlação de forças. Se os outros quiserem se somar a nós, serão bem-vindos. Mas não pretendo mudar nada”, disse Aziz.

Se a palavra dada por Aziz aos outros senadores não prevalecer e Bolsonaro conseguir fazê-lo mudar de opinião, marcará o rompimento de um acordo que poderá resultar em revides no plenário do Congresso Nacional, onde ainda devem tramitar temas de interesse do Governo, como o Orçamento Geral da União de 2021, que cortou boa parte das despesas dos ministérios e transferiu os recursos para emendas parlamentares e encurralou o Planalto, que tenta salvá-lo.

Hoje o presidente tem apenas quatro membros em sua tropa de choque na CPI. Além de Marcos Rogério, estariam na linha de defesa de Bolsonaro os senadores Ciro Nogueira (PP-AL), Jorginho Melo (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE). Como estratégia para obter mais apoio na CPI, Bolsonaro estuda entregar cargos de primeiro e segundo escalões na máquina federal aos outros membros considerados independentes da comissão. Os principais alvos seriam Omar Aziz e Eduardo Braga (MDB-AM). Otto Alencar, Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Renan Calheiros, os outros nesse campo, pendem mais para a oposição do que para o Governo. A CPI é complementada pelos opositores Randolfe e Humberto Costa (PT-CE).

Primeiros passos

Na CPI, os senadores deverão iniciar os trabalhos ouvindo especialistas da área de saúde para definir o que deveria ter sido feito como planejamento no combate à covid-19. “Queremos ouvir os melhores epidemiologistas, microbiologistas, sanitaristas. Eles terão de dar as primeiras respostas para a sabermos o porquê chegamos até aqui”, disse Randolfe.

Também deverão ser ouvidos servidores e ex-servidores do Ministério da Saúde. Na lista de requerimentos a serem apresentados estarão ainda os três ex-ministros da pasta, o general Eduardo Pazuello, o oncologista Nelson Teich e ortopedista e ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta, além de parte de seus antigos auxiliares. Não está descartada a convocação do atual ministro, Marcelo Queiroga, para falar qual era o cenário encontrado por ele quando assumiu o ministério em março e o que tem sido feito desde então. Outros dois ex-ministros intimamente ligados ao bolsonarismo também deverão ser convocados, segundo a Folha de S.Paulo: Ernesto Araújo (Relações Exteriores), para explicar as tratativas com outros países sobre a compra de vacinas, e Fernando Azevedo (Defesa), para falar sobre o aumento da produção de cloroquina pelo Exército.

“Os fatos irão se sobrepor. Agora, não dá para esperar que a gente passe a mão na cabeça de ninguém, mas também não espere que vamos crucificar A ou B, como se isso bastasse para acabar com a pandemia. Ela não será uma caça às bruxas”, diz Aziz. O senador afirma ainda que caso se encontrem irregularidades, punições serão sugeridas para os órgãos de controle e que os senadores pretendem também criar um protocolo para impedir que os próximos presidentes ajam da maneira que bem entenderem na condução de crises sanitárias. “Se nós definirmos em lei uma série de passos a se seguir, não vai adiantar presidente nenhum ser negacionista, porque a legislação mandará que ele siga um roteiro. Se escapar dele, pode ser punido”.

Blindagem moral

Como uma tentativa de blindar o general Pazuello, o seu fiel aliado que seguiu todas as suas recomendações, Bolsonaro deverá lotá-lo no cargo secretário de Modernização do Estado, na Secretaria-Geral da Presidência da República. Na prática, será uma proteção moral, já que o cargo não tem nenhuma prerrogativa de foro especial. Pazuello esteve ao lado de Bolsonaro neste sábado, durante a visita a Goianópolis.

Paralelamente, enquanto ouvem as testemunhas, os parlamentares deverão requisitar informações aos órgãos que já estão investigando os deslizes do Governo. Há apurações no Tribunal de Contas da União sobre os gastos da Gestão Bolsonaro com cloroquina e sobre os repasses feitos a Estados e Municípios. Também existe uma investigação na Polícia Federal contra Pazuello e uma outra no Ministério Público Federal contra o mesmo general sobre a crise manauara. A interlocutores, Renan afirmou que essas apurações serão uma espécie de roteiro inicial de seus trabalhos.

Mais do que ver seu governo enfraquecido no ano eleitoral, o maior temor de Bolsonaro é o de ser destituído do cargo. Ele sabe que conforme a quantidade de provas levantadas pela CPI mais um pedido de impeachment pode ser apresentado contra ele. Por essa razão, voltou a dizer em uma de suas declarações públicas que nada o tirará do poder antes do fim do mandato. “Só Deus me tira da cadeira presidencial. E me tira, obviamente, tirando a minha vida. Fora isso, o que estamos vendo no Brasil não vai se concretizar. Não vai mesmo! Não vai mesmo!”, esbravejou na sua transmissão ao vivo da última quinta-feira.


Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa: ‘Uma morte social mais inquietante’

‘O barulhento Dionísio, convém não esquecer, é ao mesmo tempo o deus do amor e da morte.’ O alerta do sociólogo Michel Maffesoli, em “A sombra de Dionísio”, tornou-se mais atual do que nunca nesta nova Era da Peste. Na madrugada do domingo do carnaval que não houve, 14 de fevereiro, um repórter de São Paulo registrou, caprichando na precisão: “As mais de 237.489 mortes não conseguiram deter realizadores de bailes funk, nos bairros de Itaquera e Guaianases”. Somos os mesmos que nossos ancestrais do século 14.

A Peste chegou à Europa em 1348, junto com embarcações dos comerciantes italianos provenientes do Mar Negro e de Bizâncio. Espalhou-se rapidamente, seguindo as rotas comerciais: cidades do Mediterrâneo, Europa Central e, na sequência, o Norte e as planícies russas. Tudo isso até 1352. As festas da Peste foram documentadas por cronistas da época.

Cerca de um terço da população europeia, algo em torno de 8 milhões de almas, pereceu em apenas uma década. Depois, a epidemia repicou várias vezes, em ondas sucessivas que voltaram a afligir cidades já açoitadas. Os habitantes de Florença logo entenderam os perigos da aglomeração humana, como relata Giovanni Boccaccio (1313-75) no “Decamerão”. Bactérias só foram observadas três séculos mais tarde, mas já se sabia, à época, que a água era fonte de infecções. Tal como na Peste do Vírus dos nossos dias, os ricos fugiram rumo às suas villas, no entorno rural, distanciando-se dos “ares pestilentos”.

Os demais — comerciantes, artesãos e o proletariado original —ficaram, por falta de alternativa. E morreram, às centenas, diariamente. A morte distingue classes, mas, paradoxalmente, opera como grande evento nivelador, que lembra a todos sobre a vanidade da vida. No século da Peste, emergiram, em diferentes pontos da Europa, representações da “Dança Macabra” em que cardeais, príncipes e damas dançam com esqueletos.

Dança e vinho. A festa, celebração da dialética entre vida e morte, acompanhou a pandemia, tanto nas villas do isolamento quanto nas cidades pestilentas. Festejava-se por ainda viver. Rompiam-se as regras para confrontar a morte ou desafiar Deus. Hoje, atribuímos a Covid-19 ao vírus — isto é, às armadilhas da seleção natural. Na peste bubônica, como alguns o fazem ainda agora, creditava-se o horror à vontade de Deus, que castigava os humanos ímpios. Daí, um passo adiante, alguns chegavam à descrença.

Gargalhar na cara do inevitável, do Juízo Final. Dançava-se ao som da música não religiosa, que florescia em formas inovadoras, como o rondó e a balada. Sob o medo da morte, o frenesi da festa resgatava as interações socais que conferem sentido à vida. A música secular difundiu-se justamente no rastro da Peste, rodando as engrenagens do individualismo moderno, com seu “eu lírico”.

Triunfo de Dionísio, o feio e coxo, sobre Apolo, certinho e áureo. Vida e morte: as festas dionisíacas originais, da velha Grécia, terminavam com o sacrifício um tanto violento de um boi, que seria comido por todos num grande ato de restauração e congraçamento. Na festa, “o que importa é a pulsão irreprimível do querer viver que, ao manifestar-se, não mais receia assimilar as ‘pequenas mortes’ sucessivas — ‘sabendo’ que, assim, se protege ritualmente de uma morte social bem mais inquietante” (Maffesoli). Carpe diem.

As autoridades medievais bem que tentaram controlar, mas fracassaram. Os escassos cronistas da época concordam na avaliação de que o comportamento das pessoas ficou pior, não mais piedoso. Dizem, hoje, cenhos carregados, que aglomerar para trabalhar é virtuoso, mas a aglomeração de folguedos atenta, no mínimo, contra um protocolo sanitário e moral. Na Peste, nem todos festejavam. Havia, claro, os que se fechavam nas igrejas, rezando pelo perdão divino — e contribuindo igualmente para os contágios. Os cultos coletivos, antes como agora, não foram proibidos.

Pandemias são continuidade, mais que ruptura. A Grande Peste medieval ajudou a descolar o indivíduo da coletividade, a disseminar a economia monetária e sua riqueza portátil. A festa é parte dessa história, tão antiga e tão próxima.*Sociólogo e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais;

**Historiadora e editora-executiva do site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos