Day: abril 14, 2020

Bernardo Mello Franco: Mandetta devolveu a fritura ao colo de Bolsonaro

No início da semana passada, Jair Bolsonaro acordou invocado e resolveu demitir o ministro da Saúde em plena pandemia do coronavírus. Os generais do Planalto entraram em campo e convenceram o capitão a guardar a caneta. Luiz Henrique Mandetta também ensaiou um recuo e declarou que o chefe estava no comando.

A crise parecia ter esfriado, mas Bolsonaro não se emenda. O presidente tirou a Semana Santa para provocar o ministro. Na quinta-feira, foi à padaria e lanchou no balcão, desrespeitando um decreto local. Mais tarde, disse que “médico não abandona paciente, mas paciente pode trocar de médico”.

Na sexta, deu um pulo na farmácia, esfregou o nariz e apertou as mãos de populares. No sábado, foi a Goiás e voltou a confraternizar com eleitores. Tudo diante das câmeras, num teatro para desmoralizar Mandetta e debochar das medidas de isolamento.

No domingo de Páscoa, o ministro revidou. Em entrevista ao Fantástico, ele desafiou o presidente ao menos seis vezes. Reclamou das declarações contra a quarentena, condenou quem continua “entrando em padaria”, desmentiu a conversa de que o vírus está “começando a ir embora” e ironizou teorias conspiratórias que brotam dos subterrâneos do governo.

Num momento de pura maldade, Mandetta disse que ninguém no ministério pegou o coronavírus. O Planalto já teve mais de 20 infectados, e o capitão se recusa a mostrar seus exames. Para arrematar, o ministro passou o feriado com o governador de Goiás, Ronaldo Caiado. O homem do cavalo branco era bolsonarista desde criancinha, mas agora galopa ao lado da oposição.

Mandetta é profissional: jogado na frigideira, devolveu a fritura ao colo de Bolsonaro. O ministro sabe que está por um fio. Por isso, usou a entrevista para marcar posição e deixar claro que está sendo sabotado. Se for mesmo demitido, sai como mártir. Se ficar, vence mais um round no duelo com o chefe enciumado.

Para o presidente, as duas alternativas são indigestas. Mesmo que diga o contrário, ele sabe que o Brasil se aproxima do pico da epidemia. Se despachar o auxiliar agora, terá que responder sozinho pela tragédia anunciada.


Pedro Fernando Nery: O direito sem trabalho

O difícil equilíbrio entre buscar o melhor para os trabalhadores formais sem ampliar o desemprego é missão que persistirá ao fim da pandemia

O ministro Lewandowski revisitou ontem sua decisão da semana passada contrária à medida provisória do governo que pretendia salvar 8,5 milhões de empregos. O País chega assim à 6.ª regra sobre redução de salários desde o início da pandemia – ou desde 22 de março. No início, não podia (1). O governo editou então uma MP incompleta que provocou reações (2), e revogou a nova regra no mesmo dia (3). Depois editou a MP certa (4), mas o ministro do STF deu liminar restringindo (5). Ontem, voltou atrás (6). Na quinta-feira, o Supremo se reúne para decidir (7?). A controvérsia da redução da jornada e salários é mais uma a opor juristas e economistas, que enxergam no direito do trabalho o direito sem trabalho.

A MP em questão se aproxima do chamado lay-off, adotado em outros países na pandemia e prescrito pela própria Organização Internacional do Trabalho (OIT). A fim de preservar os empregos em um momento em que as receitas despencam, os empregadores poderiam propor a redução da jornada dos funcionários, ou mesmo suspender os contratos, com redução proporcional do salário. O governo, com o seguro-desemprego, reporia a renda dos trabalhadores, parcial ou totalmente (no caso dos menores salários).

O problema é que a Constituição consagra a irredutibilidade do salário: só pode reduzir salário com redução da jornada se for por negociação sindical, não individual. Aí começou a discussão. A regra se aplica em uma pandemia imprevista pelo constituinte, que impede a própria realização de assembleias? Ou cria-se se uma exceção, já que o vírus exige urgência e a mesma Constituição prescreve a “busca do pleno emprego”? Ainda, se o governo repõe a renda perdida, vale a proibição, que visava a proteger o trabalhador? Ou tanto faz se o governo paga ou não? E se o governo só repõe parte?

Lewandowski, sorteado relator, decidiu sozinho, aplicando um confuso meio-termo. Poderia sim haver a redução da jornada e dos salários por acordo individual, mas a negociação coletiva via sindicato deveria depois confirmar. Havendo silêncio, fica valendo. Criou-se então quatro cenários. A empresa e o trabalhador fazem o acordo: o sindicato pode topar, não topar, topar nos termos de nova negociação. Ou pode ainda topar exigindo uma “contribuição” da empresa.

A decisão foi mal recebida: a insegurança jurídica, e o medo de exigência de contribuições extorsivas a depender do sindicato, levaria parte dos empregadores a simplesmente demitir. A Constituição proíbe a redução dos salários e jornada, mas não a redução a zero. O tal direito sem trabalho.

Além do trabalhador sacrificado pelo patrão, perderia o restante da sociedade, que contaria com uma recuperação do PIB mais lenta no pós-pandemia, com empregos destruídos e negócios desorganizados. O ministro se defendeu, e disse que queria proteger as minorias. Talvez imaginasse casos em que empresas em boas condições usariam o acordo para reduzir salários, em prejuízo de trabalhadores que na verdade não estariam correndo risco algum de demissão. Ontem, negou recurso do governo, mas mudou a decisão mesmo assim, dizendo que os acordos individuais valerão. O sindicato pode buscar um acordo melhor, mas não tem poder de vetar o acordo individual.

O difícil equilíbrio entre buscar o melhor para os trabalhadores formais sem ampliar o desemprego é missão que persistirá ao fim da pandemia. O dilema foi apresentado de forma polêmica em 2018 por Bolsonaro (“Trabalhadores querem menos direito e mais emprego”; “mais direito e menos emprego, ou menos direito e mais emprego”). Seu êmulo, Lula, fez colocações semelhantes no passado (“Tem companheiro que fala que não pode ter um contrato especial porque vai precarizar o jovem e torná-lo um trabalhador diferente. Mas trabalhador diferente ele já é sem trabalhar”).

A comunidade do direito do trabalho repudia essa lógica, e corre para dizer que níveis baixos de desemprego foram obtidos no passado com a mesma legislação e jurisprudência. O emprego com carteira, porém, nunca foi abundante para a mulher, o jovem, o negro, o nordestino, o trabalhador de baixa escolaridade. Por exemplo, no melhor período do mercado de trabalho em 2014, menos de 20% da força de trabalho tinha carteira assinada no Maranhão ou no Piauí!

Para além da pandemia, parte importante da reforma trabalhista de 2017 ainda seria julgada pelo STF no mês que vem. Outras inovações podem vir. Continuará na agenda do tribunal decidir por um direito do trabalho ou o direito sem trabalho.

*Doutor em economia


Andrea Jubé: CPMI mira epidemia de ‘fake news’

Comissão tentará votar quebras de sigilo remotamente

A afirmação do presidente Jair Bolsonaro no domingo de que “está começando a ir embora a questão do vírus” não tem base científica e esbarra na realidade e nos números. Naquele mesmo dia, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que tem feito o contraponto técnico ao chefe do Executivo, advertiu que “maio e junho serão os meses mais duros”.

Mandetta baseia-se nos números, que são implacáveis e desafiam Bolsonaro porque os novos casos e as novas mortes não arrefecem. O balanço divulgado ontem pelo Ministério da Saúde apontou 23.430 casos confirmados e 1.328 mortes. A taxa de letalidade da covid-19 subiu de 5,5% para 5,7%. Em 24 horas, foram 105 novas mortes de brasileiros, um acréscimo de quase 10%.

O presidente da CPMI que investiga a máquina de disseminação de notícias falsas, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), disse à coluna que Bolsonaro cometeu uma “fake news”. “Não é o que estamos vendo e ouvindo [que o vírus está indo embora], o que tem sido noticiado pela mídia, pelos governadores, prefeitos e pelo Ministério da Saúde. Ou será que governadores, prefeitos e o próprio ministério estão errados e só ele está certo?”

O presidente já incorreu em notícia enganosa. No começo do mês, Bolsonaro foi a público pedir desculpas pela divulgação de conteúdo falso em suas redes sobre desabastecimento de alimentos em Minas Gerais por causa do vírus. “Não houve checagem”, lamentou.
O agravante em meio ao enfrentamento da pandemia é que as notícias falsas crescem encadeadas com o aumento dos infectados. “As ‘fake news’ subiram mais do que o número de casos”, alertou Mandetta há uma semana.

Na semana passada, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), teve de desmentir nas redes sociais a notícia de que teria requisitado presidiários para monitorar a população nas ruas, em caso de violação do isolamento social. Na verdade, os detentos foram recrutados pelo governo para pintar faixas demarcando o distanciamento seguro dos usuários do transporte público nos pontos de ônibus.

No plano científico, uma notícia intensamente compartilhada ontem nas redes sociais afirmava que a Food and Drug Administration (FDA), agência americana reguladora de medicamentos, teria aprovado o uso da hidroxicloroquina no tratamento dos infectados pela covid-19 nos Estados Unidos. Na verdade, segundo a agência de checagem Aos Fatos, o órgão americano permitiu a utilização do medicamento em alguns casos de pacientes hospitalizados. O fato é especialmente preocupante porque Bolsonaro tornou-se um garoto-propaganda da substância no Brasil, apresentando-a como panaceia da crise.

As consequências do incremento das “fake news” sobre o coronavírus para a saúde dos brasileiros serão a expansão do número de infectados, associada ao risco de colapso da rede hospitalar pública e privada. No ano passado, o Ministério da Saúde verificou o impacto desse conteúdo falso sobre as campanhas de vacinação contra o sarampo e a poliomielite, doenças que haviam sido extintas no país.

É nesse cenário que a CPMI das Fake News abrirá uma linha de investigação para apurar a origem e o financiamento dos canais de propagação desse conteúdo. Pelo calendário original - e pela vontade do Planalto - a comissão encerraria hoje os trabalhos. Com a prorrogação, ela funcionará até outubro, fazendo as investigações coincidirem com as eleições municipais. Mas as reuniões estão suspensas há mais de um mês por causa da crise.

No dia 2, a artilharia do Planalto foi acionada para tentar garantir o arquivamento da CPMI, que tem como um dos alvos o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). O ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e os senadores Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e Eduardo Gomes (MDB-TO) dispararam telefonemas aos aliados e conseguiram retirar dez assinaturas favoráveis à continuidade da investigação. Mas Ângelo Coronel reagiu e obteve mais sete apoiamentos.

Para tentar dar fluxo aos trabalhos, o presidente do colegiado, Ângelo Coronel, aguarda resposta do presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), sobre a viabilidade do uso do sistema remoto para que a comissão possa votar requerimentos de quebras de sigilo fiscal e telefônico de pessoas e empresas investigadas. Isso daria celeridade ao trabalho dos técnicos enquanto os parlamentares não voltam a se reunir. Outro apelo é para que o prazo de funcionamento da comissão não seja contabilizado até a retomada presencial dos trabalhos.

O presidente da CPMI acredita que será possível avançar na investigação dos responsáveis pela propagação das “fake news” sobre o coronavírus da mesma forma que a comissão evoluiu na apuração do conteúdo falso sobre vacinas, que prejudicou as campanhas do Ministério da Saúde de imunização contra o sarampo e a poliomielite.

As informações são sigilosas, mas a CPMI já está de posse dos e-mails de criação e IPs relativos a dois canais do YouTube apontados como disseminadores de conteúdo falso sobre vacinas. A CPMI tem poder apenas investigativo, mas os dados serão enviados ao Ministério Público por meio do relatório final para que promova as respectivas ações penais para as punições cabíveis.

O senador tem sido perseguido na vida real e nas redes sociais. Uma pessoa residente em Belo Horizonte tornou-se réu em um processo depois de ter ameaçado de morte o senador por um e-mail anônimo. Uma fazenda do senador na Bahia foi invadida e depredada.

No plano virtual, o senador revela que um levantamento identificou a ação de robôs em ações coordenadas contra ele. “Tem textos que são iguais; é como se fosse um texto pronto e preparado para disseminação, é uma característica dos robôs, agindo quando querem depreciar um alvo”. Ele almeja, com a CPMI, exterminar os robôs e seus financiadores. “Quem paga por essas despesas [os robôs] merece ser punido exemplarmente”.


Hélio Schwartsman: A avó de todas as vacinas

Corrida em busca de uma vacina contra a Covid-19 é notável

Nossa melhor esperança para uma volta à normalidade é o desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19. Há uma verdadeira corrida mundial por um imunizante. Apenas três meses após a identificação da doença, surgiram vários candidatos a vacina, alguns dos quais já estão sendo ministrados a humanos para testar a segurança e a intensidade da resposta imune.

É um feito notável, considerando que avanços em pesquisas de novas vacinas costumam medir-se em anos, não em meses. Ainda assim, não temos nenhuma segurança de que poderemos contar logo com um imunizante, se é que o Sars-Cov-2 é um vírus “vacinizável”. Nem todos são. Um prazo muito repetido na imprensa é o de um ano e meio a dois anos para um produto que possa ser usado em escala comercial.

Enquanto isso, na blogosfera nerd norte-americana, já há quem cogite apelar para a variolação. Para os muitos leitores que não devem estar familiarizados com o termo, a variolação é o ancestral das vacinações. Historicamente, consistiu em inocular pessoas com uma dose baixa do vírus da varíola, o que normalmente produzia uma infecção branda, mas que ainda assim proporcionava imunidade.

Da China medieval à África do século 20, foi praticada em diferentes épocas em várias partes do mundo. Caiu em desuso depois que Edward Jenner desenvolveu a primeira vacina de verdade contra a doença, no final do século 18.

A ideia de inocular propositalmente o Sars-Cov-2 em voluntários parece hoje maluca, mas, dependendo de como a epidemia evoluir, poderá deixar de ser. Meu receio, se a proposta dos passaportes de imunidade —que, diga-se, faz todo o sentido— prosperar, é que gente vulnerável que precisa desesperadamente trabalhar adote uma forma selvagem de variolação, expondo-se ao vírus sem preocupar-se com a dose no contágio nem com o necessário isolamento posterior, o que só agravaria a situação.


Ranier Bragon: É correto chamar Bolsonaro só de irresponsável?

Como qualificar quem despreza a vida humana em nome da sobrevida política?

Se hoje o presidente da República batesse à porta das pessoas sugerindo estricnina para tratar cólicas, possivelmente não seria removido em uma camisa de força. Provavelmente surgiria aí um debate nacional. Especialistas de coisa nenhuma sairiam dos bueiros para adulá-lo, o bom senso se insurgiria, carreatas de novos e velhos ricos cafonas enfeariam as ruas e estaria instalada mais uma balbúrdia.

A atual pandemia já matou mais de 100 mil pessoas, com uma média subestimada de cerca de 100 mortos por dia no Brasil. Brincar com isso, desprezar isso, é só irresponsabilidade?

Entre um passeio e outro à padaria, Bolsonaro se insurge contra o mundo e busca sabotar o trabalho do ministro que se recusou a aderir ao batalhão dos paspalhos.

Em um caso que envolve vidas, muito mais de cem mil, você prefere estar ao lado da ciência, do bom senso, da razão ou ao lado da ala cafajeste do empresariado e de gente como o profeta Osmar Terra, que há alguns dias disse que a Covid-19 mataria menos gente do que a gripe sazonal do Rio Grande do Sul. Era uma aposta corajosa, que, em suas próprias palavras, poderia desmoralizá-lo por completo —e nesse ponto não podemos negar que ele estava coberto de razão.

Poupem-me da suposição de que Bolsonaro esteja preocupado com os miseráveis. Em toda a sua longa carreira política,só se lembrou de pobres para defender a sua esterilização em massa. O presidente nem esconde que seu real temor é ser culpado pela debacle econômica, levando seu governo, de vez, para o beleléu.

Não há, em um momento como esse, "ninguém em sã consciência preocupado com popularidade", assegurou nesta segunda (13) Sergio Moro, mestre em dizer pouco falando muito e em dizer muito não falando nada.

Embora também odeie artigos que deixam as perguntas no ar, transfiro ao leitor e à leitora a conclusão.É correto chamar Bolsonaro só de irresponsável? Como diziam e dizem colegas muito mais gabaritados do que eu, cartas à Redação.


Joel Pinheiro da Fonseca: Um presidente sem palavra

Um presidente irrelevante não merece tanta atenção da mídia

Um bom exemplo do poder das palavras de um líder veio do Reino Unido. Tendo se recuperado de um caso grave de Covid-19, o primeiro-ministro Boris Johnson gravou um depoimento oficial lapidar: demonstra empatia com os doentes, apoio e admiração aos profissionais de saúde, louva o sistema público de saúde do país e conclama a população ao esforço coletivo necessário para enfrentar a tragédia.

Independente do juízo maior que se possa fazer sobre o governo de Boris Johnson, foi uma fala digna de um líder nacional.

Ninguém cogita que algo similar possa vir de Bolsonaro. Não esperamos do presidente nenhum sentimento nobre, nenhuma inspiração coletiva, nada que acene para a união e para valores nacionais. Dele não sai nada além de provocações baratas e brigas políticas de absoluta mesquinhez.

Elas também não indicam o rumo que o governo tomará. Até o momento em que escrevo esta coluna, Luiz Henrique Mandetta continua ministro da Saúde, mesmo depois de dar uma entrevista ao Fantástico em que disse com todas as letras que ele e o presidente divergem na estratégia. Que ele continue ministro só demonstra o quão frouxo é Bolsonaro no campo da ação.

Fala que o isolamento social é desastroso para o Brasil e mesmo assim não troca o ministro que promove o isolamento. Bolsonaro torna-se cúmplice daquilo que suas palavras condenam. Ladra, mas não morde.

Tampouco esperamos a verdade das palavras dele. Quando Bolsonaro disse em 9 de março que tinha “provas” de que as eleições de 2018 foram fraudadas, ninguém acreditou —nem mesmo seus apoiadores e fãs. Era óbvio que ele não tinha prova nenhuma; era só mais um blefe, mais uma mentira contada para chacoalhar as águas do debate público e ser esquecida no dia seguinte, quando novas provocações aparecessem.

Assim como a emissão descontrolada de moeda corrói seu valor, o palavrório inconsequente de Bolsonaro deprecia a palavra presidencial. Durante uma hiperinflação, as pessoas param de aceitar pagamentos em dinheiro. É hora de tratar as palavras do presidente da mesma maneira: como elas de nada valem, também não devem ser levadas a sério ou receber o destaque da imprensa.

Como todo mundo que passou pelos anos de colégio deve ter aprendido, uma provocação só tem poder na medida em que damos importância a ela. Bolsonaro ir a pé à farmácia ou à padaria nada mais é do que uma provocação barata de um presidente que carece da coragem para fazer valer suas palavras na condução do governo.

Essa e outras pirraças presidenciais (e dos filhos) são objetivamente irrelevantes para o país, e só adquirem centralidade na medida em que reagimos a elas.

Tornar as suas gracinhas o centro diário do debate público é conceder-lhe uma importância que não tem. O presidente não manda mais no país. Comporta-se como uma criança birrenta que tenta atrapalhar o trabalho dos adultos.

Na medida em que seu choro desvia nossa atenção, ele é bem sucedido. Está desacreditado, mente sem parar, e busca gerar barulho para que não nos demos conta do óbvio: na maior crise de seu governo (a primeira não causada por ele), Bolsonaro é irrelevante. Tratemo-lo como tal. Neste momento, não merece mais do que a notinha no pé da página.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.


Luiz Carlos Azedo: Uma crise instalada

”A queda na arrecadação é tratada por Bolsonaro como uma espécie de castigo aos governadores que estão defendendo o isolamento social”

O choque entre o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é a face mais visível de uma crise de maiores proporções entre a União e os estados, numa recidiva da velha contradição centralização versus descentralização. A epidemia de coronavírus e a recessão mundial dela decorrente exacerbaram o conflito, que se manifesta na discussão sobre aprovação do chamado Plano Mansueto, ou seja, a ajuda a estados e municípios. Bolsonaro está em litígio aberto com os governadores e prefeitos que estão na linha de frente do combate à epidemia de coronavírus e não esconde o incômodo com o alinhamento entre eles e o ministro Mandetta.

Uma decisão de Bolsonaro é emblemática quanto às dificuldades que cria para os governadores na implementação da estratégia de distanciamento social adotada pelo Ministério da Saúde para conter a velocidade da epidemia. No fim de março, as operadoras de telecomunicações ofereceram ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) um mapa de calor para mostrar a geolocalização da população. O intuito era identificar aglomerações e situações de risco de contaminação do novo coronavírus. Bolsonaro vetou o uso das informações, que seria mais uma arma no combate à Covid-19, pois o georreferenciamento permite a pronta atuação das autoridades locais para reduzir essas aglomerações.

O ministro Marcos Pontes chegou a gravar um vídeo anunciando a implantação do sistema nesta semana. No sábado, porém, Bolsonaro ligou para Pontes e suspendeu tudo. Alegou que há riscos para a privacidade do cidadão e que a Presidência precisa estudar melhor o tema, apesar de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) aprovar o uso da ferramenta proposta pelas teles, uma solução semelhante à que foi adotada pela Coreia do Sul, um dos países com menores taxas de mortalidade pela Covid-19.

A decisão de Bolsonaro tem endereço certo: o governador tucano João Doria, que está controlando o nível de isolamento social no estado de São Paulo pelo monitoramento dos celulares. Para se ter uma ideia de como isso é útil, a diferença de 50% para 70% da população em regime de distanciamento social, para efeito da propagação da epidemia por pessoa, salta de uma média de dois para quatro novos contaminados, ou seja, um crescimento exponencial.

Nada disso importa. A tese que empolga Bolsonaro é a do ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, para quem a epidemia já atingiu o seu pico e entrará em declínio, acabando em maio, o que não bate com os modelos matemáticos da equipe do Ministério da Saúde. Segundo Terra, que é médico, o isolamento social não tem eficácia e apenas aprofunda a recessão, além de retardar a autoimunização da maioria da população. A tese também está sendo endossada pelo líder do governo na Câmara, deputado Victor Hugo (PSL-GO), que vem defendendo abertamente a saída de Mandetta do governo. Ontem, Mandetta não falou com a imprensa. Sua permanência no governo é incerta.

Ajudas
A estrela da entrevista de ontem no Palácio do Planalto foi a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, que anunciou medidas destinadas a proteger grupos de risco, como indígenas, quilombolas, ciganos, moradores de rua e idosos em asilos. Damares também contrariou a orientação do Ministério da Saúde e defendeu o chamado isolamento vertical, ou seletivo, focado nesses grupos. Na ocasião, anunciou a distribuição de cestas básicas e o confinamento de tribos indígenas, quilombolas e acampamentos ciganos, além de uma rede de proteção aos moradores de rua e outras populações de risco, formada por instituições filantrópicas e religiosas.

Mas o maior conflito é mesmo a negociação do Plano Mansueto. O ministro da Economia, Paulo Guedes, convenceu Bolsonaro a não ceder a governadores e prefeitos, que pedem socorro financeiro em razão da queda da arrecadação. Eles são responsabilizados pela recessão e o desemprego. A queda na arrecadação é tratada por Bolsonaro como uma espécie de castigo aos governadores que estão defendendo o isolamento social.

As negociações entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e os líderes partidários com o governo, nos últimos dias, foram muito tensas. Guedes foi duro: “O desenho deste projeto é muito perigoso, é um cheque em branco para governadores e prefeitos fazerem uma gestão descuidada, levando todo ônus para o contribuinte, justamente no momento em que mais precisamos da boa gestão para proteger os mais vulneráveis”, declarou.

Rodrigo Maia, entretanto, articulou mudanças no projeto para garantir a aprovação da nova versão do chamado Plano Mansueto, que foi limitada à instituição de um seguro-garantia de arrecadação para estados e municípios, com impacto estimado de R$ 80 bilhões. “A posição que ouvi majoritária entre os líderes é que nós façamos como se fosse um seguro. Se arrecadação era 100 e caiu pra 70, o governo recompõe 30. Se daqui a quatro meses a arrecadação era 100 e foi 100 (novamente), o governo não precisa dar um real”, afirmou Maia.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-uma-crise-instalada/


Rubens Barbosa: O Brasil depois da covid-19

Sociedade civil deveria começar a discutir estratégias internas e externas de médio prazo

Como é natural, a quase totalidade das análises e dos comentários na imprensa falada, escrita, nas TVs e na mídia social se concentra hoje nos grandes desafios internos para superar a crise provocada pelo coronavírus. Depois de a pandemia passar, o Brasil e o mundo serão outros.

Do ângulo interno, os desafios econômico-financeiros, sociais, de logística, de modernização do Estado, do fim dos privilégios, da violência e da corrupção vão ter de ser enfrentados como nunca antes. O Brasil deverá ser reconstruído. O orçamento de guerra determinou despesas indispensáveis para atender aos trabalhadores formais e informais e as empresas afetadas pela quase paralisia da economia doméstica e global. Como tratar o déficit publico e fiscal? Como sair da recessão? Como gerar crescimento e reduzir as desigualdades e o desemprego? Como ficará o equilíbrio federativo? A sociedade brasileira vai ter de enfrentar um período de decisões profundas sobre as prioridades nacionais, as contas públicas, o funcionamento do Estado, a reativação da economia, a reindustrialização, enfim, essas e outras vulnerabilidades que, diante da crise, ficaram evidentes.

As incertezas são crescentes. Segundo os ministros de comércio exterior do G-20, a economia global em 2020 poderá reduzir-se em 5% ou 6% e o comércio externo, entre 5% e 30%. Como evoluirão a economia e o comércio internacional? Como as duas maiores potências globais, EUA e China, serão afetadas? Como evoluirá a governança global - ONU, OMC, BM, FMI e OMS, entre outros organismos? Como evoluirão a globalização e a dependência dos países e das empresas da capacidade industrial da China nas cadeias produtivas globais? A interdependência vai prevalecer ou as tendências e políticas nacionalistas e isolacionistas dominarão? Como ficará a disputa entre China e EUA pela hegemonia global no século 21? Como reagirão os países emergentes, potências médias, entre as quais se inclui o Brasil? Como os países enfrentarão a desigualdade entre as nações e dentro de seus territórios, cada vez mais uma ameaça à estabilidade política e econômica? Qual será, no mundo, o lugar desse Brasil que emergirá? Como as grandes transformações econômicas, comerciais e políticas afetarão os interesses nacionais? Como o Brasil se posicionará no contexto hemisférico e regional? Como o Brasil deveria reagir se a confrontação EUA-China continuar a se ampliar? Como o Brasil poderá contribuir para o fortalecimento da governança global? Como ficarão as políticas em relação ao meio ambiente e à mudança de clima em face da nova importância nas negociações comerciais, como Mercosul-União Europeia?

Levando em conta o peso da economia nacional, em especial no setor do agronegócio, e a necessidade de melhorar a competitividade do setor industrial e de serviços, com a tendência de descentralização da produção industrial da China, é provável que surjam oportunidades de investimento. Para isso - para competir com países em melhor posição, como Vietnã e outros asiáticos - os problemas internos políticos, econômicos e sociais deveriam ser rapidamente enfrentados para fortalecer a capacidade produtiva nacional. O Brasil vai depender de uma sólida base nacional para competir e para isso deverão ser adotadas medidas efetivas para reindustrialização e aumento da competitividade.

Controlada e superada a crise pandêmica, será importante ter uma visão estratégica de médio e longo prazos das perspectivas relativas à economia e à projeção externa do País. Todos os países vão estar afetados por crises em cascata. Como o Brasil poderá aproveitar as oportunidades e reduzir os riscos de modo a ter uma voz fortalecida no cenário internacional?

Não será fácil chegar a um consenso, pela polarização ideológica, pela divisão da sociedade brasileira e pela ausência de lideranças expressivas que possam inspirar essas discussões. O mundo não vai esperar pelo Brasil. A paralisia dos principais atores políticos e a falta de visão estratégica e de futuro levarão à marginalização e, mais uma vez, o País poderá perder uma oportunidade histórica para se afirmar como potência média a ser ouvida na defesa de seus interesses.

Em vista disso, a sociedade civil - empresários, trabalhadores, academia, junto com o Congresso, o Judiciário e o Executivo - deveria começar a discutir uma estratégia de médio prazo nas áreas interna e externa.

Pensando no Brasil em primeiro lugar e deixando de lado ideologias, os Ministérios da Economia, Agricultura, Itamaraty, SAE, Meio Ambiente e Infraestrutura, em especial, além da Escola Superior de Guerra, e os (poucos) think tanks existentes deveriam somar esforços e iniciar uma discussão com propostas e ações visando ao emprego e ao crescimento para serem postas em vigência em caráter emergencial no pós-pandemia. Um conselho gestor da reconstrução poderia ser criado para coordenar as “medidas de guerra”, que deverão ser tomadas - é bom lembrar - no período que antecede as eleições presidenciais de 2022.

O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e devemos agir como tal, tendo como objetivo, pelo menos, manter o País nessa categoria.

Desde já, mãos à obra!

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


Nabil Bonduki: Enfrentar o bolsonavírus será mais difícil do que vencer a Covid-19

Ao agir de maneira irresponsável, desrespeitando protocolos, Bolsonaro não está pregando no deserto

Uma mulher enfurecida invade a telinha, arranca o microfone do repórter Renato Peters, que estava ao vivo no SPTV (Rede Globo), e com uma agilidade impressionante consegue gritar em exatos três segundos, antes da imagem ser cortada: “A Globo é um lixo, o Bolsonaro tem razão”.

O incidente mostra a existência na sociedade brasileira um vírus ainda mais poderoso que a Covid-19: o “bolsonavírus”. Inicialmente invisível, permaneceu por muito tempo “dentro do armário”, onde cresceu vitaminado pelo preconceito, pelo obscurantismo religioso, pelo poder miliciano e pela sensação de insegurança.

Alimentou-se do desgaste e do elitismo da política institucional, da incapacidade da centro-direita liberal dialogar com as classes populares, das alianças e da convivência com a corrupção dos governos progressistas e do ativismo judicial seletivo que, em conluio com a mídia, desestruturou o sistema político brasileiro. Quando a internet se universalizou, a fake news se tornou um instrumento poderoso para a difusão dessa ideologia.

Considerado, até 2018, um “folclórico”, Jair Messias era a expressão política, quase única, desse “vírus”. Embora possa parecer que tem algum desvio mental, ele não é um transloucado. É o lider de um espectro ideológico que ganhou muitos adeptos.

Machistas, racistas e homofóbicos e negacionistas, mas também gente simples do povo que frequenta cultos na periferia, uma classe média conservadora e, às vezes, mal informada, agentes de segurança, defensores da pena de morte e até um empresariado um pouco selvagem. Virou uma doença crônica que, embora ainda não tenha contaminado majoritariamente o corpo social, ficou tão forte que é difícil contê-la.

Por isso não se deve menosprezar a força e a estratégia do presidente. Ao agir de maneira irresponsável, desrespeitando os protocolos recomendados pelo Ministério da Saúde e autoridades sanitárias, ele não está pregando no deserto. Ao contrário, apesar dos crimes que comete, tem o respaldo de um contingente expressivo da população.

Isso não só potencializa o risco da pandemia se transformar em um genocídio, como ameaça a democracia, o desenvolvimento científico, os direitos humanos, a tolerância e os valores civilizatórios que galgamos desde a Constituição de 1988.

Mesmo depois de afirmar que a Covid-19 era uma “gripinha”, de gerar aglomerações que contribuem, direta e indiretamente, para a propagação do vírus, e de atacar o isolamento social, universalmente considerado o principal instrumento para deter a propagação do coronavírus, a popularidade do presidente não caiu significativamente.

Segundo o Datafolha, 52% dos brasileiros acham que ele tem capacidade de liderar o país. Frente à sua inapetência em lidar com a crise sanitária e econômica, a enquete é assustadora. Seu desempenho na crise sanitária é considerado “ruim ou péssimo” para apenas 39% da população. A maioria, 58%, não o desaprova: 33% acha que ele faz “bom ou ótimo” trabalho e 25% considera “regular”.

Como interpretar esse expressivo apoio popular em um momento em que o presidente está politicamente isolado, em conflito com o ministro da Saúde, governadores e prefeitos, sem apoio do Congresso, limitado pelo STF, atacado por quase toda a mídia tradicional e pelos blogs alternativos e sofrendo uma oposição de amplo leque político da centro direita à esquerda, com panelaços diários?

A explicação está no fato dele expressar uma concepção que se enraizou em setores expressivos da sociedade, que lhe dá sólida sustentação. Uma visão que despreza, entre outros aspectos, o desenvolvimento científico e os direitos humanos.

As recomendações da Saúde estão respaldadas no conhecimento científico; no entanto, mais de um terço dos brasileiros não acreditam na ciência, como revelou a pesquisa global “Wellcome Global Monitor” da Gallup, publicada na revista Science em 2019.

Ela mostrou que o Brasil ocupa o 111º lugar no ranking dos países que mais confiam na ciência, entre as 144 nações incluídas. O levantamento revelou que 35% dos brasileiros desconfiam da ciência e que 23% acreditam que a produção científica não beneficia a sociedade.

Mais grave: metade dos brasileiros afirmaram que a “a ciência discorda da minha religião” e desses 75% (37,5% do total) disseram que “quando ciência e religião discordam, escolho a religião”.

Não por acaso, o apoio ao presidente é maior entre os evangélicos. Nesse segmento, o desempenho do presidente na crise sanitária é considerado “ótimo e bom” para 41% e “regular” para 29%, enquanto que 60% acha que ele tem condições de liderar o país.

Nas próximas semanas estaremos no pico da pandemia, mas está caindo, em várias cidades, o respeito ao isolamento social. Na 4ª feira, apenas 51% dos paulistanos ficaram em casa, quando o ideal seria 70%. Nas áreas mais periféricas o desrespeito é generalizado; nesse sábado, o comercio estava a toda e vários bailes funk ocorreram em espaços públicos.

A situação é de extrema gravidade. Por um lado, o presidente estimula a retomada das atividades e o fim do isolamento, influenciando tanto trabalhadores informais e micro empresários em dificuldades econômicas, como os já contaminados pelo bolsonavirus, que não acreditam na ciência e, portanto, nas recomendações sanitárias.

Por outro, os mais pobres e vulneráveis se veem obrigados a buscar alguma renda frente à demora e falta de coordenação governamental e federativa em apoiar uma população, cujas condições de vida, moradia e transporte são favoráveis à propagação do Covid 19, como mostrei nas minhas últimas colunas.

Existe uma estratégia sanitária para enfrentar o Covid 19 que, se fosse bem sucedida, poderia reduzir os danos e encurtar a quarentena. Mas se o “bolsonavírus” prevalecer, o sacrifício dos que se isolaram será em vão e uma catástrofe poderá acontecer.

Muitos dos que apoiaram Bolsonaro na eleições de 2018, mesmo sabendo o que ele representava, acharam que seria apenas uma “dorzinha de barriga”. Agora todos estão vendo que é muito mais do que isso. ​

*Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.