Day: novembro 15, 2020

Bernardo Mello Franco: A República e os quartéis

A República faz aniversário. Cento e trinta e um anos e ainda não tomou juízo. Começou instável, pela espada do Deodoro, e continua aí na corda bamba.

Essas frases foram escritas por Otto Lara Resende, em 1991. O diagnóstico continua certeiro. Só atualizei a contagem dos anos.

Em 15 de novembro de 1889, o país passou a ser governado por um marechal. Hoje está nas mãos de um capitão. Não foi só nisso que regredimos.

Na semana das eleições municipais, os holofotes se deslocaram dos candidatos para o comandante do Exército. O general Edson Pujol afirmou que as Forças Armadas “são instituições de Estado”. A obviedade não deveria chamar a atenção numa democracia.

“Não somos instituição de governo, não temos partido. Nosso partido é o Brasil”, disse o general. Ele cometeu um ato falho. A última frase estampava a camiseta de Jair Bolsonaro quando ele foi esfaqueado em Juiz de Fora.

Na sexta, o vice-presidente Hamilton Mourão endossou as palavras de Pujol. “Política não pode entrar dentro do quartel. Se entra política pela porta da frente, a disciplina e a hierarquia saem pelos fundos”, afirmou.

O general não costumava pensar assim. Antes de passar à reserva, ele foi punido duas vezes por se meter na política. Em 2015, Mourão afirmou que o impeachment de Dilma Rousseff significaria “o descarte da incompetência, má gestão e corrupção”. Em 2017, disse que Michel Temer promovia um “balcão de negócios” para não cair.

Nas duas ocasiões, o general sabia o que estava fazendo. Ao atacar presidentes, ele quebrou a hierarquia para se projetar na política. Deu certo. Em 2018, seria convidado a integrar a chapa de Bolsonaro.

A declaração de Pujol também não combina com a atuação de seu antecessor. Às vésperas da eleição, o general Eduardo Villas Bôas pressionou o Supremo Tribunal Federal a negar um habeas corpus ao ex-presidente Lula.

A interferência da caserna no Judiciário empolgou o então candidato Bolsonaro. “Estamos juntos, general”, tuitou o capitão, que seria o maior beneficiário do julgamento.

Ao vestir a faixa, o presidente premiou o militar com um cargo no Planalto. A filha dele está pendurada no gabinete da ministra Damares Alves.

No início do mês, surgiram novas informações sobre a atuação política de Villas Bôas. Nos meses que antecederam o impeachment de Dilma, ele teve “vários encontros” com o então vice-presidente Michel Temer, segundo relato do professor Denis Rosenfield.

O comandante do Exército reclamava da Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes da ditadura. Na mesma época, o senador Romero Jucá foi gravado dizendo que os chefes militares prometeram “garantir” a derrubada da presidente.

Ao assumir a cadeira de Dilma, Temer deu ministérios a dois generais ligados a Villas Bôas. Um deles assumiu a pasta da Defesa, que só havia sido ocupada por civis.

Começava ali o retorno dos militares ao centro do poder. Com a vitória de Bolsonaro, os generais pensaram que voltariam a mandar no país. Agora alguns se dizem arrependidos, mas não o suficiente para deixarem os cargos.


Míriam Leitão: O derrotado e o nosso risco

O grande derrotado desta eleição é Jair Bolsonaro. Publiquei essa frase aqui no dia primeiro de novembro, com base em entrevista com o cientista político Jairo Nicolau. Existem duas dimensões da derrota, a dele mesmo e a dos seus candidatos. Por outro lado, existem as perdas diárias do Brasil com este governo. Nessa última semana, Bolsonaro debochou do país, comemorou um evento que envolvia a morte de um jovem, indicou o quanto quer interferir na Anvisa, mostrou desprezo pela vida humana, e no fim de um dia de atitudes repulsivas falou em guerra contra os Estados Unidos. Essa última fala é tão ridícula que não merece ser analisada. O que o incomodou mesmo foi o fato de o senador Flávio Bolsonaro ter sido denunciado.

O grande projeto do presidente é ele mesmo e seus filhos. Ele é tão desagregador que dispersou até as forças com as quais chegou ao poder, há dois anos. Brigou, humilhou, traiu um grande número de aliados. Chegou a esta eleição sem partido. A Aliança, legenda que tentou criar, foi, segundo definição de Jairo Nicolau, “o maior desastre da história da formação dos partidos”. Os candidatos que apoiou estão tendo um fraco desempenho e sua reprovação está subindo.

Eleição municipal tem outra lógica, como ensinam os especialistas. Mas o bom desempenho eleitoral de administradores que levaram a pandemia a sério revela que o eleitor reprova o desprezo que o presidente demonstrou com os riscos da pandemia, que vai do “e dai?” ao “país de maricas”.

O argumento do cientista político Jairo Nicolau foi que Bolsonaro malbaratou seu próprio capital político. “Ele perde para o que poderia ter sido” se tivesse usado o impulso da sua eleição para organizar o seu campo político. Mas ele perde também pela trajetória daqueles que apoiou nesta campanha. A incompetência de Bolsonaro é um alívio, dado que seu projeto é obter vantagens para ele e seus filhos, desmontar a ordem constitucional e iniciar outro ciclo autoritário.

A questão é que o Brasil na gestão Bolsonaro tem perdido demais. Perdido vidas, tempo, rumo, inserção no mundo, valores civilizatórios, florestas, coesão social. Nesses quase dois anos, o país retrocedeu e as instituições foram fracas. Não defenderam o nosso patrimônio político. Como é possível que ele não tenha enfrentado um processo de impeachment depois de ter, em plena pandemia, realizado por sete domingos consecutivos manifestações antidemocráticas? Atentou contra a saúde e a Constituição ao mesmo tempo, e qual foi a resposta? Notas de repúdio e um processo no Supremo no qual ele não é o alvo, mas apenas os financiadores dos atos. Bolsonaro foi para frente do quartel-general do Exército e disse que as Forças Armadas estavam com ele. E qual foi a resposta? Alguns generais, inclusive da ativa, e o ministro da Defesa estiveram com ele na maioria desses atos. As Forças Armadas foram usadas como espantalho contra seu próprio povo. E aceitaram. A declaração do general Edson Pujol foi um alento na sexta-feira, mas com a nota de ontem voltou-se à ambiguidade.

Então, sim, a última semana foi ruim para Jair Bolsonaro. Seu filho foi denunciado pelo Ministério Público estadual, e nos Estados Unidos seu farol político foi derrotado. Perdeu do Rio a Washington. Terá um desempenho pífio nas eleições. O mais importante, contudo, é o que o país perde diariamente por ter um presidente como Jair Bolsonaro. Ele mentiu quando disse que a vacina, desenvolvida pela China e o Instituto Butantan, provoca “morte, invalidez e anomalia”, e não foi cobrado por isso. A Anvisa teve que liberar o retorno dos testes, porque ficou escandalosa a suspensão, mas Bolsonaro deu mais um passo na destruição da credibilidade da Agência de Vigilância Sanitária indicando o coronel da reserva Jorge Luiz Kormann para a diretoria do órgão. Ele é obviamente a pessoa errada: sem notório saber, negacionista da ciência, divulgador de fake news, autor da tentativa de manipular números da Covid. Não tenho esperança de que o Senado o rejeite. O Congresso tem ajudado o presidente a desmontar instituições confirmando todas as suas indicações desastrosas.

Uma eleição municipal tem muitos significados, mas claramente esta não fortalecerá o movimento que levou Bolsonaro ao poder. Entretanto, o triste balanço desses 22 meses e 15 dias é que Bolsonaro tem dilapidado o legado dos constituintes de 1988. E a resposta das instituições tem sido fraca diante do dimensão do risco.


Evandro Milet: Educação é a maior das obras de infraestrutura, só que invisível

Uma mãe com um filho doente vai correr para um posto de saúde ou para um hospital. Esse desespero se reflete na pressão nos políticos e nas pesquisas eleitorais que apontam a saúde como o maior problema nas cidades. Se as mães tivessem a real consciência da importância da educação para o futuro do filho correriam para a porta das escolas quando percebessem notas baixas, filhos matando aulas, escolas depredadas ou professores sem preparo. Da mesma forma, pressionariam os políticos e fariam questão de marcar presença em reuniões de pais nas escolas. Muitos, infelizmente, entendem a escola apenas pela merenda oferecida, ou para tirar a criança da rua, o que não é desprezível na situação brasileira, mas é muito, muito pouco.

O resultado da educação não tem a visibilidade de uma bela obra de infraestrutura como uma rodovia, uma ferrovia, uma hidrelétrica ou mesmo um viaduto. Fica mais invisível que uma obra de saneamento ou um problema ambiental. E nem se percebe como uma demanda imediata de um sistema de transporte, rede de iluminação ou de wifi.

Por essa invisibilidade e consequente falta de pressão, aparece pouco nos programas dos candidatos, porém, se infraestrutura significa o conjunto de elementos que estimula o desenvolvimento socioeconômico de uma região, educação é a mais importante delas. E a escuridão na educação do Brasil é maior que um apagão de energia.

Mesmo aqueles que percebem a importância da educação para o futuro dos filhos aceitam como satisfatório, por desconhecimento, um padrão, quando muito, apenas razoável quando comparado com padrões internacionais. A referência no Brasil ainda é Sobral no Ceará - o que é um avanço  extraordinário - mas não é Singapura ou Finlândia, a ponta da educação no mundo.

A má qualidade da educação implica na evasão alarmante, no baixíssimo nível de aprendizado e consequentemente em baixos salários, baixa produtividade e mesmo criminalidade e outras mazelas sociais. E os problemas não são esquerdização, ideologia de gênero, Paulo Freire, plantação de maconha, balbúrdia, banheiro unisex ou mamadeira de piroca. O problema é que as crianças não aprendem o que deveriam aprender na idade certa. Por quê? Municípios pequenos não conseguem administrar sua educação, diretores ainda são escolhidos por indicação política, salário baixo de professores não atrai muitos dos melhores para a carreira e faz com que tenham que atender várias escolas para completar salário, falta de formação dos professores, falta de escolas de tempo integral, falta de creches, escolas depredadas e falta de materiais didáticos padronizados para o professor e para o aluno.

As escolas particulares, frequentadas pela classe de renda mais alta, mantém uma qualidade muitas vezes de razoável padrão internacional. Mas também as escolas federais, públicas, como as escolas técnicas, tiveram resultado comparável com os melhores países na avaliação PISA, que mede o conhecimento em leitura, matemática e ciências em jovens de 15 anos. Mostra que é possível uma escola pública de qualidade. Por que não para todos? O que as escolas técnicas federais têm de diferente? Seria o fato de serem federalizadas? Um dos motivos é que mantém professores de dedicação exclusiva.

Uma grande campanha de conscientização da população, no estilo do "Agro é pop" na TV, "Educação importa", por exemplo, poderia ser o início de uma mobilização, que informasse e motivasse a população a desencadear uma pressão política para colocar a educação no lugar devido de prioridade nacional para se conseguir dar uma grande salto. Educação tem que estar no centro de um projeto de desenvolvimento.


Celso Lafer: ONU, 75 anos

Diplomacia do governo almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional

O multilateralismo e suas instituições têm como função criar mecanismos institucionalizados de cooperação entre os Estados. Resultam das realidades de um mundo finito e interdependente. Respondem à necessidade de lidar com desafios que não estão ao alcance das relações bilaterais e muito menos de ações unilaterais, como pandemias e mudança climática. É o que convém lembrar preliminarmente, afastando desqualificações “globalistas”, ao comemorar os 75 anos da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU representa a presença da figura do terceiro no pluralismo do mundo dos Estados. Há na figura do terceiro um potencial de favorecimento do entendimento, que se revela nos conflitos bilaterais.

Os bons ofícios, a mediação, a arbitragem são exemplos da intercessão do terceiro nas soluções pacíficas de controvérsias.

A diplomacia é uma arte do terceiro, que opera no âmbito internacional no trato da governança da complexidade, negociando, persuadindo, contendo tensões, desdramatizando conflitos.

A ONU é um terceiro. Não é um terceiro acima das partes, um tertius super partes, porque não é um governo mundial. É um tertius inter partes, um terceiro entre as partes, criado pelos Estados e institucionalizado pela Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.

Tem como função ser uma instância de abrangência universal de interposição e mediação entre Estados. É dotada de personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus Estados-membros. É o que confere à ONU a sua identidade internacional. Para cumprir sua função de instância de interposição e intermediação, rege-se pelas normas da sua Carta. Guia-se pela “ideia a realizar” de ser “um centro destinado a harmonizar a ação das nações” para a consecução dos objetivos comuns dos seus propósitos – paz, segurança, relações amistosas e cooperação internacional.

Os propósitos da ONU e suas realizações foram reafirmados na resolução da Assembleia-Geral de 21 de setembro deste ano, que registra o muito que precisa ser feito, apontando que os grandes desafios do presente são interconectados e interdependentes. Por isso só podem ser enfrentados por meio de um multilateralismo revigorado e pelo reforço do pilar da cooperação internacional.

Do espaço da ONU tem se valido a diplomacia brasileira no correr das décadas, exercendo com competência a arte diplomática do terceiro para articular, na interação com os Estados que integram a sociedade internacional, a voz própria e os interesses gerais do Brasil na dinâmica do funcionamento do mundo.

O multilateralismo vem propiciando soft power para o nosso país, que agrega substância à diplomacia bilateral brasileira. É o que comprovam os estudos acadêmicos e a experiência dos que viveram “de dentro” a responsabilidade de representar o Brasil em instâncias multilaterais.

É o que não percebem a diplomacia do governo Bolsonaro e a vocação negacionista de seu chanceler Ernesto Araújo, que almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional.

A figura de secretário-geral corporifica a identidade do tertius inter partes. Ele é um agente administrativo, mas também um ator político, proveniente de seu poder de iniciativa que lhe dão a Carta e a prática construída por sucessivos secretários-gerais, cabendo destacar o papel inaugural que teve Dag Hammarskjold.

Ele, aliás, dizia que a missão da ONU não era a de elevar a humanidade ao céu, mas salvá-la do inferno. Daí a responsabilidade do secretário-geral de promover iniciativas de cooperação que façam da ONU um tertius ativo no encaminhamento dos grandes problemas internacionais.

Muito tem feito, em condições difíceis, o atual secretário-geral, António Guterres, com criatividade e determinação no exercício de suas funções, para as quais vem mobilizando a opinião pública e a sociedade em prol de um mundo mais sustentável e menos precário.

Concluo lembrando conhecida elaboração de Albert O. Hirschman sobre o papel da voz, da saída e da lealdade na dinâmica da vida de organizações. A lealdade numa instituição equilibra a voz e a saída. A saída pressupõe a existência de alternativas, no caso a alternativa ao multilateralismo e suas instituições, como a ONU. Eu não creio, dada a natureza da realidade internacional, que seja possível conviver com os unilateralismos de um Estado de natureza hobbesiana e sua propensão à guerra de todos contra todos. “Somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”, como observa Hannah Arendt.

Daí a relevância da lealdade à ONU, que é uma característica histórica da diplomacia brasileira.

Quanto à voz, não faz sentido o monólogo da discussão contra, com a qual se compraz a diplomacia de confronto do governo Bolsonaro, mas sim o diálogo de discussão com os outros integrantes da comunidade internacional, tendo como propósito encontrar interesses comuns e compartilháveis, cujos caminhos o secretário Guterres vem desbravando de maneira corajosa e pertinente.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Dorrit Harazim: À exaustão

Segundo assessores, Trump não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até 20 de janeiro

Joe Biden derrotou Donald Trump por uma diferença que pode chegar perto de 7 milhões de votos populares. Um mundaréu. Biden também ultrapassou com folga os 270 votos eleitorais necessários para merecer a Casa Branca — o placar foi de 306 a 232. Mas festão de arromba dá ressaca. E a aldeia democrata que sacolejou como não fazia desde 2016 despertou para a realidade. Trump continua entrincheirado no Twitter, mantém quase intacto seu monopólio midiático, e o núcleo duro do Partido Republicano ainda o teme como líder de mais de 72 milhões de eleitores. Outro mundaréu.

Também não dá para continuar a festança diante do ressurgimento tentacular da Covid no país. Ao longo das últimas semanas, a pandemia adquiriu contornos de crise humanitária nos Estados Unidos, comparável à mortandade no Japão causada pelo tsunami de 2004 ou ao terremoto de 2010 no Haiti. O novo coronavírus é apenas mais silencioso e longevo. E insidioso.

O trunfo de Biden diante da birra existencial de Trump são os oito anos em que atuou como vice e parceiro diário de Barack Obama na Presidência. Ele não precisa de mapa — aprendeu e frequentou os meandros da Casa Branca como poucos. Precisa sim, e com urgência, de acesso irrestrito à máquina do governo para começar a formular políticas e inteirar-se do tamanho dos problemas que o aguardam. Ou não é para isso que servem as equipes de transição e os 72 dias de preparo entre a vitória nas urnas e a cerimônia de posse?

Mas esse compartilhamento só funciona quando o ocupante de saída da Casa Branca é minimamente convencional, civilizado e temente ao lugar que ocupará na História. Ou seja, qualquer um menos Donald Trump.

O atual presidente já deixou de simular interesse pela nação. Segundo relatos de assessores próximos, o comandante-em-chefe não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até o meio-dia do dia 20 de janeiro. E poder, para Trump, significa dominar o noticiário, alimentar o suspense em torno de seus rompantes, pequenas e grandes vinganças, demissões bombásticas de última hora, do mistério de como se dará sua despedida. Ele espera assim manter aceso o engajamento dos seguidores para lançar a campanha Trump2024 — mesmo que ela seja fake.

Na verdade, existem apenas dois poderes presidenciais quase absolutos na democracia americana. O primeiro é o controle final do mandatário sobre o arsenal nuclear, envolto em minuciosos controles e salvaguardas até uma bomba ser de fato disparada. Mas continua válido o comentário de Richard Nixon durante um jantar na Casa Branca para membros do Congresso: “Eu poderia sair deste salão agora e, em 25 minutos, 70 milhões de pessoas estariam mortas”. Hoje seriam apenas 5, no máximo 7 minutos, até o disparo final e, para sorte do nosso planetinha, nem Nixon nem Donald Trump acionaram a ferramenta.

O segundo poder quase absoluto do ocupante da Casa Branca consta do Artigo II, Seção 2 da Constituição americana e tem raízes na monarquia britânica do século VII: a concessão do perdão presidencial. A ideia de que brotou essa prerrogativa foi benigna, elaborada como contrapeso à severidade institucional da Justiça criminal. O artigo em questão contém apenas duas restrições. O perdão só pode ser concedido a quem praticou uma ofensa aos Estados Unidos (portanto, só é cabível para crimes federais) e não pode ser usado para casos de impeachment.

Mas a Constituição de 1787 deixou em aberto uma questão que somente agora, no crepúsculo do mandato de Trump, adquire relevância — pode um presidente conceder clemência para si mesmo? Como essa hipótese não ocorreu a nenhum dos 44 presidentes antes do atual, a dúvida permaneceu restrita a interpretações de causídicos. Somente em 1974, com o impeachment e a renúncia de Richard Nixon em andamento, o Departamento de Justiça tomou a decisão de declarar que um autoperdão não deveria poder ser concedido, com base na lei fundamental de que ninguém pode ser juiz de seu próprio processo.

Só que a leitura do 45º presidente é outra. Muito antes de ser derrotado nas urnas, Trump proclamou algumas vezes seu “direito absoluto de conceder perdão a mim mesmo”. Pode até ser tentador como apoteose final ou autoimolação de sua presidência disruptiva. Mas nem isso o livraria da penca de processos que o atormentam em tribunais estaduais. Segundo a CNN, o presidente se informa sobre o tema desde 2017, de forma obsessiva, inclusive inquirindo assessores sobre a possibilidade de conceder perdão por antecipação, na eventualidade de alguém próximo vir a ser condenado mais adiante. Espera-se, no mínimo, uma enxurrada de perdões para aliados puro-sangue que foram parar na cadeia por sua causa.

Ou seja, Trump será Trump até a exaustão.


Elio Gaspari: Tempestade numa proveta

Um dia se saberá o que aconteceu na Anvisa entre as 15h e as 21h25m de segunda-feira, quando ela suspendeu os estudos clínicos que avaliavam a Coronavac

Um dia se saberá o que aconteceu na Anvisa entre as 15h e as 21h25m de segunda-feira, quando ela suspendeu os estudos clínicos que avaliavam a Coronavac. Uma rede de computadores fora do ar e uma comemoração de Jair Bolsonaro transformaram um suicídio numa lastimável tempestade de proveta.

A polícia achou o corpo do voluntário na tarde de 29 de outubro. No dia seguinte, uma sexta-feira, o centro de pesquisas do Hospital das Clínicas informou à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, e ao Instituto Butantan.

O médico Jorge Venâncio, coordenador da Conep, disse à repórter Constança Tasch que conversou com pesquisadores “duas vezes por dia” e decidiu não suspender os testes. Ele explicou o motivo: “O voluntário tomou a segunda dose da vacina 22 dias antes, não tinha nenhum problema de saúde e chegou a fazer um check-up particular, com uma batelada de exames, pouco depois.”

Numa outra pista, correu a notificação do Instituto Butantan à Anvisa. Ela foi emitida no dia 6 de novembro, informando na sua parte conclusiva que a morte do voluntário não tinha a ver com o teste da vacina. Segundo a Agência, seu sistema de computadores estava fora do ar e a comunicação do dia 6 não havia sido lida.

Às 15h do dia 9, segunda-feira da semana passada, a Anvisa pediu ao Butantan informações sobre os “eventos adversos graves inesperados” ocorridos desde 30 de outubro.

Segundo uma cronologia divulgada pelo Butantan, às 18h13m o pedido foi reiterado e 11 minutos depois as informações que haviam sido mandadas no dia 6 foram reenviadas. Os fatos que subsidiaram a decisão da Conep estavam todos lá. Só faltava a palavra suicídio. Segundo uma linha do tempo da Anvisa, ela chegou “sem nenhum detalhe”.

Às 20h47m a Anvisa convocou a equipe do Butantan para uma reunião de emergência no dia seguinte, sem agenda especificada.

No entanto, 13 minutos depois, em outra mensagem a Anvisa suspendeu os testes daquilo que Bolsonaro chama de “a vacina chinesa do governador João Doria”.

Às 21h25m a Anvisa informou que suspendera os estudos clínicos da Coronavac.

Por motivos que podem ser compreensíveis, durante três dias a Anvisa ficou fora do lance, mas, como ela revelou, sabia “por meio de contato informal com o Ministério da Saúde e com a Conep” que um “evento adverso grave teria ocorrido”. Entre as 15h e as 21h25m criou-se uma crise sanitária, alavancada no dia seguinte pelo capitão, que viu na sua decisão “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.

Na sua entrevista de terça-feira o contra-almirante Antonio Barra Nunes, que é médico, repetiu à exaustão que fez tudo de acordo com o manual e que a decisão foi dos técnicos, funcionários de carreira. O diretor do Butantan, Dimas Covas reclamou: “Um telefonema teria resolvido”. Juntando-se as peças, a Anvisa revelou que soubera “informalmente” da ocorrência de um “evento”. Ela, que estivera fora do ar, decidiu suspender os testes sem não falar com o Butantan e muito menos com a Conep, que avaliara o caso.

Barra Nunes fez tudo pelo manual, que não prevê telefonemas. Aparecer numa manifestação diante do Palácio do Planalto à qual incorporou-se o presidente Bolsonaro também não seria coisa do manual, mas deixa para lá.

Achando que seguia o manual, em 1941, o comandante da frota americana do Pacífico menosprezou as advertências que lhe chegavam sobre a possibilidade de um ataque japonês e deixou parte de seus navios atracados na base de Pearl Harbor. Na manhã de 7 de dezembro, de uma janela, viu o ataque. A sorte tinha mandado três porta-aviões ao mar.

Dez dias depois o almirante Kimmel perdeu o comando e duas das quatro estrelas que tinha.

BolsonaVac

Antes mesmo da certificação da CoronaVac, o governador João Doria parece ter descoberto a BolsonaVac.

Durante quatro dias, enquanto a Anvisa estava metida na encrenca dos testes da vacina e Bolsonaro falava de um país de “maricas” ele se manteve no mais absoluto silêncio, como se praticasse um distanciamento político.

Doria pode ter descoberto uma vacina contra bate-bocas com gotículas viróticas e contagiosas.

Chapman precisa se cuidar

O embaixador americano Todd Chapman precisa puxar o freio de mão. Ele incluiu uma homenagem aos seus fuzileiros navais no portal da repartição sem qualquer segunda intenção. Mesmo assim, com menos de dois anos no posto, apareceu bastante, coloriu-se demais e deixou que Washington organizasse uma ridícula viagem do secretário de Estado Mike Pompeo a Roraima. Na quinta-feira, reuniu-se com o embaixador argentino para tratar de uma política que levava em conta a vitória de Joe Biden. Como palitar dentes à mesa, poder, pode.

Em julho, quando a Covid já havia matado mais de 63 mil pessoas no Brasil, Chapman deu um almoço para Bolsonaro e seus hierarcas. Nenhum maricas, todos sem máscara, inclusive ele. William Tudor, o segundo representante do governo americano no Brasil chegou ao Rio em 1827 e em 1830 morreu de febre amarela. Seu túmulo só foi achado em 1944.

Chapman tem à mão a boa memória de outro antecessor. Jefferson Caffery ficou no posto de 1937 a 1944, atravessando a turbulência do Estado Novo durante a Segunda Guerra Mundial. Foi um craque na profissão pelo que fazia em pé, Chapman pode seguir seu exemplo.

Erro

O ministro Gilmar Mendes informa que estava errada a informação aqui publicada segundo a qual “não há no mundo corte constitucional renomada que decida em turmas”.

Diz e prova: A Corte Constitucional alemã divide-se em dois Senados, um cuida dos processos de controle de constitucionalidade e o segundo cuida de conflitos entre os entes federativos e questões eleitorais. A Suprema Corte do Reino Unido tem 12 juízes mas nem todos se manifestam em todas as decisões.

Eremildo, o idiota

Eremildo é muito macho, não usa máscara e vai a Brasília para presentear o capitão com uma garrafa de sua caipirinha de açaí com cloroquina.

O cretino foi a única pessoa que entendeu a metáfora da pólvora. Ela pode ser usada pelos agrotrogloditas para explodir as árvores que não queimarem.

Mesmo que o capitão estivesse ameaçando Joe Biden com um uso da pólvora, Eremildo também acha a ideia ótima. Ele pretende se alistar na primeira tropa para combater os americanos. Espera ser feito prisioneiro e levado para Nova Jersey onde abrirá uma franquia de chocolates caso consiga ficar por lá.

Houve aviso

Paulo Guedes está frustrado por não ter conseguido privatizar coisa alguma. Nem a estatal do trem-bala o governo Bolsonaro conseguiu fechar.

Aviso não faltou. Antes mesmo da posse o economista Mansueto Almeida avisou-o que suas metas de privatizações, eliminação do déficit e venda de imóveis da União eram voo de anjo.


Bruno Boghossian: Tropeço eleitoral deve desvalorizar passe de Bolsonaro no mundo político

Fracasso de apadrinhados e vitórias do centrão podem mostrar que presidente não é ator decisivo

Nas últimas eleições, alguns políticos chegaram a passar vergonha quando buscavam o apoio de Jair Bolsonaro. Um candidato a governador pegou um avião até o Rio só para tentar aparecer ao lado do favorito na corrida presidencial. O sujeito tomou um bolo do capitão, mas continuou usando sua imagem na campanha mesmo assim.

Bolsonaro puxou muita gente na onda conservadora de 2018. As eleições municipais deste domingo sugerem que o cenário mudou. Enquanto candidatos associados ao presidente lutam com dificuldade por vagas no segundo turno, fica cada vez mais claro que ele não aparece mais como um cabo eleitoral decisivo.

Depois de prometer que não se envolveria nas disputas deste ano, Bolsonaro mudou de ideia e tratou seu apoio como um item disponível para um público seleto, escolhendo a dedo as corridas de que participaria. O fracasso de alguns de seus apadrinhados ameaça desvalorizar o passe do presidente no mundo político.

Os bolsonaristas podem se tornar uma nota de rodapé dessas eleições. Em Belo Horizonte, Bruno Engler (PRTB) abusou da imagem do presidente, mas não conseguiu passar dos 4% das intenções de voto. No Recife, Delegada Patrícia (Podemos) descolou um apoio na reta final da campanha. Ela ficou estagnada nas pesquisas, e sua rejeição disparou.

Nas duas maiores cidades do país, Bolsonaro não conseguiu produzir nem mesmo uma marola até aqui. Celso Russomanno (Republicanos) despencou, e Marcelo Crivella (Republicanos) passou a ser ameaçado por duas adversárias. Os dois candidatos ainda podem chegar ao segundo turno, mas será difícil vender a ideia de que o presidente os ajudou.

Além do risco de fiasco, Bolsonaro também precisa ficar atento ao desempenho de candidatos de sua base aliada que ficaram sem apoio oficial. Uma vitória em massa desses nomes mostraria ao centrão que a máquina do governo e o auxílio emergencial podem render frutos, mas também aumentaria as dúvidas sobre o peso político do presidente.


Hélio Schwartsman: A festa da democracia

Hoje, todos os brasileiros com mais de 18 anos e menos de 70, que sejam alfabetizados e que não estejam cumprindo pena com sentença transitada em julgado estão obrigados a ir às urnas. Acho meio autoritário. Não é meu modelo favorito de direito de voto, mas é um sinal inequívoco de que a democracia está em vigor, apesar de o país ter colocado no poder um indivíduo que não tem o menor apreço por ela.

As instituições estão ou não funcionando? É um caso clássico de copo meio cheio e meio vazio. Para os mais exigentes, que esperam do sistema que ele corte pela raiz quaisquer extremismos e faça com que todos se comportem como lordes ingleses, então as instituições fracassaram. Nossos mecanismos antirradicalismo, notadamente o segundo turno, não impediram a eleição de Jair Bolsonaro, que pode ser acusado de muitas coisas, mas não de cavalheiro.

Para os mais pragmáticos, contudo, que se satisfazem com um sistema que seja capaz de prevenir a ruptura da ordem legal e a violência física entre facções, até que nossas instituições não estão se saindo tão mal.

Bolsonaro e seu clube de generais de pijama não foram capazes de dar o tão temido golpe —e não porque não tenham desejado. Continuamos votando normalmente e seguimos com um Congresso e um Judiciário relativamente independentes, porque o desenho institucional prevê uma divisão dos Poderes que não é tão fácil de atropelar.

Na verdade, o sistema é que conseguiu em alguma medida domar Bolsonaro. Com o duplo temor do impeachment e da cadeia para os filhos, Bolsonaro alterou seu comportamento. Não se tornou obviamente um moderado, mas moderou o discurso golpista, parando de atacar semanalmente o Parlamento e o STF.

Não devemos, porém, nos iludir. As instituições resistiram até aqui, mas sofreram desgastes —e não há garantias de que resistirão para sempre. É preferível ser obrigado a votar a não poder fazê-lo.


Vinicius Torres Freire: A onda cinza da eleição municipal e os meteoros vermelhos

Eleição terá vitórias das sublegendas do centrão, de PSDB-DEM e traços rubros no céu

Quem olhasse a eleição pelo binóculo embaçado das pesquisas veria uma onda cinza cobrindo as maiores cidades. O grosso das vitórias ficaria com aquela massa indistinta de conservadorismo ou de reacionarismo moderado que são as sublegendas do centrão. Não é novidade. Esse pequeno establishment costuma governar os interiores do Brasil.

Quem se ocupasse de pensar em vitórias simbólicas ou na conquista de massas de eleitores veria o sucesso da velha dupla dos anos FHC, PSDB e DEM, a interiorização maior do PT e raros meteoros vermelhos, o PCdoB e o PSOL.

Como não tem partido, Jair Bolsonaro poderia ter ficado ausente da eleição sem se chamuscar, mesmo que seus adeptos anônimos não ganhem quase nada de relevante. Mas deve levar na testa a marca da derrota em São Paulo e no Rio.

Trata-se aqui das eleições em 95 das maiores cidades do país. A ideia era verificar a situação de 95 municípios em que, por lei, pode haver segundo turno. Como em 13 deles não havia pesquisas ou não era nada prudente acreditar nelas, escolheram-se outros a fim de completar os 95. Juntos, têm mais de 80 milhões de habitantes, 38% da população brasileira.

Como São Paulo é sobrerrepresentado nesse grupo, o PSDB parece ter chances de levar 15 prefeituras. O PSD de Gilberto Kassab ficaria com umas 12, em seu avanço seguro e gradual de empreendimento bem projetado do centrismo-centrão. O MDB, campeão histórico das municipais, com 11. DEM, com 9. PT e PP, com 8. Pode ser mais ou menos (“margem de erro” de 3, digamos).

A dupla PSDB e DEM levaria 42% da população das 95 cidades. Ao menos pelo ranking das pesquisas, os tucanos ganhariam, entre outras cidades, São Paulo; o DEM ficaria com Rio, Salvador, Curitiba e Florianópolis, por exemplo.

Não quer dizer que tais partidos vão necessariamente ganhar mais força na política do país. Se por mais não fosse, as grandes cidades são trituradoras políticas. Não garantem projeção nacional e causam sequelas em seus governantes.

Em São Paulo, ninguém se reelege (Bruno Covas, PSDB, é o caso de vice que assume e ganharia a recondução, como foi o caso de Gilberto Kassab). Ainda assim, seria vitória ao menos simbólica da dupla dos tempos fernandinos, PSDB e DEM.

A seguir, o balaio mais cheio seria o do PSD, que levaria Belo Horizonte no primeiro turno, reelegendo Alexandre Kalil, que então se torna uma figura mais nacional. Logo depois, viria o MDB.

Afora o desastre paulistano, em números gerais o PT não faria tão feio. Menos ainda se levasse Recife. Mas Marília Arraes, a candidata petista, tenta chegar ao segundo turno. Chegando, terá contra si o ora líder João Campos (PSB) e a direita. No mais, o PT deve levar cidades médio-grandes e talvez Vitória.

Manuela d’Ávila (PCdoB) pode levar Porto Alegre. Guilherme Boulos (PSOL) pode não levar nada, mas por ora é a cara ou a moda da esquerda na cidade natal do PT; o PSOL ainda pode levar Belém e disputa outras três cidades.

Esses dois nanicos da esquerda correm risco de desaparecimento no Congresso, por causa da cláusula de barreiras. Mas vão parecer a luz vermelha no fim do túnel da esquerda nesta eleição. Assim, devem ficar ainda mais escancarados os problemas do envelhecimento e da liderança do PT no “campo progressista”, embora o partido não tenha substituto à altura, mesmo nessa decadência.

Haverá ainda a conta bruta do número de vitórias de cada partido nas demais 5.473 prefeituras, ainda incógnita, que ajudará a pintar também o quadro da eleição. No mais, é uma onda cinza, com trovoadas de PSDB-DEM e meteoros vermelhos.


Ricardo Noblat: Estas eleições enterram o que Bolsonaro chamou de Nova Política

Para onde o vento sopra

Em suas lives semanais no Facebook, o presidente Jair Bolsonaro pediu votos para 55 candidatos a prefeito e a vereador. Mas ontem, em mensagem postada nas redes sociais, reduziu para apenas 7 seus candidatos a prefeito, e 5 a vereador.

Os candidatos a prefeito: Coronel Menezes, em Manaus; Sartori em Santos; Delegada Patrícia no Recife; Bruno Engler em Belo Horizonte; Capitão Wagner em Fortaleza; Celso Russomanno em São Paulo; e Marcelo Crivella no Rio.

Salvo se as pesquisas de intenção de voto errarem feio, o que em tempos de epidemia é mais do que possível, estas eleições enterrarão o que Bolsonaro chamou de Nova Política quando candidato a presidente e depois de ter sido empossado.

Foi ele que matou a Nova Política, que nunca explicou direito do que se tratava. E o fez entre final de abril passado e final de maio ao concluir que se não vestisse a fantasia de presidente normal correria o risco de não completar o mandato.

No final de abril, ele ainda desafiava o Congresso e a Justiça, embora já se rendesse ao Centrão loteando o governo em troca de votos. Chegou ao ponto de ameaçar fechar o Supremo Tribunal Federal. No final de maio, depois da prisão de Queiroz, amansou.

Deu por esquecido o que dissera em sua primeira viagem a Washington como presidente quando defendeu que era preciso quebrar o “sistema” para no futuro reconstruí-lo. Bons tempos aqueles em que se apresentava como o Trump do Brasil.

O “sistema” venceu. Das 82 candidaturas mais bem posicionadas nas pesquisas em 26 capitais (Brasília não tem eleição), apenas 4 são de nomes que podem ser considerados estreantes, segundo levantamento feito pela repórter Júlia Dualibi.

As ferramentas tradicionais de disputa, como dinheiro, alianças partidárias e tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão foram reabilitadas. O espaço para surpresas foi reduzido a um tamanho insignificante. Virou pó a influência de Bolsonaro.

Se não desistir da reeleição em 2022, Bolsonaro será obrigado a se reinventar. É possível? Sim, é possível. Mas a conta da pandemia ainda não chegou para ele com todo o seu horror. E o estado da economia até lá não será seu maior trunfo.


Vera Magalhães: Reocupar o centro

Mesmo premida pela pandemia, eleição 2020 pode ser início do resgate da política

Foi só na semana passada que as pessoas parecem ter acordado para o fato de que hoje tem eleição. Nos últimos dias, três debates tiraram a campanha de São Paulo da clandestinidade imposta pela pandemia e pela omissão de quem a usou como desculpa para se esquivar do seu dever de promover a discussão como combustível da democracia.

O que esses debates e as pesquisas mostraram é que, mesmo driblando as restrições do ano do vírus e privado de informações, o eleitor parece ter chegado à conclusão de que é preciso votar com a cabeça, e não com o fígado ou com o coração. As disputas municipais vão resgatando a política, feita de bode expiatório em 2018, e escanteando a nova política estridente e feita de lacração nas redes sociais.

Com o pesadelo que é aguentar Jair Bolsonaro e sua Presidência buliçosa todos os dias há quase dois anos, depois de dois governadores eleitos na sua aba defenestrados, seu partido implodido e seus náufragos boiando dispersos por legendas amorfas, parcela significativa do eleitorado que votou nele (porque votaria até no demônio para não votar no PT) parece ter acordado do transe psicótico.

No outro lado, também sumiu da praça o eleitor negacionista dos descalabros do PT, aquele que fez ouvidos moucos para uma série de revelações baseadas em fatos e provas que mostravam que houve um assalto sistemático ao Orçamento público e ao patrimônio de estatais como forma de perpetuar um projeto de poder.

Isso era razão para se eleger um deputado ligado a milícias, com a família inteira empregada na política e se locupletando dela na forma de desvio de recursos de gabinetes para engordar patrimônio, defensor de tortura, assassinato de Estado, apologista do estupro e da homofobia? Certamente não. Portanto podem guardar o blablablá da falta de simetria porque não é disso que eu falo.

Justamente porque os ventos da política sopram rápido, a rápida corrosão da imagem fake do justiceiro minou as chances de simulacros de Bolsonaro de Norte a Sul do País. O presidente, ainda enebriado por aquela popularidade transitória do auxílio emergencial no meio do ano, achou que seria bom cabo eleitoral e se jogou no palanque.

Não satisfeito em conspurcar todas as instituições em 23 meses, enfiou mais o pé na jaca ao fazer lives diárias para promover seus candidatos. O resultado? Esses e os que levaram o capitão à TV viram suas chances minguarem. Enquanto isso, o centro, humilhado nas urnas em 2018, parece ter voltado a ser um lugar de conforto para um cidadão traumatizado por morte, doença, desemprego, inflação e falta de perspectiva.

Políticos experimentados, sem histrionismo, e uma nova esquerda não-petista avançam em capitais e cidades importantes.

A lição para partidos e lideranças de centro será clara: é pela via da política que o Brasil construirá uma saída para seu impasse, como fizeram os Estados Unidos.

Não se trata de correr para achar um dublê de Joe Biden, ou perder tempo nas redes sociais com a discussão ridícula de se vai ter frente ampla ou não, e quem pode entrar nela. Mas de reconhecer a emergência de se construir pontes para o dissenso democrático, que reconheça adversários e suas pautas como legítimos e representativos de parcelas da sociedade.

É só assim que o legado de destruição do tecido social, institucional e civilizatório de Bolsonaro poderá ser superado em 2022. Ele não é carta fora do baralho, e tem dois anos para tentar construir sua sobrevivência, a depender da economia. Além disso, eleição municipal nem sempre é prévia de nacional.

Com todas as ressalvas, é alentador que tenha sido o eleitor, quietinho numa campanha quase fantasma, a apontar o caminho para superar essa distopia. A bola agora está com os políticos.


Eliane Cantanhêde: Haja pólvora

Sem Trump, Mourão, governadores, prefeitos e parte dos militares, quem sobra para 2022?

Se o presidente Jair Bolsonaro insistir nesse ritmo de metralhadora giratória contra tudo e todos, quem estará com ele na reeleição em 2022? Bolsonaro não deve eleger um único prefeito de capital hoje, joga o vice Hamilton Mourão ao mar, cria tensões e cisões desnecessárias nas Forças Armadas, não entrega reformas e privatizações ao empresariado e ao mercado, não gera empregos, irrita médicos, professores, o pessoal da cultura e qualquer um que defenda o verde e a vida.

Quem sobra? Por questões ideológicas, interesses diretos, conveniências pontuais ou simples incapacidade de compreender o que se passa, os bolsonaristas dirão que sobram o Centrão e uma faixa considerável das redes sociais e do eleitorado. É preciso saber, porém, até onde, e quando, o Centrão e esse eleitor fiel, ou recentemente conquistado, resistem. As urnas de hoje serão um teste. Trarão boas respostas e indícios.

O Centrão está de olho na contagem de votos não só para consolidar suas bases como para projetar os próximos passos: as eleições para Câmara, Senado, governos estaduais e Presidência em 2022. O que os líderes de PP, PTB, PL… vão fazer, se o apoio de Bolsonaro se revelar tóxico? Serão fiéis na alegria e na tristeza? As eleições, portanto, devem deixar claros os limites da aliança. É restrita ao Congresso e dura enquanto a caneta tiver tinta. Bagaço de laranja e caneta sem tinta não servem para nada.

Pelas pesquisas, muito mais confiáveis no Brasil do que nas eleições americanas, Bolsonaro vai colher derrotas significativas em São Paulo e no Rio e assistir ao fim precoce da “nova política” que, dois anos atrás, empurrou policiais, militares, juízes e promotores para governos, Congresso e assembleias. Exemplos: o juiz Wilson Witzel e o bombeiro Carlos Moisés, já afastados dos governos do Rio e de Santa Catarina.

O sonho virou pesadelo. Os eleitos na onda bolsonarista não vão bem das pernas, o PSL voltou à sua real dimensão e o presidente não conseguiu criar um partido para chamar de seu. Assim, Bolsonaro vai encerrando o seu segundo ano de governo se despindo da fantasia do Jairzinho Paz e Amor e abrindo flancos por todos os lados. Encampou a derrota de Trump como sua, ameaça o futuro presidente Joe Biden e, hoje, a perspectiva é de derrota interna também.

Sem aliados externos e internos, nas mãos do Centrão, com horizontes nebulosos na economia e segunda onda da covid-19 na Europa, era hora de Bolsonaro criar caso com os militares? A um dos muitos oficiais militares que estão preocupados, perguntei se o presidente não precisa dormir mais para parar de falar besteira. E ele: “Sim. E de tomar um remedinho”.

A moda é dizer que Forças Armadas (FFAA) “são de Estado, não de governo” e os militares não são parte da política nem querem a política nos quartéis, como repetiu o general Edson Pujol, que também estava no Seminário de Defesa, na Escola Superior de Guerra - que, aliás, não teve ninguém do Planalto. No cafezinho, ele me disse: “Não sei por que tanta repercussão. Eu falei o óbvio”. O que leva à seguinte reflexão: quando o comandante do Exército precisa dizer obviedades, é porque elas deixaram de ser óbvias.

Em nota, ontem, o ministro da Defesa e os três comandantes declararam que o presidente “tem demonstrado (…) apreço pelas FFAA, ao que tem sido correspondido”. Por que dizer isso, a esta altura? Isolado no plano internacional, Bolsonaro será derrotado hoje na eleição para prefeitos e tem contra si parcelas expressivas de governadores, juristas, cientistas, médicos, professores, ambientalistas, diplomatas, artistas e analistas. Não satisfeito, bate boca com Mourão, o que divide os militares. Aonde, afinal, Bolsonaro quer chegar?