Day: outubro 28, 2020

Míriam Leitão: Banco Central e o alerta fiscal

O Banco Central decide hoje a taxa de juros em um cenário bem diferente da última reunião. Não há aposta em novo corte da Selic. A discussão no mercado financeiro é quando a taxa voltará a subir com a piora do quadro fiscal. A inflação acelerou. O setor de gás passará por uma onda de reajustes em patamar de 25% em muitos estados, como Bahia, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Os juros futuros subiram porque há enorme dúvida sobre o financiamento da dívida pública.

Hoje a decisão está dada. A Selic será mantida em 2%. Ano que vem ela aumenta, dizem os bancos. Há poucos meses, o Banco Central passou a adotar uma comunicação com detalhamento mais claro sobre os seus próximos passos, o que eles chamam de forward guidance. O objetivo é evitar surpresas na condução da política monetária. Mas se for para seguir direito essa estratégia precisa dizer com todas as letras que as condições de financiamento da dívida pioraram, e as expectativas de inflação subiram. Terá o BC autonomia para dar um recado duro ao governo sobre a gravidade do momento? Não basta colocar na agenda do Congresso o projeto de independência do BC. Autonomia se mostra na prática. Adianta pouco falar mais uma vez que o cenário é “desafiador”. O FMI diz que o Brasil é o país emergente com pior desempenho fiscal nesta pandemia.

A inflação surpreendeu nas últimas semanas. As projeções dos bancos e consultorias perderam para a realidade. Os IGPs, que medem a inflação no atacado, estão com variações em dois dígitos. Os preços da soja (83%), do milho (75%) e do trigo (40,9%) dispararam para os produtores, e isso significa alta de alimentos importantes da cesta básica, como carnes, pães, massas e óleos de cozinha. Arroz (122%) e feijão (28%) também subiram muito no atacado. Segundo a MB Agro, a alta dos alimentos acontece pelo aumento do dólar, dos preços internacionais das commodities e pela demanda no Brasil turbinada pelo auxílio emergencial.

Na taxa em 12 meses, o IPCA acelerou de 1,88%, em maio, para 3,14% em setembro. Ainda está abaixo da meta. A prévia de outubro foi um espanto: 0,94%. A MB Associados projeta que a inflação continuará subindo até 5,4% em maio do ano que vem, segundo o economista Sérgio Vale. Ou seja, mesmo se o governo começar a enfrentar a crise fiscal, já há uma alta da inflação contratada. Se cometer erros, o risco é de uma nova disparada do câmbio, com pressão ainda maior sobre os preços. Ontem, o Bradesco reviu sua projeção para a inflação, com aumento da Selic pelo Banco Central a 3,5% até o final do ano que vem. O banco alerta, porém, que nesse cenário não está contando com “qualquer flexibilização do teto, postergação do estado de calamidade ou eventual extensão do auxílio emergencial fora do teto de gastos.” Ou seja, esse é o cenário benigno. Se o governo adotar qualquer saída populista, ou inventar uma contabilidade criativa, haverá uma mudança total no preço dos ativos.

Segundo a Abrace, Associação dos Grandes Consumidores de Energia, após as quedas nos preços do gás durante a pandemia o que se espera agora é uma enxurrada de reajustes em 18 estados. São Paulo deve ter alta de 8,8%, mas os demais terão aumento nas tarifas na casa de dois dígitos, chegando a 30% em Minas Gerais e Pernambuco, e 25% no Rio, Bahia e Santa Catarina. Essas altas seriam decorrentes da subida do dólar, que ontem chegou a R$ 5,68, e da elevação do preço do petróleo no mercado internacional. A reação ideológica do Itamaraty na eleição de Luis Arce na Bolívia torna mais difícil uma boa solução na renegociação do gás com o país vizinho.

A economia está na seguinte situação: a queda do PIB foi atenuada pelo auxílio emergencial, mas todo o gasto da pandemia piorou muito a situação fiscal. O governo não sabe ainda como vai financiar o novo programa social ou a ampliação do Bolsa Família. Neste momento de juros baixos, em 2%, há uma janela para fazer o ajuste. Mas o governo não enviou reformas que mudem o quadro de verdade. O presidente é populista e nunca teve real aderência à agenda de equilíbrio fiscal. Bolsonaro não mexeu no teto com medo de que isso o leve a um impeachment. Se seus conselheiros o convencerem do contrário, ele, sim, mexerá no teto. Aí a casa cai no mercado financeiro.


Vinicius Torres Freire: Calote em bancos está na mínima histórica, mas refresco pode acabar no Natal

É um mistério o que vai ser da economia e da política brasileiras se e quando o auxílio emergencial e outras ajudas acabarem, no final do ano. Uma das dúvidas é o que o vai acontecer com a inadimplência, atrasos no pagamento e calotes de empréstimos bancários.

A inadimplência jamais esteve em nível tão baixo desde março de 2011, o registro comparável mais antigo. O motivo não é difícil de entender, mas a situação ainda assim é impressionante, de modo positivo, dado o tamanho da calamidade neste 2020.

Dados do Banco Central, dos bancos e da Febraban indicam que o aumento do prazo de carência e outras renegociações aliviaram pelo menos temporariamente o serviço das dívidas, em particular para famílias de menor renda e empresas pequenas. Facilidades de empréstimos bancados ou regulados pelo governo também ajudaram, além do fato das taxas de juros mais baixas. O auxílio emergencial e o auxílio-salário seguraram a renda das famílias. Tudo isso em tese começa a vencer em dezembro.

Ainda assim, os bancos concedem mais crédito. O valor total dos empréstimos de dinheiro novo para as famílias cresce quase nada em relação ao ano passado, mas está em níveis próximos do que se viu nos meses pré-epidemia. No total, o valor das concessões de empréstimos do trimestre julho-setembro é maior do que no mesmo período do ano passado. O nível de endividamento das famílias (total de empréstimos em relação à renda) também é o mais alto desde 2005, quando começa essa série de dados do Banco Central.

Em suma, os bancos não apertaram a corda. Ao contrário.

Diz-se por aí que o valor das provisões bancárias aumentou –trata-se do dinheiro que os bancos separam para cobrir calotes, grosso modo. É verdade. Mas, pelo menos na média dos bancos, vem caindo desde junho (pela medida das provisões como proporção do total de empréstimos). Além do mais, as provisões subiram menos e para níveis relativamente mais baixos do que os registrados nas crises de 2008-2009 e no fundo da recessão de 2016.

Esses eram os números até setembro, segundo as estatísticas do Banco Central. Se essa situação vai durar é um mistério, como se escrevia no início destas linhas. Como também tantas vezes já se escreveu por aqui, o possível tombo de 2021 depende: 1) Da recuperação do emprego: haverá gente trabalhando e ganhando a ponto de compensar o baque do fim do auxílio? 2) Se haverá confiança para gastar a poupança acumulada pelas famílias, na média, neste ano; 3) Se os mais pobres, que gastam toda ou quase toda sua renda, puderam guardar algum; 4) Se famílias e empresas continuarão a tomar empréstimos, incentivadas por juros menores; 5) Duração da epidemia.

Entre os donos do dinheiro grosso, a confiança caiu, o que está explícito na alta das taxas de juros no atacadão de dinheiro, desde agosto, e no preço do dólar ainda nas alturas do degrau de R$ 5,60. Essa pressão financeira pode desanimar investimentos produtivos. A balbúrdia do governo pode assustar também consumidores. Os mais pobres terão ainda mais problemas se a carestia da comida continuar depois que o dinheirinho do auxílio acabar.

Praticamente não há governo nem para cuidar das emergências financeiras de curto prazo, menos ainda projeto de política econômica. Apenas depois da eleição vai se saber o que Jair Bolsonaro e turma vão aprontar. Por enquanto, estão ocupados com o dote do casamento com o centrão (ministérios) e, como sempre, com problemas policiais.

O risco feio, enfim, é esse, como de costume: Bolsonaro.


Bernardo Mello Franco: O exilado do Laranjeiras

Mergulhado numa crise econômica e sanitária, o Rio de Janeiro completa hoje dois meses sem governador. Em 28 de agosto, o Superior Tribunal de Justiça afastou Wilson Witzel. Eleito com discurso moralista, ele foi acusado de desviar verbas da Saúde na pandemia.

O ex-juiz não tem do que reclamar. Enquanto ex-comparsas mofam em Bangu, ele desfruta um doce exílio no Palácio Laranjeiras. Divide o ócio com a mulher, três filhos e o gato Elvis, que se estica livremente sobre o mobiliário Luís XV.

Embora tenha sido alijado do poder, o governador continua a usufruir suas mordomias. Um garçom fica de prontidão para manter seu copo cheio. Ele alterna os goles de uísque com baforadas de charuto cubano.

No início de outubro, uma ação popular pediu que o Churchill de chanchada fosse removido do palácio. O juiz Marcello Leite, da 9ª Vara de Fazenda Pública, decidiu que ainda não era hora de despejá-lo. Até que o impeachment seja sacramentado, ele poderá permanecer na residência oficial.

O processo deve ter novidades amanhã. O deputado Waldeck Carneiro promete entregar seu relatório ao tribunal misto que examina as denúncias. O texto tende a ser aprovado na semana que vem, mas a novela da cassação pode se estender até o fim de janeiro. Até lá, o estado será governado interinamente pelo vice Cláudio Castro, também investigado sob suspeita de receber propina. A exemplo do colega de chapa, ele nega todas as acusações.

A derrocada não abalou a megalomania de Witzel. Em entrevista à revista “Veja”, ele informou que continua a mirar a Presidência. Atribuiu o desejo a um “sentimento patriótico”. “Minha missão na política está apenas começando”, disse.

Denunciado por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, o ex-juiz já ensaia fugir do país para não ser preso. “Se perceber que há perseguição política e cooptação das instituições contra mim e a minha família, pretendo pedir asilo político no Canadá”, declarou. Depois de sonhar com o Planalto, Witzel pode acabar na lista da Interpol.


Elio Gaspari: O quadrado do Supremo

Brasil não precisa que o STF entre numa guerra da vacina

Com quase 158 mil mortos, depois de três ministros da Saúde, da cloroquina, da gripezinha e de outras tolices do curandeirismo político, o Brasil não precisa que o Supremo Tribunal Federal entre numa guerra da vacina. Países andam para trás. Passado mais de um século da Revolta da Vacina, o Brasil regrediu. Em 1904 o presidente Rodrigues Alves foi um campeão do progresso, inflexível na manutenção da ordem. Ao seu lado estava o médico Oswaldo Cruz, enfrentando políticos, jornalistas e militares, mais interessados num golpe de Estado que na saúde pública.

O presidente Jair Bolsonaro decidiu fazer da pandemia um instrumento de sua propaganda. Salvo poucos parlamentares excêntricos, alguns dos quais partiram para outra melhor, o Congresso manteve-se longe dos debates pueris. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro está chamando o Supremo Tribunal Federal para a rinha: “Entendo que isso [não] é uma questão de Justiça, é uma questão de saúde acima de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não existe. Nós queremos é buscar a solução para o caso”.

O capitão tem direito às suas opiniões, mas o fato é que as atribuições do Judiciário estão definidas na Constituição e compete ao Supremo Tribunal Federal interpretá-la. Bolsonaro tem uma relação agreste com a Corte, e em maio passado ouviu-se seu brado de “vou intervir”. Viu que não tinha mandato nem cacife para isso.

Pode-se discutir se o presidente Luiz Fux fez bem ao dizer que a obrigatoriedade da vacina acabaria chegando a seu tribunal. O Supremo não está aí para avisar que vai decidir um litígio. Ele simplesmente decide. A Corte não é um assembleia para debate político nem uma consultoria (apesar de alguns de seus ministros gostarem do papel de consultores). É uma Corte onde os 11 ministros votam.

O quadrado constitucional do Supremo é específico. Seu poder emana de sua independência, e essa independência emana do distanciamento. Quando sai do quadrado, vira bancada, como a do boi ou a da bala. Os 11 ministros podem decidir, à luz do Direito, se uma vacina pode ser ou não obrigatória. Numa dimensão, quem não se vacina pode contrair febre amarela, sarampo ou Covid. Noutra, socialmente relevante, pode propagá-la. Onde acaba o direito de não se vacinar e começa a prerrogativa de contagiar?

A criação de um Fla X Flu com Bolsonaro de um lado e o Judiciário de outro pode atender aos interesses do capitão, mas é uma inconveniência constitucional. Quando o Supremo decidiu que os governadores tinham autoridade para criar regras de isolamento social, ajudou a salvar milhares de vidas. Vale lembrar que, à época, um dos paladinos da liberdade era o ministro-médico Osmar Terra. Ele achava que a pandemia mataria menos gente que a gripe sazonal.

Tudo indica que a obrigatoriedade da vacinação irá ao plenário do Supremo. Os ministros deverão decidir e argumentar com base no Direito e na Constituição. Quanto menos bate-bocas fora do quadrado, melhor para todo mundo. Um dia a Corte se reúne, cada ministro vota, a televisão mostra, e o caso está decidido.

Se Bolsonaro quiser criar uma crise, deverá buscá-la noutro lugar. Com ministros sem modos que insultam colegas, não lhe será difícil.


Carlos Pereira: O centro deixará de ser órfão?

É no mercado eleitoral nutrido de frustrações e decepções tanto com Bolsonaro como com o petismo que terá o potencial de emergir um candidato de centro em 2022

A polarização entre o PT e Bolsonaro deixou os eleitores ideologicamente de centro órfãos de alternativas nas eleições de 2018. Esses dois extremos se retroalimentaram, não deixando espaço para o fortalecimento de candidaturas competitivas como alternativa a esses dois polos extremados.

Mesmo ainda muito distante das eleições, já é possível identificar alguns sinais de que a polarização PT vs. Bolsonaro tende a se enfraquecer.

Por um lado, já existem claras evidências de que uma parcela não trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018, especialmente para evitar a vitória do PT, não estaria mais disposta a reeleger o Presidente. Esses eleitores de perfil pragmático, especialmente residentes no Sudeste, com alta escolaridade e renda se frustraram fortemente com o governo Bolsonaro diante da má gerência da pandemia da COVID-19.

Resta a Bolsonaro o apoio fiel do seu núcleo ideológico mais conservador que se nutre de vínculos indentitários com a sua liderança carismática. Além do mais, um novo mercado de eleitores se abriu para o presidente a partir do auxílio emergencial da pandemia. Mas esse auxílio já tem data para acabar.

Para que essa nova conexão eleitoral se fidelize, será necessário que o governo consiga novas fontes de recurso, seja por via de remanejamento orçamentário de outras políticas sociais ou aumento da carga tributária. Qualquer uma dessas alternativas encontrará fortes resistências na sociedade e no legislativo.

Pelo lado da esquerda, também existe muita frustração. O PT ainda patina na agenda falida do “Lula livre” e não consegue ser alternativa de oposição crível ao governo. O partido talvez seja, mais uma vez, o grande derrotado das eleições municipais deste ano. Corre o risco de perder o protagonismo de ser o núcleo do qual os outros partidos de esquerda gravitavam.

É justamente neste mercado eleitoral, nutrido de frustrações e decepções tanto com o governo Bolsonaro como com o petismo, que terá o potencial de emergir um candidato competitivo de centro como alternativa à polarização em 2022.

*Cientista político e professor titular da FGV- Ebape


Ruy Castro: Marcha, soldado

Ao reduzir generais a recrutas, o cabeça de papel desconta as humilhações que sofreu no quartel

Se os militares fossem tão argutos como se julgam, já teriam percebido que Freud explica. Jair Bolsonaro está tendo a oportunidade de descontar as humilhações que sofreu em sua medíocre carreira no Exército e se vingar dos oficiais que um dia bramiram na sua cara por alguma corneta que tocou errado ou cavalo que deixou de lavar. Na condição de presidente da República, donde chefe supremo das Forças Armadas, é a sua vez de bramir contra militares de alta patente, vários na ativa.

A própria militarização que está promovendo no governo —quase 7.000 milicos infiltrados em entranhas influentes da administração— serve a esse fim. Com ela, Bolsonaro mostra que pode ser generoso, dando-lhes confortáveis sinecuras, nomeando-os para funções incompatíveis e concedendo-lhes benefícios que nega aos servidores civis, mas que também pode tirar-lhes tudo isso quando quiser. E, para provar, dedica-se a devolver o dedo na cara apontando-o para os generais “de sua confiança”.

É a tática de Bolsonaro para reduzir seus generais a recrutas. Insulta-os ou induz seus jagunços a insultá-los. Daí obriga-os a engolir as ofensas ou arranca-lhes os botões. O primeiro a aprender com quem estava falando foi o general Santos Cruz, rapidamente expelido. O general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde que não sabia o que era o SUS, é outro que acaba de cair em si. Na única medida autônoma e sensata que tomou, de apoiar a compra de vacinas para a imunização dos brasileiros, foi quase fuzilado por Bolsonaro, que lhe impôs desdizer-se e se acoelhar para não ser demitido.

Há dias, o general Luiz Eduardo Ramos foi dormir com as orelhas ardendo e ainda se desculpou por ter sido grosseiramente ofendido. E haverá outros. Os bragas, helenos e mourões que se cuidem.

É o cabeça de papel dando ordens de marcha-soldado a homens que trocaram o mandar por obedecer —e logo a quem.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Bruno Boghossian: Como seria um governo Bolsonaro com maioria ampla no Congresso?

Presidente não destravou pauta ultraconservadora, mas quer expandir aliança com centrão

Meses antes de entregar cargos para os partidos do centrão, Jair Bolsonaro divulgou um texto que dizia que o Brasil era “ingovernável” fora do que chamou de “conchavos”. Naquela época, o Congresso servia de obstáculo aos planos do presidente: o Planalto sofria derrotas em série, enquanto os itens de estimação de sua pauta ficavam empacados.

Depois de se ver ameaçado no posto, Bolsonaro recorreu aos tais conchavos para sobreviver no poder. Até agora, a nova aliança não foi suficiente para destravar sua plataforma ultraconservadora, mas o presidente trabalha para expandir essa base.

Como seria um governo Bolsonaro com maioria ampla no Congresso? Com uma coalizão de tamanho razoável, o presidente já poderia liberar as armas de fogo para qualquer cidadão, aprovar sua proposta de taxar o seguro-desemprego e acabar com o uso obrigatório de cadeirinhas para crianças nos carros.

Se a base fosse ainda mais extensa, seus aliados conseguiriam antecipar a aposentadoria de ministros do STF para ocupar mais cadeiras na corte. Teriam força para incluir na Constituição uma proibição aos casos de aborto que hoje são legais e reduzir a verba destinada à educação.

Por enquanto, o centrão blinda Bolsonaro, mas ainda não adere aos pontos mais radicais de sua agenda de campanha. O cenário pode mudar, a depender dos benefícios de um eventual aumento da popularidade do governo, além da generosidade do presidente na distribuição de cargos para esses partidos.

Bolsonaro segue uma trilha diferente dos autocratas que saem das urnas com maiorias no Legislativo suficientes para mudar as regras do jogo e expandir seus poderes. A coalizão do presidente brasileiro é uma construção artificial, que mira políticos que têm limites programáticos e ideológicos relativamente flexíveis.

Em alguns casos, Bolsonaro e o centrão já falam a mesma língua. Há poucos dias, o líder do governo sugeriu uma nova Constituição para reduzir direitos dos cidadãos e limitar a ação de órgãos de controle.


Ricardo Noblat: Quando o presidente abusa dos seus poderes em socorro dos filhos

O país, anestesiado, considera tudo normal

Se nada havia de anormal, por que a presidência da República tentou esconder o encontro de Jair Bolsonaro com duas advogadas de defesa do seu filho Flávio, o Zero Um, denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por lavagem de dinheiro, apropriação de parte dos salários de funcionários do seu gabinete à época em que era deputado estadual, e organização criminosa?

O encontro ocorreu há pouco mais de dois meses no gabinete de trabalho de Bolsonaro que fica no terceiro andar do Palácio do Planalto. Dele participaram também o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, e o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência, órgão encarregado de espionar adversários do governo.

Discutiu-se como salvar Flávio dos problemas que enfrenta na Justiça, e como o aparelho estatal de segurança poderia ajudar na tarefa. As advogadas apresentaram um dossiê onde estão listadas supostas irregularidades cometidas por um grupo de funcionários da Receita Federal no fornecimento de informações sobre as contas bancárias de Flávio a órgãos oficiais de fiscalização.

O governo não diz como o caso evoluiu a partir do encontro. Tudo é segredo. O general Augusto Heleno só falou a respeito quando a imprensa descobriu o uso escandaloso da máquina pública para favorecer o filho do presidente da República. E o que ele disse? Que só participou do encontro porque lhe compete garantir a segurança da família presidencial. Nada demais.

O mundo quase desabou na cabeça da ex-presidente Dilma ao saber-se que ela avisou com antecedência ao marqueteiro de sua campanha em 2014 que a Polícia Federal poderia prendê-lo a qualquer momento. Diz-se, e com razão, que o gesto de Dilma, mais do que uma simples demonstração de afetividade, configura uma clara tentativa de obstrução da justiça.

Ela não poderia ter feito o que fez. Da mesma maneira como Bolsonaro também não. Os dois abusaram dos poderes e dos privilégios do cargo. Acontece que Dilma foi derrubada, mas não por isso. Bolsonaro continua presidente, apesar disso. É investigado porque quis intervir na Polícia Federal em defesa de Flávio e de Carlos, o Zero Dois. O processo dará em nada.

De tanto se sucederem anormalidades desde que Bolsonaro chegou à presidência da República, o país, anestesiado, já não parece se espantar com mais nada. Pandemia é uma gripezinha? Tudo bem. Gripezinha que não matará sequer mil brasileiros? Tudo bem. Cloroquina é o remédio ideal contra o vírus? Tome-se. Vacina só para quem quiser se vacinar? Assim deve ser. Vida que segue.

Poupe-se o Supremo Tribunal de legislar no lugar do Congresso

Sanções para quem não se vacinar

Faz bem Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, em tomar a iniciativa de tentar se entender com o governo em torno da aplicação obrigatória ou não de vacinas contra o coronavírus. Assim, poupa o Supremo Tribunal Federal de ter que se meter no assunto. Congresso existe para legislar.

O presidente Jair Bolsonaro é partidário de que se vacine quem quiser. Quem não quiser, não deve ser obrigado. Ocorre que a saúde coletiva não pode subordinar-se à saúde individual. A esmagadora maioria dos brasileiros diz querer vacinar-se. Há meios e modos legais de forçar os demais a se vacinarem também.

Um desses meios seria criar vários tipos de sanções para os que resistem à imunização. Quem não se vacinar, por exemplo, seria proibido de frequentar locais públicos onde possa haver aglomerações. Pela mesma razão, seria também proibido de usar o transporte coletivo e de viajar ao exterior. E assim por diante.


Rosângela Bittar: O discípulo amado

No conflito Salles x Ramos, os nomes não importam. São as alas por trás deles que operam

Vamos invocar logo a Última Ceia, de Leonardo Da Vinci, no detalhe do discípulo amado: ao enterrar a cabeça no peito do presidente Jair Bolsonaro, o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) criou, finalmente, um símbolo apropriado a este governo.

A uma semana das eleições presidenciais americanas e a duas das eleições municipais, no 9.º mês de mortes e medo da pandemia, ainda fumegando a Amazônia e o Pantanal, o Brasil se consagra na mediocridade, destemor e escárnio daquela cena trágica fotografada como cômica.

Num momento como este, foi o que sobrou. Desfecho de uma disputa de poder em que o presidente, mais uma vez, encerrou a conversa incômoda com afago ao time que lhe dá a cabeça ao cafuné. O grupo que Salles representa, ao qual, uma vez escolhido, serve seu corpo por encomenda à condução do conflito.

Este é um dos três núcleos que gravitam em torno do presidente e disputam a condição de serem o seu domicílio. Completam o círculo os militares e os políticos.

O mais recente conflito entre eles colocou, de um lado, o ministro Salles e, de outro, o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Os nomes não importam, são os grupos por trás deles que operam. Tem explicação racional? Não. O que vai acontecer na sequência? Nada. Apenas aguarda-se o próximo episódio. É a dinâmica do governo Bolsonaro.

Convencionou-se caracterizá-los como alas, tributo ao país das escolas de samba. Denominação que guarda distorções. Da ala dos amigos do peito, definida como ideológica, não se conhece uma única ideia. Assim ficou porque se aglutinou, inicialmente, por obra do guru da direita bolsonarista, o escatológico Olavo de Carvalho.

Sua força, no entanto, vem do combustível principal, os laços de família do presidente. Filhos, ex-mulheres, amigos de toda a vida, assessores parlamentares de pelos menos quatro casas legislativas. Acrescidos, depois da chegada ao poder, de ministros, parlamentares (sobretudo evangélicos), manifestantes fanáticos, com destaque para as locomotivas desgovernadas das redes sociais.

Este é seu governo in pectore. Eles ganham sempre e, quando perdem, caem para cima, geralmente premiados com cargos no exterior. Ou recolhem-se para um discreto retiro de meia semana.

Bolsonaro foi buscar na caserna a mão de obra para levar adiante o governo. Nem durante a ditadura foi possível apreciar, como agora, a relação dos militares com os cargos. Assumiram o poder de maneira voraz, conquistando uma cidadela após a outra. Os dois núcleos se combatem desde o início, na disputa da preferência do presidente.

Supõe-se que no imaginário de Bolsonaro a presença dos militares lhe daria sustentação incondicional, quem sabe lhe possibilitando até ir além. Para ele, poder é poder, sem filigranas ou vãs filosofias. Fechado à realidade, não percebeu que as Forças Armadas se civilizaram. Muitos dos escolhidos tiveram vivência anterior intensiva na política, como assessores parlamentares, estabelecendo um relacionamento camarada com as lideranças no Congresso.

Foi para preservar a política, resgatada para o governo depois de patinarem quase dois anos, que os presidentes da Câmara e do Senado penderam, neste conflito, para o grupo militar. O que pareceu, a princípio, um tiro de bazuca para revidar uma puxada de estilingue, provou-se depois de intensidade excessiva, mas necessária. Os amigos do peito não têm limites.

O núcleo político começou a se consolidar com o Centrão, de reconhecido vazio moral e intelectual. Mas não é só ele. Jair Bolsonaro está dependente da velha política, em gênero, número e grau.

Até para dar a volta completa ao círculo e voltar ao ponto inicial, conquistando a meta de proteger os filhos. A doutrina do Centrão esconde a sentença não pronunciada: se é para salvar, salvemos todos, não apenas um senador membro da primeira-família.


Vera Magalhães: Por W.O.

Alerta de Maia sobre prerrogativa de decidir a respeito de vacina pode ser tardio

Rodrigo Maia tem razão, em tese, quando diz que deveriam ser o Executivo e o Legislativo a definir uma política de vacinação contra o SARS-Cov-2, o maldito do novo coronavírus, em vez de passarem de novo pelo carão de ter o Judiciário fazendo seu trabalho. Digo em tese porque, de novo, pode ser tarde demais.

O chamado ativismo judicial é uma dessas pragas da política brasileira, um traço cultural que vai se agravando e tomando todas as áreas da vida nacional, da saúde à educação, dos tributos aos direitos trabalhistas, passando pelo meio ambiente, pelos costumes, por tudo.

Decorre do fato de que, graças ao cipoal de leis, muitas delas confusas e conflitantes com outras, e da velocidade com que a própria Constituição, jovem para os padrões de textos dessa natureza, vai sendo (r)emendada, o cidadão se sente quase obrigado a bater às portas dos tribunais para esclarecer controvérsias, demandar direitos ou tentar postergar obrigações.

E, na ausência dos seus vizinhos de Praça dos Três Poderes, muitas vezes os integrantes do Judiciário acabam avançando o sinal na hora de decidir, legislando em cima das leis ou das lacunas das mesmas.

A questão da vacina é paradigmática dessa barafunda. Não são poucos os dispositivos legais que disciplinam a questão da vacinação. Desde 1975 uma lei já confere ao poder público o poder de vacinar compulsoriamente a população como medida de saúde pública. A lei 6.259/75 leva a assinatura de Ernesto Geisel, um dos ídolos de Jair Bolsonaro, e estabelece que “cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório”. O texto foi alterado em 2018 para estabelecer punições diferentes para quem descumprir esse caráter obrigatório. A lei estabelece, ainda, a coordenação com Estados e municípios para fiscalizar o cumprimento dessa obrigação de vacinar.

Neste ano, já no curso da pandemia, o próprio Bolsonaro assinou a Lei 13.979, que estabelece as diretrizes para enfrentamento da emergência sanitária. Diz lá que o poder público pode adotar medidas de caráter compulsório para enfrentar a pandemia, entre elas a vacinação (artigo 3.º). Diante do negacionismo, inclusive legal, praticado diariamente pelo presidente, sob o beneplácito preguiçoso e conivente do Congresso comandado por Maia e Davi Alcolumbre, era inevitável a judicialização, até porque há uma série de medidas antecedentes à aprovação de alguma das vacinas em teste que precisam ser adotadas com urgência, e também elas estão sendo sabotadas por Bolsonaro.

Maia oscila entre a postura de quem entende que o governo caminha por becos tortuosos em sua relação com as instituições e atrasa a tomada de decisões inadiáveis e a de quem busca um espaço para se aproximar do Planalto. As duas coisas são difíceis de conciliar. Ainda mais com uma sucessão da própria cadeira em curso. Cabe a ele, portanto, ser mais proativo na tomada de decisões, se não quiser receber um prato feito do STF.

Esperar por Bolsonaro nesta questão, está evidente, significa submeter o Congresso e todo o País a uma exasperante rotina de ouvir sandices como a de que teria sido melhor investir na cura que na vacina. Como se fosse só o presidente do Brasil e gênio a desejar a cura para um vírus que paralisou a vida do planeta, e isso fosse algo fácil como mostrar cloroquina para a ema. No jogo de ver quem pisca primeiro entre Maia e Alcolumbre e Bolsonaro e suas várias alas trapalhonas de ministros, o melhor para o Brasil é que Luiz Fux reúna de uma vez o plenário do STF e diga a eles o que devem fazer para não aprofundar ainda mais o buraco que já vitimou quase 160 mil brasileiros.


Merval Pereira: A banalização do ilegal

O Brasil está perigosamente normalizando atividades ilegais, e o caso do encontro que o presidente Bolsonaro teve com advogadas de seu filho Flávio para receber uma denúncia contra a Receita Federal é apenas a mais recente revelação, e não a menos grave.

O presidente participou de uma reunião, em 25 de agosto, no seu gabinete do Palácio do Planalto, com as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, que apresentaram um dossiê sobre “irregularidades das informações constantes de Relatórios de Investigação Fiscal” sobre o senador.

Para agravar a situação, participaram da reunião o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro e seus filhos queriam ver à frente da Polícia Federal.

A nova tentativa de anular as investigações sobre o esquema de desvio de dinheiro público, conhecido como “rachadinha”, em seu gabinete quando era deputado estadual foi feita fora da agenda, e só foi revelada porque a revista “Época” a descobriu.

Por essa nova versão, um grupo de fiscais da Receita Federal usou de meios ilegais para fornecer informações sobre as contas do hoje senador Flávio Bolsonaro aos órgãos de fiscalização como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — o que, se confirmado, feriria de morte as acusações contra ele.

A explicação para tamanha irregularidade é que o assunto envolve integrante da família presidencial, o que merece análise dos órgãos de segurança, especialmente o GSI, que cuida da segurança pessoal do presidente e sua família. Tal justificativa é de uma banalidade tão grande que, revelado o encontro, o GSI divulgou uma nota afirmando que “à luz do que nos foi apresentado, o que poderia parecer um assunto de segurança institucional configurou-se como um tema, tratado no âmbito da Corregedoria da Receita Federal, de cunho interno daquele órgão e já judicializado”. A nota do GSI concluiu: “Diante disso, o GSI não realizou qualquer ação decorrente. Entendeu que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema”. Como se bastasse uma explicação burocrática para tamanha irregularidade.

Um presidente da República utilizar os órgãos de segurança a favor de um filho seu que é investigado por corrupção é ato gravíssimo, que precisa ser apurado e pode resultar em impeachment. No caso, apenas em tese, porque o centrão no momento está bem aquinhoado e não dará a maioria necessária.

O caso é agravado por haver uma investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a denúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro a respeito da interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal justamente para proteger seu filho das investigações. O ministro Alexandre de Moraes herdou o processo do ministro aposentado Celso de Mello e agora tem sob seus cuidados três processos que convergem.

Os das fake news e das manifestações antidemocráticas, organizadas pelo chamado “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto, são próximos entre si, e agora o da interferência na Polícia Federal, com as novas informações que devem ser anexadas, pode demonstrar que o governo se aproveita de sua estrutura e poder para defender interesses próprios, sejam pessoais ou eleitorais.

Já há diversos pedidos de políticos, como o deputado federal Alessandro Molon, do PSB, e o senador da Rede Randolfe Rodrigues, pela atuação da Procuradoria-Geral da República e do próprio STF nesse caso revelado pela “Época”, num momento em que Bolsonaro volta a assumir posições agressivas contra a Justiça. Ao afirmar que não é possível um juiz determinar que a vacinação contra a Covid-19 seja obrigatória, Bolsonaro está claramente pressionando o Supremo, que deve tratar do tema em breve.

Há indicações de que a maioria do STF é a favor da obrigatoriedade da vacinação, por uma questão de segurança sanitária. O presidente volta a usar sua força nas mídias sociais para jogar seus seguidores contra o Supremo, o que não deu resultado das outras vezes.


Hélio Schwartsman: Ponto para a democracia

Chile transformou Constituição com forte vício de origem em experiência real de democracia

Símbolos importam. E os chilenos foram claros quanto a isso ao determinar, por uma margem de quase 80%, que a atual Carta, herança da ditadura de Pinochet, seja substituída por uma nova, a ser elaborada por uma convenção constitucional exclusiva. Ponto para a democracia.

No mundo da vida prática, porém, o Chile, apesar da origem espúria da Carta, já era uma democracia sólida, com alguns ciclos de alternância de poder entre esquerda e direita. Os aspectos mais autoritários da Constituição foram extirpados por uma série de emendas aprovadas ao longo dos anos, notadamente em 1989 e 2005. Não teria sido impossível persistir nesse caminho.

Aliás, num cálculo puramente numérico, será mais difícil aprovar a nova Carta do que emendar a velha. Pelas regras em vigor, algumas matérias constitucionais exigem maioria de 3/5 dos parlamentares para ser modificadas, e outras, as mais sensíveis, de 2/3.

Pelas regras da convenção, só irão para o novo texto constitucional artigos aprovados por 2/3 dos constituintes, e, ao fim dos trabalhos, o projeto ainda terá de ser chancelado pela população em plebiscito.

Outro aspecto interessante do processo constitucional é que será o primeiro no mundo a ser conduzido por uma convenção paritária, com 50% de mulheres e 50% de homens. Achei um pouco autoritário não terem dado aos eleitores chilenos a oportunidade de exercer uma escolha ativa diante de algo tão novo (a opção pela convenção exclusiva já vinha com a paritária), mas são os tempos em que vivemos.

Meu ponto é que constituições são uma parte importante da democracia, mas nem de longe o jogo inteiro.

Há Cartas que são ótimas no papel, mas que na vida real não geram nada parecido com uma democracia, e há casos como o do Chile, que conseguiram transformar uma Constituição com forte vício de origem numa experiência real de democracia. Símbolos importam, mas a prática também.