Day: outubro 23, 2020

Luiz Carlos Azedo: Desinvestimento no futuro

“O governo não se convence de que a floresta em pé, com sua biodiversidade, é uma fonte inesgotável de riquezas. Houve uma mudança de paradigma na economia”

O presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou, ontem, que convidará diplomatas estrangeiros para visitar a floresta amazônica, que não verão “nada queimando ou sequer um hectare de selva devastada”. A afirmação foi feita na formatura dos novos diplomatas do Itamaraty, que aprenderam tudo ao contrário no Instituto Rio Branco e ficaram estupefatos. No fundo, essas declarações de Bolsonaro são pura contra-informação, uma tentativa de criar uma cortina de fumaça para encobrir a nossa crise ambiental, nos dois sentidos: de um lado, protege os predadores das florestas — grileiros, garimpeiros, madeireiros, pecuaristas e fazendeiros inescrupulosos —, que continuam fazendo queimadas e desmatando; de outro, tenta enganar a opinião pública mundial quanto à política antiambientalista de seu governo, o que já não cola mais nem no exterior.

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de janeiro a setembro deste ano, foram registrados 76.030 pontos de fogo. A última vez em que houve registro de número superior foi em 2010 — 102.409, em igual período. No mesmo dia em que Bolsonaro deu a declaração, o Ibama determinou a interrupção do trabalho de todas as brigadas de incêndio, por falta de recursos financeiros, sendo que alguns contratos estão com pagamentos atrasados há três meses. Na verdade, a estratégia do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é inviabilizar o cumprimento da legislação ambiental ainda vigente, que, por enquanto, não teve força para derrubar, e desmantelar seus órgãos de controle, o Ibama e o ICMBio.

As declarações de Bolsonaro sobre a Amazônia estão em contraposição aos fatos. No exterior, isso passa a ideia de um governo descomprometido com a verdade, que tenta mascarar seus atos com uma narrativa insustentável. No plano internacional, é um desastre de grandes proporções, que pode ter a mesma consequência que sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas tiveram durante o regime militar: perda total de credibilidade junto às chancelarias e aos investidores. Com o agravante de que uma eventual derrota do presidente Donald Trump nas eleições norte-americanas, com a eleição do democrata Joe Biden, pode resultar numa invertida semelhante àquela que houve no governo do general Ernesto Geisel, com a eleição do democrata Jimmy Carter.

O Palácio do Planalto é prisioneiro dos velhos conceitos do regime militar sobre a ocupação e a exploração da Amazônia, que se baseavam no binômio integração e desenvolvimento e se traduziam na construção de rodovias, mineração e derrubada da mata para exploração comercial e produção agrícola. Hoje, tudo mudou, são outros os paradigmas, mas o governo não se convence de que a floresta em pé, com sua biodiversidade, é uma fonte inesgotável de riquezas. Além disso, não se dá conta de que houve uma mudança de paradigma na economia mundial, que já registra um grande desinvestimento na economia do carbono. Cada vez mais, as grandes empresas e fundos de investimentos submetem suas decisões ao crivo do politicamente correto do ponto de vista ambiental. E nós estamos fazendo tudo errado.

Mercado
Talvez, o melhor exemplo dessa mudança seja a estratégia adotada pelo Rockefeller Brothers Fund, que, em 2015, deixou de investir no mercado de petróleo e carvão e passou a apostar na economia verde. A fortuna da família Rockefeller foi construída com base no petróleo, mas, agora, está sendo direcionada para um movimento global de investidores interessados em descarbonizar a economia, como estratégia de reduzir os riscos de seus investimentos a médio e longo prazos. Mais de 500 instituições possuidoras de US$ 3,4 trilhões em ativos assumiram compromissos para ações de desinvestimento, ou seja, retirar a aplicação de seu capital de empresas e atividades econômicas intensivas em carbono. E os chamados Investimentos Sustentáveis e Responsáveis (ISR, ou SRI, na sigla em inglês), segundo a Global Sustainable Investment Review, realizados com critérios de sustentabilidade, entre eles, o de baixo carbono, representam mais de 30% dos ativos nos mercados de Europa, Estados Unidos, Canadá, Ásia, Japão, Austrália e África. São mais de US$ 60 trilhões que estão em jogo.

No momento, a grande dor de cabeça do ministro da Economia, Paulo Guedes, é a alta vertiginosa dos juros futuros, que estão três vezes mais caros do que a taxa Selic. Isso significa que o governo está tendo de se endividar muito mais para que o Banco Central (BC) consiga vender os títulos da dívida pública, além de encurtar o prazo de resgate desses títulos de seis para dois anos, o que pode resultar numa crise financeira grave em 2022. Esse fenômeno está sendo atribuído aos gastos públicos com a pandemia do novo coronavírus, porém, não é somente consequência de a dívida pública ter chegado próximo a 100% do PIB, o que aumentou o poder de barganha dos compradores. O outro lado dessa moeda é a fuga crescente dos investimentos produtivos, entre outras razões, por causa da política ambiental.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-desinvestimento-no-futurox/

Antonio Carlos Moretti Bermudez: A FAB e o legado de Santos-Dumont para o País

O Dia do Aviador nos proporciona a chance de relembrar a história da nossa instituição

O Dia do Aviador e da Força Aérea Brasileira (FAB) é celebrado em 23 de outubro e representa a data em que Alberto Santos-Dumont, patrono da Aeronáutica Brasileira, em 1906, deu asas ao seu grande sonho, logrando êxito de fazer decolar e voar o primeiro aparelho mais pesado que o ar, o 14-Bis. Esse dia nos proporciona, a cada ano, a oportunidade de relembrarmos o nascimento e a história da nossa instituição, que este ano completou 79 anos de existência.

São quase oito décadas bem-sucedidas, que se iniciaram quando nossos integrantes pioneiros bravamente lutaram na 2.ª Guerra Mundial. Aqueles militares nos inspiram até hoje como exemplos de coragem, dedicação e amor à profissão. Eles nos mostraram que mesmo em meio às dificuldades devemos fazer sempre o nosso melhor.

A FAB destaca-se hoje pela alta capacidade operacional, com inúmeros exemplos em curso. Em apoio à sociedade brasileira, nossos militares trabalham simultaneamente em missões coordenadas pelo Ministério da Defesa, como a Operação Acolhida, a Operação Pantanal, a Operação Verde Brasil 2 e a Operação Covid-19, além da atuação em transporte de órgãos, evacuações aeromédicas e transportes aéreo logísticos, entre outras atividades.

Num ano tão desafiador como este de 2020, a Força Aérea Brasileira está ainda mais presente na vida dos brasileiros. Transportamos materiais de saúde e equipes por todo o território nacional, contribuímos na desinfecção de espaços públicos e organizamos ações solidárias em benefício de comunidades que necessitam, entre outras atividades. Os integrantes da FAB estão engajados em contribuir ainda mais diretamente com iniciativas que envolvem o apoio à sociedade brasileira, como uma campanha de doação de sangue realizada para abastecer bancos que passam por baixas em seus estoques neste período de pandemia.

Além de todas essas missões, realizadas em território nacional, nossa Força tem um relevante histórico de assistência humanitária internacional e cada uma dessas operações representa um momento gratificante para todos os que colaboram para salvar ou melhorar vidas. Este ano, temos como exemplo a assistência prestada ao Líbano após a trágica explosão em 4 de agosto, com o transporte de toneladas de material de saúde e alimentos até a capital libanesa, Beirute.

Para o cumprimento dessa importante missão uma aeronave KC-390 Millennium realizou sua primeira viagem internacional com tripulação composta por integrantes da FAB. Foi mais um capítulo na jovem trajetória – já agraciada com os prêmios Grand Laureate, na categoria Defesa, e o Laureate Awards, na categoria “Melhor Novo Produto” de Defesa – deste que é o maior avião militar multimissão desenvolvido e fabricado no Hemisfério Sul e que temos o privilégio de operar após termos colaborado ativamente em sua concepção e em seu processo de fabricação. Desde a chegada da primeira unidade, as aeronaves KC-390 Millennium são empregadas principalmente em transportes relacionados à Operação Covid-19, demonstrando sua eficiência para integrar o território brasileiro.

Assim como o KC-390 Millennium passou de um projeto para a realidade, o novo caça F-39 Gripen se aproxima cada vez mais do início da sua operação pela FAB. O desenvolvimento e a fabricação do smartfighter – caça inteligente – também vêm sendo acompanhados de perto pelos integrantes da Força Aérea e envolvem profissionais de diversas empresas brasileiras. Este dia 23 de outubro de 2020, portanto, é ainda mais especial, pois contamos com a apresentação oficial do primeiro F-39 Gripen a chegar ao Brasil.

A atualização de sistemas, meios e equipamentos também é vital no âmbito da defesa aérea e estamos constantemente buscando novas soluções e tecnologias para melhorar o trabalho prestado ao País dentro das nossas ações de controlar, defender e integrar 22 milhões de quilômetros quadrados. Em continuidade ao processo de modernização da rede de radares de vigilância do Sistema de Controle do Espaço Aéreo Brasileiro (Sisceab) e aprimorando o controle do espaço aéreo na fronteira do Brasil, inauguramos em agosto, em Corumbá (MS), uma nova estação radar composta por radares primário e secundário. A entrada em serviço desses equipamentos aumenta a capacidade de detecção de tráfegos não autorizados ou de emprego ilícito, colaborando decisivamente para o êxito das ações de policiamento do espaço aéreo.

Assim como Santos-Dumont mudou a história da aviação quando apresentou o 14-Bis ao mundo, estamos sempre em busca do novo, do mais moderno e, principalmente, do aprimoramento de nossos profissionais para acompanharem essas inovações. As Forças Armadas avançam e, junto com elas, a modernidade e complexidade tecnológica em nosso País também evoluem, trazendo benefícios para todos os cidadãos. Uma instituição renovada, solidária e altamente operacional: essa é nossa Força, formada por profissionais capacitados e comprometidos a manterem um legado de excelência – cumprindo nossas missões e colaborando com a sociedade em que vivemos.

TENENTE-BRIGADEIRO DO AR, É COMANDANTE DA AERONÁUTICA


Elena Landau: 'Me chame pelo meu nome'

PEC do Amanhã se resume a uma reforma administrativa do ‘poder executivo civil’

Para tentar recuperar algum protagonismo no governo, o Ministério da Economia enviou sua proposta de reforma administrativa (PEC32/2020) e anunciou o início dos estudos para a venda dos Correios. Ainda que a bola esteja começando a rolar, como dizem os otimistas, não veremos resultados concretos no curto prazo. Se será coisa para inglês ver, ou não, só saberemos com o avanço das discussões.

A reforma não se aplica aos funcionários atuais, tendo sido apelidada de “PEC do Amanhã”. É limitada no espaço e no tempo. A privatização continua tímida e a presença do Estado na economia ainda é grande. A combinação dessas duas pautas, desestatizações e reforma do funcionalismo, é frequentemente resumida na expressão reforma do Estado. Trata-se de uma simplificação, porque são ações concentrados no Poder Executivo.

Dalmo de Abreu Dallari, no clássico Teoria Geral do Estado, ensina que o Estado é uno, ainda que possa se subdividir em funções. Os três Poderes são parte de um mesmo organismo, exercidos de forma independente e harmônica. Melhorias no funcionamento do Estado devem incluir ajustes nessas unidades. O objetivo é atender melhor o cidadão, exercendo com eficiência suas atribuições, sejam elas oriundas do Executivo ou dos outros Poderes, inclusive de órgãos autônomos, como Ministério Público e Tribunais de Contas.

A próxima etapa da reforma deve ser a aprovação de leis com indicadores de avaliação de desempenho dos servidores. Portanto, o Legislativo, sempre com enorme resistência a avaliar a si próprio, definirá os critérios de julgamento dos funcionários de outro Poder.

Os conselhos de ética, que deveriam analisar casos de quebra de decoro de deputados e senadores, deixam processos se acumular não importa a gravidade do caso. Ofensa verbal, disseminação de fake news, postagens racistas e rachadinha são práticas que vão sendo normalizadas pela falta de atuação desses conselhos. A desculpa vai do “todo mundo faz” à defesa – distorcida – da liberdade de expressão.

E o caso Flordelis? A deputada acusada de ser mandante do assassinato do marido. Não há justificativa. Diferente sorte teve Chico Rodrigues, pego com dinheiro em suas partes íntimas. Situação tão grotesca que o vídeo do flagrante está trancado no cofre da PF. Na pressão, o senador saiu de licença contrariado. A perda de mandato não está garantida. Mas podemos ficar tranquilos, porque, de todo modo, com seu afastamento, assume o suplente, seu filho.

Acusação de homicídio é novidade, mas dinheiro na cueca não. Em lugar de reais eram US$ 100 mil. Era o assessor de um deputado, que se tornou líder do governo anos depois. Sem limites, a ousadia aumenta. Claro.

Eles apelam para a justiça divina, mas confiam mesmo é na justiça dos homens. Há países em que um homem público, pego com a boca na botija, envergonhado, comete até suicídio, um haraquiri às vezes. Não precisamos exagerar. O abandono da vida pública já seria suficiente. Mas nosso novo normal é ver ex-condenados formarem a base do governo. Algo está fora de ordem.

O Judiciário também anda precisando de ajustes. Decisões monocráticas vêm crescendo de forma significativa. O que deveria ser exceção, virou regra. Muitas são – previsivelmente – revertidas pelo colegiado. Uma liminar do ministro Lewandowski suspendeu o programa de privatização por um ano. A encampação da Linha Amarela pela prefeitura do Rio foi determinada pelo presidente do STJ.

Ambas contrariaram jurisprudência dos próprios tribunais superiores, gerando insegurança jurídica em um país carente de investimentos.

Um traficante de altíssima periculosidade foi posto em liberdade por decisão do ministro Marco Aurélio. André do Rap imediatamente escafedeu-se, o que não deveria ser surpresa para ninguém, inclusive para quem concedeu o habeas corpus. A suspensão dessa liminar, também em decisão individual do presidente do STF, gerou mais uma crise na Corte. Acabou sendo confirmada com voto de todos os outros ministros. Mas era tarde. Enquanto isso, milhares de presos sem condenação apodrecem nas cadeias.

Com Ministério Público e Tribunais de Conta, o Judiciário não será atingido pelas propostas moralizadoras da reforma, como o respeito ao teto remuneratório constitucional, a eliminação dos penduricalhos e férias de 60 dias. Diz o governo que não poderia invadir competência de outros Poderes. Só que a proposta foi encaminhada através de uma emenda para modificar a Constituição, que, por óbvio, trata de todos Poderes. Desculpa esfarrapada.

Sem militares, sem a elite do funcionalismo, sem impacto imediato, a PEC do Amanhã se resume a uma reforma administrativa do “poder executivo civil”. E isso não é uma reforma do Estado.

Em tempo: o Senado aprovou o nome para o TCU, sem que haja vaga aberta no tribunal. Se a moda pega, vai ter nome aprovado para o STF com antecedência. Isso que é eficiência.

*ECONOMISTA E ADVOGADA


Nelson Motta: Bye bye, Crivella

A degradação econômica, urbana e cultural da cidade foi acompanhada pela deterioração do que se chamava ‘espírito carioca’

Irmãos, trago boas novas. Tudo indica que vamos nos livrar do satânico bispo Crivella nas eleições de novembro. É o líder absoluto entre os mais rejeitados. Graças a Deus! Aleluia! Epá Babá Oxalá! Mas e o day after? O novo prefeito vai encontrar uma cidade devastada e degradada por uma administração marcada por escândalos e ineficiência, destruindo ou abandonando legados da administração anterior, como o Porto Maravilha e o VLT.

No “Retrato de Dorian Gray”, Oscar Wilde diz que só pessoas superficiais não julgam pelas aparências. Crivella, por exemplo, com sua conversa mole e sua brancura de cera, parece um clássico personagem de histórias de terror, o antigo mordomo do casarão, que fala macio, é humilde e prestativo com o casalzinho que herdou a mansão, mas à noite se transforma num vampiro e lhes suga o sangue. Coitado, não tem culpa de ter nascido com esse physique du rôle, mas combina com seu populismo canhestro e seu obscurantismo provinciano.

A degradação econômica, urbana e cultural da cidade foi acompanhada pela deterioração do que se chamava “espírito carioca”, que nos orgulhava e diferenciava do resto do Brasil. Até os paulistas admiravam nosso estilo de vida mais relaxado e informal, nosso humor e cordialidade, nossa simpatia e a nossa fala cheia de gírias e chiados.

O humor e a cordialidade viraram rispidez e antagonismo, o relaxamento virou desleixo com as leis, a educação e a ordem, a leveza ficou pesada, a irreverência virou grosseria. Motivos não faltaram, o fato é que vivemos uma mudança de comportamento profunda. E a administração Crivella ajudou a piorar.

Empacado em 12%, o homem está desesperado e implorando o apoio de Bolsonaro, até agora em vão, porque o Bozo não é bobo e não quer queimar o seu filme já chamuscado com o eleitorado do Rio de Janeiro. O vídeo dos dois dançando abraçados é uma mistura de terror com humor que tira mais votos de Bolsonaro do que dá para Crivella. Devia ser exibido todo dia pelos adversários dos dois.


Claudia Safatle: O mercado de trabalho e o temor da crise fiscal

Qualquer ação do governo só virá depois das eleições

Assessores do Ministério da Economia têm conversado com o ministro Paulo Guedes sobre a necessidade de o governo dar sinais claros do que pretende fazer para estimular o mercado de trabalho em 2021. Em dezembro termina o pagamento do auxílio emergencial para 66 milhões de brasileiros. O impacto, sobre a atividade, do fim da transferência desses recursos, com custo mensal próximo a R$ 50 bilhões, não será trivial e tem o poder, inclusive, de frear a retomada da economia.

Das conversas, em princípio, ficou a intenção de Guedes divulgar sua estratégia, diagnóstico e objetivos para o ano que vem tão logo se saiba o resultado das urnas em novembro.

“Temos que bater com o gato morto na cara da sociedade e da classe política”, disse uma fonte oficial. “Não é preciso ser adivinho para saber que estamos tendo uma crise no mercado de trabalho e temos que ter uma política para facilitar o processo de acesso ao emprego”, completou, citando a desoneração da folha de salário das empresas e a sua contrapartida, que é a criação do Imposto sobe Transações, “goste ou não a Faria Lima”, afirmou.

A proposta de desoneração da folha tem como base o diagnóstico de que a oferta de emprego é escassa porque ele é caro. Outra ideia que também se fundamenta nesse diagnóstico é a de segmentar os setores mais vulneráveis, sobretudo os jovens. “Essa população excluída precisa de regras simplificadas de contratação destinadas a ela”, disse, listando, também, a criação da Carteira Verde Amarela como uma rampa de acesso ao mercado livre dos principais encargos trabalhistas. “Não vamos mexer com o restante do mercado de trabalho”, assegurou.

Há, ainda, o programa de qualificação com o microcrédito que começou com as “maquininhas” e que, a partir de agora, deve aumentar de escala. E, por fim, completou: “Temos os marcos regulatórios de concessões que trazem investimentos geradores de empregos que hoje estão presos para atender aos interesses do establishment, que sempre se alimentou de obras públicas”.

É importante que Guedes trace o caminho para a retomada da economia com começo, meio e fim, com foco no mercado de trabalho que é, hoje, uma das principais raízes da iminente crise fiscal. Essa é uma das grandes incertezas que levam os mercados a exigir, a cada dia, mais prêmios para financiar a rolagem da dívida pública interna

Tem havido, nos últimos meses, uma intensa discussão sobre a criação de um programa de renda básica no pós-pandemia da covid-19, para atender às famílias em condições de pobreza ou de extrema pobreza, em função do fim do auxílio emergencial. Seria uma ampliação do Bolsa Família provavelmente com um novo nome para dar ao governo Bolsonaro uma marca do lado social. O presidente ficou entusiasmado com a popularidade adquirida com a criação do auxílio emergencial e quer repetir a dose com um programa de renda permanente.

Parece claro que o programa atenderia apenas uma fração das 66 milhões de pessoas inscritas no auxílio emergencial, por limitações fiscais. A situação de penúria de recursos se complica ainda mais com a aceleração inflacionária recente que deverá pesar sobre as despesas não obrigatórias do Orçamento do próximo exercício.

“A resolução das expectativas em relação a um eventual programa de transferência de renda para os mais pobres adquire urgência pela incerteza fiscal que a atual ambiguidade pode criar, trazendo o risco do atual impulso de retomada da economia vir a se dissipar por conta dessa incerteza”, conforme chamou a atenção o relatório da semana passada do banco Safra.

“Com a proximidade do fim do auxilio emergencial, cuja última parcela será paga em dezembro deste ano, a confiança do consumidor e o apetite dos investidores poderão ser negativamente afetados, até pelo pouco tempo que será deixado para o governo e o Congresso votarem o Orçamento de 2021”, assinalou o relatório.

O tamanho do auxílio emergencial - que começou com três parcelas de R$ 600 que foram prorrogadas por mais dois meses e depois, reduzido para R$ 300 nos três últimos meses do ano - teve papel crucial na expansão da demanda doméstica no terceiro trimestre do ano, com impacto notável sobre a capacidade de enfrentamento da população à pandemia e sobre a atividade econômica, que deve encerrar o execício com uma recessão menor do que a originalmente esperada. Algo em torno de -5%, segundo o boletim Focus, do Banco Central, desta semana, face à projeção de -9,1% feitas no auge da pandemia pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O FMI reviu seus prognósticos para uma recessão, no Brasil, em torno de 5,8%.

Para ter uma ideia da dimensão e amplitude do auxílio emergencial cujo gasto mensal está em torno de R$ 50 bilhões, o Bolsa Família custa por mês R$ 2,5 bilhões.

O projeto de lei do Orçamento para 2021 tem um espaço para aumento de 18,2% do Bolsa Família, suficiente para elevar o número de famílias assistidas dos atuais 14,2 milhões para pouco mais de 16 milhões. Se for pouco, o governo pode pedir um crédito extraordinário no ano que vem para abrigar mais famílias, nos termos do artigo 167 § 3º da Constituição, sugere um economista que deixou o governo recentemente.

No mercado, há a percepção de que a simples retirada do auxílio à partir de janeiro pode não só frear a recuperação da economia mas levar o país a uma segunda recessão. Razão pela qual há grande expectativa de um posicionamento da área econômica do governo em relação à estratégia que o ministro Paulo Guedes pretende imprimir para o enfrentamento da crise no mercado de trabalho privado e, por que não, para uma revisão dos benefícios do mercado de trabalho do setor público.

A questão do emprego está na gênese de uma temida crise fiscal, que se traduziria na dificuldade do Tesouro Nacional de honrar seus compromissos. É hora de o governo acalmar os mercados.


Fernando Abrucio: Aspectos centrais das eleições 2020

A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas

Toda eleição tem uma história própria, determinada por sua dinâmica territorial, pelo regramento institucional vigente e pelos elementos conjunturais que a influenciam. A disputa municipal de 2020 pode, até o momento, ser compreendida por cinco aspectos que delimitam sua peculiaridade: a redução do debate eleitoral, o choque entre as inovações e a força da política tradicional, os imensos desafios que aguardam os prefeitos eleitos, a percepção cada vez maior do mosaico que caracteriza os pleitos locais e, por fim, um cenário político nos grandes centros que não é o mais favorável às duas grandes forças eleitorais do país - o bolsonarismo e o petismo.

O primeiro aspecto a ressaltar não é alvissareiro à democracia: nunca houve tão pouco debate numa eleição brasileira desde o fim da ditadura militar. Na disputa municipal de 2020, os políticos falam menos ao povo, discutem menos entre si e disputam com dancinhas no TikTok a atenção de gente que está mais preocupada com memes. Esse fenômeno é resultado de uma tendência mais recente de mudanças no regramento eleitoral, da dificuldade de se montar discussões entre candidatos na mídia eletrônica e dos efeitos da pandemia.

Já faz quase uma década que o país tem optado, paulatinamente, pela redução do tempo de campanha e pela diminuição da duração do horário eleitoral gratuito. Para defender essa proposta, argumentava-se que o processo eleitoral tinha um custo excessivo, algo que gerou, em décadas, vários escândalos de corrupção. Essa proposição não deixa de ser em parte verdadeira, mas para uma eleição local, em que não há tanta exposição na mídia das principais disputas (a não ser na reta final), essa lógica pode beneficiar os que já têm cargos eletivos e os candidatos mais conhecidos, gerando uma barreira de entrada aos que venham de fora e que apresentem ideias novas, embora não necessariamente boas.

Junta-se a esse fato a ausência de debates na mídia eletrônica nos principais centros urbanos do país. De fato, por conta da legislação eleitoral e da grande quantidade de postulantes às prefeituras, não é fácil organizar algo minimamente adequado ao formato da TV e do rádio. Mas esse problema deveria ser mais bem discutido pela imprensa e por todos aqueles que reclamam cotidianamente de nossa democracia nos meios de comunicação de massa, especialmente porque concessões públicas deveriam servir mais como canais de informação à população, o que numa eleição exige o confronto de ideias.

Obviamente que a pandemia piorou esse cenário de falta de debates e de redução do diálogo dos políticos locais com a população. Não se pode esperar, por razões de saúde pública, que a campanha seja como antes. Mas quando isso se soma aos dois elementos anteriores, temos uma eleição municipal que beneficia mais os incumbentes, atrapalha a entrada de novas ideias e dificulta a comparação das propostas.

E aqui entra o segundo aspecto definidor dessa eleição municipal: há um choque entre propostas inovadoras de campanha eleitoral, em termos de forma e conteúdo, e um modelo político mais tradicional, que vai além do conservadorismo das ideias e se baseia, principalmente, na força dos partidos e políticos já estabelecidos há mais tempo no jogo eleitoral.

Deve-se destacar as várias tentativas de inovação na atual campanha. Cresceram as candidaturas coletivas, os temas novos e vinculados a várias injustiças sociais do país, os concorrentes ligados a movimentos de renovação política, a ascensão de pessoas vindas de movimentos da periferia, em suma, surgiram propostas e nomes que vão dos liberais à esquerda. Não se trata de dizer que esses grupos tenham as melhores ideias, mas choques exógenos ao sistema político têm a qualidade de obrigá-lo a buscar o aperfeiçoamento.

O mais provável, entretanto, é que tais inovações tenham menor impacto do que o peso da política tradicional nesta eleição municipal. É bem surpreendente esse cenário depois de um pleito nacional, o de 2018, onde o discurso da antipolítica e da renovação tenha sido hegemônicos. Além da falta de debates e da pandemia, mais dois pontos podem ser acrescentados para explicar a força da política tradicional no pleito local. O primeiro é a capilaridade dos partidos do centro para a direita em boa parte dos municípios brasileiros, especialmente nos menores. É como se fosse uma alma profunda de peemedebismo (ou arenismo) que povoa grande parte do país.

Derivado de uma reforma institucional recente, outro elemento pode favorecer esse status quo: o fim das coligações em eleições proporcionais, cujo primeiro teste está sendo feito agora. A grande maioria da opinião pública defendia essa mudança, como uma forma tanto de distribuir mais fielmente as cadeiras segundo os votos dados, quanto de reduzir um multipartidarismo de certa maneira artificial, que aumentava o custo para a formação dos governos sem necessariamente aumentar a representatividade dos diversos setores sociais. É inegável que esses efeitos são positivos e poderão ficar mais claros no pleito nacional de 2022.

Mas também está acontecendo o que o cientista político Guilherme Russo, pesquisador do FGV/Cepesp, apontou com precisão em recente artigo na “Folha de S. Paulo”: a redução do número de partidos que lançam candidatos. Esse resultado favorece as agremiações partidárias mais tradicionais e sua organização mais fechada a novos atores e ideias. Claro que não se pode dizer que quem vem de fora do sistema seja, por definição, sempre melhor do que os mais experientes. O discurso da novidade já foi muito usado para gerar enormes retrocessos em vários momentos históricos. Não obstante, o atual cenário produz algo diferente: há uma enorme desigualdade competitiva e pouquíssimo espaço genuíno de debate entre os incumbentes ou os que têm longa vida no jogo político em contraposição aos que concorrem pela primeira vez e/ou defendem projetos diferentes dos vigentes. Tal disparidade não é boa para a democracia.

A tendência à maior continuidade dos atores políticos no plano local ocorre num momento de grandes desafios aos futuros prefeitos. O quadriênio que começará em 2021 será um dos mais difíceis, senão o mais difícil, desde que os municípios ganharam um novo status político, de maior autonomia, na Constituição de 1988. Este é um terceiro aspecto essencial dessa eleição. O que está em jogo é eleger um governante capaz de reconstruir as principais políticas públicas locais diante dos efeitos da pandemia. Essa tarefa será muito complicada em questões como a educação, a assistência direta aos grupos sociais mais vulneráveis e o apoio à economia local. Ora, se o quadro eleitoral aponta para pouco debate, como os eleitores poderão se informar adequadamente para escolher a proposta mais correta para enfrentar quatro anos difíceis?

Embora haja uma situação comum de grande adversidade, os municípios partem de patamares bem diferentes. No plano eleitoral, também existe uma diversidade federativa muito grande, de modo que é sempre mais correto falar no plural das eleições municipais, pois há variados jogos políticos em questão. De um lado, existem 2.069 cidades que só terão dois candidatos a prefeito e, por incrível que pareça, 117 municipalidades terão apenas um concorrente à prefeitura. Esse cenário pouco ou nada competitivo abarca cerca de 40% dos municípios do país. Mas, de outro lado, as cidades com mais de 50 mil habitantes e, sobretudo, as principais capitais devem gerar um cenário multipartidário de possíveis eleitos.

Os resultados das urnas tendem a consagrar um mosaico pluripartidário de vencedores nesta eleição municipal. Claro que as forças mais tradicionais do centro para a direita tendem a eleger mais prefeitos nas cidades até cinquenta mil habitantes, e nas capitais haverá uma variação maior. De toda maneira, o que importa destacar aqui como quarto retrato da disputa de 2020 é que provavelmente não haverá nenhum grande vencedor, seja partidário ou de discurso uniformizador (como o do antipetismo de 2016).

Mesmo sem ter um vencedor indiscutível, o cenário da maioria das capitais aponta para um último aspecto, esse sim com possíveis consequências para as próximas eleições presidenciais. Onde há segundo turno, geralmente há pouquíssimas chances para um candidato bolsonarista ou petista vencer o pleito. Na verdade, o PT já está mal em suas posições no primeiro turno, enquanto o antibolsonarismo é, no mais das vezes, maior do que o bolsonarismo nos principais colégios eleitorais municipais, tornando o segundo turno um túmulo para o jogo da polarização.

Todos os candidatos que disputam o favoritismo no segundo turno têm em comum o fato que estão se inclinando mais para o centro. Isso não define o que ocorrerá em 2022, porém traz duas consequências para o jogo futuro. A primeira é que, a despeito de Lula ser uma grande liderança nacional, o enfraquecimento do petismo no pleito municipal reduz sua hegemonia sobre as demais forças de esquerda e centro-esquerda. Além disso, o bolsonarismo parece ser incapaz de vencer segundos turnos em que há algum arranjo político mais centrista. A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


César Felício: Derrota quase certa

Politização da vacina pode ser barrada no STF

A não ser que o presidente desmanche com o cotovelo o que escreve com a mão, Jair Bolsonaro talvez tenha contratado uma derrota ao proclamar que rejeita vacinas contra a covid-19 oriundas da China ou que possam de um modo ou outro beneficiar o tucano João Doria.

O problema por ora não existe, por ainda não existirem vacinas. Mas na hora que se chegar a elas, é quase impossível impedir, dosar, ou retardar, ou direcionar politicamente a vacinação em massa da população brasileira.

Horas depois de Bolsonaro desautorizar seu ministro da Saúde, governadores avisaram que, no limite, quem vai decidir a questão é o Supremo Tribunal Federal. A julgar pelo retrospecto de decisões do STF sobre pandemia e sobre saúde pública, é provável que Bolsonaro se depare com uma ordem do Judiciário para que a União compre toda e qualquer vacina de eficácia comprovada pela Anvisa para o programa nacional de imunizações.

Em 16 de abril, o STF decidiu, por exemplo, que Estados e municípios podiam estabelecer normas próprias para a pandemia, impedindo que o presidente forçasse o comércio a reabrir contra a vontade dos governos regionais. Não foi uma votação apertada, foi por unanimidade.

Pode-se argumentar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estaria aparelhada ideologicamente pela extrema-direita e irá recusar a autorização do uso no Brasil da Coronavac por motivos de ordem política. Em se tratando de Bolsonaro nada pode ser descartado, mas como órgão técnico, a Anvisa precisa dar uma justificativa técnica. Qual seria? É uma questão que os bolsonaristas precisam responder antes de dar o seu golpe da caneta.

Conspiram contra a politização do tema as consequências que o país sofreria caso a vacinação se torne parte da guerra cultural, e essa é a força do argumento dos governadores.

Um risco é o que o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), chama de “cenário hobbesiano”: a Anvisa autoriza a Coronavac, o governo não compra a vacina, e cada governador vai à luta, ombro a ombro com o setor privado, em uma distópica guerra de todos contra todos. “Isso significa que os critérios para compra não serão uniformes e os problemas que existiram para a aquisição de respiradores podem se replicar para garantir o acesso à vacina”, disse.

A ausência do Ministério da Saúde no processo de capacitação do sistema público para poder atender os enfermos, como se sabe, rebaixou a tomada de decisão para Estados e municípios e abriu a porta para o descontrole: houve até importadoras de vinhos comprando respiradores, entre outras aberrações. Com a vacina, o descontrole pode ganhar escala geométrica.

Se a Anvisa não autorizar a Coronavac por problemas políticos, pode ser instalada uma crise entre China e Brasil, na visão do governador da Bahia, Rui Costa (PT). “A economia brasileira, o nosso agronegócio, é capaz de suportar uma retaliação chinesa?”, indaga o petista.

Caso a vacinação brasileira atrase em comparação com o processo de outros países, o Brasil dependerá da imunização de rebanho para sair da pandemia e ficará para trás. Estará desguarnecido quando vier a segunda onda de contaminação, que virá. O setor privado será afetado, na visão de Renato Casagrande (PSB), governador do Espírito Santo. “É mais tempo perdido para voltar à atividade plena”, argumentou.

Como o presidente definitivamente não é tolo, torna-se um desafio tentar entender o porquê do movimento. A hipótese menos arriscada é a do cálculo político imediato: provocando uma tremenda confusão em um primeiro momento, Bolsonaro impede um ganho claro para o governador paulista em um momento em que decidiu se imiscuir na eleição municipal. A capitalização que Doria tenta fazer de seu protagonismo na questão da vacina é clara.

Na outra ponta, reforça a narrativa contra o vírus chinês, propagada por seu inspirador, Donald Trump, em um momento em que os republicanos estão nas cordas dos Estados Unidos. De quebra, o presidente reencanta a parte de seus seguidores que vive no mundo mágico das conspirações da internet. Os fascistas do YouTube tinham caído das nuvens com a indicação de Kassio Marques para a Suprema Corte.

A ser isso, Bolsonaro operou no curto prazo. Quantos brasileiros a mais morrerão por causa dessas tertúlias políticas, nesta ótica, é um mero detalhe.

Fome

Recluso desde março, o escritor e ativista Frei Betto lança seu “Diário da Quarentena”, pela Editora Rocco. É uma das primeiras reflexões organizadas de um pensador da esquerda sobre o processo que o mundo inteiro vive.

O irmão leigo dominicano não é otimista em relação ao fim próximo da pandemia. Lembra que na história das vacinas a que teve seu ciclo mais rápido foi a da caxumba, que demorou quatro anos para ser desenvolvida. Mas projeta a vista adiante, dimensionando uma das catástrofes que devem ganhar impulso com a pandemia: a fome generalizada. “A pandemia atinge a todos e leva ao gasto de bilhões e bilhões de dólares. A fome mata muito mais, mas não atinge a todos. Ela incide sobre os mais pobres e reforça a desigualdade. Ela faz distinção de classe”, diz.

Neste sentido, a entrega este ano do Prêmio Nobel da Paz para o Programa Alimentar da ONU foi um alerta definitivo. O agravamento da fome, em escala planetária, será uma consequência incontornável da covid-19.

Frei Betto acha que, diante de tamanho desafio, é míope entender que a manutenção ou não de um auxílio emergencial robusto está condicionada ao quadro fiscal de cada nação. A perenização de um auxílio emergencial para os mais vulneráveis tende a se tornar uma bandeira universal e abalar sistemas políticos em todo o globo.

No caso do Brasil, Frei Betto considera que a pandemia teve um efeito político claro: deixou a oposição brasileira à mercê de variáveis que não controla e que não pode, por uma questão de integridade moral, torcer para o quanto pior melhor.

“O governo está com a hegemonia narrativa. Os panelaços silenciaram. O auxílio emergencial faz parte da explicação disso e não há como a esquerda se contrapor”.

Bolsonaro com o auxílio emergencial foi acolhido pelos que não votaram nele. “Em 13 anos de poder o PT não fez a alfabetização política do povo. O bebê do pobre chora de fome e não tem resposta. Isto é uma trava. Colabora com o conformismo. São 120 milhões que ganham até dois salários mínimos. É muita pobreza e este contingente fica acondicionado a acolher tudo o que vier.”


Vinicius Torres Freire: A 'vacina paulista' no outro lado do mundo

Indonésios correm, mas ainda não têm certeza de quando começam a usar a Coronavac

A Indonésia pode ser um dos primeiros países do mundo a vacinar sua população contra a Covid-19. De início, vai usar a mesma vacina comprada pelo governo paulista, a CoronaVac, da empresa chinesa Sinovac. Mas pretende começar uma vacinação emergencial e por ora apenas prevista para fins de novembro. Pode ser bem depois, talvez em janeiro ou depois. Não é bem como dizem por aqui.

Um ex-colega de faculdade deste jornalista trabalha no governo da Indonésia, embora não no ministério da Saúde. Conta que eles ficaram tão interessados no que se passa no Brasil como nós agora começamos a nos informar sobre o que se faz por lá com a “vacina paulista”.

A associação dos médicos e parlamentares indonésios dizem que o governo não deve se apressar e deve esperar a publicação dos testes. O próprio governo diz que precisa da aprovação da vigilância sanitária, permissão por ora apenas para vacinação emergencial, e das autoridades religiosas.

Meu ex-colega conta que a resistência às vacinas aumentou faz uns anos, depois de um rolo com a vacinação contra o sarampo. Certas autoridades islâmicas disseram então que a vacina talvez não fosse “halal”, permitida pela religião (talvez fosse contaminada por algum produto proibido pela lei religiosa). O rolo foi tamanho que as autorizações religiosas foram distribuídas por três instituições diferentes –cerca de 87% dos indonésios são muçulmanos.

Outra preocupação meio “pop” é se a vacina seria adequada às etnias indonésias (centenas) e apropriada para evitar o vírus que circula no país.

A vacinação vai começar em cerca de 9 milhões dos 270 milhões de indonésios, prioritariamente em trabalhadores de saúde ou em situação de risco, em pessoas de 18 a 59 anos, sem comorbidades. Os pesquisadores responsáveis pelos testes clínicos diziam no início deste mês, em entrevistas à imprensa local, que os primeiros exames de eficácia ficariam prontos apenas em dezembro. E então, como fica?

É esse o debate, diz meu ex-colega. Todo mundo quer a vacina, mas não quer ser cobaia, embora exista confiança na universidade, na estatal que vai fabricá-la e na vigilância sanitária, diz.

Brasil e Indonésia estão quase no mesmo estágio de teste da Coronavac. Os indonésios começaram a avaliação em agosto, três semanas depois do programa brasileiro. Há testes em estágios ainda mais preliminares na Turquia e um para começar no Chile. Os indonésios vão comprar a Coronavac e outras duas vacinas chinesas, além daquela desenvolvida pela Astra Zeneca e pela Universidade Oxford. Desenvolvem uma vacina nacional, que pretendem testar em massa a partir de meados do ano que vem.

A Indonésia conta muito menos mortos de Covid que o Brasil, 12.857, ante mais de 155 mil –em termos relativos, o número de vítimas por aqui é 15 vezes maior. O país é uma das 20 maiores economias do mundo. A renda (PIB) per capita do Brasil é 26% superior, o Índice de Desenvolvimento Humano é maior e a expectativa de vida também, embora não muito mais.

O país é uma democracia desde o fim da ditadura de Suharto (1966-1998). O presidente Joko “Jokowi” Widodo foi acusado de causar confusão na política anticoronavírus, de ter subestimado a doença etc., entrando em conflito com governos locais que impuseram medidas de distanciamento social. Mas Jokowi jogou a toalha ainda em abril. O governo central agora diz que, mesmo com a vacina, não será possível relaxar no distanciamento e no uso de máscaras.

Parece uma situação bem melhor do que a nossa. Né.


Reinaldo Azevedo: Temos, sim, vacina contra o caos

A única saída é tentar resgatar o país dos escombros da legalidade

A entropia do sistema político elegeu Jair Bolsonaro. Ainda que um reacionarismo nada subterrâneo se manifestasse transversalmente na sociedade brasileira, este se mantinha mais ou menos à margem como força (des)organizadora do sistema. Os agentes da desordem eram neutralizados pelos da ordem.

No dia em que se estudar o sistema político a sério, o Brasil descobrirá razões para, por exemplo, lamentar o esfacelamento do núcleo duro do MDB. O partido atraía e digeria o monstro, hoje autônomo. O surto de moralismo barato, que investia e ainda investe na destruição de garantias legais, liberou as forças do caos. E, como já refletiu a filósofa, “depois que a pasta de dente sai do dentifrício, ela dificilmente volta para dentro do dentifrício”.

Bolsonaro virou o beneficiário e o monopolista desse caos. Pode não agir em nome de uma teoria do poder, mas se expande na ausência de uma força organizada que lhe faça oposição. Seria incapaz de redigir uma redação do Enem explicando o seu pensamento, mas intui que sua primeira tarefa é esmagar os adversários que estão em seu próprio campo ideológico.

A personalidade tirânica, e é o caso, não admite contestação em seu próprio terreno —e nisso ele não inova. Todos os beneficiários de movimentos disruptivos, ainda que pela via eleitoral, como ocorre, procuram eliminar primeiro os parceiros de trajetória. Construída a lenda pessoal, então pode se ocupar de alvejar os verdadeiros inimigos ideológicos, se é que Bolsonaro sabe quais são.

Suas formulações são tão primitivas e desinformadas que até seu extremismo de direita não passa de um vomitório para indignar adversários e manter unida a tropa. Observem que ele chega a inventar um passado de combatente contra a inexistente guerrilha do Vale do Ribeira. Quando aconteceram por lá não mais do que duas escaramuças, tinha 15 anos.

O “Mito” é um mitômano. É preciso que se pensem as circunstâncias que permitiram a um marginal chegar ao centro do poder. Não foi sem melancolia que li e ouvi, por exemplo, as reações à sabatina de Kassio Marques na CCJ, ministro aprovado do Supremo. Muitos sábios entortaram o nariz para o que fez de melhor: a defesa do garantismo.
Quando o establishment político, intelectual e jornalístico admite que possa haver em direito outra corrente que não a garantista —entendida esta como o cumprimento da letra da lei, com suas… garantia!—, então é preciso admitir que estamos vivendo, sim, uma nova era.

Que força relevante fazia a defesa da democracia naquele ancestral 1964, que resultou em golpe? A resposta, como é sabido, é esta: nenhuma. Não vivemos as vésperas de um rompimento institucional, mas há o risco de esgarçamento do Estado democrático e de Direito. Sem estrondo. Quem se atreve a falar em defesa das forças da ordem?

É evidente que Bolsonaro sabia das negociações empreendidas pelo seu soldado raso, o general Eduardo Pazuello, com o Instituto Butantan — e isso significa que também as Forças Armadas foram tragadas pelo movimento entrópico, viciadas que estão numa boquinha.

Nem tanto por cálculo, mas em razão da pressão da expedição interventora dos EUA que veio ao Brasil para buscar um aliado na guerra comercial contra a China, o presidente desautorizou o seu ministro da Saúde; atacou um adversário do seu campo ideológico; pôs em dúvida a qualidade de uma vacina sem ter elementos para isso; ameaçou, de forma velada, negar o registro à Coronavac e correu para colher os louros junto a seus lunáticos.

O que resta do antigo establishment político e intelectual, inclusive a imprensa, se queda paralisado, estatelado, mal acreditando no que ouve e vê. E o homem pode muito mais porque ele e o vácuo se contemplam. Bem-aventurados os que tentam resgatar o país dos escombros da legalidade. É nossa única saída.

“Kassio foi indicado por Bolsonaro, Reinaldo!” E daí? Edson Fachin foi indicado por Dilma.

Lembrando são Mateus, pelo fruto saberemos se é videira ou espinheiro. A ordem legal —com todas as mobilizações sociais cabíveis, claro!— é nossa única vacina contra as forças do caos.


Hélio Schwartsman: Quando a leviandade mata

Chilique presidencial é cálculo político míope e mesquinho

Jair Bolsonaro é o presidente. Foi eleito democraticamente. Mas não tem condição moral nem intelectual de exercer o cargo, do que dá prova a leviandade com que trata a questão da vacina.

Não sei se a Coronavac, a "vacina chinesa do Doria", no linguajar presidencial, vai funcionar bem. Ninguém sabe. Mas, na atual conjuntura, é um dos fármacos mais promissores em fase final de testes. Engajar-se num programa de compra e produção antecipadas é uma opção de risco, mas, se o imunizante tiver sucesso, fazê-lo nos dará um ou dois meses de dianteira no processo de vacinação, o que pode salvar muitas vidas e reduzir o estrago econômico da pandemia.

Vale observar que o governo fez exatamente a mesma aposta no caso da vacina da Universidade de Oxford, o que desmonta por inteiro a afirmação de Bolsonaro de que não se pode avançar na compra de vacinas até que elas tenham sido licenciadas pelos órgãos competentes.

Ao que tudo indica, o chilique presidencial não tem motivação técnica, mas é fruto de um cálculo político míope e mesquinho, que procura agradar à base mais amalucada do bolsonarismo, que tem alergia a coisas feitas por "chineses comunistas", ao mesmo tempo em que se recusa a fazer qualquer gesto que possa beneficiar um rival, no caso, Doria.

Num país um pouco mais sério, um líder que tomasse decisões de vida e morte com base em comentários de simpatizantes em redes sociais e não em justificativas racionais já teria sido democraticamente defenestrado pelo impeachment. Mas estamos no Brasil.

Meu consolo é que a posição dos bolsonaristas é pior que a minha. Quem se opõe ao presidente apenas perdeu uma eleição, mas os que o apoiaram foram traídos. O candidato que falava em acabar com a corrupção, varrer o sistema político carcomido e impor uma agenda ultraliberal se tornou um protetor de corruptos, que come na mão do centrão e está prestes a furar o teto.


Bruno Boghossian: Ernesto cumpriu sua missão

Ernesto Araújo cumpriu sua missão com discurso vazio e agenda ultraconservadora

O ministro Ernesto Araújo finalmente reconheceu que a chancelaria bolsonarista não tem muitas credenciais para exibir pelo mundo. Ele disse que o Brasil é visto como um pária internacional por sustentar uma defesa da liberdade. “Então, que sejamos esse pária”, afirmou.

Após pavimentar uma via para o isolamento e de infiltrar o fundamentalismo na diplomacia brasileira, Ernesto posa de vítima de suas supostas virtudes. Numa formatura de diplomatas, nesta quinta (22), o chanceler comemorou sua retórica vazia e escondeu os prejuízos dessa gestão para os interesses nacionais.

O ministro se gabou do fato de que Jair Bolsonaro e Donald Trump “foram praticamente os únicos a falar em liberdade” na última Assembleia Geral da ONU. Se esse é um critério relevante para a diplomacia, o Brasil está em má companhia. O chanceler da Coreia do Norte também pediu um mundo “livre de dominações” e defendeu a soberania dos países.

Na cartilha internacional do bolsonarismo, a liberdade serve de slogan para o atraso. Ernesto usa esse argumento para agir como despachante de uma agenda religiosa, dos interesses do atual governo dos EUA e de bandeiras da ultradireita.

Às vezes, a liberdade fica esquecida. Nesta quinta, o Brasil se aliou a alguns dos países mais conservadores do mundo numa declaração em defesa da família baseada em casais heterossexuais e contra o aborto. Nesse clube está a Uganda, onde reina a discriminação sexual e de gênero.

Ernesto aproveitou a cerimônia de formatura para celebrar a intolerância que levou à perseguição do poeta João Cabral de Melo Neto, acusado de liderar uma célula comunista no Itamaraty em 1952. O chanceler disse que o autor escolheu “o lado errado do marxismo e da esquerda”.

Para justificar a posição marginal do Brasil, o ministro disse que talvez seja melhor ficar ao relento do que participar do “banquete do cinismo interesseiro dos globalistas”. Missão cumprida. Caso esteja sem companhia para jantar, Ernesto pode telefonar para seu colega norte-coreano.


Ricardo Noblat: General Pazuello, pede pra sair!

Farda manchada

Como acreditar no que o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, disser ou fizer doravante? Se tivesse o mínimo de preocupação com a sua e a imagem dos colegas de caserna, pediria demissão depois de desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro no caso da compra da vacina chinesa contra a Covid-19.

Mas, não. Infectado pelo vírus, recolhido ao hotel do Exército em Brasília, onde mora, Pazuello foi acordado, ontem à tarde, para receber a visita de Bolsonaro. E foi constrangido a gravar uma parte de sua conversa com ele onde afirmou: “É simples assim, um manda e outro obedece. Mas a gente tem carinho”.

Vexame, vexame, vexame! Onde já se viu um general render-se a um capitão? Ou melhor: a um ex-capitão? Tudo bem, o ex-capitão é hoje o presidente da República, e o general ainda na ativa, seu vassalo. De toda forma, pegou muito mal para ele entre seus colegas de farda. Primeiro foi desautorizado. Depois, humilhou-se.

No último fim de semana, Pazuello havia combinado com Bolsonaro no Palácio da Alvorada o que diria quando se reunisse com os governadores para discutir a compra de vacinas. E cumpriu o combinado ao anunciar:

“A vacina do Butantan será a vacina brasileira. Já fizemos carta em resposta ao ofício do Butantan, e essa carta é o compromisso da aquisição das vacinas que serão fabricadas até o início de janeiro, em torno de 46 milhões de doses, e essas vacinas servirão para nós iniciarmos a vacinação ainda em janeiro. Essa é a nossa grande novidade e isso reequilibra o processo”.

Aí, o governador João Doria (PSDB), de São Paulo, o padrinho da vacina chinesa no Brasil, celebrou o anúncio nas redes sociais e por toda parte. Aí, no dia seguinte, os bolsonaristas de raiz foram para cima de Bolsonaro nas redes. Aí, furioso e a conselho dos três filhos zeros, Bolsonaro deixou Pazuello pendurado na brocha.

Militares próximos ao presidente, e militares da reserva ficaram indignados com o episódio. Inicialmente, com o que Bolsonaro fez. Ontem, com o que fez também Pazuello. Até porque a vacina chinesa, ainda em fase de teste como as demais, se aprovada acabará sendo comprada. Doria continua rindo à toa.

Essa parada foi ganha por ele, que mais e mais se oferece como o candidato capaz de derrotar Bolsonaro em 2022. Cerca de 70% dos brasileiros se dizem dispostos a se vacinar, segundo pesquisa Datafolha. E parte deles começa a ver Bolsonaro como inimigo de tudo o que possa salvar vidas.

Em tempo: Pazuello revelou que está sendo tratado com cloroquina. Bolsonaro ficou muito satisfeito com o que ouviu.

Delegadas em alta, candidatos a prefeito favoritos, preocupados

Russomano derrete e rejeição a Crivella aumenta

O sonho de qualquer candidato é poder escolher o seu adversário. O adversário dos sonhos do prefeito Bruno Covas (PSDB), de São Paulo, por exemplo, é o deputado Celso Russomano (Republicanos), apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Nas contas de Covas, se os dois disputarem o segundo turno, ele se reelegerá com o apoio dos eleitores de Guilherme Boulos (PSOL) e de Jilmar Tatto (PT), e de uma parte dos eleitores de Márcio França (PSB). O candidato mais difícil para Covas seria França.

O adversário dos sonhos de Eduardo Paes (DEM), candidato a prefeito do Rio, é Crivella (Republicanos). O mais perigoso, a Delegada Martha Rocha (PDT). No Recife, tanto faz para João Campos (PSB) enfrentar Marília (PT) quanto Mendonça (DEM).

Marília é prima de Campos, e o PT não está inteiramente fechado com ela. Uma fatia grande apoia Campos desde já. Mendonça, que estimula a campanha “Mendonça é Bolsonaro, Bolsonaro é Mendonça”, costuma perder as eleições majoritárias que disputa.

Quem poderia dar trabalho a Campos seria a Delegada Patrícia (Podemos), apoiada pelo Cidadania, antigo Partido Comunista Brasileiro. Pois foi justamente ela que cresceu e atropelou Marília e Mendonça na mais recente pesquisa Datafolha.

As delegadas estão em alta. Enquanto Crivella despenca e sua rejeição sobe, Martha Rocha empata com ele e deve superá-lo na pesquisa da próxima semana. Em simulação de segundo turno, Patrícia e Campos já aparecem empatados.

Russomano está ladeira abaixo, para aflição de Covas e felicidade de França. Parece escrito que ele cumprirá sua sina de ser líder na largada de campanha e em seguida começar a derreter. É como cavalo paraguaio: dispara na frente e depois perde o páreo.