Day: novembro 24, 2020

Michel Schlesinger e dom Odilo Scherer: Uma só casa de oração

O rabino Sobel e sua palavra de diálogo e pluralismo fazem falta nestes tempos difíceis

“Porque a minha casa é uma casa de oração querida por todos os povos” – essa frase, gravada sobre os portões de inúmeras sinagogas ao redor do mundo, é de Isaías, que viveu há 2.800 anos e é considerado um profeta por judeus, cristãos e muçulmanos.

Diz a tradição judaica que Isaías, certa vez, ouviu Deus perguntar-se: “Quem eu devo enviar para transmitir minha palavra a meu povo?”. O profeta teria então dito: “Aqui estou, manda-me”.

E a resposta de Deus foi: “Minhas crianças são problemáticas. Se você está preparado para receber insultos e até golpes, pode aceitar minha mensagem. Se não estiver, é melhor renunciar à missão.”

Isaías aceitou e cumpriu a missão. Previu vitórias, como o colapso dos exércitos assírios às portas de Jerusalém, em 701 a.C. Mas também criticou duramente os erros do povo hebreu e, principalmente, os excessos dos governantes ao exercerem o poder. E, como Deus dissera, pagou um preço alto – a própria vida, tirada por quem se sentiu atacado por suas profecias.

Nada mais apropriado que lembrar Isaías e sua citação mais famosa no momento em que se aproxima a Haskará, a cerimônia de primeiro aniversário da morte do rabino Henry Sobel (1944-2019), falecido no dia 22 de novembro do ano passado.

Sobel nasceu em Portugal e educou-se nos EUA, mas foi no Brasil que se destacou na luta em defesa dos direitos humanos. Uma luta que começou ao lado de dom Paulo Evaristo Arns, então cardeal-arcebispo de São Paulo, e do reverendo Jaime Wright, da Igreja Presbiteriana, com a resistência a autorizar o enterro do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pelo regime militar em 1975, na ala dos suicidas do Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo.

O ato ecumênico em homenagem a Vladimir Herzog, liderado por esses três gigantes na Catedral da Sé, foi a primeira das inúmeras mobilizações populares que conduziram ao fim do regime militar, dez anos depois.

O envolvimento de Sobel em causas humanitárias se estenderia por quatro décadas. Do apoio aos despossuídos da cidade e do campo à defesa de uma solução negociada para o conflito entre Israel e palestinos, Sobel jamais se acovardou. Por isso era recebido e respeitado por todos os presidentes da República – de Fernando Henrique a Lula –, assim como por todos os papas e mesmo pelo líder palestino Yasser Arafat.

Ao longo de seu período de atividade, ele também foi um grande expoente do diálogo inter-religioso e da promoção da convivência pacífica entre as diferentes denominações religiosas no Brasil. Seu sotaque inconfundível, a quipá (solidéu) cor de vinho sobre os cabelos loiros desalinhados e sua voz poderosa em defesa dos humildes lhe garantiram um lugar especial na História do Brasil. E, claro, também multiplicaram seus detratores, dentro e fora da comunidade judaica, sempre prontos a aproveitar qualquer brecha para desacreditá-lo diante de uma opinião pública que retribuía o carinho com que ele agasalhou o Brasil em seu coração nova-iorquino.

Sobel era um personagem extraordinário e, como todos nós, seres humanos, sujeito a erros. E os cometeu, porque só não erra quem não age – esse talvez seja o maior de todos os erros. Muitas vezes Sobel foi muito mais duro com suas próprias falhas do que com os erros de outros. Ele mesmo o reconheceu quando prestou solidariedade a outro grande expoente da defesa dos direitos humanos, o padre Júlio Lancellotti, perseguido injustamente por quem nunca aceitou sua dedicação aos sem-casa de São Paulo.

Ao longo da história das religiões sempre houve quem visse a fé das pessoas como um instrumento de união, de promoção de um mundo melhor, mais fraterno. Aqueles para quem a crença em algo superior humaniza no dia a dia e estimula um olhar generoso para com o próximo.

Mas também sempre houve quem utilizasse a religião como instrumento de intolerância, uma fórmula sectária de acumulação de poder. Aqueles que constroem o “seu” Deus e em nome dessa exclusividade – que fere o princípio básico das religiões, que é dar alívio a quem sofre – mobilizam audiências e, por vezes, exércitos.

É em momentos como este que estamos vivendo, de pandemia, isolamento e dificuldades econômicas, que essas duas visões sobre a religião – opostas e irreconciliáveis – se tornam mais evidentes. Daí a relevância de marcar a Haskará do rabino Sobel com uma iniciativa inter-religiosa, reunindo líderes judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, do candomblé e da fé Baha’i.

Como o profeta Isaías, Henry Sobel colheu grandes vitórias em seu trabalho pastoral. E também pagou caro por sua ousadia. Na conta final, o rabino Sobel e sua palavra permanente de diálogo e pluralismo fazem muita falta nestes tempos difíceis. Porque a casa de oração de Henry Sobel sempre foi um templo querido para todas as religiões. E aberto a todos os povos e cores que constituem este Brasil plural.

O evento, virtual, será realizado hoje, dia 24 de novembro, às 19h30 (link https://bit.ly/3eIvsPf).

RESPECTIVAMENTE, RABINO DA CONGREGAÇÃO ISRAELITA  PAULISTA (CIP) E CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO


Antonio Fausto: Getúlio Vargas e o Centro Democrático

Em 130 anos de República, o segundo governo Vargas (1951/1954) foi o primeiro, politicamente, do Centro Democrático. Foi candidato em 1950 pelo PTB, por ele fundado, contra os postulantes do conservadorismo, um deles cristianizado pelo próprio partido, o bom e velho PSD.

O PTB de então congregava políticos progressistas como Roberto Silveira, Leonel Brizola, Almino Affonso e tantos outros que, ao lado de forças centristas, viabilizaram o novo governo eleito, após cinco anos de conservadorismo, arrocho salarial e repressão ao movimento sindical e associativo dos trabalhadores.

O presidente Getulio Vargas faz, então, um bom governo, corrige o salário mínimo, adota pela primeira vez no País o planejamento indicativo, via uma assessoria econômica, onde figuravam técnicos de destaque como Jesus Soares Pereira e Ignácio Rangel.

É fundada a Petrobrás, o BNDES, o Banco do Nordeste do Brasil e criados grupos de trabalho embrionários das futuras Sudene e Sudam, como forma de enfrentamento dos desequilíbrios regionais.

Deposto pelo golpismo civil-militar, a serviço de interesses estrangeiros e oligárquicos nacionais, o presidente Vargas inaugurou, historicamente, um ciclo de governança do Centro Democrático, durante 14 anos, que se encerra com a deposição, pelas mesmas forças golpistas e antinacionais, do presidente João Goulart.

Após vinte anos de regime militar, o Centro Democrático ressurge na eleição de Tancredo Neves, pelo Colégio Eleitoral da ditadura, um feito político de grande valor histórico, que não se efetivou pela morte do presidente, e o exercício efetivo do Poder pelo então vice, José Sarney, cujo governo teve o mérito do encaminhamento da transição, da convocação da Constituinte, mas que termina hegemonizado pelo Centrão congressual e ideológico.

O último governo do Centro Democrático foi do presidente Fernando Henrique Cardoso, em dois mandatos, ganhos no primeiro turno, com o mérito da completude da transição democrática e, com o Plano Real, o enfrentamento da hiperinflação e outras mazelas da economia.

A depender do resultado do segundo turno das eleições municipais em curso, esboça-se, para 2022, o retorno ao Poder Central do Centro Democrático, que se tem mostrado o arranjo político-institucional mais condizente com a governabilidade, o progresso social e a democracia. A ver.

*Antonio Fausto, economista


Cláudio de Oliveira: A situação financeira da prefeitura de São Paulo

Diga-se com todas as letras: quem quebrou a Prefeitura de São Paulo foi a direita. Eleito em 1992, Paulo Maluf e o seu secretário de finanças, Celso Pitta, aumentaram significativamente a dívida do município com uma gestão perdulária, populista e irresponsável. Maluf investiu pesadamente em obras viárias, várias delas de prioridade duvidosa e com denúncias de superfaturamento, incentivando o transporte individual.

Para desviar a atenção da falta de investimento em transporte coletivo, a propaganda eleitoral de Pitta, em 1996, apresentou uma animação gráfica de um VLT apelidado de Fura-Fila. O projeto contrariava os argumentos técnicos, uma vez que no trajeto do Fura-Fila havia planejamento para uma linha do metrô. O Fura-Fila causou pesado ônus aos cofres do município.

Maluf não implantou o SUS, determinado pela Constituição de 1988. Transformou a saúde pública no desastroso PAS, o Plano de Assistência à Saúde, gerido por cooperativas médicas, assoladas por toda sorte de denúncias de irregularidades. Podemos debater se houve programas positivos como o Singapura, de verticalização de favelas, e o Leve-Leite. Mas, ao mesmo tempo em que o Leve-Leite foi lançado, foi descuidada a merenda escolar. No final da gestão Pitta, chegou a ser servida nas escolas municipais uma merenda composta apenas de suco e bolacha.

O legado do malufismo foi desastroso: um enorme rombo nas contas da prefeitura, um grande déficit de vagas nas creches municipais, um número enorme das famigeradas escolas de latas, as salas de aulas em containers espalhados pela cidade na administração Pitta. Maluf e Pitta deixaram um sistema de transportes caótico, com explosão do número de vans clandestinas, formado especialmente por veículos importados da China à época do início do Plano Real, quando nossa moeda era equiparada ao dólar.

A situação financeira da cidade só não estava pior porque o governo federal, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, havia federalizado as dívidas de estados e municípios, num acordo em que as prefeituras e governos dos estados se comprometiam em pagá-las em parcelas durante 30 anos.

Coube a Marta Suplicy, eleita em 2000, e ao seu secretário João Sayad, o ônus de sanear o descalabro financeiro deixado por Maluf e Pitta, numa conjuntura econômica extremamente difícil. Como sabemos, o segundo mandato do governo FHC foi marcado pelas crises das moedas dos países emergentes, com consequente baixo crescimento, e pelo apagão em 2001. Marta organizou o sistema de transportes públicos e implantou o bilhete único, ainda que tenha aumentado a tarifa de ônibus acima da inflação e a prefeitura não tenha ampliado subsídios, uma vez que a sua situação fiscal não permitia. Ela aumentou o IPTU e implantou sua progressividade, criou as taxas do lixo e da luz, trazendo-lhe grande desgaste político. Ela deu o início à construção dos CEUS, mas não conseguiu zerar o déficit das creches nem eliminar as escolas de lata.

Com a eleição de Lula, em 2002, Marta tentou renegociar os índices de juros da dívida do município com a União, sem êxito. Prefeitos e governadores pretendiam trocar o Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI), da Fundação Getúlio Vargas, então vigente no acordo com a União, pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Devido aos juros elevados para segurar o recrudescimento da inflação e a fuga de dólares, a dívida federal havia aumentado consideravelmente. No final do governo de FHC, o Brasil teve de assinar um acordo para ajuda do FMI, além de conseguir empréstimo com o governo de Bill Clinton, com o objetivo de fechar as contas no azul.

Lula assumiu a presidência da República prometendo honrar o acordo com o FMI, no qual previa um superávit de 4% do PIB, para estabilizar a dívida pública e o compromisso de realizar reformas com o objetivo de fazer um ajuste estrutural das contas públicas. O seu ministro da Fazenda, Antônio Palocci, promoveu o maior corte de gastos públicos desde a redemocratização do país, entregando um superávit primário de 4,25% do PIB, ao mesmo tempo em que fez aprovar a reforma da Previdência do setor público.

Com a administração austera em seu primeiro mandato, Lula conseguiu evitar o que aconteceu com a vizinha Argentina, quando o descontrole da inflação levou o presidente Fernando de La Rua a renunciar ante os gigantescos panelaços. Foram essas medidas de austeridade de Palocci que causaram a oposição da ala radical do PT e o surgimento do PSOL, em 2004, ainda antes do escândalo do mensalão. Evitando uma aguda crise econômica e financeira do país, Lula pôde retomar o crescimento econômico no segundo mandato, com uma média de 4% do PIB nos seus dois governos, favorecido pelos bons ventos internacionais, em especial pelo crescimento da China.

Foi nesse contexto mais favorável das economias nacional e internacional que José Serra, eleito em 2004, e Gilberto Kassab, a parir de 2006 e reeleito em 2008, puderam retomar obras paralisadas, retomar a construção dos CEUs iniciados na gestão de Marta, construir escolas de alvenaria em substituição às escolas de lata, por fim ao terceiro turno nas escolas municipais, retomar a construção dos corredores de ônibus e implantar a integração do bilhete único com o metrô e os trens da CPTM.

Ressalte-se que Kassab foi o único prefeito que contribuiu com o governo do estado para as obras do metrô, apontado pelos especialistas como a solução ótima para o transporte público em São Paulo. Porém, Kassab não conseguiu zerar o déficit crônico de vagas nas creches municipais. Serra e Kassab também tentaram em vão renegociar o índice dos juros da dívida do município.

Fernando Haddad foi eleito em outubro de 2012 com apoio da presidente Dilma Rousseff, que prometera na campanha do petista uma ajuda de R$ 8 bilhões para viabilizar o Arco do Futuro, um ambicioso plano de urbanização e obras viárias do centro de São Paulo, apresentado no horário eleitoral.

Porém, com a crise das hipotecas em 2007/2008 nos Estados Unidos, os ventos viraram. Em 2009, o Brasil só não fechou no vermelho graças à compra antecipada por parte da Petrobras de barris de petróleo da União. A partir de 2011, o Brasil terá declínio do crescimento do PIB.

Em 2012, ano da eleição de Haddad, o governo de Dilma só fechou no azul graças à antecipação dos dividendos das estatais e dos bancos públicos. Os anos seguintes serão de manobras fiscais, apelidadas de "contabilidade criativa" e "pedaladas fiscais", que ensejaram a oposição a fazer o pedido de impeachment da presidente Dilma, em 2016.

Já em 2013 era sentido o baque na economia com a indústria paulista dando férias coletivas ou recorrendo ao Lay Off. Segundo a FGV, a recessão começou no terceiro trimestre de 2014 e levou a uma queda do PIB de 8,2%, só inferior à recessão de 1981-1983, de recuo de 8,4% do PIB e que jogou o Brasil na década perdida de 1980.

A ajuda federal de R$ 8 bilhões não veio e, com a queda na arrecadação, o prefeito Fernando Haddad anunciou, em agosto de 2013, a desistência de realizar as obras do Arco do Futuro. Ele tentou renegociar os juros da dívida da prefeitura com o governo federal sob o comando de Dilma, mas também não conseguiu.

Esses índices foram finalmente alterados quando o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, pôs em votação a "pauta-bomba" no segundo mandato de Dilma. Porém, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, sentou em cima da lei e foi preciso que Fernando Haddad fosse à Justiça para que o governo federal trocasse os índices, o que só aconteceria no ano seguinte, em 2016, ano final de sua gestão.

Depois de desistir do Arco do Futuro e em meio à queda na arrecadação, Haddad tocou a máquina da prefeitura, garantindo os serviços públicos, o que, em se tratando de São Paulo, não é pouca coisa. Ele só conseguiu construir um CEU e não venceu o déficit de vagas nas creches, mas ampliou o número de corredores de ônibus.

À falta de obras viárias vistosas, Haddad ampliou faixas de ônibus e construiu ciclovias e especialmente ciclofaixas. Promoveu corte de gastos em diversos programas, inclusive no Leve-Leite. Para colocar os gastos nos níveis exigidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, sob pena de incorrer em crime de responsabilidade, a prefeitura, entre outras medidas, suspendeu contratos com empresas de segurança nos últimos seis meses da administração, ficando alguns parques municipais sem segurança no período.

Como parte do esforço fiscal de ajustar as contas do município à difícil realidade econômica, Haddad apresentou uma proposta de reforma da deficitária Previdência dos servidores municipais. Diante da reação dos sindicatos dos funcionários públicos e de partidos de esquerda, entre eles o PSOL, a reforma foi suspensa, e seria retomada com mudanças na gestão do seus sucessor João Doria e aprovada na gestão Bruno Covas.

Porém, diante das resistências, a reforma da Previdência municipal foi desidratada: aumentou o desconto de 11% a 14%, criou um fundo complementar para aposentadorias acima do teto do INSS, mas não estabeleceu idade mínima, ficando, segundo muitos economistas, aquém das reformas previdenciárias em vários estados da federação, inclusive dos estados governados pelo PSB, como Pernambuco, e PT, como Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte.

Haddad agiu com responsabilidade fiscal, teve capacidade política, manteve um bom diálogo com o governo do estado sob o comando de Geraldo Alckmin. Contra sua gestão não há casos comprovados de corrupção sob sua responsabilidade pessoal direta. Porém, Haddad foi derrotado em todas as 58 zonas eleitorais de São Paulo em sua tentativa de reeleição em 2016, prejudicado por uma conjuntura econômica adversa, somada ao desgaste do seu partido decorrente dos escândalos revelados pela Lava Jato.

As gestões de Doria e Covas promoveram novos ajustes, uma vez que não houve uma recuperação econômica significativa e constante do país, frustradas tanto no final do governo do presidente Michel Temer quanto no primeiro ano de Jair Bolsonaro. Mesmo assim, obras como de CEUs, corredores de ônibus, unidades de saúde e hospitais foram retomadas e continuadas.

Mas, com a pandemia do coronavírus, o município teve de enfrentar uma nova realidade, com gastos com o fortalecimento do SUS e a construção de diversos hospitais de campanha. A situação para estados e municípios só não ficou dramática graças aos programas de auxílio-emergencial e de ajuda econômica do governo federal, inclusive a prefeituras e governos dos estados, aprovados principalmente por iniciativa e pressão do Congresso.

A futura gestão da cidade dependerá de uma equação cujo um dos elementos é a capacidade do governo federal em resolver a crise econômica do país. Com um déficit primário de cerca de R$ 660 bilhões e a incapacidade política do presidente Bolsonaro em liderar o Brasil – ele mais atrapalha do que ajuda –, talvez seja prudente não alimentar grandes expectativas qualquer que seja o eleito no próximo dia 29 de novembro.

*Cláudio de Oliveira, jornalista e cartunista, autor do livro Pittadas de Maluf, ganhador do troféu do melhor livro de charges de 1998


Pablo Ortellado: Racismo no Carrefour

Conservadores dizem que alegação de racismo em agressão em Porto Alegre é prematura. Estatísticas sugerem racismo estrutural

Até mesmo o torpe assassinato de Beto Freitas em um supermercado em Porto Alegre foi capturado pelas guerras culturais, com vozes conservadoras acusando os progressistas de enxergar racismo onde não havia e dividir uma sociedade racialmente integrada.

A principal crítica desses conservadores tem sido quanto ao emprego do conceito de racismo estrutural. Para eles, o racismo se restringiria apenas àqueles episódios de preconceito e intolerância com motivação racista manifesta.

Seria preciso, então, entender as circunstâncias que levaram à morte de Beto Freitas: se havia algum fato anterior que pudesse justificar o uso excessivo de força e se haveria evidência de motivação racista, como alguma injúria racial que tivesse sido proferida. Sem esses elementos, a alegação de racismo seria prematura e injustificada e mostraria apenas um esforço da esquerda em promover a divisão em uma sociedade conhecida por ter uma integração racial bem-sucedida.

Não é, no entanto, o que dizem as estatísticas. Raça é importante, mesmo quando comparamos índices dentro de uma mesma classe de renda. Entre negros de baixa renda, por exemplo, 42% relatam terem sido desrespeitados pela polícia (contra 34% dos brancos de baixa renda): 35% já receberam agressões verbais e 18% sofreram agressões físicas (contra 27% e 12% dos brancos de baixa renda).

Enquanto 56% da população brasileira é negra ou parda, negros e pardos são 67% dos encarcerados e 76% das vítimas de homicídio. Esses não são números de uma sociedade não racista.

Independentemente das circunstâncias que levaram os seguranças a agredir Beto Freitas, é incontestável que houve uso excessivo de força, já que as agressões foram desproporcionais e não cessaram quando ele foi rendido.

O uso da força pelos seguranças teria chegado a esse grau de excesso e violência se Beto Freitas fosse branco? Quinze pessoas assistiriam passivamente um homem branco ser covardemente espancado e asfixiado por seguranças sem tentar impedi-los? Provavelmente não.

É esse racismo insidioso, não explícito e não manifesto que condiciona as ações individuais e o funcionamento das instituições que vemos atuar em casos como esse. É ele que anui, que consente o exercício de uma violência brutal contra um homem negro que dificilmente seria autorizada contra um homem branco.

É esse racismo furtivo, enfim, que faz com que negros sejam mais interpelados pela polícia, sejam mais encarcerados, sejam mais agredidos e sejam mais assassinados. As estatísticas não são fruto do acaso.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Hélio Schwartsman: Um país racista ou desigual?

Brasil é as duas coisas ao mesmo tempo

O Brasil é um país desigual ou é um país racista? Ele é as duas coisas ao mesmo tempo, e destrinchá-las não é trivial. São conhecidas as estatísticas do IBGE que informam que trabalhadores brancos ganham quase 70% mais do que negros. A dificuldade com esse dado, da forma que costuma ser apresentado, é que ele soma os efeitos da desigualdade social com os do racismo e põe tudo na conta do segundo.

Há motivos legítimos para explicar diferenças salariais, como história educacional, cargo exercido, tempo de casa etc. Quando comparamos grupos semelhantes, isto é, negros e brancos com o mesmo grau de instrução, ou que ocupem postos no mesmo nível hierárquico, as disparidades diminuem. O problema é que só diminuem, sem desaparecer, sinal de que a cor da pele também faz diferença.

Há interessantes trabalhos, como o de André Salata (PUC-RS), que tentam separar os efeitos diretos do racismo dos indiretos, mediados por pobreza, educação.

E o mercado de trabalho é só uma das esferas em que o racismo estrutural se manifesta. Estudos mostram que negros também sofrem discriminação no sistema de Justiça (é mais provável um jovem negro apanhado com maconha ser enquadrado como traficante do que um branco flagrado na mesma situação) e até em hospitais (o controle de dor é mais precário para pacientes negros).

É raro encontrarmos um racista empedernido, daqueles que vestem lençóis na cabeça, por trás desse tipo de discriminação, que se materializa por canais mais sutis, como vieses e estereotipias, que afetam o comportamento das pessoas sem que elas se deem conta.

Combater o que acontece abaixo do radar da consciência é difícil. O reconhecimento do problema é o primeiro passo. A sociedade brasileira já parece tê-lo dado. Quiçá isso um dia chegue às escolas militares que formaram Bolsonaro, Mourão e outros que ainda acham que não existe racismo no Brasil.


Joel Pinheiro da Fonseca: Na disputa França x Brasil sobre Amazônia, Bolsonaro faz gol contra

 Somos, por pura mesquinhez do governo, o bandido dessa história no mundo

Para o governo Bolsonaro, o problema ambiental é um problema de comunicação: como emplacar uma narrativa favorável ao Brasil em meio a narrativas negativas que circulam pelo resto do mundo.

É como se não existisse a realidade objetiva, o problema concreto do desmatamento e das queimadas. Na falta de qualquer interesse de resolvê-lo, o desafio é como fazê-lo desaparecer pelo uso do discurso.

Na semana passada, em mais uma rodada dessa estratégia de marketing, Bolsonaro disse que iria anunciar publicamente os maiores importadores de madeira ilegal brasileira. França e Alemanha estavam na mira.

O contexto é a relutância europeia em ratificar o acordo comercial UE-Mercosul. Bem sabemos que a França procurará pretextos para afundar o acordo e proteger seus agricultores. Bolsonaro entrega esses pretextos de bandeja. Voltou atrás na ameaça, mas o mal-estar ficou.

França, Alemanha e outras potências podem e devem ajudar o Brasil a combater o tráfico de madeira ilegal e o desmatamento em geral.

Aliás, o Fundo Amazônia —financiado em parte pela Alemanha— fazia exatamente isso, mas infelizmente abrimos mão dele. Mas é claro que Bolsonaro não deseja esse tipo de ajuda. Se ele denuncia a compra de madeira ilegal por outros países, não é para combatê-la lá fora, mas para seguir sem reprimi-la aqui. Afinal, seu governo é o maior incentivador da prática: graças a mudanças regulatórias de seu governo, as regras para a certificação da madeira se tornaram mais frouxas —90% do consumo de madeira ilegal brasileira se dá justamente no Brasil.

Qual o resultado da pirraça bolsonariana? Alguma grande vitória contra a França? Pelo contrário. A cada nova interação, o acordo UE-Mercosul parece ficar mais distante, justamente o que os produtores rurais franceses querem. A Alemanha também reagiu à fala de Bolsonaro, fazendo o que ele talvez menos quisesse: levou-as a sério. O Ministério da Agricultura alemão já anunciou que quer leis mais duras para fiscalizar produtos tropicais.

Bolsonaro não está nem aí. O único objetivo é agradar sua base de apoiadores aqui dentro do Brasil, que inclui interesses econômicos predatórios da grilagem e do garimpo ilegal: se para isso virarmos um pária internacional, com dificuldades de fechar novos acordos, sem direito a voto na ONU (por não pagar as contas) e, quiçá, no futuro, alvo de boicotes econômicos, tudo bem. O importante é o teatrinho nas redes.

A Amazônia interessa ao resto do mundo, mas deveria interessar ainda mais ao Brasil. Somos nós que podemos auferir as riquezas de sua biodiversidade; é o nosso agro que mais se beneficia dos serviços ambientais que ela proporciona, por exemplo, ao garantir o regime de chuvas no Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Interesse interno e internacional estão perfeita e claramente alinhados.

presidente eleito Joe Biden (sim, ele tomará posse em 20 de janeiro, por mais que Bolsonaro também se recuse a aceitar) já anunciou John Kerry como enviado especial do clima. A pauta climática e ambiental em geral —que se estende por outros temas, como desmatamento, plásticos, água— só ganhará mais centralidade com essa adesão de peso dos EUA. Por qualquer critério, o Brasil deveria ser um dos grandes protagonistas da discussão ambiental no mundo. Somos, neste momento, por pura mesquinhez do governo, o bandido da história.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.


Ana Carla Abrão: O longo prazo é hoje

Apesar da pandemia, o mercado de capitais reagiu e chega ao fim de 2020 acumulando números muito positivos

Em um ano tão turbulento e tão difícil, era de se esperar que o mercado de capitais tivesse, na melhor das hipóteses, andado de lado. Não foi assim o ano todo. Esse mercado viveu, até antes da abrupta interrupção da atividade econômica pela pandemia, um período de notável expansão. Mas sofreu, em março e abril deste ano, o baque que todos nós sofremos, se retraindo como reação à esperada recessão econômica, ao aumento da volatilidade e da aversão ao risco como no resto do mundo. Mas reagiu e chega ao fim de 2020 acumulando números muito positivos.

Somos mais de 3 milhões de investidores individuais em renda variável na B3, nossa Bolsa de Valores. Após a paralisia dos primeiros meses, que interrompeu a tendência crescente de emissões que vinha ainda de 2019, vimos os números de operações de abertura de capital baterem recordes, com 18 novas estreias na B3 (mais do triplo do que vimos em todo 2019) e R$ 22 bilhões em ofertas públicas individuais (IPOs), o que equivale a mais do que o dobro dos R$ 10 milhões observados no ano passado. Somem-se a essas, as ofertas subsequentes (follow-ons) – quando a empresa volta ao mercado para ofertar mais ações – que aconteceram a partir de agosto e chegamos a R$ 78 bilhões em operações até setembro de 2020, equivalente a 87% do total registrado no ano de 2019.

No mercado de renda fixa não foi diferente. Devemos fechar o ano com uma participação recorde dos instrumentos de financiamento privado na matriz de financiamento de longo prazo das empresas. Aqui o crédito bancário público (majoritariamente BNDES, com volumes generosos e juros subsidiados) chegou a representar 48% de toda a carteira de crédito de longo prazo das empresas no Brasil. Ao final do primeiro trimestre de 2020 esse número representava 36%. Uma queda expressiva cuja tendência deverá se manter, devolvendo ao mercado de capitais a posição que ele deveria sempre ocupar.

Se olharmos outra métrica, a dos volumes de emissões mobiliárias públicas em comparação com emissões no mercado de capitais, o movimento de expansão se mostra igualmente consistente e vem de mais longe. Enquanto em 2016 as emissões privadas representavam apenas 18% do que foi emitido pela União, ao fim de 2019, elas chegaram a representar 58%. Este ano, a vida foi mais dura, ainda assim, o número se manteve em 38%, consolidando a tendência de maior representatividade do mercado privado.

Ou seja, apesar da pandemia e dos seus consequentes reflexos sobre a atividade econômica no mundo e no Brasil, o mercado de capitais local seguiu uma lógica própria em 2020. o contexto adverso afetou a trajetória de expansão que se desenhava forte em 2019, mas não interrompeu a tendência de ampliação que acompanha um ambiente que se beneficia de uma combinação de taxa de juros baixas, melhoras regulatórias e importantes correções de distorções que se acumulavam e limitavam o seu crescimento.

Mas há uma agenda a ser perseguida para que possamos consolidar de forma definitiva essa tendência positiva que, sabemos, deverá enfrentar as dificuldades de um país com grandes incertezas fiscais e enormes desafios estruturais. E essa é uma agenda fácil, se comparada com as grandes reformas necessárias em outros campos. Nesse contexto vale chamar a atenção para um conjunto de propostas que vem sendo discutidas desde 2018 pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) em conjunto com a B3. O objetivo aqui é garantir continuidade ao processo de aprofundamento e desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro.

A agenda Anbima/B3, cuja atualização acaba de ser apresentada, traz os quatro desafios que deverão nortear o fomento e o desenvolvimento do mercado de capitais nos próximos anos: i) a diversificação da base de investidores; ii) a ampliação da base de emissores; iii) o impulsionamento do mercado secundário de renda fixa; e iv) o fomento à negociação de títulos de dívida privada, a chamada securitização que hoje se vê concentrada nos setores imobiliário e agrícola. Temos ali um conjunto de contribuições que farão parte das discussões com governo, reguladores e legislativo e deverão nortear os avanços que se somarão ao que vimos observando recentemente.

Seguindo a definição da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o mercado de capitais, juntamente com os mercados de crédito primário, de câmbio e o monetário, formam o que conhecemos como mercado financeiro. Neste, é o mercado de capitais aquele que exerce a função de viabilizar recursos de longo prazo para empresas, canalizando a poupança dos investidores para instrumentos privados de captação de recursos, ou seja, dando liquidez a títulos que são emitidos por empresas para viabilizar seus projetos de investimento e a expansão dos seus negócios.

Logo, é fundamental lembrar que quando falamos de crescimento e mais ainda de desenvolvimento econômico, o mercado de capitais emerge como protagonista e precisa, como tal, ser foco de constante evolução. A agenda está colocada e precisa avançar, apesar ou em função das enormes dificuldades que o Brasil enfrenta e ainda enfrentará – no curto, médio e longo prazos.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman


Rubens Barbosa: Visões de futuro, China e Brasil

Os chineses fazem um sólido planejamento e o País deixa o grupo das dez maiores economias

A quinta sessão plenária do 19.º Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), concluída em 29 de outubro, apresentou as linhas gerais do 14.º plano quinquenal econômico e social do país (2021-25). O plano quinquenal registra os objetivos gerais para os próximos cinco anos e, além disso, estabelece o planejamento de médio prazo, até 2035. Mantendo a retórica de “paz e desenvolvimento”, o PCCh traçou as principais linhas estratégicas levando em conta, sobretudo, a crescente competição global. Os documentos indicam que as lideranças do partido, refletindo as incertezas no cenário global, buscaram mudanças em três áreas: fortalecimento da economia, autossuficiência em tecnologia e mudança de clima.

Na sua visão de futuro, os líderes chineses abandonam a ênfase no crescimento econômico com o aumento do PIB e passam a focar “o aumento significativo no poderio econômico e tecnológico” do país até 2035, com foco em questões estruturais e qualidade de vida. O comunicado final do plenário do congresso não fixa uma taxa de crescimento para 2035 e menciona somente o objetivo de alcançar, “em termos de PIB per capita, o nível de países moderadamente desenvolvidos”. Manter o foco no crescimento faz sentido para a China num momento de crescente competição entre grandes potências, que o comunicado, em outras palavras, denomina “profundos ajustes no equilíbrio de poder internacional”. Uma economia forte vai “assegurar que a China tenha recursos necessários para a defesa nacional e a pesquisa científica” e para a expansão de seus interesses globais.

Em vista da gravidade da crise pandêmica, a China teve de adiar o projeto da Rota da Seda (Belt and Road Initiative), uma forma de projetar seu poderio econômico além-fronteira.

As sanções dos EUA e as restrições à venda de semicondutores a empresas chinesas motivaram mudanças na atitude da liderança do PCCh no tocante à dependência de tecnologia do exterior. As vulnerabilidades da China foram exploradas geopoliticamente pelos EUA, apesar dos custos econômicos e da oposição de parte da indústria norte-americana. O plenário do partido afirmou que “autossuficiência em ciência e tecnologia é um pilar estratégico do desenvolvimento nacional” e demandou que “importantes avanços sejam conseguidos em tecnologias críticas” para que a China se torne “líder global em inovação”. Essa diretriz já estava presente nas medidas tomadas para o avanço na política industrial Made in China 2025, com resultados concretos em várias áreas, entre as quais o país já mostra significativa liderança global: tecnologia 5G e 6G e inteligência artificial.

A liderança chinesa passou a ver na política ambiental e de mudança do clima uma forma de ganhar prestígio global e obter benefícios econômicos. A proteção ambiental tem sido uma prioridade crescente para as autoridades chinesas nos fóruns internacionais. Em setembro, na ONU, Xi Jinping anunciou que a China fixou a meta de o pico das emissões de gás carbono ser alcançado em 2030 e a de emissão zero, obtida em 2060. Embora ambiciosos, esses objetivos indicam a participação cada vez mais intensa da China nas discussões sobre políticas ambientais, com potenciais reflexos sobre outros países.

Enquanto a China faz seu sólido planejamento com visão de futuro, o Brasil mantém uma atitude preocupante em termos de planejamento de médio e longo prazos. O FMI projeta uma queda de perto de 5% em 2020 e um crescimento de mais de 4% em 2021, apesar de estimativas de analistas econômicos de que as questões fiscais, a ausência de reformas, a queda no crescimento do comércio exterior e nos investimentos externos não prenunciam uma saída em V, como repetido pelo ministro da Economia. Por outro lado, o baixo crescimento da economia nos últimos anos, agravado pela pandemia, fez o Brasil deixar de ser uma das dez maiores economias globais, segundo o Ibre/FGV. Em termo de PIB em dólares, neste ano, Canadá, Coreia do Sul e Rússia devem ultrapassar o Brasil, que cairá para a 12.ª posição.

A preocupação aumenta quando se verifica não haver um plano claro de saída da crise atual, nem prioridades para avanços econômicos, sociais e tecnológicos. Sem maior discussão, o governo editou decreto que institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031, com cinco eixos: econômico, institucional, infraestrutura, ambiental e social. Trata-se um uma medida tímida, que vai na direção correta. O Congresso e a sociedade civil deveriam ser chamados a participar da análise e discussão dessa estratégia. Dois aspectos chamam a atenção no documento do governo federal: a ausência de uma clara prioridade para a inovação e a tecnologia e de metas claras no eixo ambiental no tocante à preservação da Floresta Amazônica e à mudança do clima.

China, Europa, Japão e EUA (com Biden), no atual cenário internacional, colocam mudança de clima e tecnologia como objetivos centrais, como ficou evidente na reunião do G-20 no final da semana. Quando o Brasil vai juntar-se a eles?

*Presidente do Irice


Andrea Jubé: A lição de Patos para a sucessão em 2022

Centro-direita larga fragmentado para 2022

Os ingredientes da eleição para prefeito de uma cidade média no sertão paraibano alçaram-na ao patamar de microcosmo político do país, na visão de alguns cientistas políticos.

Projetando-se o cenário local para o plano nacional, em um criativo exercício de análise política, o resultado da eleição em Patos, na Paraíba, colocaria em xeque o sucesso de uma eventual chapa encabeçada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro em 2022.

Uma premissa somente autorizada, ressalte-se, no contexto da recuperação da política tradicional como principal resultado do primeiro turno das eleições municipais.

Com 108 mil habitantes, o terceiro reduto de poder mais cobiçado da Paraíba - depois de João Pessoa e Campina Grande - foi palco de uma eleição acirrada, polarizada entre um “outsider” e um representante da “velha política”.

De um lado, concorreu o Juiz Ramonilson Alves, postulante do Patriota, que se aposentou para ingressar na política; na outra ponta, o ex-prefeito Nabor Wanderley, candidato do Republicanos.

Chamado de “Moro da Paraíba”, o Juiz Ramonilson encabeçou a chapa, com o DEM na vaga de vice. Nos discursos, afirmava que a solução para a cidade passava pelo combate intensificado à corrupção e pelo fim do monopólio político local.

Seu adversário era um legítimo representante da política tradicional, encabeçando uma coligação formada por Republicanos, PP, PSD, PSL, Rede e Cidadania. Nabor governou a cidade duas vezes, de 2005 a 2012.

Nabor respondeu a denúncias de corrupção, muitas delas julgadas por Ramonilson. No horário eleitoral e em entrevistas, acusou o ex-magistrado de persegui-lo há muitos anos, desde sempre com finalidades eleitorais.

Ao fim de um embate acalorado, Nabor alcançou 51% dos votos, contra 41% do Juiz Ramonilson. Um resultado local que refletiu o quadro verificado no plano nacional, considerado o placar das capitais e principais cidades brasileiras: a vitória da política tradicional sobre a “nova política”, da qual Jair Bolsonaro foi o expoente em 2018.

“A eleição municipal restaurou o sistema político, o “outsider” perdeu valor no mercado político e o centro institucional saiu consagrado”, disse à coluna o cientista político Nelson Rojas de Carvalho, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Para ele, este resultado reduz as chances de “players” de fora da política cotados para a sucessão presidencial, como Sergio Moro e Luciano Huck.

O pesquisador aponta a derrota da “nova política” neste pleito, mas, não a do presidente Jair Bolsonaro como cabo eleitoral. Isso porque a eleição municipal não tem determinantes nacionais, mas, sim, consequências no plano nacional.

“A eleição municipal tem uma dinâmica local que gera efeitos nacionais”, argumenta o autor de “E no início eram as bases - Geografia política do voto e comportamento legislativo no Brasil”.

Ele aponta dois efeitos principais do pleito municipal no âmbito nacional: uma configuração mais sólida do quadro sucessório, e a composição de forças no Congresso Nacional na próxima legislatura.

O primeiro efeito do pleito municipal na sucessão presidencial, na visão de Nelson Rojas, é a fragmentação das forças de centro-direita, que tendem a avançar separadamente após o resultado deste ano.

Para o pesquisador, o desempenho do DEM, principalmente nas capitais, levará o partido a lançar candidatura própria em 2022. “O partido não aceitará ser vice do PSDB de novo”.

Um dos nomes colocados é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Correm por fora o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

No primeiro turno, o DEM reelegeu Rafael Greca, em Curitiba; Gean Loureiro, em Florianópolis; elegeu Bruno Reis em Salvador; e avança rumo à vitória de Eduardo Paes, que deverá governar o Rio de Janeiro pela terceira vez.

De igual forma, se o PSDB reeleger o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, não terá por que renunciar à cabeça de chapa na disputa presidencial em 2022. O nome mais provável é o do governador João Doria, embora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também seja cotado para a empreitada.

Mas se Covas for à lona, abatido pelo ativista Guilherme Boulos (PSOL), “o PSDB se perde”, e ficará difícil encabeçar a chapa, diz Nelson. Em especial, após o desempenho de Geraldo Alckmin em 2018, que obteve 4,7% dos votos válidos.

No espectro da esquerda, o pesquisador vê Ciro Gomes (PDT), ou um candidato apoiado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais competitivos numa conjuntura de crise econômica, em um paralelo com a Argentina, onde a derrocada levou à vitória de Alberto Fernández.

“Se a economia chegar em 2022 em um diapasão tolerável”, as chances aumentam para a centro-direita”, diz o professor, que foi colunista convidado do Valor.

O segundo reflexo das eleições municipais na conjuntura nacional, segundo Nelson Rojas, vai se consumar na eleição dos deputados federais e senadores para a legislatura de 2023-2026.

Ele afirma que a nova correlação de forças que emerge da eleição municipal vai se refletir na composição do novo Congresso, e os partidos que elegeram mais prefeitos serão hegemônicos no Legislativo. As seis siglas que mais conquistaram ou preservaram prefeituras foram MDB, PP, PSD, PSDB, DEM e PL, todos representantes do centro político.

Nelson discorda da interpretação de que o primeiro turno das eleições municipais foi um “plebiscito” sobre o governo Bolsonaro. Ele acha equivocado atribuir o mau desempenho do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), ao apoio de Bolsonaro. O presidente perdeu, na sua visão, ao não conseguir organizar o seu partido, e com ele, ocupar espaço no pleito municipal.


Bernardo Mello Franco: A frente de Boulos

O prefeito Bruno Covas lidera as pesquisas e é favorito para vencer a eleição de São Paulo. Mas foi da campanha do seu adversário, Guilherme Boulos, que surgiu o fato político mais relevante do segundo turno até aqui.

No sábado, Lula, Ciro Gomes, Marina Silva e Flávio Dino apareceram juntos na propaganda do candidato do PSOL. Os quatro não dividiam o mesmo palanque eletrônico desde 2006, quando o ex-presidente conquistou o segundo mandato.

Boulos emergiu como a grande novidade do primeiro turno. Com 17 segundos na TV, ultrapassou veteranos como Márcio França e Celso Russomanno, que contava com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. O candidato do PT, Jilmar Tatto, amargou um vexatório sexto lugar.

O PSOL investiu na dobradinha entre um candidato de 38 anos e uma vice de 85. A presença de Luiza Erundina ajudou a atenuar um dos pontos fracos de Boulos. Se ele nunca ocupou cargos públicos, ela governou a cidade entre 1989 e 1992.

A campanha improvisou uma espécie de papamóvel para a ex-prefeita circular na pandemia. Protegida por uma cabine de acrílico, ela percorre a periferia em busca de votos que se descolaram do PT em 2016.

Apesar da aposta no corpo a corpo, Boulos decolou graças à internet. Sua candidatura ganhou impulso nas redes sociais, onde o bolsonarismo reinou sozinho na última eleição. Ele mobilizou artistas e ganhou a preferência dos eleitores mais jovens.

O líder do MTST moderou o tom, mas não abriu mão do discurso contra a desigualdade e a extrema direita instalado no Planalto. No segundo turno, isso o ajudou a reunificar o campo progressista, que se estranhava desde o rompimento de Lula e Ciro na corrida presidencial.

A união em torno de Boulos fez a esquerda voltar a sonhar com uma aliança nos moldes da Frente Ampla uruguaia para enfrentar Bolsonaro em 2022. O cenário ainda é improvável, mas deixou de ser impossível. E Boulos será peça-chave para qualquer acordo daqui a dois anos.

O prefeito Bruno Covas lidera as pesquisas e é favorito para vencer a eleição de São Paulo. Mas foi da campanha do seu adversário, Guilherme Boulos, que surgiu o fato político mais relevante do segundo turno até aqui.

No sábado, Lula, Ciro Gomes, Marina Silva e Flávio Dino apareceram juntos na propaganda do candidato do PSOL. Os quatro não dividiam o mesmo palanque eletrônico desde 2006, quando o ex-presidente conquistou o segundo mandato.

Boulos emergiu como a grande novidade do primeiro turno. Com 17 segundos na TV, ultrapassou veteranos como Márcio França e Celso Russomanno, que contava com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. O candidato do PT, Jilmar Tatto, amargou um vexatório sexto lugar.

O PSOL investiu na dobradinha entre um candidato de 38 anos e uma vice de 85. A presença de Luiza Erundina ajudou a atenuar um dos pontos fracos de Boulos. Se ele nunca ocupou cargos públicos, ela governou a cidade entre 1989 e 1992.

A campanha improvisou uma espécie de papamóvel para a ex-prefeita circular na pandemia. Protegida por uma cabine de acrílico, ela percorre a periferia em busca de votos que se descolaram do PT em 2016.

Apesar da aposta no corpo a corpo, Boulos decolou graças à internet. Sua candidatura ganhou impulso nas redes sociais, onde o bolsonarismo reinou sozinho na última eleição. Ele mobilizou artistas e ganhou a preferência dos eleitores mais jovens.

O líder do MTST moderou o tom, mas não abriu mão do discurso contra a desigualdade e a extrema direita no poder. No segundo turno, isso o ajudou a reunificar o campo progressista, que se estranhava desde o rompimento de Lula e Ciro na campanha de 2018.

A união em torno de Boulos fez a esquerda voltar a sonhar com uma aliança nos moldes da Frente Ampla uruguaia para enfrentar Bolsonaro em 2022. O cenário ainda é improvável, mas deixou de ser impossível. E Boulos sairá da eleição como peça-chave para qualquer acordo daqui a dois anos.


Ricardo Noblat: Ganha emoção a disputa entre Covas e Boulos em São Paulo

Diminui a diferença entre os dois

Bruno Covas (PSDB) ficou onde estava sem perder um único ponto percentual no total das intenções de voto na nova pesquisa Datafolha para prefeito de São Paulo no segundo turno cujos resultados foram divulgados na madrugada de hoje.

Foi Guilherme Boulos (PSOL) que cresceu, reduzindo a vantagem de Covas medida na pesquisa da semana passada. Cresceu em cima de parte dos eleitores que pretendiam votar em branco, anular o voto ou que se diziam indecisos quanto a apoiá-lo.

Se antes 18 pontos separavam os dois ao se computar apenas os votos válidos, excluídos os brancos, nulos e indecisos, agora são 10. Significa que Boulos precisará tomar de Covas 5 pontos de votos válidos para chegar empatado com ele no domingo.

É possível? Sim, fácil não é. Aumentou a certeza dos eleitores: agora são 86% os que dizem que igualmente votarão em Covas ou em Boulos. Entre os 14% que admitem mudar de idéia, 52% afirmam que migrariam para o voto nulo ou em branco.

O avanço de Boulos se deu principalmente entre os eleitores mais jovens e que revelam maior disposição para votar no domingo. A grande maioria dos eleitores mais velhos está com Covas, embora os efeitos da pandemia possam reter uma parte em casa.

Se houver um voto de protesto por conta do assassinato de João Alberto no Carrefour de Porto Alegre, Boulos se beneficiará disso. Entre os que se apresentam como pretos ouvidos pelo Datafolha, ele cresceu oito pontos percentuais no total das intenções de voto.

Em resumo: tudo pode acontecer nessa reta final de campanha, inclusive nada.


Míriam Leitão: Truque da negação mantém o racismo

A estratégia mais velha do racismo brasileiro sempre foi negar a própria existência. Fica mais difícil combater um inimigo que se camufla. Por isso, as atitudes do presidente e do vice-presidente do Brasil na morte de João Alberto são tão lesivas, porque elas fortalecem a maneira como o racismo sempre prevaleceu no país. O caso revela também um defeito do mundo corporativo que é a inclusão em seus índices de qualidade, de sustentabilidade e diversidade, de empresas sem qualquer compromisso com os valores que aqueles indicadores representam. Engana-se assim o distinto público.

O Carrefour só agora foi expulso da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e, apesar de não fazer parte do índice de sustentabilidade da B3, estava em outro indicador internacional, em parceria com a bolsa americana S&P, o Brazil ESG Index. Agora, terá a participação revista. A pergunta é o que a rede de supermercados, que já tem tantos antecedentes, fazia nesses indicadores. A B3 tirou a Vale do índice de sustentabilidade apenas depois do desastre de Brumadinho. Esses selos de qualidade acabam servindo para enganar.

Os indicadores corporativos atraem investidores e consumidores. O problema é a mistura entre empresas realmente comprometidas com o enfrentamento das desigualdades sociais, raciais, e com a defesa do meio ambiente, com empresas que usam esses índices e iniciativas apenas como maquiagem.

A desculpa do Carrefour de que o crime foi praticado por uma terceirizada não a exime. Toda empresa faz exigências na contratação de seus fornecedores e é responsável por eles já que a atuação se dá no ambiente de trabalho. Até por uma preocupação reputacional as empresas teriam que impor código de conduta às empresas fornecedoras. O que se viu naquela cena revoltante foi um conluio entre o supermercado e a firma terceirizada para o uso da violência contra um cliente. Nada há que diminua a culpa do Carrefour e tudo isso coloca em dúvida os critérios dos indicadores de responsabilidade corporativa. Existem para informar ou para enganar?

Quanto à dupla Bolsonaro e Mourão, ninguém ficou surpreso com essa reação, porque essa é a estratégia mais usada para a perpetuação do racismo. No governo militar chegou-se ao absurdo da eliminação da pergunta cor e raça no questionário do Censo de 1970, deixando uma cicatriz nas estatísticas. A invisibilidade do problema que atravessa a sociedade brasileira é a forma de dar sobrevida a ele.

As declarações de Bolsonaro e Mourão, mesmo previsíveis, não deixam de ser revoltantes. Elas agridem os negros e ofendem a realidade. Os pretos e pardos brasileiros têm os piores indicadores sociais, enfrentam as barreiras do preconceito onde quer que tentam entrar, são atacados por injúrias raciais que vão minando a autoconfiança e são os alvos mais frequentes da violência policial. Segundo os dados do último Atlas da Violência, um jovem negro tem 2,7 vezes mais risco de morrer vítima da violência do que um jovem branco. Antes de ser eleito, Bolsonaro referiu-se a moradores de quilombo usando uma medida de peso que se usa com animais e afirmou que nem para “reprodutor” eles serviam. Já Mourão disse que o brasileiro tem a indolência do indígena e a malandragem do negro. Mais racistas não poderiam ter sido.

São tantos, tão diários, tão frequentes e visíveis os atos de discriminação a que pretos e pardos estão expostos no Brasil que o presidente e o vice-presidente só conseguiram demonstrar que o governo vive divorciado do país. Governam de costas e agarrados a velhas desculpas esfarrapadas.

O racismo tem uma coleção de sofismas para continuar existindo no Brasil e fazendo seu trabalho de dividir os brasileiros pela cor da pele dando mais oportunidades aos brancos e mais riscos aos pretos. Um desses é que o Brasil é miscigenado e por isso não tem discriminação. É mesmo, o que torna ainda mais absurdo o preconceito. Outro é de que nos Estados Unidos houve segregação e aqui não. O Brasil criou um conjunto tão grande de barreiras que segregou os negros mesmo sem ter uma lei.

Não entender o racismo brasileiro é não entender o Brasil, é aliar-se ao que houve de pior na nossa história para que as desigualdades permaneçam. Há muito tempo tenho exposto neste espaço a minha profunda convicção de que lutar contra o racismo é tarefa de cada um de nós, brancos e negros. É uma luta em favor do Brasil e que tornará o país economicamente mais próspero, e com uma democracia mais sólida.

Não entender o racismo é não entender o Brasil, é aliar-se ao que houve de pior na nossa história para que desigualdades permaneçam.