Day: abril 16, 2021

RPD || Paulo Baía: O Brasil não respeita o sagrado ventre de um sorriso

Imagem de Marielle Franco vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre o crime, escreve Paulo Baia em seu artigo. “Um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro”

Eu, Marielle Franco, mulher, preta, favelada, eleita vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, levei quatro tiros no dia 14 de março de 2018. 

Era a expressão de alegria. Nosso país não suporta uma mulher com um sorriso largo e sincero. Aberto e franco. O Brasil é o país da misoginia. Marielle subverteu não só pelas origens pobre e negra, mas também por seu currículo, seu brilhantismo profissional e acadêmico. Sua subversão maior era o sorriso escancarado. Brasil que estupra mulheres indígenas e pretas. Sou filho e neto de tais mulheres. Desejo suas vozes ouvidas. O Brasil não respeita o ventre de um sorriso. 

Eu, Marielle Franco, fui assassinada no dia 14 de março de 2018, levei três tiros na cabeça e um no pescoço por um carro que me encurralou no Estácio. Como a música de Luiz Melodia: Se alguém que matar-me de amor, que me mate no Estácio, Bem no compasso, bem junto ao passo, Do passista da escola de samba, Do Largo do Estácio, O Estácio acalma o sentido dos erros que faço, Trago, não traço, faço, não caço, O amor da morena maldita domingo no espaço, Fico manso, amanso a dor, Holiday é um dia de paz... Os assassinos dispararam com uma submetralhadora. Queriam me executar para calar as minhas vozes: mulher, preta e favelada. 

Eu já quero ser a segunda voz dela. Quero ser aquele que escuta. Como um velho, menos analista e mais antropólogo. 

Peço permissão à ancestralidade feminina escravizada e violada nesse nosso torrão, a terra como Gaya, para ouvir Marielle. Desejo falar do lugar do feminino. Embora não possa incorporar o lugar de fala exclusivo dela. Desejo reunir forças para poder realizar esta homenagem. Somos seres simbólicos. É deles que marcamos o nosso compasso neste chão árido, seco, desértico e que machuca feito pelas dores de muitas mulheres. A terra é a simbologia mais antiga do feminino. Ela gira em torno do sol. E Marielle foi apagada antes de terminar a sua própria gira carregada de brilho e cheia de potência em defesa das mulheres faveladas. Das pretas. Ela lutava contra a perpetuação de um movimento de opressão cometido há séculos contra os pretos desde a colonização - a eterna escravidão que nos assombra cotidianamente.

 Marielle era a terra fértil que ria e celebrava. Poderia uma mulher rir e celebrar? Sacralizar o riso, o corpo e a força do feminino é o meu desejo neste artigo. Tanto já foi dito a respeito de sua morte, sobre os assassinos, quem mandou matar que até hoje, no dia 02 de abril de 2021 (data que o autor escreveu o artigo), ainda não sabemos quem mandou executá-la. Os dias passam. O tempo corre. E a imagem vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre este crime político. 

Eu, Marielle Franco, fui assassinada, os tiros vieram de repente com força e não restou tempo para reação, caí morta, perdi a minha vida em meio à barbárie. 

Permaneço preso ao ensaio antropológico e mágico. Feito um ritual de despedida e com o desejo de que sua morte não tenha sido em vão como tantas outras. O momento mais forte veio com a lavagem do chão cheio de sangue. No local onde a mataram no Estácio. Foi uma limpeza feita com ervas. E tambores. Marielle era a terra fértil que ria e celebrava o direito de vida dado a todos pela constituição de 1988, promulgada após a redemocratização. Nossa miscigenação é o fruto de estupros coletivos e continuados de mulheres indígenas e negras por séculos. É o machismo reprodutor assassinando mulheres vandalizadas e matáveis. Pai perverso e assassino de filhos mestiços pretos, quase pretos. Marielle é o retrato perfeito de séculos de violações aos corpos femininos. 

Eu, Marielle Franco, fui morta de forma brutal sem direito à defesa. Nasci com a marca da exclusão e com a certeza de que deveria permanecer calada, distante do jogo político feito entre homens misóginos e racistas. A política feita para poucos que lutam por seus negócios embolados aos prazeres espúrios. E certamente com muitas garotas de programa em suas festinhas regadas a comida, bebidas, entre outras coisas. 

 Permaneço no meu ritual vivenciando uma eterna despedida de um antropólogo que se despe e veste a roupa do cientista político para dizer que a morte de Marielle foi o fim de um sonho e um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro. 

Eu, Marielle Franco perdi a voz, mas renasço em todas as mulheres pretas, pobres e faveladas que trabalham e enfrentam o cotidiano de opressão. A vida é circular. E a Terra é redonda e gira em torno do sol. 

O ritual de despedida homenageou o sorriso largo de uma mulher potente, vibrante, capaz de no sorrir rodopiar as energias, realizando a gira no meio do chão de terra das favelas cariocas. E é deste sagrado sorriso que o país precisa girar para recuperar a sua força e potência. 

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ. 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Sérgio C. Buarque: O Brasil foi intubado ... e o oxigênio está acabando

Sem medidas para o isolamento social e a vacinação em massa, calamidade sanitária que o país enfrenta leva diretamente ao desastre humano e econômico, avalia Sérgio C. Buarque

No primeiro trimestre do ano, o Brasil viveu o maior desastre sanitário da sua história com o colapso do sistema de saúde e número assustador de vítimas do Covid-19. Em março, foram 66.868 óbitos, cerca de 21% de todas as mortes pelo vírus no ano passado e o dobro do que foi registrado em julho, no auge da pandemia em 2020. O Brasil tornou-se grave ameaça internacional, sendo responsável hoje por cerca de 27% das mortes diárias no planeta e pela propagação de uma nova cepa mais contagiante e de maior agressividade. Esta dramática situação é o resultado direto da nefasta atuação do presidente da República na desqualificação das medidas de prevenção, no atraso da compra de vacinas e na tentativa de quebra das iniciativas de confinamento social dos governadores. Difícil imaginar mudança do comportamento e das decisões do presidente Bolsonaro no futuro imediato.  

A calamidade sanitária leva diretamente ao desastre humano e econômico. A economia brasileira já estava patinando no primeiro trimestre, mesmo antes das modestas restrições implantadas em março, quando os casos e mortes pelo Covid-19 explodiram. Segundo o IPEA, o PIB dos três primeiros meses deste ano registrou queda de 0,5% em relação ao trimestre anterior. A dimensão do desastre sanitário e as incertezas em relação aos desdobramentos da contaminação e às decisões governamentais comprometem a economia e desestimulam os investimentos. Além disso, a nova variedade do vírus tem tido maior taxa de contaminação e de letalidade na população jovem[1] (qualificada para o trabalho) com a destruição de capital humano de efeito estrutural negativo na economia.    

Para frear a cadeia de transmissão do vírus nos próximos meses, moderando a dimensão da trágica calamidade sanitária, será imperiosa a implantação de medidas drásticas de isolamento social. Como resultado, forte retração da economia: aumento do desemprego, da falência de empresas e da vulnerabilidade social. Entretanto, diante da gravidade da pandemia, se não forem adotadas medidas duras e impopulares, mantido o ritmo atual de mortos pelo Covid-19, até o final do semestre, o Brasil vai registrar a dolorosa marca de mais de meio milhão de vítimas do vírus. A implantação de um confinamento mais profundo demanda medidas compensatórias do Estado mais amplas do que foi aprovado na PEC emergencial. As quatro parcelas de R$ 250,00 em média para 45,6 milhões de famílias e os R$ 10 bilhões para o BEM-Programa de manutenção do emprego e renda[2] serão claramente insuficientes, para o enfrentamento dos efeitos econômicos e sociais negativos de algum nível de lockdown

Não se pode ignorar, contudo, que as restrições fiscais deste ano são mais graves que as de 2020, em grande parte por conta das medidas de proteção e incentivos adotadas pelo governo, que gerou déficit fiscal de R$ 844,6 bilhões e ampliou a dívida pública para cerca de 100% do PIB. Mesmo com os gatilhos de redução das despesas correntes aprovados na PEC 109[3], o aumento do auxílio emergencial e do apoio ao emprego e às empresas para compensar o confinamento social deve agravar o quadro fiscal do Brasil. Mas, apesar dos riscos fiscais, o Brasil não tem alternativa de curto prazo. A calamidade permite suspender, transitoriamente, o Teto de Gastos e empurrar os compromissos para o futuro, ao passo que são concebidas e negociadas mudanças estruturais que viabilizem a recuperação das finanças públicas e a reanimação da economia.  

O primeiro semestre já está perdido. O desempenho econômico do segundo depende das decisões atuais sobre a intensidade do confinamento e a velocidade do processo de vacinação. E, claro, da ação compensatória do Estado. Se não conseguir acelerar o ritmo de vacinação, até o final do semestre, o Brasil terá vacinado cerca de 84,4 milhões de brasileiros, apenas 40% da população, muito abaixo dos 70% considerados necessários pelos infectologistas para a imunização de massa. Embora muito mais grave do que o ciclo do ano passado, a nova onda do Covid-19 pode ser mais curta se forem adotadas medidas rígidas que quebrem a cadeia de transmissão do vírus e aceleram o processo de vacinação. O custo muito alto no presente, inclusive político, teria resultados mais rápidos e consistentes na recuperação da economia brasileira[4] no restante do ano.  

  • [1] Em São Paulo, a idade média dos pacientes internados nos hospitais caiu de 65 anos, em julho de 2020, para 37 anos em fevereiro de 2021; em Minas Gerais, 20% das mortes por Covid são de pessoas com menos de 60 anos; e, no Rio Grande do Sul, este percentual chega a 27,8%. 
  • [2] Muito abaixo do auxílio emergencial do ano passado que custou cerca de R$ 50 bilhões mensais e dos incentivos do BEM-Programa de Manutenção do Emprego e Renda que chegou a R$ 33 bilhões.  
  • [3] Os gatilhos aprovados pelo Congresso reduziram em muito a capacidade de manobra do governo, tanto nas despesas com pessoal (impedindo a suspensão das promoções), quanto na redução da renúncia fiscal de 4% para apenas 2% do PIB. 
  • [4] O crescimento da economia internacional, que poderia favorecer o desempenho econômico do Brasil, também estará sofrendo as consequências de novas ondas da pandemia, neste primeiro semestre, embora deva se beneficiar da recuperação da China e dos elevados investimentos do governo americano (US$ 1,9 trilhões) para combate aos efeitos da propagação do vírus, combinados com a aceleração da vacinação.   

*Sergio C. Buarque é economista, com mestrado em sociologia, professor aposentado da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Vinícius Müller: A pedagogia do centro

Vinícius Müller avalia que, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por candidatos polares como Lula e Bolsonaro, que o usam apenas de modo instrumental

Há uma expressão, comum e ingênua, que revela um modo particular de nosso entendimento sobre a História: ‘o problema é que nunca tivemos uma guerra para, de fato, resolvermos nossas feridas mais profundas’. Ou, especificamente, ‘se tivéssemos feito uma guerra de independência ou uma revolução contra escravidão teríamos um país mais justo e desenvolvido’.  

A ingenuidade desta premissa reside na própria História. Os EUA, por exemplo, fizeram uma guerra para acabar com a escravidão e nem por isso resolveram a desigualdade racial que até hoje revela que esta ferida é muito maior do que uma guerra pode ser.  

Contudo, esta premissa revela uma pedagogia, e sua instrumentalização resulta na condenação moral de qualquer tipo de ajustamentos ou negociações que porventura tenham sido feitos no passado ou que possam se efetivar no futuro. 

É assim que há muito tempo temos oferecido nossa história pública: uma soma de arranjos feitos por quem, no fundo, não quer mudar nada. E se há – e certamente há – alguma verdade nisso, não parece razoável que essa seja a única versão da História. O outro lado é a glorificação, tão justa quanto supervalorizada, da ideia de que por seu ‘passado de luta’, por si só, alguém deva nos servir como referência. Muitas vezes, e pelo contrário, é o ‘passado de negociações e capacidade de fazer acordos’ que deve, por ser tão ou mais relevante à nossa trajetória, servir-nos de referência.   

Pensar sobre isso nos ajuda a superar alguns de nossos atuais desafios: como criar uma outra pedagogia que rompa com esse modo parcial de contar a História? Como criar uma narrativa que envolva, primordialmente, os arranjos e acordos? E como fazer isso sem parecer oportunista? 

Estas são barreiras na medida em que a declaração conjunta feita por possíveis candidatos de centro à presidência da República (Ciro, Doria, Amoedo, Huck, Mandetta e Leite) pode ser esvaziada se duas lacunas não forem rapidamente preenchidas. A primeira é a fragilidade da proposição que vê o problema apenas na inexistência de um projeto comum entre eles. Não é o futuro que conta, e sim o passado. Ou seja, o que precisam fazer é, antes de um projeto comum, encontrar um passado que os una ou que, no mínimo, justifique este ensaio de aproximação. A segunda é que, sem isto, os laços serão frágeis e, consequentemente, o fortalecimento do centro não significará nada de muito diferente do que é para os candidatos polares, Lula (PT) e Bolsonaro (Sempartido). Ou seja, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por aqueles que o usam apenas de modo instrumental. 

Para tanto, é necessária a criação de uma pedagogia do centro, que não só repudie a narrativa histórica da ’luta’ - característica daqueles que atiçam a polarização e usam o centro apenas como ferramenta -, mas também identifique os valores que são vistos no passado e transferíveis ao futuro. E esta pedagogia pode seguir alguns passos: a) leitura do contexto não pode ser capturada pela tentação da polarização. O esforço é achar, no contexto, os elementos que engrandecem a narrativa do ‘acordo’ e condenam a viciada e, hoje irresponsável, narrativa da ‘luta’; b) exaltar em nossa trajetória exemplos de arranjos e acordos que nos ajudaram a avançar e, ao mesmo tempo, enfrentar a narrativa que encontra em nossa trajetória apenas os acordos e arranjos que nos atrasaram; c) nomear os riscos e problemas criados em nossa trajetória pela ética da ‘luta’. Ela não pode, porque efetivamente não é, ser vista como moralmente superior à ética do ‘acordo’; e d) encontrar uma linguagem que facilite o entendimento de que ser do centro é a definição de um valor enraizado em nossa trajetória e que, mesmo responsável por alguns resultados ruins, também foi elemento fundamental para grandes avanços. 

 São esses os passos, em resumo, que criarão um ambiente favorável para que o centro deixe de se posicionar como o ‘negativo’ à polarização e seja o ‘positivo’ de nossa trajetória e de nosso futuro.  Ou seja, aquele que carrega - porque identifica, valoriza e comunica -  os avanços que tivemos em nossa história quando conseguimos anular a retórica da ‘luta’; e não o refúgio daqueles que só querem reproduzir nossos males.  

Assim não seremos engolidos por aqueles que fazem do centro um instrumento oportunista. Ou alguém tem dúvida de que Bolsonaro acena ao centro apenas por uma lógica tática e de curto prazo? Ou de que o discurso de que Lula é o verdadeiro centro é só oportunismo?  

*Vinícius Müller é doutor em História Econômica, professor do Insper e do CLP (Centro de Liderança Pública)

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Editorial: A fadiga das instituições

No cenário de incerteza em que o país mergulhou após as eleições de 2018, apenas uma percepção clara se consolida mês a mês, para um número crescente de observadores: a progressão acelerada da crise, em suas diferentes dimensões. 

No plano sanitário, a pandemia avança de forma galopante e, com ela, o número de óbitos evitáveis. Ultrapassamos a marca de trezentas e cinquenta mil mortes, a média de falecimentos ao dia segue em curva ascendente e não dispomos ainda de uma previsão confiável a respeito do ponto aproximado de reversão dessa situação. Devemos essa situação de catástrofe exclusivamente à omissão do governo federal na contratação das vacinas e sua oposição sistemática às práticas recomendadas pelo consenso da ciência na sua falta: uso de máscaras e distanciamento social. 

A expectativa do caos sanitário no curto prazo empurra, por sua vez, a perspectiva de retomada da economia para o médio e longo prazo. A redução concomitante do valor e abrangência do auxílio do governo aos mais necessitados abre as portas para o aprofundamento da insatisfação popular, com consequências imprevisíveis no momento. 

Finalmente, temos a dimensão política da crise. Está claro hoje que a hipótese de enquadramento do Poder Executivo por parte de sua base parlamentar, fundamentalmente o grupo conhecido como “centrão”, não passou de esperança vã, alimentada por alguns dos atores do processo e seus apoiadores na esfera pública. Crises continuam a ser provocadas; as instituições, tensionadas; as práticas formais e informais da democracia, erodidas.  

No espaço de poucos dias, assistimos à fabricação de uma crise militar, à retomada da ofensiva contra os Poderes Legislativo e Judiciário, e ao inacreditável chamamento de manifestações em favor das “liberdades” de culto e de locomoção, liberdades que, cumpre esclarecer, jamais sofreram até o momento qualquer ameaça. 

As instituições encontram-se sob forte fadiga: seu desenho não incorporou a hipótese de mandatários de má fé democrática, em postos de relevância política. 

Às oposições resta perseverar na clareza quanto a suas tarefas fundamentais, na cooperação cada vez mais indispensável na sua consecução, na resiliência democrática permanente. A hora é de concentrar o esforço de todos no combate às ameaças que rondam a democracia. 


RPD || Entrevista Especial - José Gomes Temporão: ‘Pandemia terá impacto central no futuro da Nação’

Ausência de medidas e negacionismo do presidente Jair Bolsonaro contribuíram drasticamente para a situação crítica que o país enfrenta atualmente no combate à pandemia do novo coronavírus, acredita Temporão

Por Caetano Araújo, Luiz Santini e Renato Ferraz

O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira em relação ao combate contra a pandemia do novo coronavírus são inúmeros, incontáveis, avalia o ex-ministro da Saúde  José Gomes Temporão, entrevistado especial desta 30ª edição da Revista Política Democrática Online.

Temporão aponta três medidas que deveriam ter sido feitas pelo Governo Bolsonaro para evitar a situação em que o país se encontra atualmente: 1) Deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. 2) Optou apenas pelo número mínimo de doses do mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, que é de 10% da população. O Brasil vai receber, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. País tinha direito de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   3) Se tivesse fechado acordos compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás, teríamos tido vacinas a partir de janeiro e já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas.

“A sociedade brasileira, o povo brasileiro, foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandemia”, critica Temporão. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Revista Política Democrática Online.  

Revista Política Democrática Online (RPD): A pandemia está tendo o impacto de uma tragédia social, sanitária, emocional. Mas pode ter favorecido o reconhecimento da importância do Sistema Único de Saúde para a saúde dos brasileiros por parte de toda a sociedade, independentemente de níveis sócioeconômicos, tanto quanto a percepção da relevância do papel da ciência e da qualidade dos pesquisadores e cientistas nacionais na condução das graves questões sanitárias que vêm ameaçando o país. Como valorizar esses sentimentos de forma permanente?  

José Gomes Temporão (JGT): Que bom começarmos a conversa falando de coisas boas também. A situação difícil, dramática e trágica que nosso país vive nesse último ano tem e seguirá tendo impacto central no futuro da nação. Importa destacar, no entanto, que, ao longo desse período pandêmico, o SUS ganhou novo contexto, um novo olhar da sociedade. Está lá na Constituição de 1988, no Artigo 196: “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, alcançando através de políticas econômicas e sociais”. Quer dizer, uma visão bastante abrangente da questão da saúde. Nós também sabemos que, no curso dessas três décadas, se de um lado o SUS conseguiu se estruturar, ampliou cobertura, reduziu desigualdades entre classes sociais e regiões e teve um impacto nos indicadores sanitários extremamente importante, por outro lado se fragilizou do ponto de vista do financiamento, da gestão, do modelo assistencial. E através de uma política deliberada de subsídio ao mercado, o que nós assistimos foi um crescimento proporcional muito importante do percentual da população brasileira que dispõe de um plano seguro de saúde para o atendimento de suas necessidades corriqueiras de exames, consultas e internações – maior parte, provida pelo empregador. Ou seja, é uma cobertura privada financiada majoritariamente pelo empregador e ligada, portanto, ao vínculo laboral. Então essa visão do SUS ao longo dessas décadas sofreu, digamos assim, algumas fragilizações.   

A primeira para a qual eu queria chamar a atenção é uma certa visão que se consolidou na sociedade do SUS como muito importante para as pessoas pobres, para os mais pobres. Trata-se de um desvio, uma visão equivocada. Porque, na verdade, o SUS prescrito na Constituição reflete a visão da construção de um sistema universal para todos os brasileiros.   

A segunda, que também se difundiu de maneira muito forte na sociedade, é essa visão de que ter um plano de saúde faz parte do processo de ascensão social, e de que a medicina privada, portanto, terá um padrão de qualidade superior à da medicina pública – o que, aliás, não se sustenta em nenhum ponto de vista analítico. Temos hospitais, instituições, programas e políticas de excepcional qualidade no SUS e no setor privado. Temos problemas dramáticos de qualidade no SUS e no setor privado. A discussão está equivocada, porque, quando a pandemia começa e o impacto dela na sociedade se expressa dessa maneira tão pungente, real e concreta, uma série de setores da sociedade que, antes via o SUS um pouco assim à distância – como “uma coisa que não faz parte do meu cotidiano, do meu dia a dia, talvez tenha muito peso para os meus empregados, ou para as pessoas que trabalham na minha casa” – passou a avaliá-lo em uma dimensão distinta. Basta imaginar, como mera hipótese, o que seria dos praticamente 50 milhões de brasileiros que não têm nenhum tipo de proteção social estruturada, subempregados, que trabalham por conta própria, e os 15, 16 milhões de desempregados, portanto a grande maioria da população brasileira, sem o SUS?   

"TIVEMOS UMA FRAGMENTAÇÃO DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA. O GOVERNO FEDERAL, NA VERDADE, SE TRANSFORMOU EM UM POLO DE RESISTÊNCIA ÀS MEDIDAS PRESCRITAS PELA CIÊNCIA E PELA SAÚDE PÚBLICA"

Felizmente, essa avaliação de senso comum da sociedade se expressou também na grande mídia. Nunca se falou tanto nos jornalões, nas TVs abertas e nos programas de TV fechada sobre o SUS, sobre suas dificuldades, suas qualidades, um reconhecimento do trabalho importantíssimo dos profissionais que ali labutam todos os dias. Atingiu inclusive setores com uma visão desenvolvimentista, progressista, mas que viam também o SUS um pouco distante. Registrou-se todo um movimento da área da ciência brasileira de aproximação com o SUS. Multiplicaram-se as experiências de articulação, integração e de reflexão conjuntas entre instituições e entidades do campo da saúde pública, da medicina, da ciência brasileiras no sentido de buscar orientar a população, esclarecer a sociedade, reivindicar, criticar o governo.   

Estou seguro, assim, de que, apesar das dificuldades estruturais que o SUS enfrenta, ganhamos espaço político e temos de saber como aproveitar isso para fortalecê-lo no futuro. Essa questão do SUS e do que eu chamo da construção de uma consciência política, de uma consciência coletiva, de uma consciência social do valor dos sistemas universais e do SUS, é uma questão central da nossa agenda nos próximos tempos.   

Isso vem junto com a questão da ciência. Em maio do ano passado, já ressaltávamos em debates que só conseguiríamos sair dessa situação quando tivéssemos uma ou mais vacinas que funcionassem. Mas ouvíamos: “vacina?, esquece. Vacina, só em 2021, 2022. É coisa para um ano e meio, dois anos”. Citava-se o caso anterior do período mais curto de desenvolvimento de uma vacina, a da caxumba, que levou quatro anos para chegar ao mercado. E a ciência nos colocou não uma, mas várias vacinas antes de um ano do início da pandemia.   

A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus; cinco dessas vacinas, que já estão no mercado, foram testadas na população brasileira, em que foram realizados ensaios clínicos. Nós sabemos que, para fazer ensaio clínico, você tem de ter uma estrutura de ciência e de hospitais de ensino e pesquisa; uma estrutura regulatória – nós temos uma das melhores agências reguladoras do mundo, a ANVISA. E os brasileiros publicaram inúmeros artigos, e participaram de inúmeras iniciativas no campo da ciência extremamente importantes no enfrentamento dessa doença.   

Outra dimensão que tem muito a ver com ciência, embora não se limite a ela, na verdade a transcende, é a questão do desenvolvimento tecnológico que depende da ciência e que entrou de novo na agenda. Todos nos lembramos do que aconteceu em março do ano passado: não tínhamos testes, não tínhamos respiradores, nem equipamentos de proteção individual, e a nação perplexa chegou à seguinte conclusão: a gente compra tudo da China. Ora, por que não fazemos aqui? Existiriam barreiras tecnológicas ou de conhecimento intransponíveis? De maneira alguma. Isso é reflexo de décadas de uma visão totalmente equivocada do que deva ser o processo de desenvolvimento brasileiro, o que se repetiu no início deste ano, quando se tentou justificar a falta de vacinas pela dependência da importação da China dos princípios ativos para produzi-las.   


"Temos hospitais, instituições, programas e
políticas de excepcional qualidade no SUS e no
setor privado. Temos problemas dramáticos de
qualidade no SUS e no setor privado"

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil


Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde. Quando eu estava no ministério, entre 2007 e 2010, implementamos, de maneira pioneira, durante o segundo mandato do presidente Lula, uma política voltada exatamente para essa prioridade: como internalizar e aumentar a capacidade brasileira de produzir aqui tecnologias que até então importávamos. Fizemos isso no campo das vacinas, de medicamentos para transplante, de medicamentos para distúrbios psíquicos, de medicamentos para doenças reumatológicas, de testes para diagnóstico. Chegamos a desenvolver cerca de 80 projetos de parcerias entre laboratórios de capital nacional, multinacionais e laboratórios públicos. Mas, a partir de 2016, tudo se interrompeu, e agora no governo Bolsonaro, simplesmente não temos a menor perspectiva de que esse projeto possa seguir adiante. Em resumo: SUS na agenda, ciência na agenda e a redução da vulnerabilidade tecnológica da saúde brasileira na agenda dos próximos anos.   

RPD: Para quem não é da área, é grande a influência das versões difundidas pela imprensa e redes sociais, essencialmente que estamos em uma situação catastrófica e que vamos bater todas as marcas negativas em relação a essa pandemia. É procedente essa visão? Como chegamos a esse quadro? Onde erramos? Onde o governo federal, os governos subnacionais, a sociedade civil, enfim, erraram? E o que fazer para superar isso no curto prazo, para, senão superar, pelo menos minimizar os estragos que se anunciam?  

JGT: Havia, no início do ano passado, uma expectativa nacional e internacional sobre o desempenho do Brasil no contexto da pandemia, que eu qualificaria de positiva. Baseava-se na existência do SUS, um sistema universal que ampliou muito o acesso da população aos serviços – claro, com todas as dificuldades que conhecemos. Incorporava, também, a percepção internacional, construída ao longo de muitas décadas, da liderança que o Brasil exercera em alguns foros multilaterais, na área da saúde global. A Organização Panamericana da Saúde foi dirigida ao longo de décadas por brasileiros. O primeiro diretor geral da Organização Mundial da Saúde foi brasileiro, o Marcolino Candau, que ficou lá mais de dez anos. O Brasil teve papel importantíssimo na aprovação da legislação de TRIPs, na OMC, que regula a proteção patentária em medicamentos e produtos de saúde. O Brasil foi líder na aprovação da Convenção-quadro para o controle do tabagismo, o primeiro tratado de saúde pública internacional. Ou seja, o Brasil era visto como país dotado das ferramentas e as condições necessárias para enfrentar a pandemia.  

Faltou nessa análise, porém, considerar um componente que terminaria por evidenciar a grande vulnerabilidade brasileira. É bem distinto mobilizar o sistema de saúde, mobilizar a ciência e ter um governo que enfrente uma situação como essa de maneira competente ouvindo a ciência e saúde públicas se você tem uma grande homogeneidade social – caso da Europa. Mas, em um país estruturalmente desigual, como o Brasil, a complexidade das ações requeridas é bem maior. Teríamos de ter tido algumas iniciativas, decisões, o que não ocorreu.   

"O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis"

Por exemplo: desde o início, uma política econômica a serviço da saúde e a serviço da defesa da vida. Contamos, na verdade, única e exclusivamente com o benefício emergencial de R$ 600, graças ao Congresso Nacional, e que foi interrompido em dezembro. Isso foi pouco. Houve muitas iniciativas da sociedade civil, organizações não governamentais, movimentos culturais, movimentos de mulheres, população negra e jovens, para tentar enfrentar de alguma maneira, minimizar o impacto dramático dessa doença e, inclusive, de viabilizar que esses estratos mais vulneráveis da população pudessem manter distanciamento e permanecer em casa. Mas foram claramente insuficientes. O setor privado também ensaiou um apoio, em situações localizadas, desestruturado, desorganizado.   

Além disso, deveríamos ter tido, também desde o começo da pandemia, como implementei quando dirigi o ministério da saúde em 2009 e 2010 ante o surto do H1N1, a liderança do governo federal para coordenar e elaborar um plano de ação, elaborado por um comitê permanente onde o governo federal, os estados e os municípios juntos com a ciência e a saúde pública, construíssem as estratégias. O objetivo seria mobilizar a sociedade, com base em um projeto de comunicação pesado, para orientar, informar, educar, segundo as prescrições da saúde pública e da ciência, vale dizer: evitar aglomerações, manter o distanciamento, uso universal de máscaras, higiene das mãos, e agora as vacinas.   

E o que tivemos? Tivemos uma fragmentação da federação brasileira. O governo federal, na verdade, se transformou em um polo de resistência às medidas prescritas pela ciência e pela saúde pública. O presidente liderou esse processo criminoso repetidas vezes, como o atestam dezenas de exemplos, fatos, declarações e comportamentos públicos.  

Somente em dezembro último, o presidente aceitou, a contragosto, a inclusão da vacina do Butantan no PNI e nunca cessou de prescrever falsos tratamentos, estimulando as pessoas a um comportamento irresponsável. Minimizou a gravidade da pandemia e apostou na curta duração de seus efeitos, para fortalecer sua oposição ao isolamento social e abrir espaço à difusão de fake news. Debilitou o comando as operações do governo no campo da saúde pública ao militarizar o ministério da Saúde, comprometendo sua capacidade técnica, sua respeitabilidade e credibilidade. Deixou o país um ano à deriva, sem ministro e sem ministério. Construiu, na prática, uma autoridade sanitária paralela informal. Quebrou uma das pernas centrais da nossa capacidade de enfrentamento, ao debilitar o pacto federativo, jogando a responsabilidade sobre os governadores e prefeitos. Não orientou nem cobrou uma política econômica que estivesse em total sintonia com a política de saúde.   

Esse comportamento do presidente não deve ser julgado de maneira isolada. Juntam-se, cúmplices, o ministro da saúde, o ministro da economia e o conjunto do governo como um todo, que devem também solidariamente ser responsabilizados pela tragédia que nos levou a mais de 330 mil óbitos, em começos de abril (País superou a marca de 350 mil mortes em 12/04/2021). É o epílogo sangrento, dramático, pungente de um ano de negação, de mentiras, de quebra da federação, de ataque à ciência, à saúde pública e a Organização Mundial da Saúde.   

RPD: Como vê o horizonte da vacinação no Brasil?  

JGT: Tivemos as primeiras vacinas chegando ao mercado internacional em dezembro do ano passado, e o Brasil tem dois dos maiores produtores de vacinas do mundo, resultado, inclusive, de décadas de investimento na Fundação Oswaldo Cruz e no Butantan. O Butantan por conta própria, e em uma luta incrível, insana, contra o presidente da República, fechou acordo com os chineses e desenvolveu sua vacina usando plataforma que o Butantan já domina há muito tempo, a mesma plataforma tecnológica da vacina da gripe que usamos todos os anos, a vacina da influenza. E a FIOCRUZ optou por algo mais ousado: fez um acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford de uma plataforma tecnológica nova: é a primeira vacina no mundo que usa essa plataforma tecnológica, que usa o veículo adenovírus de chimpanzé, que coloca a proteína da espícula do vírus no nosso organismo, e, a partir daí, a gente desenvolve os anticorpos. Dispomos, assim, de duas grandes fábricas de vacinas, mas uma limitação: ainda dependemos da importação dos princípios ativos.   

"A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus"

Considerando esse contexto, o que deveríamos ter feito? Erramos onde não poderíamos ter errado, para além dos erros que já listei aqui, mas no campo das vacinas, especificamente. Sabedores de que tanto o Butantan como FIOCRUZ teriam dificuldades no início do ano de produzir em larga escala por essa dependência de insumos, e também porque o processo de transferência de tecnologia é complexo – é normal não se cumprirem prazos restritos do cronograma –, deveríamos ter feito três coisas que não fizemos:  

- Desde abril do ano passado, o PNI – considerado como um dos melhores do mundo, que vacinou, em 2010, 90 milhões de brasileiros contra o H1N1 em três meses – deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. Não só não fizemos isso, mas também rejeitamos a oferta da Pfizer de 70 milhões de doses. Isso ocorreu no tempo em que o presidente atacava as vacinas o tempo todo.   

- O mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, constituído por um pool de produtores, um fundo financiado por doações e com recursos de países desenvolvidos, foi de início rechaçado pelo Brasil. Quando o governo aderiu, optou apenas pelo número mínimo de doses, que é de 10% da população. Receberemos, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. Só que teríamos direito, e não exercemos, de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   

- Tivéssemos fechado acordos de compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás e garantido um volume de doses que se somariam a ainda incipiente capacidade brasileira do Butantan e FIOCRUZ, neste momento praticamente 10% da população brasileira receberiam a primeira dose, isto é, de 19 a 20 milhões de pessoas. Tivéssemos vacinas a partir de janeiro, já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas. E o impacto disso na redução da circulação do vírus, das pessoas infectadas, internadas, mortas teria sido dramática. Por isso, afirmo: a sociedade brasileira, o povo brasileiro foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandeia.  

RPD: Diante disso tudo, da má gestão política, sanitária, diplomática e econômica, como responsabilizar a quem de direito e evitar que esses crimes fiquem impunes?  

JGT: Já são inúmeras as iniciativas, dentro e fora do país. Eu, mesmo, ao lado de vários outros ilustres sanitaristas e cientistas, subscrevi um pedido de impeachment do presidente da República, pedido que se adiciona a mais de uma centena de outros ora hibernando na gaveta do presidente da Câmara dos Deputados, para não mencionar a representação de ex-ministros da saúde, ex-juristas, juristas advogados, apresentada ao Tribunal de Haia contra o presidente Jair Bolsonaro. O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis.   

Mas o governo federal cooptou, para usar um termo educado, o chamado Centrão para impedir que esses processos avancem. Por isso, não conseguimos garantir que essas iniciativas conduzam à abertura de um processo de impedimento do presidente, o principal obstáculo a um adequado, responsável e sério manejo do enfrentamento da pandemia, onde a ciência e a saúde pública têm que prevalecer. Não conseguimos até o momento transformar esse conjunto de denúncias inclusive junto ao Ministério Público, a Advocacia Geral da União e ao Supremo, em fatos que transcendam a decisão política da denúncia em si. Não conseguimos sequer abrir o processo de impedimento, porque, segundo nossa Constituição, cabe ao presidente da Câmara a decisão monocrática de submeter a matéria à apreciação de seus pares no plenário, o que não ocorreu na gestão do Rodrigo Maia nem parece vir a ocorrer na da Artur Lira. O Ministério Público tem sido omisso diante das dezenas denúncias recebidas não se manifestando. No âmbito do Tribunal de Haia, ainda não se decidiu sobre o acolhimento da representação.  

"Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde"

Não tenho dúvida, porém, de que as evidências são muito contundentes: os crimes estão aí, os números estão aí, os vídeos estão aí, as manifestações estão aí; a tipificação de crimes contra a Constituição e o Código Penal está aí. E todos esses senhores e senhoras serão responsabilizados pelos crimes cometidos contra a população brasileira, contra a segurança nacional. Inclusive, contra o próprio desenvolvimento da nação e a frustração no campo da educação; a fome voltou; a mortalidade por doenças que tinham sido reduzidas, aumentou. Os responsáveis terão de ser punidos. Não apenas nas urnas em 2022: punidos criminalmente por cometimento de crimes contra a vida e a saúde da população.  

RPD: É muito preocupante quando se fala da perda da liderança do Brasil no sistema de saúde global. Mas também é possível dizer que o sistema global também está muito frágil, mesmo com as declarações quase diárias e emocionais, dramáticas, muitas vezes, do diretor geral da OMS. Falta uma coordenação global. Tudo indica que esta não será a última pandemia. Outras virão, no rastro de novos desastres sanitários e sociais, no rastro da questão da migração e do desrespeito à questão ambiental. Tudo isso prenuncia novas pandemias. Para que não sejam tão devastadores como o atual, será necessária uma coordenação sob uma liderança global. O que pensa a esse respeito?   

JPT: Essa é uma questão fundamental para nosso futuro. Começo com o que Brasil conseguiu fazer no exterior no cenário da saúde global. Estive há dois anos em Maputo, em Moçambique, e visitei um projeto desenvolvido pela FIOCRUZ, no âmbito de ações semelhantes lançadas para os países portugueses africanos lusófonos. Era o Instituto de Saúde Pública local, um prédio imponente, construído pelos Estados Unidos, cheio de equipamentos de última geração, fornecidos pela China, e operado por mestres, doutores e especialistas, treinados no Brasil. A importância do projeto refletia a diferença da abordagem da ajuda prestada pelos Estados Unidos e pelo Brasil na capacitação do sistema de saúde. Enquanto os Estados Unidos priorizaram doações para a montagem de programas verticais de combate a doenças escolhidas, como malária, chagas ou tuberculose, o Brasil privilegiava um olhar da cooperação em saúde estruturante, vale dizer, ajudando os países a organizar seu sistema de saúde, suas instituições permanentes de saúde.  

Isso foi alcançado pela associação entre o Ministério da Saúde, pelo menos de 2000 à gestão do ex-ministro Serra até 2016, e do Itamarati, por intermédio da ABC – Agência Brasileira de Cooperação. E nós perdemos tudo isso quando o Michel Temer entra, e principalmente agora com o Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores virou motivo de chacota nos corredores do Itamarati e acabou saindo, não sem antes contribuir para destruir a projeção visão internacional do Brasil, também no campo da saúde. Teríamos podido ajudar muito mais os países em desenvolvimento.  

Não devemos esquecer, por outro lado, que, a reboque da visão de Trump, Bolsonaro atacou frontalmente a OMS justo quando o mundo precisava de uma agência forte, nos planos técnico, financeiro e político. Falando em coordenação internacional, a OMS é absolutamente fundamental, haja vista a realidade nua e crua das vacinas. Atualmente, a questão da distribuição e consumo, a disponibilização de vacinas em termos globais, repete o mesmo padrão de desigualdade das outras tecnologias da saúde ao longo de décadas. Mais de 60% de todas as doses de vacinas destinam-se a atender cerca de 15 países, os países ricos.   

Tudo isso clama por uma OMS fortalecida. Fortalecida, inclusive para começar a discutir outros temas: a questão de patentes. A proteção patentária está na OMC, mas deveria estar na agenda de discussão e trabalho da OMS. Não há dúvida de que teremos situações de vulnerabilidade sanitária e outras pandemias no futuro. Impõe-se, portanto, uma OMS cada vez mais forte. E que o Brasil reocupe o papel tão importante que ocupou ao longo das últimas décadas, infelizmente, conspurcado, apagado pelo governo Bolsonaro.  

Saiba mais:

*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.

*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.

*Caetano Araújo é consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

*Renato Ferraz é jornalista profissional desde 1988. Trabalhou em veículos como Veja, Correio Braziliense, Congresso em Foco e outros. É pós-graduado pelo UniCeub e pela ISE Business School/Universidad de Navarra.

  • ** Entrtevista realizada para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Reportagem especial: Crimes cibernéticos disparam na pandemia com leque variado de abordagem

Pesquisas fraudulentas sobre Covid, links de promoção e show on-line e desvio de auxílio emergencial estão entres os principais golpes dos criminosos

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

- Olá! Sou da equipe do Ministério da Saúde que faz levantamento sobre a Covid-19 no país. Posso fazer quatro perguntas rápidas para a senhora colaborar com essa pesquisa?

A empresária Tatiane Gusmão, de 48 anos, respondeu ao breve questionário por meio de ligação recebida em seu celular no início deste mês. Do outro lado da linha, um homem se apresentou muito educadamente e em linguagem formal.

Tatiane Gusmão respondeu a um breve questionário por meio de ligação recebida em seu celular e acabou sendo vítima de um golpe. Foto: Ailton de Freitas

Sem qualquer desconfiança, a empresária respondeu que mora em Brasília (DF), confirmou a idade dela, disse que foi curada da Covid após ficar internada por dois meses e afirmou que conhecia outras pessoas que contaminadas. Por fim, como registrado em gravação de áudio em seu celular, Tatiane recebeu novo pedido.

- Agora, senhora, enviei ao seu celular um código de certificação das respostas e, por gentileza, peço para me informar a sequência numérica.

A empresária titubeou, mas, imediatamente, ouviu que precisava informar o código recebido. Por isso, seguiu a orientação. Logo depois de confirmar a numeração, o acesso dela ao WhatsApp foi bloqueado. Ela teve os contatos violados, e o golpista mandou mensagens a eles pedindo dinheiro.

Sem saber que era fraude, uma cliente da empresária transferiu R$ 2 mil para conta dos criminosos. Outra duas fizeram transferência de R$ 5 mil, cada uma. Caíram no golpe do WhatsApp, um dos crimes digitais mais comuns. “O golpista foi muito convincente e falava impecavelmente bem. Não esbocei qualquer suspeita”, contou Tatiane.

De acordo com o Ministério da Saúde, a pesquisa telefônica (Vigitel) não faz contato com os entrevistados por meio de aplicativos. As únicas informações pessoais solicitadas são sobre idade, sexo, escolaridade, estado civil e raça/cor.

Aumento de 107%

No ano passado, relatos de crimes virtuais mais que dobraram, em relação a 2019. A Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, uma parceria da ONG Safernet Brasil com o Ministério Público Federal (MPF), recebeu 156.692 denúncias anônimas de crimes cometidos pela internet, em 2020. No ano anterior, foram 75.428.

A Polícia Federal investiga centenas de golpes envolvendo o auxílio emergencial. Nessa modalidade, os criminosos usam aplicativos falsos para simular o app da Caixa Econômica Federal e capturam informações pessoais dos usuários.

“Após obter esses dados, o criminoso consegue a carta coringa, literalmente, pois consegue dar vários golpes no nome da vítima e pedir o próprio auxílio emergencial”, explica o delegado Warley Ribeiro.

Além de golpes de auxílio emergencial e pesquisas fraudulentas sobre o coronavírus, os criminosos enviam links falsos de cervejaria com oferta fictícia de bebida gratuita a quem adere o isolamento social e lives de shows clonadas para desviar doações. Tudo para furtar dados do celular da vítima.

Salto vultoso

Os crimes virtuais, especialmente os estelionatos, dispararam desde o início da pandemia de Covid-19. No início da crise sanitária no país, pesquisa da Apura Cybersecurity Intelligence, empresa especializada em ameaças digitais, identificou salto de 41.000% de sites suspeitos sobre coronavírus e Covid com domínio no Brasil. Passaram de 2.236, em março de 2020, para 920.866, dois meses depois.

Maurício Paranhos: Pesquisa identificou salto de 41.000% no número de sites suspeitos sobre coronavírus e Covid com domínio no Brasil. Foto: Divulgação

O diretor de operações da Apura, Maurício Paranhos, disse que os crimes cibernéticos apresentavam taxas de crescimento, as quais, segundo ele, se multiplicaram após o início da pandemia. “Os cibercriminosos estão utilizando temas relacionados à Covid para chamar a atenção e atacar. Não poupam nem instituições de saúde”, afirmou.

De acordo com relatório Allianz Risk Barometer 2021, que colheu informações de empresas de 92 países, o Brasil é o único país da América Latina em que o risco cibernético é colocado no topo de ameaças. Supera até o risco de pandemia.

E não são apenas pessoas que estão no alvo dos criminosos. Também estão na mira dos hackers as empresas de energia e dos segmentos de healthcare, educação, tecnologia e instituições financeiras, segundo a especialista Ana Albuquerque, executiva de linhas financeiras da Willis Towers Watson, multinacional de gestão de risco.

Golpes ransomware

Em fevereiro deste ano, ataques cibernéticos causaram a suspensão do funcionamento de empresas do setor elétrico como a Copel e a Eletronuclear e levantaram alerta para demais companhias. Os crimes foram ransomware, cada vez mais sofisticados e que se caracterizam pelo sequestro de dados de dispositivos e liberação só com o pagamento de “resgate”

“Esse tipo de golpe teve incremento significativo em 2020, por causa da maior vulnerabilidade que o home office trouxe para as empresas, e deve continuar sendo uma forte ameaça em 2021”, alertou a especialista da multinacional domiciliada na Irlanda.

Além disso, de acordo com a Kaspersky, empresa especializada em segurança digital, dos mais de cinco mil golpes de ransomware registrados todos os dias na América Latina, 46,6% ocorrem no Brasil.

Empresas como a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto (CNAAA), da Eletronuclear, já foram alvos de ataques virtuais. Foto: Ascom/Eletronuclear

Alguns ataques que causaram a suspensão do funcionamento de empresas do setor elétrico como a Copel e a Eletronuclear. Tal situação já acendeu um sinal de alerta para demais companhias do segmento. Os crimes foram do tipo ransomware, que estão cada vez mais sofisticados, e se caracterizam pelo sequestro de dados de dispositivos e liberação apenas com o pagamento de um “resgate”.

Há ainda ataques por meio do envio de arquivos por email, muitas vezes clonados e capazes de driblar os antivírus. Mensagens em SMS com links falsos que apontam para sites falsos também são utilizados.

“Ao clicar em um link malicioso [fraudulento] e instala o aplicativo, ele passa a monitorar tudo o que você digita no seu computador ou no celular. Ao entrar no internet banking, por exemplo, ele captura os dados e pode usá-los para fazer transações indevidas”, alerta o advogado Rodrigo Antunes Goncalves, especialista em crimes cibernéticos.

O consenso entre os especialistas é de que, apesar de serem praticados de diversas formas, os crimes cibernéticos podem diminuir caso as pessoas, como a empresária de Brasília, adotem, principalmente, dois parâmetros que eles classificam como essenciais: desconfiar, sempre; compartilhar dados sigilosos virtualmente ou por telefone, jamais.


Dicas para evitar ciberataques

Confira algumas medidas que podem ajudar a barrar ou dificultar a ação de hackers

  • 1 - Use soluções de segurança no celular como detecção automática de phishing em aplicativos de mensagens e redes sociais
  • 2 - Tenha cuidado ao tocar em links compartilhados no WhatsApp ou nas redes sociais. Vá direto aos sites oficiais das empresas para baixar qualquer aplicativo
  • 3 - Desconfie de promoções, brindes e descontos muito bons. Pesquise antes na própria internet sobre a empresa anunciante
  • 4 - Empresas devem instruir seus funcionários a alterarem sempre as senhas, não clicarem em nenhum link, desconfiar de e-mails que solicitem informações pessoais e não abrir anexos suspeitos
  • 5 - Se for vítima de crimes digitais, faça boletim de ocorrência. Em muitos estados, é possível fazer o registro online

Foto: Aílton de Freitas



Crime de perseguição, stalking começa a ter punição específica no país

Luiz Augusto D’Urso: Nova tipificação de crime é um avanço na proteção das vítimas. Foto: Arquivo pessoal

Especialistas avaliam que as pessoas ganham mais uma “forma de proteção” com a mais recente inclusão do crime de perseguição ameaçadora, também conhecido como stalking, no Código Penal Brasileiro. A nova tipificação passou a valer, no dia 1º de abril deste ano, com a publicação da Lei 14.132.

Presidente da Comissão Nacional de Cibercrimes da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas e professor de Direito Digital da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o advogado Luiz Augusto D’Urso, viu o novo crime como um avanço na proteção das vítimas.

“Criminalizando tal conduta, cria-se uma forma de se punir os stalkers”, disse, para acrescentar: “Tal conduta já havia sido criminalizada em alguns países da Europa e nos EUA”. Segundo ele, essa criminalização, embora importante, poderá não implicar e efetiva redução do crime, pois, avaliou, não levará o agente à cadeia, em razão da pena prevista.

O Legislativo, de acordo com o advogado, precisou de atenção com relação à proporcionalidade das penas diante das outras condutas criminalizadas, fixando, para o agente (stalker), pena de 6 meses a 2 anos. “Essa pena pode parecer branda, mas, sendo vista de forma sistematizada, é adequada ao nosso ordenamento jurídico”, analisou.

Sociedade hiperconectada

Com o avanço da sociedade, cada vez mais hiperconectada, a violência passou a ser concretizada também por meio virtual, pela internet. Daí chamar-se de cyberstalking a perseguição realizada por intermédio da internet, seja por redes sociais, emails, blogs ou outros meios de comunicação digital.

Pós-doutora em Democracia e Direitos humanos, Cláudia Aguiar Britto observou que é necessário um olhar mais profundo em cada caso de perseguição, visto que haverá episódios em que será priorizada atenção e proteção à vítima.

Isto, segundo ela, deve ocorrer considerando a gravidade das ações do algoz e o contexto da relação, que pode se tratar de um grave caso de violência doméstica e familiar contra a mulher.

*Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. PauloEl PaísEstadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.

  • ** Reportagem realizada para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Henrique Brandão: Doses de felicidade

Thomas Vinterberg e Mads Mikkelsen emplacaram indicações ao Oscar (melhor diretor e melhor filme estrangeiro) e Bafta (melhor ator) com uma comédia dramática apoiada no existencialismo, refletindo sobre as relações humanas e sobre viver

Druk – Mais uma rodada, estreou no circuito de cinemas brasileiros no dia 25 de março e, por conta da pandemia que afastou o público das salas, também está disponível nas plataformas digitais (Now, iTunes, Apple TV, Google Play e YouTube Filmes). É o representante da Dinamarca na disputa do Oscar de filme estrangeiro. Seu autor, Thomas Vinterberg, foi indicado para a categoria de melhor direção.  

O filme aborda tema explorado exaustivamente pelo audiovisual: a relação do ser humano com o álcool.  

Hollywood, a maior indústria de cinema do mundo, é pródiga em obras que condenam o consumo excessivo de álcool. Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945) talvez seja a mais famosa delas. Dirigida pelo genial Billy Wilder, foi indicada em sete categorias e arrebatou os principais prêmios (filme, direção, ator e roteiro adaptado).  

Outro clássico hollywoodiano em a que a bebida é apresentada como destruidora de lares é Nasce uma Estrela (A Start is Born) que teve, até agora, quatro versões, sendo a mais celebrada a que teve Judy Garland (1922-1969) no papel principal, em 1954. A lista é enorme. 

Em muitos casos, a vida imitou a arte. Se a bebida era a principal vilã pela ruína dos personagens interpretados pelos astros e estrelas da indústria cinematográfica, por trás das câmeras a coisa não ficava muito longe da ficção. Judy Garland, por exemplo, não aguentou as pressões a que os estúdios e sua mãe dominadora a submetiam desde a adolescência e acabou tornando-se alcoólatra e dependente de barbitúricos, causa de sua morte, aos 47 anos. 

Foram muitos os astros bons de copo em Hollywood. Humphrey Bogart (1899 -1957), o lendário dono do Rick’s Café no filme Casablanca (1942), possivelmente é o mais conhecido deles. Certa feita, quando perguntado se estava bêbado ao depor em um tribunal, declarou: “e quem não está bêbado às três da manhã?” Outra tirada famosa atribuída a ele: “a humanidade está três uísques atrasada.” 

Vários diretores de cinema também gostavam de dar seus goles. Que o digam John Houston (1906-1987), com quem Bogart estrelou Relíquia Macabra (Maltese Falcon, 1941), O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre, 1948) e Uma Aventura na África (The African Queen, 1951), e Orson Welles (1915-1985), o diretor de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), considerado pela crítica até hoje um dos melhores filmes de todos os tempos.  

(Welles é conhecido dos brasileiros: em 1942 esteve no Rio para filmar o carnaval carioca como parte de It’s All True. O filme nunca foi concluído, mas o diretor se acabou na folia, regada a bebida e lança-perfume.)  

Por aqui, abaixo do Equador, na mesma linha melodramática da desgraça alcoólica, O Ébrio (1946), estrelado por Vicente Celestino (1894-1968), foi um estouro de bilheteria. O nome fala por si.  

Nem tudo, porém, foi tratado como tragédia. Bar Esperança (1983), de Hugo Carvana (1937-2014), é uma deliciosa comédia. A cena em que dois amigos acordam com um cachorro ao lado e indagam um ao outro se o animal é real ou fruto de delirium tremens é antológica.  

Em tom de comédia dramática, Druk – Mais uma rodada, traz abordagem mais humanitária do tema. Ao contrário de grande parte dos filmes norte-americanos, não mostra visão puritana do consumo de álcool.  

Seus personagens são quatro professores de Copenhague em crise de meia idade. O marasmo de suas vidas afetiva e profissional é evidente. Durante um encontro, surge a ideia de testarem a hipótese levantada pelo psicoterapeuta norueguês Finn Skarderud de que o ser humano nasce com 0,05% de déficit alcoólico e que repor essa quantidade diariamente deixaria a todos mais felizes e dinâmicos.  

Usando bafômetros e um diário onde registram suas impressões, o quarteto cai de boca na bebida para comprovar a tese. Os efeitos positivos são logo vislumbrados. Os alunos de Martin, o personagem interpretado com maestria por Mats Milkkelsen, são os primeiros a enxergarem a mudança: as tediosas aulas de história dão lugar a lições que atraem o interesse de todos. Em casa, a relação com a esposa e os filhos reaquece. 

Os outros amigos-professores, cada qual à sua maneira, também percebem as alterações nas suas rotinas. Diante dos efeitos positivos, os amigos resolvem ampliar o consumo de bebidas. Nem todos, no entanto, reagem bem ao aumento da ingestão alcoólica.  

Druk – Mais uma rodada passa ao largo do moralismo habitual que cerca o assunto. A bebida não é demonizada, nem idolatrada. É mais um elemento com que todos convivem. Na verdade, o filme é uma ode à vida. Sem maniqueísmo. Não há heróis, nem bandidos. Apenas pessoas tentando seguir adiante, em busca de algumas doses de felicidade. 

*Henrique Brandão é jornalista e amante de cinema 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fernando Gabeira: O som e a fúria em Brasília

Com um governo negacionista como o de Bolsonaro despontamos para o atraso

Não é fácil entender a política brasileira, mas quem se detiver, esta semana, nos dois mais intrincados nós a serem desatados em Brasília talvez chegue a algumas conclusões interessantes. Os dois nós são a CPI da pandemia e a inadequação do Orçamento da União.

No primeiro, o governo é acusado de omissão no processo de combate ao vírus que já nos custou mais de 360 mil vidas e poderá custar 600 mil até julho, segundo prognósticos da Universidade de Washington. Acusações e mesmo investigações sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia não são novas. Há processos no Tribunal Internacional de Haia e inquéritos como o das mortes em Manaus, em que Eduardo Pazuello é o principal investigado.

Bolsonaro é acusado de negacionismo e, realmente, tem negado a importância da pandemia desde o início. Era previsível que surgisse uma CPI sobre o tema no Congresso, uma vez que os parlamentares estavam de quarentena, mas não mortos.

Eleito com apoio de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, bloqueou a instalação da CPI. Quando, numa entrevista, perguntei a razão do bloqueio, ele respondeu com os argumentos usais de que é preciso união, foco no combate à doença. Na verdade, usou o argumento da própria pandemia para negar direitos legais, algo que muitos governos autoritários tentam fazer no mundo.

A reação de Bolsonaro à CPI foi uma nova forma de demonstrar seu negacionismo. Ele sabe que CPI, além do número legal de assinaturas, precisa de fato determinado. Na conversa gravada com o senador Kajuru, ele pede que a investigação seja estendida aos prefeitos e governadores. É preciso investigar tudo, diz ele. E nós sabemos que essa é a senha para não investigar nada.

A proposta é quase tão absurda quanto chamar a covid-19 de gripezinha ou insinuar que a vacina transforma gente em jacaré. O Senado teria de usar seus recursos limitados para investigar todo o Brasil, sabendo que 11 Estados já fazem essa investigação e em dois, Rio de Janeiro e Santa Catarina, os governadores investigados já foram afastados do cargo.

Isso tudo sem contar o fato de que a Polícia Federal trabalha no tema em nove Estados e já recuperou em torno de R$ 7 milhões desviados, até com incursões em gabinetes de governador, como no caso de Helder Barbalho, no Pará.

Bolsonaro convidou o Senado à dispersão de esforços para se proteger. E não satisfeito em lançar mão de Estados e municípios como escudo, quer que se abram processos contra ministros do Supremo.

São duas lições importantes sobre a política no Brasil. Acusados tentam sempre ampliar as investigações para desaparecerem nela, e quase sempre alegam que todos estão errados. No caso, a ideia é pôr a limitada estrutura do Senado a investigar todo o Brasil e, simultaneamente, tentar cassar membros do Poder Judiciário.

Em outras palavras, a melhor maneira de investigar a omissão criminosa de Bolsonaro é uma ofuscante e laboriosa atividade cujo resultado pode ser nulo. É uma nova pirueta do negacionismo. Não houve pandemia, muito menos responsáveis pela mortandade. A CPI seria apenas, como em Macbeth, uma história, contada por idiotas, cheia de som e fúria, significando nada.

O nó do Orçamento também é interessante, por mostrar que se tornou um instrumento tão precário que não serve nem para um desgoverno como esse que existe hoje no Brasil. Negociações medíocres entre governo e Congresso acabaram fazendo a balança pender para alguns ministérios e, sobretudo, para o lado dos parlamentares.

Não se sabe onde vai parar parte do dinheiro da Previdência, do seguro-desemprego, do financiamento da agricultura familiar. O próprio Paulo Guedes afirma que com esse Orçamento é impossível prosseguir e teme até o impeachment de Bolsonaro. Como sempre, a conta está um pouco mais alta: R$ 33 bilhões.

O que é esclarecedor sobre o Brasil são as soluções discutidas nos bastidores. Aí, sim, o observador conhecerá um pouco da nossa cultura, seguindo o debate. Uma das propostas para livrar Bolsonaro de processo é uma viagem ao exterior. O Orçamento seria assinado por Arthur Lira, que já está queimado mesmo e serviria de escudo para o presidente.

Também muito didática é a troca de ideias entre Guedes e os parlamentares. O ministro propõe que sejam cortados os R$ 33 bilhões e se façam ajustes lá na frente. Os parlamentares propõem que sejam mantidos e se façam ajustes lá na frente. Uma ausência tão completa de planejamento é também uma espécie de negação do governo. O Orçamento é apenas para tocar os assuntos correntes.

O problema é que essa ausência de governo real assusta até o mercado. Hoje apenas por ser uma dispendiosa ausência. Logo o próprio mercado sentirá falta de um governo com projetos de renovação pós-pandemia.

Nos Estados Unidos discute-se uma nova relação entre governo e forças produtivas, trabalha-se com a consciência de um desastre climático, aprofunda-se a experiência digital. O Brasil costuma levar alguns anos para se sintonizar com o mundo. Quase sempre foi assim, mas com um governo negacionista certamente despontamos para o atraso.

*Jornalista


Monica de Bolle: O plano Biden

Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente

Diretamente de Washington D.C., vejo com curiosidade a maneira como a imprensa brasileira tem repercutido o plano do presidente Joe Biden para aprimorar a infraestrutura do país e deslanchar sua dupla agenda de proteção social e combate às mudanças climáticas. Curiosidade e também alguma graça. Persiste no Brasil a ideia de que os Estados Unidos são o exemplo de país em que o desenvolvimento se deu pela iniciativa privada, sem protagonismo do Estado. A ideia é errada e mostra um profundo desconhecimento da história do país. E o desconhecimento histórico, nesse caso, não é inofensivo, porque acaba servindo para afastar os aspectos positivos do Estado indutor, em argumentos simplórios, que apresentam apenas seus aspectos negativos, que de fato existem. Tenta-se revitalizar, com esse tipo de construção, a noção de que o Estado protagonista só traz ineficiências, como se o mundo pudesse ser simplificado para caber no que tenho chamado de “liberalismo à brasileira”.

Os Estados Unidos se industrializaram tardiamente, assim como a Alemanha e o Japão, quando se tem o Reino Unido como termo de comparação. A industrialização americana aconteceu na segunda metade do século XIX e foi extremamente rápida: no fim do século, os EUA já rivalizavam com o Reino Unido no comércio internacional. A industrialização no país seguiu alguns dos princípios estabelecidos por Alexander Hamilton — o primeiro secretário do Tesouro — no final do século XVIII. Em sua obra Report on the subject of manufactures, publicada em 1791, Hamilton elabora os princípios da industrialização destacando que o desenvolvimento nacional requeria medidas que discriminassem a favor dos produtores locais.

Portanto, argumentava Hamilton, o processo de industrialização teria de se ancorar em dois eixos principais: o protecionismo e a substituição de importações. Alguns anos mais tarde, Friedrich List iria se valer de argumentos semelhantes para tratar da industrialização alemã. O interessante é que List o faria a partir de suas observações em relação ao que se passava nos Estados Unidos, onde residira antes da publicação de Sistema nacional de economia política, em 1841. Tanto Hamilton quanto List exerceram grande influência sobre o papel do Estado na industrialização americana. Ao final do século XIX, os grandes conglomerados industriais deveriam sua existência ao Estado indutor do desenvolvimento.

Para o desgosto de alguns no Brasil, o “desenvolvimentismo” marcou, assim, a ascensão da economia americana e continuaria a se fazer presente, em maior ou menor intensidade, nas muitas décadas que se seguiram. Em 1934, estaria lá o Estado para socorrer o país da Grande Depressão. A corrida espacial e o complexo tecnológico que a possibilitou durante a Guerra Fria não teriam sido possíveis sem o papel do Estado. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, a internet foi concebida e desenvolvida pelo governo americano. Todo o setor de tecnologia de informação hoje existente não teria se formado sem o financiamento do Estado. Por fim, e essa não é uma lista exaustiva, os Estados Unidos não seriam dominantes na área de biotecnologia sem o papel do Estado. Esse domínio, hoje, está mais visível do que nunca no desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19: as vacinas gênicas da Pfizer e da Moderna, que usam tecnologia mais sofisticada, foram possíveis graças a financiamento e contratos de compra no âmbito da Operação Warp Speed.

É nesse contexto que se insere o Plano Biden. Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente.

Ele prevê investimentos maciços em áreas diversas e seu tamanho — todo o PIB do Brasil — deixou alguns assombrados. É curiosa essa reação. Trata-se do país emissor da moeda de reserva internacional, o dólar, anunciando um plano ambicioso e caro, como fez em diferentes momentos ao longo de sua história. Mas, para muitos, parece que essa história não existe, ou foi reinterpretada à luz de um punhado de anos em que reinou suprema a ultraortodoxia da Escola de Chicago, que não mais existe aqui nos Estados Unidos.

Os “liberais à brasileira” vão ter de se conformar com o “desenvolvimentismo” de Biden. O mais saboroso? Serão testemunhas do quão acertado o plano é para o momento atual.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkin


Andrea Jubé: Está em curso uma operação de minimização de danos

Objetivo de parte dos ministros é salvar Lava-Jato

A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu ontem o salvo-conduto para que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concorra à Presidência da República em 2022, prerrogativa que lhe foi negada pela mesma Corte em 2018.

“Três anos depois” - dirá o PT, repetindo o comentário irônico do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas à nota de repúdio divulgada pelo ministro Edson Fachin.

O relator da Lava-Jato reagiu à revelação, no livro de memórias do general, de que a cúpula do Exército atuou para pressionar a Corte a barrar a candidatura do petista naquele ano.

Em contrapartida, o voto de Fachin blindou a Lava-Jato, como fez questão de deixar claro o presidente do STF, Luiz Fux. Em seu voto, ele explicitou que os efeitos do julgamento de ontem não são “sistêmicos”, e que a operação está preservada.

O julgamento de ontem foi uma operação de redução de danos: se a maioria do plenário confirmar, na semana que vem, a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos contra Lula, conforme decisão da Segunda Turma, somente nesta hipótese a Lava-Jato estaria à deriva.

A maioria em torno da parcialidade de Moro anularia integralmente os processos contra Lula. A prevalecer exclusivamente a declaração de incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, os processos serão retomados no juízo federal do Distrito Federal ou em São Paulo, conforme tese levantada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Nessa hipótese, entretanto, é pouco provável que haja tempo hábil para nova condenação que tornasse Lula novamente inelegível. “A candidatura de Lula agora é de difícil reversão”, sentenciou o secretário-geral do PT e advogado de formação, deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Ele avalia que o julgamento de ontem evidenciou que foi montada uma “farsa” para inviabilizar a candidatura de Lula em 2018.

“Ele só foi julgado lá atrás porque tinha um juiz suspeito, a incompetência é derivada da suspeição”, afirmou. Nem a defesa de Lula nem a cúpula petista espera para a próxima semana a reedição do placar de 8 a 3 em relação à análise da imparcialidade de Moro. Contudo, há expectativa por um placar favorável de 6 a 5. Três votos contra Moro são conhecidos por causa do julgamento na Segunda Turma: os de Gilmar, Lewandowski e Cármen Lúcia. A aposta para formar maioria volta-se para os votos de Dias Toffoli, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. A conferir.

Talvez para evitar que à demora de três anos se somasse mais uma semana, os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, e Ricardo Lewandowski anteciparam ontem os seus votos, tornando fato consumado a decisão em relação à incompetência da 13ª Vara Federal para julgar os processos contra Lula. Do contrário, o impasse se estenderia até a retomada do julgamento no dia 22. O suspense ficou reservado ao desfecho da suspeição de Moro.

A esperança também move os petistas, embalados por uma declaração sintomática de Fachin, em agosto do ano passado, de que a candidatura presidencial de Lula em 2018 “teria feito bem à democracia”.


César Felício: A aposta de Lula no front externo

Apoio internacional é arma para se esquivar de mazelas

Em uma charge do jornal suíço “Neue Zürcher Zeitung”, publicação que está longe de ser de esquerda, o presidente Jair Bolsonaro foi retratado dentro de uma escavadeira, derrubando uma árvore. Atrás do presidente, em um gigantesca escavadeira vermelha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva prepara-se para remover o rival, enquanto um pequenino tucano revoa apavorado.

Nesta semana, o francês “Le Monde” publicou um extenso material em que busca demonstrar que a Operação Lava-Jato foi muito influenciada por integrantes do governo e da Justiça dos Estados Unidos.

Em conversa por WhatsApp com o jornalista John Lee Anderson, da “New Yorker”, publicada dia 13, Lula pontificou: “É preciso que os países ricos esqueçam as divergências para discutir a produção de vacinas e a vacinação de todos”. Ao falar com o espanhol “El País”, no mês passado, abusou da soberba. “A Europa desapareceu na política. Tudo são comissões. Comissão para isto, comissão para aquilo... todos uns burocratas”, e arrematou: “Sejamos sinceros, meu tempo foi o melhor momento da América Latina desde Colombo”.

Se no Brasil o ex-presidente até o momento evitou conversar com veículos de imprensa de expressão nacional, salvo quando as entrevistas são conduzidas por jornalistas com quem tem afinidade pessoal no momento, no exterior o petista tem se sentido à vontade para falar, mesmo quando é contestado de modo mais contundente, como foi o caso de sua entrevista para a portuguesa “RTP” ou a italiana “Tg2 Post”. Na última, chegou a fazer um mea culpa, algo muito raro, por não ter extraditado o terrorista Cesare Battisti. O episódio faz com que sua imagem na Itália seja pior do que a que desfruta em outros países. Sobre Battisti, ele disse que se surpreendeu com a delação do italiano. “Mi sono sbagliato” [eu estava errado] disse Lula, na tradução livre feita por portais daquele país.

As entrevistas de Lula lá fora são semeaduras em um terreno já arado e adubado faz tempo. Um paciente trabalho de cultivo de relações fez com que o ex-presidente tenha vencido no exterior a disputa de narrativa com os artífices da Lava-Jato. O relato que prevalece é que a principal liderança de oposição ao atual presidente brasileiro foi alvo de perseguição judicial e política. Ele não é visto como o presidente em cujo governo se desenvolveu o maior esquema de corrupção conhecido no planeta.

Sua tarefa é ainda mais facilitada pelo fato de o Brasil ter um presidente como Bolsonaro. Segundo levantamento feito pela consultora política Olga Curado, com apoio da Universidade Federal de São Carlos, um grupo de sete publicações (“New York Times”, “Le Monde”, “El País”, “Der Spiegel”, “The Guardian”, “Economist” e “Washington Post”) editaram 1.179 matérias sobre o Brasil. Destas, 92% ressaltando aspectos negativos do país.

Em 52% dos casos, eram matérias sobre erros de gestão de Bolsonaro na condução da pandemia. Em 23% das situações, notícias sobre a fragilidade das instituições, em função de atos e palavras do presidente. Foi a tal personagem, com este tipo de imagem no exterior, que Sergio Moro serviu como ministro por um ano e meio. Não há como a Lava-Jato ser vista de maneira positiva no âmbito internacional, já que a sua consequência política concreta se chama Jair Messias Bolsonaro.

Isso contribui para que o ex-presidente se esquive de responder pelas mazelas de sua gestão e do governo da sua sucessora. Mais: ele se apresenta de volta ao cenário pautando o debate que lhe interessa.

É evidente que o brasileiro médio pouco se importa com a imprensa internacional e provavelmente nunca leu nada sobre o Brasil apresentado a estrangeiros. Mas Olga Curado ressalta que para o público doméstico a cobertura internacional de Lula serve como um reforço de argumento àqueles que já têm simpatia pelo presidente.

No imaginário de certos públicos, a grande mídia nacional carece da credibilidade que possui a mídia estrangeira, supostamente não envolvida com as circunstâncias domésticas. São validadores. Auditores independentes, por assim dizer.

Se os bolsonaristas lançam mão de blogueiros para responder ao noticiário negativo, Lula prefere dar recados em inglês, francês, espanhol ou italiano do que se submeter ao escrutínio da grande imprensa nacional.

O prestígio internacional de Lula é escorado no passado. Estão com ele ex-mandatários que foram seus contemporâneos, como o francês Nicolas Sarkozy e o espanhol José Luis Zapatero, o paraguaio Fernando Lugo, o equatoriano Rafael Correa e o panamenho Martín Torrijos. Os quatro últimos reunidos no Grupo de Puebla, que soltaram no mês passado uma nota definindo a decisão do ministro Luiz Edson Fachin em anular as sentenças de Curitiba como “um sopro de esperança no restabelecimento do devido processo legal”.

Mas Lula também tem seus aliados do presente. Ter sido recebido pelo papa Francisco não é trivial. E um conterrâneo, do pontífice, o presidente argentino Alberto Fernández soltou no dia 11 uma série de tuítes que, caso fossem de autoria de um general brasileiro, provocariam de certo uma crise com o Supremo, uma vez que publicados na antevéspera de um julgamento na corte.

“Vemos com preocupação que pretende reiniciar-se a perseguição a Lula utilizando as mesmas más práticas já usadas”, afirmou o argentino. “Dar marcha a ré na decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal por pressões midiáticas e políticas significaria um retrocesso institucional para o Brasil e um dano incalculável para os que reivindicam o Estado de Direito como base de sustentação à democracia”.

Correntes como esta para Lula são importantes porque há uma possibilidade de que ele se torne em 2022 um candidato a presidente que polarize com Bolsonaro tendo que se defender na Justiça de modo constante. O julgamento de ontem no STF, em que venceu por 8 a 3, em nada indica vida tranquila. O voto de Fux, por exemplo, sugere que a suspeição de Moro não é tema pacificado. Pode fazer uma campanha em meio a petições, liminares, alegações iniciais, alegações finais, sustentações orais, pronúncias, agravos, quem sabe sentenças em primeira instância. O petista precisará usar a vitimização como uma estratégia perene.