Day: julho 21, 2020

Bruno Patino: 'Estar conectado o tempo todo será tão absurdo quanto fumar num avião'

Em seu novo livro, o ensaísta retoma o tema da transição digital alertando para os riscos de viver com uma capacidade de atenção cada vez mais reduzida

Nove segundos: a isso ficou reduzida nossa capacidade de atenção. É o que sugere a tese desenvolvida por Bruno Patino (Courbevoie, França, 55 anos) em seu novo ensaio, La Civilisation du Poisson Rouge (“a civilização do peixe-vermelho”, inédito no Brasil), em que adverte para os perigos desse alarmante déficit de concentração, praga da sociedade moderna provocada pelos gigantes da Internet com sua perpétua difusão de links, imagens, likes, retuítes e outros estímulos para nosso sistema nervoso. “O modelo de negócio das plataformas se baseia na publicidade, e sua eficácia depende do tempo que o usuário passe nelas. As redes se tornaram predadoras do nosso tempo”, afirma Patino em uma entrevista por telefone. Os peixes vermelhos a que o título alude têm uma memória limitada a oito segundos. Os nativos digitais, segundo Patino, já ganham por apenas um segundo: a partir do décimo, seu cérebro se desconecta e começa a procurar “um novo sinal, um novo alerta, outra recomendação”.

Patino, filho de pai boliviano e mãe francesa, cresceu num lar bilíngue onde não havia televisão. Isso não impediu que esse reconhecido gestor, que em junho foi nomeado presidente do canal de TV franco-alemão Arte, tenha um dos currículos mais destacados na paisagem midiática do seu país. Diretor editorial do Arte desde 2015, Patino se encarregou da transição digital do Le Monde na década passada, antes de dirigir a rádio France Culture e de ser nomeado chefe de programação e desenvolvimento digital dos canais da televisão pública francesa. Tendo vivido de perto os efeitos dessa transformação, Patino examina as consequências de uma perda de atenção que, em escala individual, considera “patológica”. “Milhões de pessoas, entre as quais me incluo, já são incapazes de se desconectarem, de deixar de lado a tela 24 horas. Nós nos tornamos dependentes e inclusive viciados”, afirma.

Em um nível coletivo, lhe parece ainda pior: provocou “uma polarização do debate social e um espaço público totalmente dominado pelas emoções”. Longe ficou aquela rede igualitária a que muitos aspiraram nos anos noventa, aquela “anarquia positiva” em que o próprio Patino acreditou com convicção. “Chegou o tempo das lamentações”, admite no começo do livro. Quando aquela utopia digital começou a dar errado? “No momento em que a economia se convidou para a festa. Simples assim…”, responde o autor, que cita o surrado adágio de Bill Clinton ―“É a economia, estúpido”― na epígrafe do seu ensaio. “Somos corresponsáveis pelo que está nos acontecendo, porque nos colocamos voluntariamente neste aquário. Mas a responsabilidade do Facebook e dos outros gigantes é ainda maior, por utilizar ferramentas que manipulam nossas emoções”, pontua Patino.

Mesmo assim, o ensaísta considera que há margem para esperança. “A resistência continua sendo possível, embora já não baste a autorregulação e a autodisciplina. É preciso criar momentos e lugares livres de conexão”, adverte o autor, propondo “uma mobilização social e política” que termine originando uma legislação específica. “No futuro, deixará de ser aceito consultar o celular numa reunião profissional, em uma refeição familiar ou no cinema. Estar conectado o tempo todo nos parecerá tão absurdo quanto fumar num avião”, prognostica Patino. O autor observa que toda inovação tecnológica sempre é sucedida por uma regulação mais ou menos rigorosa. “Depois da invenção da imprensa, levou-se entre 50 e 60 anos até surgir a noção de responsabilidade editorial e deixarem de serem publicados panfletos difamatórios, um precedente das atuais fake news. Regular a rádio levou 25 anos, e a televisão, 15”, recorda. No caso da Internet, prognostica que o problema será resolvido “em uns dez anos, cinco para tomar consciência do problema, e outros cinco para agir”.

Patino assume a liderança do Arte em plena fase de expansão. Entre 2011 e 2019, a audiência do canal, até recentemente visto como elitista e ultraminoritária, passou de 1,5 para 2,6 milhões de espectadores. Há noites em que beira ou supera 10% de share graças a uma combinação de documentários de produção própria, estreias cinematográficas e séries de qualidade, como Borgen e Top of The Lake, que representam uma alternativa ao modelo imposto pela Netflix. Em 2021, o Arte lançará a estreia televisiva do dueto formado por Éric Toledano e Olivier Nakache (Intocável), que leva a série Sessão de Terapia para o contexto das sequelas psicológicas pelos atentados terroristas de 2015 em Paris. “Há uma demanda latente por qualidade acessível, por meios de comunicação que apostem na inteligência do espectador sem renunciar a alcançar um público maciço”, opina Patino.

Outra chave será a expansão digital, que no caso do Arte é considerável. Entre 2018 e 2019, o tráfego no seu site, onde muitos conteúdos podem ser vistos uma semana antes de entrarem na grade, e até várias semanas depois, aumentou mais de 70%, especialmente entre os usuários de 15 a 34 anos. “O posicionamento editorial tem que continuar sendo o mesmo, mas deve se tornar cada vez mais europeu quanto à identidade e distribuição”, disse o novo presidente de um canal que, além de transmitir em francês e alemão, já propõe uma pequena parte de sua programação on-line em inglês, italiano, polonês e espanhol. A ideia de Patino é que seja cada vez menos minoritária. 


Merval Pereira: Desmascarado

Desembargador que tentou humilhar o guarda civil cometeu de uma vez só todos os abusos que demonstram sua postura patética, típica do ‘sabe com que está falando?’

A pandemia da Covid-19 está deixando exposta a enorme desigualdade que perpassa a sociedade brasileira, e estimulando comportamentos execráveis como o do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo de sobrenome quatrocentão Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira, que humilhou um agente da Guarda Civil de Santos por se recusar a usar máscara.

Vários casos como esse têm acontecido nos últimos dias, revelando que a época anacrônica do “você sabe com quem está falando? ” continua prevalecendo na triste pós-modernidade brasileira. Devemos ao sociólogo Roberto Da Matta em seu livro “Carnavais, malandros e heróis” a dissecação dessa frase emblemática, que define nossa sociedade até hoje.

Diante dos casos recentes, como o daquela senhora que respondeu a um fiscal que seu marido não era cidadão, mas “engenheiro civil, melhor que você”, Roberto da Matta confirma sinais de que a cultura brasileira “tem alergia à igualdade, e a máscara iguala as pessoas”.

Uma pessoa que considera ofensivo ser chamada de “cidadão” mostra bem em que ponto estamos no nosso desenvolvimento como sociedade. A senhora em questão disse que sentiu um tom de ironia na voz do guarda, quando a intenção era mostrar respeito mas, ao mesmo tempo, definir a limitação do indivíduo no convívio social.

No Brasil, analisa Roberto da Matta, você vive como pessoa pública mesmo quando está na fila do banco. Ou você se considera merecedor de furar a fila, ou o gerente, reconhecendo-o, lhe chama. O anonimato da rua, que deveria reger nossas relações sociais, é superado pelo “sabe com quem está falando ?”, e a máscara dá uma sensação de igualdade que incomoda os acostumados a uma relação de subordinação, hierarquizada.

Há outras interpretações relacionadas à recusa do uso da máscara, que se encaixam bem no perfil do presidente Bolsonaro, um dos primeiros a reagir contra a obrigatoriedade do uso da máscara, dando péssimo exemplo de comportamento social.

Quando disse que deveríamos enfrentar a pandemia “como homens”, Bolsonaro estava confirmando uma dessas interpretações, que indicam que psicologicamente os que se recusam a usar máscara a consideram um sinal de fraqueza, sem levar em conta que a pandemia não escolhe vítimas. São acintosamente egoístas.

Afinal, o uso de máscaras protege quem a usa, mas, sobretudo, os que estiverem em seu entorno. A maior prova de que o uso da máscara previne a Covid-19, o que, de resto, já está comprovado por diversas pesquisas científicas, é o número de funcionários do Palácio do Planalto que foram contaminados.

Nada menos que 128 servidores foram diagnosticados com a Covid-19, sendo que 36 estão afastados no momento, depois que o presidente foi diagnosticado com a doença contagiosa. Também ontem o novo ministro da Educação, Milton Ribeiro, anunciou que testou positivo para a Covid-19, sendo o quarto ministro a ser infectado.

O desembargador que tentou humilhar o guarda civil e agora está sendo investigado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) cometeu de uma vez só todos os abusos que demonstram sua postura patética típica do "sabe com quem está falando?”. Citou o nome do secretário de segurança de Santos, Sérgio Del Bel e telefonou para ele para demonstrar intimidade. Chamou o guarda de analfabeto. Falou ridiculamente em francês para mostrar-se superior ao guarda.

O secretário Del Bel atendeu a chamada, mas, diante do acontecido, disse que não conhece o desembargador. Esse é outro detalhe que denota a hierarquização da nossa sociedade. O secretário de Segurança atendeu porque sabe que quem tem seu celular deve ser importante. Se fosse um cidadão qualquer que tivesse descoberto o número do celular, a conversa não demoraria um segundo.


Luiz Carlos Azedo: Quem salva é o professor

“O governo queria tungar o novo Fundeb. Diante da reação de prefeitos e governadores, os deputados do Centrão, com quem o governo contava, refugaram a proposta de reduzir o Fundeb”

Antes de se tornar romancista, o escritor Daniel Pennac foi professor de francês no ensino fundamental e médio de escolas públicas. Quando criança e adolescente, porém, foi o que os franceses chamam de “cancre”: um aluno lerdo, com dificuldades de aprendizagem e desempenho sofrível. No best-seller Diário de escola (Rocco), vencedor do Prêmio Renaudot — uma de suas 30 obras, para todas as idades —, ele conta como o mau aluno virou professor, pedagogo e escritor. A raiz de seu problema não era a falta de escola nem de professores na França, como acontece em muitos lugares aqui no Brasil. Era o medo. “A reação dos adultos é sempre a mesma: eles também têm medo. Têm medo de que seus filhos nunca tenham sucesso. Os professores também têm medo. Têm medo de serem maus professores. Tudo isso tem a ver com a solidão. Solidão da criança, do professor, dos pais. O que é preciso fazer é acabar com essa solidão. Pedagogicamente, como se acaba com a solidão? Criando projetos em comum, onde todos estão envolvidos.”

Pennac conta que foi salvo pelo professor de Francês, para quem mentia muito, porque nunca fazia os deveres. “Ele me disse: ‘muito bem, vejo que você tem muita imaginação. Então, em vez de utilizar sua imaginação para fabricar mentiras, escreva um romance. Você vai me entregar 10 páginas por semana. Não vou mais te dar redações para fazer ou lições para aprender. Você vai apenas fazer esse romance para mim: 10 páginas por semana.’ Isso me salvou. Esse professor foi capaz de transformar um aluno passivo em um aluno ativo, um aluno que escreve um romance”.

Para o escritor, existem três tipos de pessoas: os guardiões do templo, que veem o saber como propriedade privada e tentam monopolizá-lo, porque outros não são dignos dele; os que não ligam para nada, ou seja, preferem se manter alienados e indiferentes; e os “passeurs”, pessoas que levam em consideração a sua cultura, sabendo que ela não lhe pertence e pode fazer a felicidade dos outros. “Se eu te levo para assistir a um filme do qual eu gostei e você também gosta, lhe farei feliz. Ser ‘passeur’ é isso. Tudo que vocês sabem não pertence a vocês. Não é sua propriedade. O conhecimento não faz mais do que passar através de você”. Seu conselho aos alunos é simples: “Não tenham medo, sejam curiosos. A curiosidade é realmente um remédio contra o medo. Sejam curiosos acima de tudo. ‘Sim, mas a realidade me dá medo…’ Se a realidade lhe amedronta, fotografe-a. Abra-se, seja curioso, não se feche”.

Lógica perversa
Lembrei-me de Daniel Pennac, que escreveu seu romance O ditador e a cama de rede (Asa Editora) quando morou no Ceará, por causa da queda de braço entre o governo Bolsonaro e a Câmara sobre a votação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), prevista para hoje. O pomo da discórdia é a destinação de recursos para o pagamento de professores, que hoje formam uma das categorias profissionais mais desprestigiadas, desrespeitadas e mal-remuneradas do país, embora tenha a missão de resgatar as crianças pobres do Brasil da ignorância e da exclusão já na largada.

O relatório da deputada federal Professora Dorinha (DEM-TO) torna o Fundeb permanente, amplia a complementação da União dos atuais 10% para 20% e altera o formato de distribuição dos novos recursos. No fim de semana, porém, o governo Bolsonaro — que se omitiu durante toda a tramitação da PEC — encaminhou a alguns líderes uma proposta alternativa: usar 5% do fundo para programas de transferência de renda, já que o Renda Brasil deverá substituir o Bolsa Família. De onde sairia o dinheiro? Do pagamento dos professores, é claro. O texto em análise na Câmara aumenta de 60% para 70% o piso de recursos do Fundeb para o pagamento de salários da categoria. A contraproposta do governo, porém, estabelecia um teto de 70% para a destinação de recursos do fundo para essa finalidade. Isso inviabilizaria o pagamento dos profissionais em várias redes estaduais e municipais, que já destinam percentual maior do que 70% para esse fim.

Na verdade, o Ministério da Educação se omitiu o tempo todo da discussão, o ex-ministro Abraham Weintraub, defenestrado depois de atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), nunca se preocupou com isso. Bolsonaro muito menos. No fim de semana, a equipe econômica entrou em campo para melar o projeto, porque o ministro da Economia, Paulo Guedes, preferia destinar recursos de uma política universalista e estruturante — educação básica de qualidade para todos — para “focalizar” o gasto social no novo programa de transferência de renda do governo, que mira a reeleição do presidente da República. Entretanto, faltou combinar com os beques. Diante da reação de prefeitos e governadores, os deputados do Centrão, com quem o governo contava para barrar a proposta, refugaram.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-quem-salva-e-o-professor/

El País: 'Para julgar Bolsonaro em Haia é preciso mostrar a intenção de crime contra a humanidade', diz Ocampo

Responsável por pedir a prisão de Kadafi quando comandou Haia, Luís Moreno Ocampo diz que para abrir investigação por genocídio é preciso provar “intenção” de destruir grupo ou população

Daniel Haidar, El País

O advogado argentino Luís Moreno Ocampo, primeiro promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, Holanda, avalia que seria preciso demonstrar que houve um plano de usar o coronavírus como ferramenta para exterminar toda ou parte da população para que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, seja investigado e julgado pela corte internacional que pune tiranos por crimes contra a humanidade. Bolsonaro já foi denunciado ao TPI em três queixas, por sua conduta no enfrentamento da pandemia do coronavírus. “A lei diz que crimes contra a humanidade pressupõem que tenha ocorrido uma política para cometer um ataque de larga escala ou sistemático. Precisa ter tido um plano”, explicou.

Ele evitou avaliar ações específicas de Bolsonaro, como o veto da lei que tornava obrigatório o uso de máscaras em locais públicos. De 2003, quando a corte entrou em funcionamento, a 2012, último ano de seu mandato, Ocampo conduziu investigações do TPI em sete países e pediu ordens de prisão, decretadas pela corte, contra Muamar al Kadafi, o ditador da Líbia morto em 2011, e Omar al-Bashir, o ditador do Sudão deposto e preso em 2019. De Malibu, na Califórnia, onde escreve um livro sobre sua atuação em Haia, ele conversou com o EL PAÍS.

Pergunta. Como o senhor observou o alerta feito pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, a Bolsonaro de que ele pode ser julgado por genocídio em Haia devido a sua conduta na pandemia do coronavírus?

Resposta. Não estamos prontos para entender exatamente como o mundo está reagindo e por que alguns países vão bem enquanto outros vão mal. Estamos aprendendo isso enquanto acontece. Sobre recorrer ao Tribunal Penal Internacional, a Corte exige que seja provada a intenção de cometer um crime contra a humanidade. Para ter um crime julgado em Haia, precisa ter sido demonstrada a intenção. Genocídio é provado pela intenção de destruir um grupo. Crimes contra a humanidade pressupõem uma política para conduzir um ataque contra a população. É preciso provar a intenção. A pandemia é uma oportunidade de pensar como devemos ajustar a arquitetura legal e de pensar como devemos usar a tecnologia para resolver esses problemas.

P. Como ficaria demonstrada a intenção de cometer um crime contra a humanidade?

R. A lei diz que crimes contra a humanidade pressupõem que tenha ocorrido uma política para cometer um ataque de larga escala ou sistemático. Precisa ter tido um plano. Isso precisa ser provado. É uma situação muito excepcional. Nem tudo pode ser resolvido pelo direito penal. Por isso pessoas votam. O Congresso pode remover líderes do poder. O controle pela lei penal é o último. Se tiver um plano de usar o coronavírus para exterminar populações, é diferente. É preciso provar um plano de exterminar a população. Não é suficiente negligência ou opinião pública divergente.

P. De que maneira esses planos foram provados em outros casos?

R. No caso de [Adolf] Eichmann[líder nazista julgado em Jerusalém pelo holocausto], foi necessário provar que houve uma reunião secreta para adotar a solução final [plano nazista de extermínio de judeus]. Na Argentina, quando condenamos os generais, revelamos os planos secretos deles. No caso de [Omar] al-Bashir, ele deu instruções oficiais para as Forças Armadas e protegeu os executores. Para abrir um processo criminal por genocídio dizendo que a pandemia foi usada como arma ou ferramenta, é preciso demonstrar que houve um plano nisso.

P. Isso precisa ser demonstrado mesmo para a abertura de uma investigação em Haia?

R. Os promotores do TPI precisam ter base razoável para acreditar que o genocídio ocorreu para começar uma investigação.

P. O que você achou dessa possibilidade de julgamento em Haia ter sido mencionada por um ministro da mais alta corte do Brasil?

R. O ministro soube atrair atenção para o problema. Marcou sua posição.

P. Como você avalia a ação de líderes que se igualam a Bolsonaro no trato da pandemia, como os do México, Nicaraguá, Bielo-Rússia e Turcomenistão?

R. Como promotor do TPI, monitorei líderes que cometeram crimes para ficar no poder, como Omar al-Bashir, e outros que não cometeram. Há diferenças. Desde o século XVIII aprendemos a preservar direitos em nível de Estados nacionais, mas agora no século XXI precisamos preservar os direitos de uma maneira que não estamos preparados. Celebramos inovações tecnológicas, mas faltam inovações em arquiteturas institucionais. A pandemia mostrou que precisamos dessas inovações. Não precisamos ser um Estado global, mas temos que aprender a usar tecnologias para melhorar o modo como cada pessoa se protege e como cada nível de autoridade possa fazer algo. Isso é novo. Não sabemos fazer isso. Pessoas acham que um líder vai resolver isso. Por isso, populistas ascendem ao poder.

P. Por que você acha que temos um arcabouço institucional tão fraco?

R. O voto não é suficiente para garantir direitos para todo mundo. Temos que continuar criando ferramentas para proteger pessoas. Ainda estamos vivendo no século 18. Temos que ajustar e melhorar instituições. Do contrário, pessoas vão recorrer a líderes autoritários. Os iPhones mudam a cada ano. Mas leva séculos para instituições mudarem. Em 1873, foi a primeira vez que propuseram a criação de uma corte penal internacional e isso levou 130 anos pra implementar. Há um desafio de como colocar novas tecnologias a serviço das pessoas e não dos governos. As tecnologias estão matando melhor e interferindo em eleições. Podemos colocar tecnologias a serviço das pessoas, incluindo dos mais pobres? Esse é o desafio.


Henrique Brandão: Os anos de 1960, nos EUA, pela lente do Harlem

Fui dormir tarde sábado. O motivo: resolvi “maratonar” a série “Godfather of Harlem”, em exibição na Fox Premium. Ontem, a Patricia Kogut ocupou o espaço de sua coluna para falar justamente dela. A série está disponível no Now, no canal da Fox Premium, e tem dez capítulos.

Não foi por acaso que a crítica de TV de O Globo dedicou generoso espaço à série. “Godfather of Harlem” (em tradução livre, “O Padrinho do Harlem”, mas, após o filme de Francis Ford Copolla, “The Godfather”, talvez seja mais apropriado traduzi-la para “O Poderoso Chefão do Harlem”), é uma série que vale cada minuto na frente da telinha (a partir de agora tem spoiler).

“Godfather of Harlem” conta a história de Bumpy Johnson que, em 1963, após sair da prisão, volta a Nova York e a seu bairro, Harlem, onde era o rei das ruas. O cenário que encontra, no entanto, é outro bem diferente de onze anos atrás. Na sua ausência, a máfia italiana invadiu seus domínios. A heroína, droga que se disseminou no período, agora dominava as ruas. Para manter seus negócios, Johnson terá que lutar contra os antigos aliados italianos.

A série é baseada em fatos reais. Bumpy Johnson (1905-1968) existiu e muitos dos personagens da série também. É o caso, por exemplo, de Malcolm X (1925-1965), seu jovem colega de crimes nas ruas do bairro. Ao sair da prisão, Bumpy encontra o amigo já convertido ao islamismo e um destacado prócer do movimento negro, agora preocupado com o trabalho social junto aos drogados e empenhado na luta pelos direitos civis. A relação entre eles é contraditória, mas fraternal, e perpassa toda a série.

Como todo bom filme de “gangster”, o conflito na disputa por espaços no submundo do crime, que envolve tráfico, apostas e prostituição é o elemento principal da trama. Não tem mocinho. Bumpy, apesar de paternalista com os parceiros e moradores, quando necessário é brutal, assim como seus rivais. A diferença é que ele está em seu habitat natural, o Harlem, bairro ao norte de Manhattan, majoritariamente habitado por negros. Viveu, desde sempre, a desigualdade social, o racismo e a violência. Diante do cenário, conseguiu sobreviver e se impor, adotando o método dos adversários.

O contexto dos anos de 1960, com a explosão do movimento dos direitos civis, é o pano de fundo da trama. Além de Malcolm X, outros personagens reais são importantes na história, como Adam Clayton Power Jr. (1908-1972), um pastor batista que foi o primeiro descendente afro-americano a ser eleito para a Câmara Federal em NY (de 1945 a 1971, pelo Partido Democrata).

Além dos personagens baseados em pessoas reais, o uso do noticiário transmitido pela TV, aparelho que era relativamente recente nos lares e bares dos EUA naquele período, é um recurso que situa, a todo momento, a narrativa dentro do tempo histórico.

Está tudo lá. Até Cassius Clay (1942-2016), o jovem boxeador em luta pelo cinturão dos pesos-pesados que, por conta de sua conversão ao islamismo, mudaria depois o nome para Mohamed Ali. Suas conversas com Malcolm X são definidoras de sua trajetória e a interferência de Bumpy Johnson, blindando-o das pressões da máfia italiana, fundamental para garantir o título. Está lá também o teatro Apolo, ícone do Harlem, palco de shows de figuras importantes da música negra norte-americana daquele momento, como James Brown.

É interessante observar as nuances das posições políticas dos envolvidos na luta pelos direitos civis em relação à Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, gigantesca manifestação que tomou conta da capital norte-americana em 28 de agosto de 1963. Cada qual com seus motivos, tanto Malcolm X como Adam Clayton têm ressalvas ao papel de liderança exercido por Martin Luther King (um dos organizadores da Marcha, John Brown, à época um jovem de 25 anos, acabou de falecer no EUA, vítima de câncer, aos 80 anos).

A série assume explicitamente a tese de que a máfia é a responsável pelo assassinato de John Kennedy. Ao ver a cena pela TV do assassinado de Lee Oswald, executado dentro de uma delegacia, na frente de jornalistas e de vários policiais, que nada fazem para impedir o crime, Bumpy Johnson comenta que é evidente a participação da polícia, infiltrada até a alma pela máfia, na queima do arquivo.

Na sequência, Bumpy Johnson explica aos comparsas a ligação da máfia com os Kennedy, que começa pelo pai do presidente eleito, que enriqueceu como contrabandista. O pivô do rompimento da aliança entre os Kennedy e a máfia, que apoiou John na eleição, foi a atuação de seu irmão Bobby no cargo de Procurador Geral dos EUA (este depois também seria assassinado pela “Cosa Nostra” em plena campanha eleitoral para presidente).

Fora o imbricamento com os fatos reais, que acrescenta verossimilhança à narrativa, salta aos olhos o evidente capricho da produção, com uma reconstituição de época primorosa.

O elenco é cheio de feras. A começar por Forest Whitaker, no papel de Bumpy, como sempre dando show. Giancarlo Esposito dá vivacidade ao deputado Adam Clayton e Nigél Tatch, brilha na pele do Malcolm X (a semelhança física é impressionante). Vicente D’Onofrio se destaca na composição de um mafioso italiano rude e violento (Vicent Gigante). Paul Sorvino encarna o chefe da “Cosa Nostra”, Frank Costello. Chamam atenção também a bela Ifenesh Hadera, como Mayme Johnson, esposa de Bumpy, e Antoinette Crowe-Legacy, a filha do mandachuva do Harlem viciada em heroína.

Patricia Kogut indica duas outras séries para quem estiver interessado em saber mais daquela época efervescente dos EUA: “Bob Kennedy president” e “Quem matou Malcolm X”. Este último, seis episódios que desvendam os meandros da política do movimento negro islamita norte-americano, com todas as suas idiossincrasias. Elas realmente acrescentam informações relevantes. Juntaria a esta lista o último filme de Spike Lee.

O fim dos dez capítulos deixa claro que haverá uma continuação. A primeira temporada acaba com o presidente Kennedy assassinado e Malcolm X sendo punido pela organização muçulmana à qual pertence, Nação do Islã. No entanto, nos EUA dos anos de 1960, muita coisa ainda viria a acontecer, principalmente em se tratando do movimento pelos direitos civis. Se for tão boa quanto a temporada de estreia, a continuação, promete.

Não perca!!!


José Casado: Um oceano de cloroquina

Há suficiente para abastecer por 38 anos o mercado nacional

Já são mais de 80 mil mortos. É como se desaparecesse toda a população de uma cidade do tamanho de Três Rios (RJ), Ibiúna (SP), Viçosa (MG) ou Camboriú (SC).

Sem rumo na pandemia, o governo passou a pressionar estados e municípios. Quer impor cloroquina como tratamento do vírus. Sem base científica, não consegue justificar a transformação desse medicamento no motor de suas ações contra o vírus.

Expõe-se na coação de agentes públicos sob motivação política, em decisão moldada à campanha de reeleição de Bolsonaro. Enquanto isso, ele posa para fotografias levantando uma caixa do remédio como troféu. Fez isso no fim de semana nos jardins do Palácio da Alvorada.

Com a encenação tenta ocultar a inépcia administrativa que deve acabar na Justiça. Nela, Bolsonaro envolveu seus generais-ministros Fernando Azevedo (Defesa) e Eduardo Pazuello (interino na Saúde).

Entre abril e junho, o governo recebeu 2,5 milhões de comprimidos do Exército. Em um trimestre o laboratório militar fabricou remédio suficiente para consumo próprio por mais de uma década, considerada a escala de produção antes da pandemia.

Já havia encomendado 3 milhões de unidades à Farmanguinhos para o programa antimalária. Pediu mais 4 milhões para entrega neste mês. Ao mesmo tempo, recebeu outros 2 milhões doados pelos Estados Unidos a pedido de Bolsonaro, de acordo com a embaixada americana.

Somam 11,5 milhões de doses. É suficiente para abastecer por 38 anos o mercado nacional, onde se consomem 300 mil comprimidos por ano. O governo aderna, sem saber o que fazer, num oceano de cloroquina.

Manipulação da Ciência não é novidade na biografia do presidente. Era deputado, 50 meses atrás, quando comandou o lobby da fosfoetanolamina. A “pílula da cura do câncer” foi liberada por lei e sancionada por Dilma Rousseff, mesmo sem base científica. Acabou vetada pelo Supremo, a pedido de entidades médicas, por “risco grave à vida”. Com a cloroquina, Bolsonaro está indo além: arrasta o governo e o Exército numa obsessão que, talvez, Freud explique.