Day: setembro 24, 2020
Merval Pereira: O teto é o limite
O cobertor curto orçamentário está causando apreensão entre os políticos (alérgicos a novos impostos), ao governo, que já tem tudo para lançar um novo programa social (menos dinheiro), e nos órgãos fiscalizadores, como o Tribunal de Contas da União (TCU), que ontem alertou que o quadro fiscal do país é “gravíssimo”, na definição do ministro Bruno Dantas.
O ministro Paulo Guedes está em busca de "tributos alternativos" para desonerar a folha de pagamentos das empresas e também encontrar “uma aterrissagem suave” do auxílio emergencial. É a maneira politicamente correta que Guedes encontrou para tentar a aprovação do imposto sobre transações digitais.
Quanto à desoneração da folha, a troca é bem-vinda e poderá ser a chave para um acordo no Congresso, pois barateará o custo das contratações, ajudando a reduzir a taxa de desempregados. "Queremos desonerar, queremos ajudar a buscar emprego, facilitar a criação de empregos, então vamos fazer um programa de substituição tributária", disse Guedes.
Mas, quanto ao substituto do auxílio emergencial, que o governo quer transformar em um programa de renda mínima de R$ 300, maior que o Bolsa-Família no valor e no alcance social, a conta não fecha. O teto de gastos não admite que novas receitas possam aumentar as limitações orçamentárias.
Só cortando custo, gastos a mais só com a definição de onde sairá o dinheiro novo para compensá-los. O ministro Bruno Dantas ontem foi claro: “O teto é fixo”. Ao analisar ontem uma prestação de contas da execução orçamentária e financeira do primeiro trimestre deste ano, os ministros ficaram impressionados com a previsão de que o déficit fiscal este ano deve ser da ordem de R$ 861 bilhões, maior do que a previsão oficial em julho.
Segundo o ministro Bruno Dantas, existe a sensação “em vários momentos” de que o Brasil está “à deriva”, e foi apoiado por todos quando afirmou que o governo precisa fazer um plano de saída da crise para “o curto e médio prazo”.
Com todas essas dificuldades, no decorrer das negociações sobre o pacto federativo, que é onde está embutido o Renda Cidadã, é possível que o debate sobre a possibilidade de mudança dos critérios do teto de gastos seja destravado. Há quem imagine que é possível fixar-se um novo teto, englobando o resultado de um novo imposto.
A proposta do relator do pacto federativo, senador Marcio Bittar, é acabar com as despesas obrigatórias para saúde e educação, permitindo que o orçamento seja mais flexível. É uma questão polêmica, que certamente causará debates polarizados, pois será preciso que, nessa conformação, o apoio político da saúde e da educação seja forte o suficiente para que não percam verbas orçamentárias. Como a visão é de que esse governo não tem apreço pelas duas áreas, vai ser difícil chegar a um acordo.
Para cortar gastos que sejam relevantes, só há uma saída: ou mexer na parte superior da pirâmide, que é onde estão os altos salários dos servidores públicos, ou cortar na base, atingindo a maioria, formada pelos que se procura atender com o novo programa social. A segunda opção já foi descartada pelo presidente Bolsonaro, que alega não querer tirar dos pobres para dar para os paupérrimos.
O que ele quer mesmo é manter um programa social que dará o dobro do que hoje dá o Bolsa Família, e a mais gente, incluindo os cerca de dez milhões de “invisíveis” que foram descobertos agora na pandemia. É um projeto político que esbarra na dificuldade por que passa o país, mas que interessa também ao centrão, que assumiu o apoio ao Renda Cidadã. Como estamos em época eleitoral, o novo programa social não deve ser de efeito imediato, pois até dezembro está em vigor o auxílio emergencial de R$ 300.
El País: Volkswagen assina acordo milionário de reparação por colaborar com ditadura e abre precedente histórico
Em termo de ajuste com procuradores, empresa reconhece cumplicidade com os órgãos de repressão brasileira e destina 36,3 milhões de reais a ex-trabalhadores e iniciativas pró-memória
Stephanie Vendruscolo, El Pais
A Volkswagen do Brasil assinou nesta quarta-feira um acordo extrajudicial que abre um precedente histórico no campo da reparação às violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura brasileira (1964-1985). A montadora de origem alemã, cuja cumplicidade com a repressão nos anos de chumbo já havia sido apontada no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de 2014, assumiu o compromisso de destinar 36,3 milhões de reais tanto a ex-empregados presos, perseguidos ou torturados como a iniciativas de promoção de direitos humanos. Em troca, serão encerrados três inquéritos civis que cobram a empresa pela aliança com os militares assim como ficam vetadas novas proposições de ações.
É a primeira vez que uma companhia ―uma pessoa jurídica, e não física― admite reparar crimes durante a ditadura, o que abre um precedente jurídico para que outras empresas envolvidas com a repressão sejam investigadas. Ainda em 2014, o relatório final da CNV enumerou 53 empresas, tanto estrangeiras quanto nacionais e de portes variados, que contribuíram de alguma forma com a concretização do golpe de 1964. Entre elas estão Johnson & Johnson, Esso, Pirelli, Texaco, Pfizer e Souza Cruz.
Tecnicamente, a montadora assinou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), que foi negociado com representantes dos ministérios públicos Federal, Estadual e do Trabalho e está pendente de homologação pela Procuradoria Geral da República. “O ajuste de condutas estabelecido nesta data é inédito na história brasileira”, comemoram os procuradores em nota, frisando que, no mundo, ainda são raros os casos de empresas que aceitam analisar a sua colaboração com regimes autoritários. Pelo acordo, a Volks também deverá publicar em jornais de grande circulação uma declaração pública sobre sua cumplicidade com os órgãos de repressão. Todo o arranjo é um revés para o Governo Bolsonaro, que nega as violações cometidas no período e tem agido ativamente para desmontar estruturas oficiais ligadas à memória e à reparação.
O acordo da Volks é paradigmático num momento em que a Justiça brasileira segue dando passos lentos na direção da punição dos repressores e da compensação das vítimas da ditadura. O Brasil segue ignorando decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que há uma década decidiu que a Lei da Anistia, que impede a investigação e a sanção a graves violações de direitos humanos, deve ser invalidada. Nesta segunda-feira, o mecanismo voltou a ser evocado, desta vez pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que decidiu interromper a tramitação da ação penal contra cinco militares pela morte do ex-deputado Rubens Paiva em 1971. Ou seja, por ora, o crime contra o parlamentar, cujo corpo até hoje não foi localizado, continuará sem julgamento.
Da CNV às ações de reparação
A elucidação do papel da Volks durante a ditadura militar vinha caminhando desde a divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em 2014. Na época, a empresa encomendou um parecer próprio, produzido pelo historiador Christopher Kopper, professor da Universidade de Bielefeld (na Alemanha) sobre o tema. O documento divulgado pela própria companhia em 2017 reconhece a colaboração entre a segurança industrial da fábrica brasileira e a polícia política do governo militar, que começou em 1969 e se estendeu até 1979.
Diversos ex-empregados afirmam que durante a ditadura militar a empresa forneceu aos órgãos policiais informações sobre os funcionários e permitiu, dentro de sua própria fábrica, prisões sem ordem judicial e tortura policial. Lúcio Bellentani foi uma das vítimas desta parceria que foi mantida em segredo por décadas. Em entrevista concedida ao EL PAÍS em 2017, o ferramenteiro, que trabalhou na montadora entre 1964 e 1972, disse que foi preso sem qualquer mandado judicial enquanto trabalhava. “Ali mesmo começaram as torturas. Comecei a ser espancado dentro da empresa, dentro do departamento pessoal da Volkswagen. Por policiais do DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] e na frente do chefe da segurança e dos outros seguranças da fábrica”, contou ele. Militante do Partido Comunista brasileiro, Bellentani foi detido porque os policiais queriam que ele indicasse quem eram seus companheiros que exerciam atividades sindicais ou políticas. Como ele, outros empregados passaram por situações parecidas, todas com o conhecimento e aval da montadora.
Ao longo das investigações apurou-se que houve cooperação dos funcionários da segurança interna da Volkswagen com os militares e que a empresa se beneficiou economicamente de medidas do período como o enfraquecimento dos benefícios trabalhistas. O reconhecimento de sua responsabilidade e conivência com violações de direitos humanos pela montadora é um primeiro passo para o direito à reparação histórica que as vítimas do período fazem jus.
Do montante total fixado no acordo assinado nesta quarta-feira, R$ 16,8 milhões serão doados à Associação Henrich Plagge, que congrega os trabalhadores da Volkswagen, e repartido entre os ex-funcionários que foram alvo de perseguições por suas orientações políticas. Outros R$10,5 milhões serão destinados ao reforço de políticas de Justiça de Transição, com projetos de preservação da memória das vítimas das violações de direitos humanos na época. A Volkswagen também pagará 9 milhões de reais aos Fundos Federal e Estadual de Defesa e Reparação de Direitos Difusos. Na nota divulgada, os procuradores cobram a Justiça que dê seguimento aos julgamentos de repressores e lamentam que o Brasil siga “como um caso notável de resistência à promoção ampla dessa agenda” de reparação. “Não por acaso ecoam manifestações de desapreço às suas instituições democráticas.”
Cristovam Buarque: Grande abraço na UnB
Em 2020, Brasília completa 35 anos da pioneira experiência de escolher reitor por consulta à comunidade, antes do Conselho Universitário formar a lista a ser enviada para nomeação pelo presidente da República. Em outros países, a percepção da necessidade de autonomia acadêmica faz com que a escolha do reitor seja um processo que se esgota dentro da universidade. No Brasil, a lei exige a nomeação final pelo presidente da República.
Desde 1985, sete presidentes nomearam oito reitores por escolha da comunidade acadêmica. Todos os ministros da Educação e presidentes respeitaram o resultado dessa escolha, nomeando o primeiro da lista. Desses reitores, saíram propostas que hoje são praticadas em outras universidades, como a criação do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), o apoio à luta antirracista, por meio das cotas, a seleção dos alunos por exame no ensino médio, como fazemos, há 22 anos, pelo Programa de Avaliação Seriada (PAS), idealizado pelo reitor Lauro Morhy e implantado pelo reitor Cláudio Todorov.
Nesses últimos 35 anos, a UnB se expandiu, criou novos campi e tem dado contribuições na formação de milhares de profissionais e na criação de trabalhos científicos e culturais. A UnB tem estado presente na cidade, no Brasil e no mundo: foi nela que nasceu a Bolsa Escola que se expandiu e virou unanimidade em prática no mundo inteiro.
Sob a gestão da atual reitora, Márcia Abrahão Moura, a UnB conseguiu atravessar um dos períodos mais críticos da economia e da política brasileira; enfrentou cortes sistemáticos de verbas e ofensas lunáticas à comunidade por parte do ministro. Ela conseguiu atravessar tão bem que foi reeleita com maioria expressiva de votos, em primeiro turno. Os candidatos preteridos no pleito decidiram não incluir seus nomes na lista formal que irá ao MEC, para evitar que o governo passe por cima da escolha da comunidade, usando a desculpa de que eles também teriam disputado a eleição e recebido votos. Esta opção dos professores demonstra a seriedade deles e o respeito ao resultado do pleito.
Apesar disso, teme-se que, pela primeira vez em 35 anos, o governo federal escolha outro nome. Esse temor decorre das decisões recentes em relação a outras universidades, onde o presidente da República e o ministro rasgaram a vontade dos professores, alunos e funcionários.
Nossa comunidade tem razão em temer o gesto autoritário e obscurantista de não reconhecer a vontade da comunidade acadêmica. Se isso ocorrer, será um golpe não apenas na democracia, mas na qualidade dos trabalhos acadêmicos. Nada impede que uma pessoa escolhida por outros meios, até por um sorteio aleatório, venha a ser um bom presidente da República, governador e até reitor, mas a chance é muito remota. A história mostra também que a eleição direta pode eleger presidentes, governadores e reitores ruins, mas para isso a Constituição determina como substituí-los, com processo próprio da democracia. Não antes da posse. Sobretudo quando isso se faz golpeando a comunidade e sua prática consolidada de boas escolhas.
A eleição direta de reitores é uma necessidade do momento histórico que atravessamos: a consulta permite o debate interno sobre que tipo de universidade deve ser estruturada para o futuro; impede que o cargo do reitor volte a ser mais um na imensa lista dos que servem à voracidade de arranjos políticos eleitorais; assegura liberdade de opinião, estabilidade nas pesquisas; garante autonomia para pensar e pesquisar; não permite censura oficial, apesar da incontrolável violência sectária de milícias ideológicas. O reitor imposto faz o trabalho acadêmico fenecer no lugar de florescer.
A UnB e o sistema universitário brasileiro precisam da eleição de reitor, até que a própria comunidade acadêmica, em diálogo com a sociedade, formule outro critério. Por isso, todos nós brasilienses, começando por nossas bancadas na Câmara Legislativa, Câmara Federal e Senado, cada cidadão e cidadã, jovens ou velhos, ex-alunos, devemos nos unir em um grande abraço à nossa universidade, por sua autonomia, pelo respeito à vontade de sua comunidade. Não podemos deixar que volte à prática do período militar, em que o reitor era nomeado, o que nos deixou sob intervenção de um reitor militar por 17 anos. É hora de um grande abraço em nossa UnB pela nomeação imediata da reitora reeleita, a professora Márcia Abrahão Moura.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília