Violência contra mulher: Historiadora diz que Estado brasileiro “mata” por omissão e desmonte de políticas públicas

Foto: Paulo Pinto / AGPT
Foto: Paulo Pinto / AGPT

Elza Correia analisa aumento de 2,5% no número de feminicídios no Brasil, de 2022 a 2023

Comunicação FAP

“O Estado brasileiro mata. O Estado brasileiro produz violência. O Estado brasileiro produz desrespeito”. A afirmação é da professora e historiadora Elza Correia, diretora-executiva da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23. Para ela, essa é a demonstração de que ainda está presente no Brasil um modelo patriarcal, o que, conforme acrescenta, reflete no aumento da violência de gênero no país.

O Atlas da Violência 2025, divulgado na última semana, revelou que, de 2022 a 2023, o número de homicídios femininos no Brasil registrou um crescimento de 2,5%. Esse aumento contraria a tendência geral de redução de homicídios observada no país desde 2018. Em média, dez mulheres foram mortas por dia no Brasil nesse período.

A taxa média nacional de homicídios femininos foi de 3,5 por 100 mil mulheres. No entanto, essa média esconde uma desigualdade significativa entre os estados. Roraima, por exemplo, registrou a taxa mais alta do país, com 10,4 mortes por 100 mil mulheres. O levantamento também aponta que a letalidade atinge de forma desproporcional mulheres negras. Em 2023, 68,2% das vítimas de homicídio feminino eram pretas ou pardas.

Além da violência letal, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, indicou um aumento na violência não letal contra mulheres. Em 2023, foram registrados 177.086 atendimentos a mulheres vítimas de violência doméstica. Esse número representa uma alta de 22,7% em comparação com o ano anterior. Em todas as faixas etárias, os agressores são homens. No total, 66,9% das vítimas relataram já ter sofrido violência doméstica anteriormente.

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Ausência absoluta

Na avaliação de Elza, o aumento de 2,5% nos homicídios femininos “representa a ausência absoluta do Estado brasileiro no compromisso de garantir direitos humanos para todos, inclusive para as mulheres”. Ela considera que esse cenário reflete uma “irresponsabilidade do Estado, que provoca violência e mata à medida que não produz políticas públicas que estimulem a cair esses índices de violência vergonhosos”.

Elza Correia | Foto: Divulgação
Elza Correia | Foto: Divulgação

Segundo Elza, apesar de serem fundamentais no combate à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio esbarram na falta de estruturas de apoio necessárias para que tenham mais eficácia. Ela diz que o insuficiente número de delegacias das mulheres, casas abrigo, varas especializadas e a ausência de centros de atendimento são um descaso às vítimas e repercutem nos altos índices de violência doméstica no país. “Sinto constrangimento e vergonha do Brasil não ter avançado na direção de diminuir esses índices, porque nós, do movimento de mulheres brasileiras, estamos trabalhando nesta agenda, há décadas”, afirmou.

A historiadora aponta que a história do Brasil é intrinsecamente ligada à violência contra a mulher, desde a Colônia, o Império e agora na República. Ela destaca que enfrentar essa questão não é responsabilidade apenas do movimento de mulheres, mas de “um país como um todo, que deve se conscientizar de que não haverá democracia sem a presença das mulheres”.

Machismo e misoginia

Segundo a professora, a falta de interesse dos homens nessa pauta é visível, o que ela associa à “questão arraigada, forte, do machismo, da misoginia, do modelo patriarcal, que ainda é muito poderoso no Brasil”. Elza menciona julgamentos de crimes de feminicídios em que o réu usa a expressão “legítima defesa da honra” ou “sob forte emoção” para justificar assassinatos de mulheres e critica o fato de juízes acatarem isso.  Para ela, isto faz parte de um processo histórico de “descaso com a população feminina”, no qual a mulher sempre foi tratada como “patrimônio, cidadã de segunda classe, silenciada”. Elza lamenta que, apesar de décadas de luta e de discussões em conferências nacionais, a pauta do movimento de mulheres permanece a mesma.

A crítica ao Estado e ao modelo político se aprofunda quando Elza aborda a representatividade feminina. Ela considera que o atual modelo político brasileiro dificulta a presença mais relevante de mulheres nos espaços de poder e decisão, apesar de serem a maioria da população. “Esse modelo patriarcal e misógino absurdamente inaceitável numa democracia ainda prevalece no país”, critica.

Elza expressa preocupação com “retrocessos sistemáticos e permanentes” que visam fragilizar a presença da mulher na política. Ela se refere ao debate em torno do Projeto de Lei Complementar 112 de 2021, que propõe um novo Código Eleitoral. O texto prevê uma reserva de 20% das cadeiras nos legislativos para mulheres, mas elimina a penalização anteriormente prevista – aprovada pela Câmara dos Deputados – para partidos que não cumprirem os limites mínimo e máximo de candidaturas por sexo.

Supressão gravíssima

Para a historiadora, essa supressão é gravíssima, já que uma lei sem a previsão de punição, em caso de descumprimento, perde seu sentido. Elza lembra que a discussão sobre o necessário aumento da participação feminina, nas várias esferas de poder na sociedade não é nova e se aprofundou em várias conferências nacionais e internacionais, como a de Pequim, em 1995, da qual participou. “À época, estimava-se que levaríamos quase quatro séculos para alcançar a igualdade de gênero; hoje, esse prazo foi reduzido, mas na prática, parece ter aumentado”, ironiza.

Elza, que vivenciou a violência política de gênero em seus mandatos como vereadora e deputada estadual, incluindo ameaças de morte, descreve a trajetória política feminina como uma “guerra” em todos os níveis: dentro dos partidos para a inclusão na lista de candidatos, no processo eleitoral e no parlamento, para conseguir ser ouvida. “Nada conseguimos de graça. Não foi qualquer benesse até aqui. Tudo que conseguimos avançar e conquistar, foi sempre resultado de muita persistência e luta”.

O objetivo, segundo a professora, não é que a mulher suba em pódio sozinha, mas que haja “igualdade de oportunidade” na corrida política, para construção de uma sociedade equânime e socialmente justa para homens e mulheres.

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