Dorrit Harazim: À exaustão

Segundo assessores, Trump não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até 20 de janeiro.
Foto: White House
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Segundo assessores, Trump não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até 20 de janeiro

Joe Biden derrotou Donald Trump por uma diferença que pode chegar perto de 7 milhões de votos populares. Um mundaréu. Biden também ultrapassou com folga os 270 votos eleitorais necessários para merecer a Casa Branca — o placar foi de 306 a 232. Mas festão de arromba dá ressaca. E a aldeia democrata que sacolejou como não fazia desde 2016 despertou para a realidade. Trump continua entrincheirado no Twitter, mantém quase intacto seu monopólio midiático, e o núcleo duro do Partido Republicano ainda o teme como líder de mais de 72 milhões de eleitores. Outro mundaréu.

Também não dá para continuar a festança diante do ressurgimento tentacular da Covid no país. Ao longo das últimas semanas, a pandemia adquiriu contornos de crise humanitária nos Estados Unidos, comparável à mortandade no Japão causada pelo tsunami de 2004 ou ao terremoto de 2010 no Haiti. O novo coronavírus é apenas mais silencioso e longevo. E insidioso.

O trunfo de Biden diante da birra existencial de Trump são os oito anos em que atuou como vice e parceiro diário de Barack Obama na Presidência. Ele não precisa de mapa — aprendeu e frequentou os meandros da Casa Branca como poucos. Precisa sim, e com urgência, de acesso irrestrito à máquina do governo para começar a formular políticas e inteirar-se do tamanho dos problemas que o aguardam. Ou não é para isso que servem as equipes de transição e os 72 dias de preparo entre a vitória nas urnas e a cerimônia de posse?

Mas esse compartilhamento só funciona quando o ocupante de saída da Casa Branca é minimamente convencional, civilizado e temente ao lugar que ocupará na História. Ou seja, qualquer um menos Donald Trump.

O atual presidente já deixou de simular interesse pela nação. Segundo relatos de assessores próximos, o comandante-em-chefe não tem qualquer estratégia além de se agarrar às chaves do poder até o meio-dia do dia 20 de janeiro. E poder, para Trump, significa dominar o noticiário, alimentar o suspense em torno de seus rompantes, pequenas e grandes vinganças, demissões bombásticas de última hora, do mistério de como se dará sua despedida. Ele espera assim manter aceso o engajamento dos seguidores para lançar a campanha Trump2024 — mesmo que ela seja fake.

Na verdade, existem apenas dois poderes presidenciais quase absolutos na democracia americana. O primeiro é o controle final do mandatário sobre o arsenal nuclear, envolto em minuciosos controles e salvaguardas até uma bomba ser de fato disparada. Mas continua válido o comentário de Richard Nixon durante um jantar na Casa Branca para membros do Congresso: “Eu poderia sair deste salão agora e, em 25 minutos, 70 milhões de pessoas estariam mortas”. Hoje seriam apenas 5, no máximo 7 minutos, até o disparo final e, para sorte do nosso planetinha, nem Nixon nem Donald Trump acionaram a ferramenta.

O segundo poder quase absoluto do ocupante da Casa Branca consta do Artigo II, Seção 2 da Constituição americana e tem raízes na monarquia britânica do século VII: a concessão do perdão presidencial. A ideia de que brotou essa prerrogativa foi benigna, elaborada como contrapeso à severidade institucional da Justiça criminal. O artigo em questão contém apenas duas restrições. O perdão só pode ser concedido a quem praticou uma ofensa aos Estados Unidos (portanto, só é cabível para crimes federais) e não pode ser usado para casos de impeachment.

Mas a Constituição de 1787 deixou em aberto uma questão que somente agora, no crepúsculo do mandato de Trump, adquire relevância — pode um presidente conceder clemência para si mesmo? Como essa hipótese não ocorreu a nenhum dos 44 presidentes antes do atual, a dúvida permaneceu restrita a interpretações de causídicos. Somente em 1974, com o impeachment e a renúncia de Richard Nixon em andamento, o Departamento de Justiça tomou a decisão de declarar que um autoperdão não deveria poder ser concedido, com base na lei fundamental de que ninguém pode ser juiz de seu próprio processo.

Só que a leitura do 45º presidente é outra. Muito antes de ser derrotado nas urnas, Trump proclamou algumas vezes seu “direito absoluto de conceder perdão a mim mesmo”. Pode até ser tentador como apoteose final ou autoimolação de sua presidência disruptiva. Mas nem isso o livraria da penca de processos que o atormentam em tribunais estaduais. Segundo a CNN, o presidente se informa sobre o tema desde 2017, de forma obsessiva, inclusive inquirindo assessores sobre a possibilidade de conceder perdão por antecipação, na eventualidade de alguém próximo vir a ser condenado mais adiante. Espera-se, no mínimo, uma enxurrada de perdões para aliados puro-sangue que foram parar na cadeia por sua causa.

Ou seja, Trump será Trump até a exaustão.

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