Day: março 23, 2020

Fernando Gabeira: Um vírus na era digital

Pensei num aplicativo que contivesse algumas variáveis, tais como febre, tosse, dificuldade respiratória

Depois de seis anos viajando, às vezes mais de mil quilômetros por semana, minha única aventura agora foi dar uma volta de bike pela Lagoa.

Ainda há poucas pessoas caminhando ou correndo. Um corredor usando máscara azul gritou para mim: “Cadê a máscara?” Tive vontade de voltar e mostrar para ele meu pequeno frasco de álcool gel. Mas evitei aproximações. Da Lagoa iria para o isolamento total.

No dia seguinte, vi a entrevista de vários membros do governo usando máscara. Lembrei-me do corredor da Lagoa. Ele a usava com naturalidade, parecia uma extensão natural do seu rosto.

Mas o governo, por seu lado, ao invés me dar a certeza de que estava brigando com o coronavírus, parecia estar brigando com a máscara. No centro da mesa, o grande timoneiro, irritado com o incômodo, acabou deixando a máscara pendurada na orelha, como um brinco. Quando falou que ainda não havia vacina, temi que acrescentasse um felizmente, porque terraplanistas acham vacina e rock and roll coisas do demônio.

Não vou me deter nos Bolsonaros. É perda de tempo. O Brasil não vai derrotar o vírus com panelaços. A família adora comprar briga para encobrir sua profunda incapacidade. Quando não a encontra aqui, não hesita em buscá-la na China.

Quando um ministro de máscara e tipoia anunciou que o governo iria ajudar o Nordeste, percebi que havia uma grande lacuna na mesa. Onde estava o homem encarregado da Ciência e Tecnologia? Na Lua?

Todas as esperanças de cura estão na Ciência. Mas a possibilidade de atenuar o impacto destrutivo do coronavírus está também na tecnologia. O Brasil tem 230 milhões de smartphones. Ao falar sobre isso na TV, fui contatado por uma empresa que trabalha no Porto Digital de Recife. Ela se chama Wololo e criou uma plataforma de rede verticalizada na qual algumas fontes passam informações úteis e necessárias e fazem de cada usuário um propagador. Isto deveria ser examinado pelo Ministério da Saúde, que vê aumentar em milhões as suas consultas.

Mas a ideia que mencionei na TV era outra. Pensei num aplicativo que contivesse algumas variáveis tais como a existência de febre, tosse, dificuldade respiratória, idade, doença crônica, através do qual fosse possível monitorar milhares de pessoas.

Na Coreia do Sul, quando se localiza um caso, através do GPS é possível monitorar também pessoas que estejam num raio de cem metros.

Soube que há discussões no Porto Digital sobre a produção de respiradores em 3D. Mas são propostas ainda muito ousadas. E sei também que os Estados Unidos estão deslocando todo o seu aparato de controle de terrorismo para buscar saídas tecnológicas de controle da pandemia.

Não tenho dúvida de que muitos problemas de privacidade vão surgir desse esforço. É preciso tratá-los com cuidado para não ameaçar as liberdades individuais.

As possibilidades de aumentar o controle da epidemia através dos smartphones são muito grandes. Imagine se for necessário determinar quarentena para pessoas que chegam do exterior. Como garantir que isso é realmente cumprido? O smartphone pode ser uma espécie de tornozeleira eletrônica do bem.

Sei que estou divagando meio solitariamente na minha reclusão voluntária. No entanto, os dois ministros que considero sensatos, Mandetta e o general Braga Netto, e tocam a crise poderiam estimular a sociedade a criar possibilidades de ajuda através de aplicativos e criar um núcleo no governo para receber propostas e fazer uma triagem.

Da mesma forma, Braga Netto poderia orientar o Itamaraty, perdido em batalhas ideológicas, a dar um informe sobre o que está sendo feito na Coreia do Sul, em Israel e nos Estados Unidos.

Ao lado do vetor científico, é preciso criar uma iniciativa tecnológica que não se esgota na telemedicina, que, por sinal, já deveria estar regulamentado há muito tempo.

Quando a Aids chegou ao Brasil, a ciência teve um papel decisivo e rumamos rapidamente para o coquetel antiviral e sua distribuição gratuita.

De novo, estamos diante de um grande desafio, mas, da Aids para cá, houve um grande salto tecnológico. Quando surgiu o primeiro paciente de Aids no Brasil, procurei o governo para dar o alarme. Fui tratado como um romântico sonhador. Não importa muito se o gato é maluco ou careta: o importante é que ele pegue o rato.


Armínio Fraga, Miguel Lago e Rudi Rocha: Prefeituras podem virar o jogo na crise coronavírus

Para evitar um caos hospitalar, a semana que se inicia é crucial. O governo federal, os estados e municípios precisam tomar medidas imediatas que possam achatar a curva de contágio

Na última sexta-feira (20/03), o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta declarou que o período de pico de infecções por covid-19 no Brasil será nos meses de abril, maio e junho. O ministro já admite que ao final de abril nosso sistema de saúde entrará em colapso. Esse cenário se apresenta como ainda mais severo que o vivido pelos italianos. Para evitar um caos hospitalar dessa magnitude, a semana que se inicia é crucial. O governo federal, os estados e municípios precisam tomar medidas imediatas que possam achatar a curva de contágio e organizar o fluxo de atendimento do sistema de saúde.

O impacto da covid-19 em nossos hospitais será tremendo. O Brasil já não tem capacidade hospitalar suficiente para atender o quadro sanitário existente. Persistem em nosso território os desertos sanitários: são ao todo cento e vinte três regiões sanitárias sem nenhum leito em UTI. O aumento de demanda por leitos ocasionado pelo coronavírus agrava essa situação e exigirá um aumento significativo da produção hospitalar. O Instituto de Estudos de Políticas de Saúde (IEPS) estima que cada um por cento de população infectada corresponderá a um bilhão de reais de gastos em hospitalizações adicionais em unidades de tratamento intensivo. Com a declaração do estado de calamidade, o Tesouro está livre para fazer este investimento, sem dúvida de alto retorno social e humanitário.

Existem outras e rápidas medidas que podem contribuir para limitar os danos da pandemia. No topo da lista está o distanciamento social. Evidências demonstram que tal medida é capaz de achatar a curva de contágio da epidemia, o que minimizaria o número de casos graves desatendidos.

No entanto, é ilusório acreditar que o terço mais pobre do Brasil, composto de pessoas que ganham menos de meio salário mínimo, deixará de circular nas cidades só com decretos impositivos, toques de recolher e outras medidas de vigilância. É necessário garantir um mínimo de assistência para compensar a extraordinária perda de renda causada pelo distanciamento social. E é necessário fazer isso já. O governo federal tem as condições de injetar recursos na economia ainda nesta semana, diretamente a mais de setenta milhões de brasileiros. O Brasil dispõe de uma base de dados organizada com informações que identificam esses indivíduos – o Cadastro Único, que lista beneficiários de todos os programas sociais focados nas famílias de baixa renda. Ao abarcar os indivíduos listados no Cadastro Único, sem necessidade de triagem adicional, o governo federal poderá evitar importantes custos e demoras de implementação.

Essas medidas de apoio socioeconômico contribuirão imediatamente ao controle do contágio. Mas elas não são suficientes: é fundamental que sejam complementadas com esforços na triagem e organização do atendimento hospitalar. Nesse sentido o SUS é fundamental, com sua rede de Atenção Básica resolutiva, cuja responsabilidade compete aos municípios. No momento, existe grande disparidade na capacidade de resposta por parte das prefeituras.

É fundamental que elas comecem a trabalhar de maneira coordenada, cumprindo um mínimo de repertório de ações. O IEPS preparou um check list de enfrentamento à covid-19 direcionado aos municípios, prevendo ações de rápida implementação em quatro dimensões essenciais. O protocolo indica como as prefeituras podem orientar suas ações a partir dos dados e evidências existentes; adaptar a organização dos serviços de saúde; fortalecer a prevenção através da comunicação com a população; e, por fim, reformular estratégias de gestão instaurando uma cadeia de comando e controle eficiente durante o período de crise. Não há tempo a perder: se quisermos evitar o total colapso do sistema hospitalar do país dentro de um mês, é necessário que governo federal e as prefeituras implementem essas ações esta semana.

*São respectivamente presidente do Conselho, diretor-executivo e diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.