Day: setembro 27, 2020

Carlos Melo: Antipolarização e novo centro para a disputa

No Brasil, os polos políticos capazes de atrair e agregar várias forças partidárias foram redefinidos em 2018. A “clássica” polarização PT/PSDB — que no país e na cidade de São Paulo, em particular, deu o tom da disputa por tanto tempo – tende a desaparecer nas eleições deste ano. Ao que tudo indica, um ciclo se encerrou dando origem a outro — que, talvez, também já esteja passando por novo processo de transmutação. A vida e a política seguem, como numa noite veloz.

Na eleição presidencial, a crise econômica e a Lava Jato fizeram com que o antipetismo – que nasceu junto com o partido — se expandisse. Com maior afinco e desespero, buscou força capaz de derrotar a até então forte legenda de Lula. O PSDB deixava, porém, de ser a aposta: exposto aos próprios escândalos e diluído no Centrão, os tucanos sucumbiram como alternativa. O vazio, contudo, abriu espaço para a aventura.

Favorecido por esse quadro, o bolsonarismo tomou corpo. (Era também beneficiado pela onda mundial de ressentimento e rancor contra a política e a democracia, originada nos indivíduos abandonados pela revolução tecnológica – os esquecidos, somente agora percebidos por Paulo Guedes. Como em vários cantos do planeta, aqui também o populismo se aproveitou das circunstâncias e se estabeleceu.

Nesses dois anos, o bolsonarismo vem se consolidando para parte da população, mas também se desgastando com outra. Com efeito, a demagogia populista radicaliza e fideliza seu público, mas não consegue dar resposta efetiva a problemas concretos. Por sua vez, o PT vem perdendo o viço, embora Lula mantenha forte lembrança no eleitorado.

São duas forças ainda importantes, mas a excitação constante que exigem tende à fadiga, revelando limites claros, impossíveis de se expandirem para além de suas tropas. Assim, improdutiva e cansativa, essa polarização pode, nesse período, ter-se desdobrado em duas outras forças: o antipetismo e o antibolsonarismo.

O petismo e bolsonarismo se combatem, se anulam e não somam. Já “os antis” criam intersecções, delineando espaço para “candidatos nem-nem” — que nem Bolsonaro, nem Lula. Havendo visão de futuro, programa e energia, um campo distinto do Centrão e não entendido como um centro anódino pode se apresentar como alternativa a polarização bolso-petista.

Estaria inaugurada uma antipolaridade agregadora de não petistas e não bolsonaristas? Pode ser. Sendo capaz romper a fortaleza de um dos polos, chegaria ao segundo turno contra o outro, tendendo a atrair o “voto útil” de quem ficou de fora. Mais uma vez: demandará propostas e posicionamento; ser “Centro”, por si só, não define ninguém. Mas, a lógica e as vantagens do “centro político”, assim como a racionalidade do antigo eleitor mediano, estariam assim reconstituídas. A história dirá.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Eliane Cantanhêde: Outubro efervescente

Eleição, economia, pandemia e o novo ministro terrivelmente amigo no STF

Outubro será agitado, com as campanhas eleitorais aprendendo a contornar a pandemia (que ainda mata mais de “dois Boeings” por dia), o governo e o Congresso convergindo para desoneração da folha de pagamentos compensada por um novo imposto e o presidente Jair Bolsonaro se divertindo com a aflição dos muitos candidatos à vaga de Celso de Mello no Supremo, porque ele já tem dois nomes no colete: Jorge Oliveira e André Mendonça.

Bolsonaro está no centro de toda essa efervescência, mexendo as peças sem se queimar e entrando no jogo apenas em caso, e na hora, da vitória. Só apoiará candidato para ganhar, só apoiará o novo imposto depois de Paulo Guedes e o Centrão garantirem o resultado e só vai anunciar o novo ministro do STF depois de ter sugado o possível dos candidatos frustrados.

Até aqui, ninguém deu bola para a eleição municipal e o interesse do eleitor continua caindo a cada pleito, mas a tendência é esquentar, com foco óbvio em São Paulo, pelo seu peso político e econômico, no Rio, pela chocante situação de governador e prefeito, e nos neófitos, como o próprio Wilson Witzel, que caíram de paraquedas pelo sopro do bolsonarismo. Elegerão seus candidatos?

Em São Paulo, Celso Russomanno (Republicanos) conta com Bolsonaro para fugir da sina de sair na liderança e acabar fora até do segundo turno. O prefeito Bruno Covas (PSDB) precisa driblar a frustração pelo segundo lugar e evitar perda de votos para Márcio França (PSB). Jilmar Tatto empurra o PT para o balaio dos nanicos e para o apoio a Guilherme Boulos (PSOL), a novidade de 2020. No Rio, o prefeito Marcello Crivella (Republicanos) está inelegível. Conseguirá reverter a decisão no TSE e manter o apoio de Bolsonaro?

Na economia, Bolsonaro lavou as mãos: Paulo Guedes que se vire. Se articular apoio para a “nova CPMF”, não vai atrapalhar. Guedes recupera liderança e força, o governo comemora a troca dos novatos do PSL pelo trator Centrão e a pergunta que não quer calar é: como desonerar a folha, como Guedes quer, e encorpar o novo Bolsa Família, como Bolsonaro exige, sem furar o teto de gastos nem aumentar a carga tributária? A conta fecha?

Enquanto isso, Bolsonaro acompanha com prazer o rebuliço em torno da indicação para o Supremo, com as decisões do procurador-geral Augusto Aras sempre sob suspeita por algo que ele jura que não quer e que não vai acontecer, o juiz do Rio Marcelo Bretas repreendido por participar de atos políticos e o plenário do STJ em alvoroço, como sempre, diante de uma vaga na alta Corte.

O ministro “terrivelmente evangélico”, porém, afunila para Jorge Oliveira, advogado e policial militar sem credenciais jurídicas compatíveis com o Supremo, mas secretário-geral da Presidência e filho de grande amigo de Bolsonaro. E para André Mendonça, advogado, pastor presbiteriano, ex-advogado-geral da União e atual ministro da Justiça. Transformou a Justiça em órgão de defesa do presidente, mas ainda é bem aceito no STF.

Celso de Mello deixa a Corte em 13 de outubro, após 31 anos, à frente da investigação do presidente por intervenção na PF. Celso, decano que sai, determinou depoimento presencial para Bolsonaro. Marco Aurélio, o novo decano, jogou para o plenário virtual e defendeu depoimento por escrito. O lance seguinte pode ser tirar do virtual (votos por escrito) para o plenário real (ao vivo).

Logo, Bolsonaro vai trocar um ministro ostensivamente crítico por outro terrivelmente amigo e um decano adversário por outro nem tanto e, na presidência, entrou Luiz Fux com a expectativa de maior independência em relação ao Planalto do que Dias Toffoli. O que se sabia de Supremo não se sabe mais. Exemplo: e a prisão após segunda instância, que caiu por um único voto?


Vera Magalhães: A nova política caducou

Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados

A tira que ilustra esta coluna, do talentoso quadrinista brasileiro Pietro Soldi, é a mais perfeita tradução do que a autodenominada “nova política”, que nunca teve nada de novo e em menos de dois anos se encontra em avançado estado de necrose, legou ao País.

Brasileiros de Norte a Sul elegeram para o Executivo e o Legislativo vários espécimes de jumentos vendados, achando que revolucionariam a forma de fazer política. Mas o resultado é que estamos ensopados de café quente e sem muito sinal de que vamos conseguir reerguer a mesa que tombou e colar a louça que foi feita em cacos.

Olhemos a situação do Rio de Janeiro e de Santa Catarina. O primeiro vinha de uma sucessão de larápios que só não roubaram as pedras do calçadão de Copacabana. O segundo tinha alguns dos melhores indicadores econômicos do País e saúde fiscal relativamente boa.

Mas os eleitores dos dois Estados acharam por bem eleger completos desconhecidos, que entraram na política pela porta fácil do discurso anticorrupção, atrelados ao bolsonarismo e surfando na onda lavajatista.

Resultado: menos de dois anos depois, Wilson Witzel, cujo nome 90% dos fluminenses não sabiam nem pronunciar quando nele votaram, e Carlos Moisés, cuja foto até hoje eu não saberia reconhecer, estão a caminho do impeachment.

De Bolsonaro não é preciso falar. Já mencionei seu discurso na ONU, mais uma exibição que não deixou nada a dever à tirinha do Pietro.

E nos Parlamentos e na vida partidária, qual o saldo da tal nova política? Não muito superior. Há, sim, excelentes novos parlamentares, da esquerda à direita.

Os movimentos não partidários, como Agora, Livres, Renova BR e Acredito, aliás, contribuíram de forma mais significativa para isso que os partidos, pois enfrentaram a necessidade de formação desses jovens líderes.

Quanto às siglas, seguem perdidas na geleia geral ideológica e programática, inclusive as novas. Basta ver o episódio Novo versus Filipe Sabará. O candidato passou no tal processo seletivo, mas em seguida seu currículo acadêmico foi desmentido, se descobriu uma diferença de nada menos que R$ 3.985.000 em sua declaração de bens, e o barraco começou. Diante de tantas inconsistências, Sabará recorreu à seguinte explicação: a “ala esquerdista” (!) do Novo, representada por João Amoêdo (!!), o estaria perseguindo. Seria até engraçado, se não fosse patético. Dá-lhe coice com olhos vendados!

A divisão interna do Novo é mais um sinal claro de que não se mudam as práticas políticas apenas com slogans, sapatênis e ideias naive – como a de que não usar Fundo Partidário é sinal de virtude por si só.

Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados e de que legisladores têm mais a fazer que filminhos ridículos no TikTok ou Instagram.

Que 2020 comece a corrigir 2018 e que tiremos a venda do jumento e elejamos bons políticos para fazer política. Olha só que ideia disruptiva!


Elio Gaspari: A vanguarda da elite

Documentário sobre Libelus, organização de estudantes contra a ditadura, ajuda a refletir sobre elite brasileira

Na quarta-feira, estará no ar o documentário “Liberdade e luta — Abaixo a ditadura”, do cineasta Diógenes Muniz. Trata da Libelu, organização política de estudantes surgida em 1976 e extinta em 1985. Os libelus podem ter sido 800, mas fizeram um barulho danado. Iam para a rua gritando “abaixo a ditadura” (coisa que raramente acontecia desde 1968). Afastavam-se do MDB e da velha esquerda. Eram radicais com senso de humor, gostavam mais de rock do que de samba, mais de Caetano Veloso do que de Chico Buarque. O Serviço Nacional de Informações dizia que eram uma “dissenção” do Partido Comunista e da “linha trotsquista”. Os libelus eram jovens, num tempo em que o filósofo francês André Glucksman dizia que “Brejnev é Pinochet”. Um governava a União Soviética; o outro, o Chile.

As coisas são assim desde 1786, quando o estudante José Joaquim Maia (codinome Vendek) procurou Thomas Jefferson, embaixador dos Estados Unidos na França, pedindo-lhe ajuda para uma conspiração que se armava em Minas Gerais. Os estudantes foram a vanguarda da elite brasileira. Mais tarde, eles se tornam a própria elite, e a vida segue.
No documentário de Diógenes Muniz há uma doce viagem à alma dos jovens dos anos 70, na voz de 20 sexagenários lembrando-se da aurora de suas vidas. Só eles falam, um de cada vez. Em todos os idiomas há o provérbio segundo o qual quem não é de esquerda aos 20 anos não tem coração, e quem continua de esquerda depois dos 50 não tem cérebro. Dos 20 libelus entrevistados, cada um tomou seu caminho e foram para todos os lados. Poucos ficaram mais ou menos no mesmo lugar. Aí está o valor dos depoimentos e do documentário.

As entrevistas com os libelus foram gravadas no cenário da Universidade de São Paulo. Só “Pablo”, um militante que estudava Medicina em Ribeirão Preto falou na sala de sua casa. Isso não ocorreu por deferência ao ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, mas porque Antonio Palocci está em prisão domiciliar. Seu depoimento fecha o ciclo de um pedaço da amostra. Quando foi perguntado se ainda se considerava um homem de esquerda, Palocci não vacilou: “Claro”.

Não se mostrou arrependido de ter dançado “conforme a música”, mas ponderou: “Os que não se meteram em caixa dois não se elegeram… Talvez eu fosse uma pessoa melhor…”

A estudantada é a vanguarda da elite brasileira. Vendo-se o documentário de Diógenes Muniz, pode-se refletir sobre os jovens, o que é fácil. Desde 1786, difícil é refletir sobre a elite. Até nisso os libelus ajudam.

Serviço: “Liberdade e luta” faz parte do festival “É tudo verdade” e para vê-lo bastará entrar no site às 21h. É grátis, mas é preciso fazer um cadastro.

Mito histórico

Outro dia o vice-presidente Hamilton Mourão lembrou mais uma vez que os Estados Unidos foram o primeiro país a reconhecer independência do Brasil.

Mourão tem gosto pela História, e faltam menos de dois anos para o bicentenário do Grito do Ipiranga. Talvez tenha chegado a hora de se esclarecer esse mito. Em 2017, num estudo publicado pelos Cadernos do Centro de História e Documentação Diplomática, Rodrigo Wiese Randig mostrou que o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil foi a Argentina, que à época atendia pelo nome de Províncias Unidas do Rio da Prata.

A Argentina reconheceu o Império do Brasil no dia 25 de junho de 1823, e em agosto seu representante apresentou suas credenciais ao chanceler brasileiro. Os Estados Unidos só reconheceram o Brasil um ano depois, e o embaixador José Silvestre Rebelo entregou suas credenciais ao presidente James Monroe no dia 26 de maio de 1824.

O governo tem feito pouco, quase nada, para comemorar o Bicentenário da Independência. Arrisca atolar numa patriotada estéril, como aconteceu em 1972, no Sesquicentenário, quando a ditadura passeou os ossos de D. Pedro I pelo país até colocá-los numa cripta nos jardins do Museu do Ipiranga. Anos depois, ela virou mictório.

Dois meses depois da entrega de credenciais pelo embaixador brasileiro a James Monroe, D. Pedro I recebeu o embaixador do reino africano do Benin, na Quinta da Boa Vista. O Benin estava mais para entreposto de escravizados do que para reino.

A unanimidade esperta

Nelson Rodrigues já ensinou que toda unanimidade é burra.

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro decidiu por unanimidade avançar com o processo de impedimento do governador Wilson Witzel. A unanimidade pode também ser esperta, muito esperta.

Trapaça

Apareceu mais um juiz terrivelmente evangélico na fila do guichê para a indicação do próximo ministro do Supremo Tribunal Federal. É o juiz William Douglas dos Santos.

Numa trapaça da História, William Douglas (1898-1980) foi um desassombrado juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos. Comprou todas as brigas em defesa da liberdade e ainda por cima defendia o meio ambiente numa época em que pouco se falava disso. Certa vez, encarou uma trilha de três mil quilômetros.

Aguentou-se na Corte tendo se metido com um dono de cassinos. Pediu para sair quando, depois de um acidente vascular, estava trocando as bolas.

Aviso

A popularidade do capitão, o surgimento de Celso Russomanno nas pesquisas paulistanas e a promessa de Paulo Guedes de elevar a isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física, beneficiando 15 milhões de pessoas, deveriam levar a oposição a pensar na vida. O que mais se ouve é que esse mar de rosas acabará quando o auxílio emergencial for suspenso. Pode ser.

Não custa repetir uma lição do mestre Marco Maciel, quando um marqueteiro lhe disse que, segundo as pesquisas, o candidato adversário estava em queda e o dele, em ascensão:

“Ainda assim, o senhor acha que a intersecção dessas duas retas ocorrerá antes ou depois da eleição?”

Sede ao pote

As guildas dos procuradores precisam controlar a sede da corporação.

Numa festa catarinense, os doutores conseguiram uma equiparação que colocou a prêmio os mandatos do governador Carlos Moisés e de sua vice.

A Advocacia-Geral da União promoveu 606 doutores com um golpe de caneta e foi obrigada a esquecer o assunto diante da grita.

Eremildo, o idiota

Até um idiota como Eremildo pode entender que o Ministério da Educação nada tem a ver com o reinício das aulas.

Néscio, ele não sabe explicar se o doutor Milton Ribeiro também acha que seu ministério não tem nada a ver com o escalafobético edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que, há mais de um ano, tentou torrar R$ 3 bilhões num edital viciado para a compra de equipamentos eletrônicos.

A Controladoria-Geral da União travou o jabuti, mas até hoje não se sabe de onde ele saiu.


Ricardo Noblat: Bolsonaro assiste indiferente ao tiro que Michelle deu no próprio pé

Ele tem medo de quê?

O vídeo com a música “Micheque”, da banda de rock Detonautas, não parecia destinado a virar um campeão de audiência no Youtube quando ali foi postado no último dia 4.

De autoria de Tico Santa Cruz, vocalista da banda, a letra da música foi inspirada pela descoberta de que Fabrício Queiroz depositou 89 mil reais na conta de Michelle Bolsonaro.

Mas aí, na quinta-feira dia 25, a primeira-dama prestou queixa na Delegacia de Crimes Eletrônicos do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), em São Paulo.

Ela quer que sejam processados por calúnia, injúria e difamação todos os que passaram a chamá-la de “Micheque” nas redes sociais, inclusive os roqueiros da banda. Resultado?

Foi um tiro no pé. Até a quinta-feira, a sátira dos Detonautas somava quase 700 mil visualizações. No início desta madrugada, ultrapassou a marca de 1 milhão e 330 mil. Um sucesso!

Não foi a música que colou em Michelle o apelido de “Micheque”. O apelido foi replicado quase 9 milhões de vezes no Facebook, Twitter e Instagram entre 22 de agosto e 21 de setembro.

A banda apenas surfou na onda e se deu bem. O que espanta é que ninguém no governo, nem mesmo o presidente Jair Bolsonaro, tenha aconselhado Michelle a não fazer o que fez.

A ira da primeira-dama é justa. Ela nada teve a ver com o dinheiro depositado em sua conta. Foi usada. Ao que tudo indica, o dinheiro era um negócio particular entre Queiroz e seu marido.

Bolsonaro poderia ter poupado a mulher do constrangimento a que se vê exposta. Por que não se apressou em esclarecer o motivo pelo qual Queiroz depositou 89 mil reais na conta dela?

Que tipo de vantagem política imagina extrair da iniciativa que teve Michelle de procurar a polícia? Por que insiste em permanecer calado? Está com medo do quê?


Vinicius Torres Freire: Reforma de impostos de Guedes é injusta, ineficiente e selvagem

Com CPMF, reforma do governo aumenta injustiça e ineficiência tributária no país

“Poucas ideias são tão ruins que não podem ser pioradas. Infelizmente, o sistema tributário brasileiro não é exceção à regra… Uma prova disso é a constante ameaça do retorno da famosa … CPMF”, escreveu Adolfo Sachsida em um livro de 2017. Sachsida é ora secretário de Política Econômica do Ministério da Economia de Paulo Guedes.

A esse respeito, muita gente está de acordo com o secretário, este jornalista inclusive. Guedes quer substituir um imposto ruim e decadente, a contribuição patronal para o INSS, por um ainda pior, a CPMF ou equivalente. Se conseguir, vai aumentar a confusão, as distorções e várias iniquidades da tributação no Brasil.

Um modo de acabar com o imposto sobre folha de salários é tributar mais a renda, de preferência a dos mais ricos (ou o consumo, alternativa pior). Tributar mais os rendimentos maiores é também um modo de pegar os lucros da “economia digital”, que têm escapado dos fiscos do mundo inteiro.

Guedes não quer bulir com o IR. Pretende comer a renda de modo insidioso, com uma CPMF, imposto menos visível e que trata ricos e pobres da mesma maneira.

A ideia do ministro é arrumar R$ 120 bilhões a fim de reduzir o que as empresas pagam para o INSS. Acabaria o imposto sobre remunerações de um salário mínimo ou menos; a contribuição sobre salários maiores diminuiria. Uma conta de guardanapo indica que, de fato, esse dinheiro seria bastante para reduzir a alíquota do INSS de 20% para uns 11% (para salários maiores que um mínimo), tudo mais constante.

Guedes acha que arrecadaria esses R$ 120 bilhões com uma alíquota de 0,4% para sua CPMF misteriosa. Quando a CPMF era de 0,38% (de 2002 a 2007), a receita era regularmente 1,35% do PIB, atualmente uns R$ 94 bilhões. Mas passemos, pois ninguém sabe o que é essa CPMF do ministro e a economia mudou em 13 anos.

Uma CPMF ou coisa que o valha vai pesar mais sobre indústria e agricultura, menos sobre serviços. Impostos sobre a folha de salários, como a contribuição patronal para o INSS, pesam mais, claro, sobre setores que gastam relativamente mais com mão de obra e menos com capital.

Mas ao fim e ao cabo, impostos sobre transações financeiras são selvagens, em nada relacionados a um critério econômico razoável. Uma cadeia de produção longa e movimentação financeira relativamente grande levarão uma empresa a “pagar” mais (na verdade, a recolher mais imposto, repassando a conta para o cliente).

A CPMF tende a aumentar a iniquidade social e econômica da tributação. Um grande princípio da reforma tributária seria justamente uniformizar o quanto possível os impostos que cada setor ou empresa têm de recolher. Outro motivo da reforma é acabar com a cumulatividade (o imposto em cascata, que fica mais pesado quanto mais “fases” a produção de um bem ou serviço envolver). A CPMF é cumulativa.

Além do mais, uma CPMF de 0,4% é uma enormidade em ambiente de taxas de juros baixas. Logo, vai criar tumulto e custo também no mercado financeiro.

A redução dos encargos sobre a folha vai ajudar a criar empregos? Não há evidências. Talvez facilite formalização e contratações quando e se a economia estiver crescendo. Impostos menores sobre o emprego podem ser um coadjuvante da melhoria do mercado de trabalho, mas não o motivo.

Deputados relevantes ainda dizem que a CPMF não passa ou que pode atrasar a reforma tributária. Que o país esteja discutindo tal coisa é outro sucesso da selvageria iníqua e ignara que move o governo de Jair Bolsonaro.


Hélio Schwartsman: Como se livrar de um presidente

Crise econômica é a melhor chance de eleição produzir resposta sólida contra um dirigente

Agora que Jair Bolsonaro se pôs sob a guarda do centrão, nossa melhor esperança de nos livrarmos desse presidente disfuncional são as urnas. E a melhor chance de as urnas produzirem uma resposta sólida contra um dirigente de turno é serem acionadas sob crise econômica.

Já lancei essa ideia algumas vezes e, sempre que o faço, algum leitor me escreve, comentando que o governante já tem pronto um discurso que o isenta de responsabilidade pela economia. Dilma afirmava que a crise tinha origem externa. Bolsonaro já vai alardeando que o período complicado que teremos pela frente é culpa de governadores e prefeitos que exageraram no lockdown.

É claro que é melhor para o líder ter um discurso do que não ter, especialmente se houver gente crédula o bastante para aceitar desculpas esfarrapadas. Mas as decisões do eleitorado não precisam ocorrer de forma consciente. O que há de mais fascinante em pleitos são justamente os fatores que determinam o comportamento de grandes coortes sem que as pessoas se deem conta deles.

Um exemplo bem documentado desse fenômeno são os ataques de tubarões na costa de Nova Jersey , nos EUA, que quase custaram a reeleição a Woodrow Wilson em 1916. No início do século passado, ninguém colocava entre as atribuições do presidente zelar pela segurança de banhistas. Não obstante, a onda de ataques naquele verão —e os efeitos econômicos decorrentes da fuga dos turistas— produziu uma insatisfação difusa no eleitorado que se converteu em rejeição ao mandatário. Sabemos que os tubarões estão envolvidos porque Wilson perdeu mais votos (em relação ao pleito de 1912) nas localidades que sofreram mais ataques.

Crises econômicas seguem esse mesmo padrão. Elas podem roubar o discurso do governante, mas não é preciso que o façam. Só o fato de a situação estar difícil já gera um mau humor no eleitorado que costuma empurrá-lo para a oposição.


Bruno Boghossian: Golpismo pré-datado vira moda entre presidentes populistas

Trump e Bolsonaro dinamitam credibilidade de eleições para tentar preservar poder

Há 203 dias, Jair Bolsonaro afirmou guardar provas de fraude na eleição de 2018. O presidente disse que tinha em suas mãos evidências de que deveria ter vencido a disputa no primeiro turno e anunciou que apresentaria esse material “brevemente”. É claro que nada apareceu, mas ele conseguiu o que queria.

Bolsonaro trabalha, no longo prazo, para dinamitar a credibilidade do sistema de votação no país. A ideia é cultivar dúvidas entre seus apoiadores, reforçar a imagem de um ambiente político manipulado e preparar terreno para contestar derrotas que sofre dentro das regras do jogo.

Ele deu uma pista desse caminho ainda na campanha presidencial. A dias do primeiro turno, Bolsonaro levantou suspeitas de fraude sem comprovação e disse que não aceitaria um resultado diferente de sua vitória nas urnas. “Isso é um ponto de vista fechado”, declarou.

Esse golpismo pré-datado se tornou marca de certos políticos populistas. Na corrida presidencial de 2016, Donald Trump falava de uma “fraude eleitoral em larga escala” para favorecer sua rival, Hillary Clinton. O republicano venceu a disputa. A semente, porém, estava plantada.

Trump governou como vítima das instituições democráticas. Agora, atrás de Joe Biden nas pesquisas, ele estendeu o tapetão: questionou a lisura do processo eleitoral e disse que, se as urnas não derem a ele um novo mandato, levará o resultado à Suprema Corte —onde os juízes conservadores são maioria.

Sem provas concretas de fraude em quantidade suficiente para mudar o resultado da eleição, Trump faz uma ameaça explícita de golpe de Estado. Ninguém deve ficar surpreso se Bolsonaro seguir o mesmo caminho em 2022, depois de alguns anos de experiência no ramo.

No tapetão populista, a vontade popular não conta, e nem mesmo é preciso haver fraude de verdade. Basta fragilizar o principal instrumento da democracia para agitar eleitores e milícias dispostas a apoiar uma manobra fora da lei. A democracia, afinal, é um mero detalhe.


Janio de Freitas: Nonsense no governo Bolsonaro comanda e sufoca todo resquício de gravidade

O possível é apenas sondar os traços anedóticos que lhe dão forma e grotesco; e rir

Um riso mal contido, pode ser, talvez envergonhado. Como na extravagância de alguns tombos, sobretudo os vistos. E é disso mesmo que se trata: cenas patéticas de um tombo, o deste país.

O Brasil a ameaçar de represália os grandes países que sustem importações de produtos brasileiros, em reação à sanha destruidora na Amazônia. Cada grão de soja e grama de carne que deixem de importar é um rombo na economia bolsonara. E logo quem a propalar a ameaça, o general Heleno, não propriamente do alto de sua lucidez.

Fiel ao sentimento de que o cinismo não tem limite, nem para traição à memória de seus ídolos torturadores e matadores, Bolsonaro a dizer à ONU que “a liberdade é o bem maior da humanidade”. Depois de atribuir a interesses internacionais na riqueza da Amazônia uma campanha para “prejudicar o governo e o próprio Brasil”. No que foi corrigido pelo general Heleno, que, a partir do nível um tanto prejudicado da sua visão do mundo, identificou outra motivação etérea do mundo: é uma “campanha internacional para derrubar Bolsonaro”.

Tamanho nonsense sufoca todo resquício de gravidade que se queira atribuir-lhe, consideradas as responsabilidades funcionais dos emitentes. O possível é apenas sondar os traços anedóticos que lhe dão forma e grotesco. E rir.

Acima e abaixo dos delírios, o problema é que os militares influentes do Exército não compreenderam que a Amazônia é um amálgama de características de flora e de fauna, geológicas, climáticas, fluviais e pluviais, todas em mútua dependência. E que a entrega desse mundo de peculiaridades interligadas à exploração humana resultará, é inevitável, em que não será mais a Amazônia.

Da mata atlântica, por exemplo, restam no máximo 16%, em estimativa otimista. Do Nordeste ao Sul, por toda a costa e por entradas até o interior profundo, o que há são terras descascadas, depauperadas, ocupadas do modo mais desordenado. Cidades em que tudo se amontoa com vastidões vazias em torno. Poluição, agravamentos climáticos —é a realidade que tomou o lugar da mata atlântica. Assim seria com a entrega da Amazônia à exploração humana: não mais Amazônia.

A “exploração racional e planejada” é balela. Iniciado o processo, será o mesmo de sempre. Os aldeamentos logo se transformam em vilas, daí em cidades, a necessidade de infraestrutura e mais exploração transformam mais áreas, e assim em sucessivas destruições ambientais. A entrega da Amazônia à exploração industrial terá, porém, consequências climáticas muito maiores no Brasil todo, e por extensão no mundo, do que o miserável fim da mata atlântica.

Apesar disso, a ocupação da Amazônia é uma tese dita estratégica dos militares do Exército. Ricardo Galvão, cientista e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, desmontou o argumento do vice Hamilton Mourão para criação de uma agência para concentrar todos os monitoramentos da Amazônia. Uma agência sob controle militar. “Como o norte-americano NRO” é um argumento aqui muito forte. Mas errado, se de boa ou má-fé, fica por clarear. A verdade é que o NRO está proibido de atuar no território dos EUA. E o monitoramento por lá é civil.

Mas a agência militarizada seria apenas a porta-estandarte do Exército. Atrás viria o que consiste no projeto real: não só o monitoramento, mas o controle absoluto da Amazônia pelo Exército. Um grande território militar, sonhado como o meio eficaz de neutralizar a presumida ganância de uma ou de outra potência sobre a posse da Amazônia. Até décadas recentes, e por muito tempo, o delírio era a guerra inevitável com a Argentina —motivo até de promoção a general por mérito de planejamentos, como foi o caso do último algoz de João Goulart, o seu amigo Amaury Kruel. No mapa, da Argentina para a Amazônia são centímetros possíveis.

Enquanto o nonsense comanda, o fogo está autorizado a antecipar o serviço.

Paraíso
O Conselho Nacional do Ministério Público vai decidir se suspende por 90 dias o procurador Diogo Castor de Mattos, como proposto pelo corregedor Rinaldo Reis Lima. Ex-integrante do grupo de Deltan Dallagnol em Curitiba, Castor patrocinou enorme outdoor na cidade com fotos do seu chefe e de Sergio Moro. Falta disciplinar e, entre nós outros, ética.

Mas não só. Castor o fez com identidade falsa, usando nome de pessoa que nem ao menos foi informada. No paraíso corporativista, mesmo para tal fraude bastam 90 dias de suspensão. Para os de fora da patota, processo criminal e possibilidade até de cadeia.

Mais que ironia
A Bolívia tem na América Latina, como constatado pela ONU, a segunda melhor condição para as mulheres em direitos políticos e em paridade política com os homens (só o México a supera, sendo o Brasil o 3º pior). As bolivianas vieram das últimas colocações para o topo com as conquistas introduzidas, muitas, e outras incentivadas, por Evo Morales como presidente eleito e legítimo, caso raro na história boliviana.

As mulheres congressistas foram uma força decisiva no golpe que derrubou Morales. E uma delas usurpou-lhe a Presidência, que exerce até hoje ilegalmente, com apoio da OEA e de muitos países latino-americanos. Entre os quais, é claro, o Brasil.


Bernardo Mello Franco: Ódio aos bancos une família Bolsonaro ao PCO

Entre as 33 legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral, nenhuma está mais à esquerda que o PCO. Fundado em 1995, o Partido da Causa Operária defende um levante dos trabalhadores contra a burguesia. Seu programa prega a estatização do sistema financeiro. O objetivo é eliminar os bancos, identificados com a “agiotagem dos capitalistas”.

A sigla lançou um bom slogan (“Quem bate cartão não vota em patrão”), mas nunca conseguiu empolgar as massas. Seu eterno presidente, Rui Costa Pimenta, já se candidatou três vezes ao Planalto. Em todas as tentativas, terminou em último lugar, com menos de 0,1% dos votos.

Apesar da retórica anticomunista, a família Bolsonaro tem algo em comum com o PCO. A exemplo do partido nanico, o clã odeia os bancos. O sentimento se materializa no apego ao dinheiro vivo, que une filhos e ex-mulheres do presidente.

Aos 20 anos, o vereador Carlos Bolsonaro usou “moeda corrente do país, contada e achada certa” para comprar seu primeiro imóvel, na Tijuca. O negócio foi revelado na quarta-feira pelo jornal “O Estado de S.Paulo”. Candidato à reeleição, o Zero Dois não quis se manifestar. Ele concorre ao sexto mandato na Gaiola de Ouro, como é conhecida a Câmara Municipal do Rio.

Também na quarta, O GLOBO noticiou que Eduardo Bolsonaro usou dinheiro em espécie na compra de dois apartamentos na Zona Sul. A última aquisição foi feita em 2016, quando ele já era deputado federal. O Zero Três não quis explicar a preferência pelos pagamentos em cash.

O senador Flávio Bolsonaro supera os irmãos na modalidade. Em 2010, ele usou dinheiro vivo para comprar 12 salas comerciais na Barra. O negócio foi relatado ao Ministério Público pelas construtoras Cyrela e Brookfield. Em depoimento, o Zero Um confirmou a história. Ele disse que parte da quantia teria sido emprestada pelo pai, o presidente Jair Bolsonaro.

Mãe do trio, a ex-vereadora Rogéria Bolsonaro também usou moeda corrente para comprar um apartamento quando era casada com o capitão. A segunda mulher da presidente, Ana Cristina Valle, seguiu a mesma receita. Comprou duas casas, um apartamento e dois terrenos “em moeda corrente”, segundo revelou a revista “Época”.

No caso do PCO, a aversão aos bancos é ideológica. O partido sempre defendeu uma “aliança operário-camponesa” em nome da “luta contra a opressão do capital”. No caso dos Bolsonaro, o MP tem outro palpite. A suspeita é que as transações em espécie tenham servido para ocultar a origem dos recursos.

Comprar imóveis em cash não é crime, mas costuma chamar a atenção do MP e da Receita. A prática é vista como indício de sonegação e lavagem de dinheiro. Sem passar pelos bancos, os valores não deixam rastros. Podem ser transportados em malas, cuecas ou caixas de sapato.

Os promotores suspeitam que Flávio tenha usado o esquema da rachadinha para engordar o patrimônio. O senador é investigado há dois anos, mas ainda não encontrou uma versão convincente para explicar sua alergia às operações bancárias.


Lourival Sant'Anna: O futuro da democracia

Perspectiva de um presidente que não aceita entregar o cargo e de uma decisão para a Suprema Corte cuja legitimidade é contestada é um grande teste para os EUA

A recusa de Donald Trump em garantir que aceitará eventual derrota nas eleições ganha nova dimensão com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, e a corrida do presidente para substituí-la antes de 3 de novembro. O impacto dessa estratégia sobre a democracia americana depende das reais intenções do presidente, algo sempre difícil de decifrar.

Tenho três hipóteses. Ao enfatizar o risco de “fraude eleitoral” por causa do envio de cédulas, segundo ele, “não solicitadas” pelo correio, Trump procura mobilizar os eleitores por meio da raiva e do medo de serem roubados. A mobilização do eleitor é crucial em um país onde o voto não é obrigatório e ocorre em dia útil.

Em razão da pandemia, metade da votação poderá ser feita pelo correio. Historicamente, os democratas votam mais pelo correio do que os republicanos, porque pessoas de baixa renda, que tendem mais para as propostas democratas, têm mais dificuldades de deixar o trabalho para votar. Por essa hipótese, a recusa de Trump seria só tática de campanha, e se dissiparia após a eleição, independentemente do resultado. É o cenário mais racional e benigno.

Minha segunda hipótese é dominada pela emoção. Trump acabaria não resistindo a entregar o cargo, mas manteria a narrativa de que a eleição foi roubada. Essa atitude atenderia às suas fantasias egóicas. Três livros recém-lançados por autores muito diferentes descrevem o quanto a autoestima ferida de Trump é determinante em seu comportamento: The Room Where It Happened, de John Bolton, ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional; Too Much And Never Enough, de Mary Trump, sobrinha do presidente e psicóloga; e Rage, do jornalista Bob Woodward, que o entrevistou 17 vezes, assim como seus assessores.

Essa hipótese é mais preocupante do que a primeira, porque implica em investimento de mais longo prazo em teorias conspiratórias que têm inflamado movimentos em favor de Trump. Entre eles, está o QAnon, que acredita que Trump combate uma rede de pedófilos composta por agentes secretos americanos e por democratas. Depois de ler no Facebook e Twitter que a pizzaria Comet Ping Pong, em Washington, escondia no porão crianças usadas como escravas sexuais de uma rede liderada por Hillary Clinton, Edgar Welch, de 28 anos, pai de dois filhos, viajou de Salisbury, Carolina do Norte, para lá. Ele invadiu a pizzaria com um fuzil e um revólver. Ninguém ficou ferido e Welch foi condenado a quatro anos de prisão.

Isso foi em dezembro de 2016, logo depois da campanha eleitoral, na qual o QAnon foi usado contra Hillary. A seita também ataca negros, judeus e muçulmanos. Em agosto, Trump celebrou no Twitter a vitória nas primárias republicanas de Marjorie Taylor Greene, candidata a deputada pela Geórgia. Greene é seguidora do QAnon.

Minha terceira hipótese é um híbrido de razão e emoção. É a mais perigosa. Trump pode ter a intenção de lutar até o fim para reverter eventual derrota nas urnas. “Com os milhões de cédulas não solicitadas que estão mandando, é uma armação”, disse o presidente, na quarta-feira, ao justificar a pressa em preencher a vaga de Ginsburg. “Todo mundo sabe. E os democratas sabem melhor que todo mundo. Acho que isso vai acabar na Suprema Corte, e é muito importante termos nove juízes.”

A nomeação do terceiro juiz (no caso, a juíza Amy Barrett) por Trump eleva o número de conservadores para seis, contra três liberais. Em 2016, os republicanos bloquearam a nomeação pelo então presidente Barack Obama oito meses antes das eleições, alegando que era preciso esperar o resultado das urnas. Estamos a 37 dias das eleições. A perspectiva de um presidente que não aceita entregar o cargo e de uma decisão por uma Suprema Corte cuja legitimidade é contestada é um grande teste para a democracia americana.


Merval Pereira: A direita no Supremo

A conformação do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Suprema dos Estados Unidos está sendo alterada no mesmo momento histórico de viés direitista nos dois países. Nos Estados Unidos, a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, um ícone dos progressistas americanos, pode dar lugar a um plenário majoritariamente conservador, marcando por décadas o entendimento da Suprema Corte.

No Brasil, a aposentadoria antecipada do ministro Celso de Mello, um exemplo de coerência e defesa da democracia, permitirá que o presidente Bolsonaro nomeie um ministro claramente conservador, embora não reverta a tendência progressista da Corte brasileira.

A tentativa de controlar as decisões da última instância do Judiciário provoca crise política nos Estados Unidos, pois a nomeação da substituta de RBG deveria ficar para o próximo presidente a ser eleito dentro de 38 dias. Quando o ministro Antonin Scalia morreu, em fevereiro de 2016, o Senado americano, dominado pelos Republicanos como agora, não permitiu que o presidente Obama nomeasse o sucessor, sob alegação de que estava em seu último ano de mandato. Hoje, os mesmos Republicanos defendem a nomeação por Trump do novo ministro da Suprema Corte.

O golpe parlamentar dos Republicanos, que fará com que a Suprema Corte fique com uma maioria de 6 conservadores contra 3 progressistas, está provocando grande discussão política, e surge a tese de que os Democratas, se ganharem a eleição para presidente com Joe Biden e o controle do Senado nas próximas eleições, aumentem o número de juízes da Corte Suprema.

O democrata Franklin Roosevelt também ameaçou aumentar o número de integrantes da Suprema Corte para conseguir aprovar medidas de seu programa New Deal, lançado para combater as consequências da Grande Depressão de 1929, que estava sendo barrado pela maioria conservadora.

Propôs ao Congresso, em 1937, lei aumentando a composição da corte para 15 juízes, e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para quem superasse a idade de 70 anos, quando o mandato, até hoje, é vitalício. A juíza Ruth Bader Ginsburg morreu no cargo aos 87 anos Em meio a uma crise institucional sem precedentes, a Suprema Corte mudou de posição devido ao juiz moderado Owen Roberts, cujo voto ficou conhecido como “the switch in time that saved nine” (“a mudança no tempo que salvou nove”, em tradução livre), e uma maioria a favor do “New Deal” foi formada.

Entre nós, no regime militar, através do Ato Institucional 2, de 1965, o presidente Castello Branco aumentou de 11 para 16 o número de ministros do STF, para controlar a maioria, considerada de esquerda pelos militares. Com o AI-5, três juízes foram aposentados – Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal – e dois renunciaram em protesto: ministros Antônio Gonçalves de Oliveira, presidente do tribunal, e Antônio Carlos Lafayette de Andrada.

Podendo nomear cinco novos ministro, Costa e Silva restabeleceu a composição da corte com 11 ministros, número vigente até hoje. O presidente Jair Bolsonaro já defendeu o aumento de cadeiras do Supremo de 11 para 21, alegando que a atual composição da Corte é muito esquerdista. Depois de desistir de manter uma guerra aberta com o Supremo, Bolsonaro não insistiu mais no golpe parlamentar, mas pretende nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para tentar reverter decisões como a lei do aborto, que é também um ponto central na campanha dos conservadores nos Estados Unidos.

O provável indicado é Jorge Oliveira, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Há outros conservadores na disputa, como o “terrivelmente evangélico” ministro da Justiça André Mendonça, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que tem se esforçado para se mostrar próximo a Bolsonaro, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Noronha.

Nos Estados Unidos, o presidente Trump indicou a juíza da Corte de Apelação de Chicago Amy Coney Barret, uma professora da Universidade de Notre Dame que já tem explicitado posições conservadoras em relação a temas polêmicos como aborto, imigrantes e posse de armas.

Com 48 anos, garantirá aos conservadores uma longa supremacia na Corte Suprema dos Estados Unidos.