Vinicius Müller
RPD || José Álvaro Moisés: 'O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum'
As eleições municipais de 2020 passaram o recado que vai na direção oposta da polarização ocorrida em 2018, que permitiu a eleição de Bolsonaro: Guinada ao Centro e criação de frente democrática progressista como itens necessários para vencer o Bolsonarismo em 2022
Por Caetano Araújo e Vinicius Müller
O professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, José Álvaro Moisés, avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do País, e possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.
Entrevistado especial desta 26a edição da Revista Política Democrática Online, o cientista político é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil. Publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995) ,"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.
Para José Álvaro Moisés, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do cientista político José Álvaro Moisés à Revista Política Democrática Online:
Revista Política Democrática (RPD): Os resultados das eleições municipais apontam para uma transferência da liderança e das bandeiras carregadas historicamente por Lula e pelo PT aos candidatos de uma 'nova esquerda', como Boulos e Manuela D´Ávila?
José Álvaro Moisés (JAM): Muito obrigado pela questão que aborda um tema de grande importância. Certamente, é uma perspectiva que se abre para os próximos anos e, nesse sentido, entender esse processo é muito importante para nos. Não tenho certeza se a liderança do Boulos tem solidez suficiente para substituir o que foi a do Lula. Isso se deveria, se ocorresse, ao envolvimento do PT e do próprio Lula com corrupção, ainda que saibamos pouco sobre como foi isso? Quando foi? Quais as provas, etc. Penso que parte do eleitorado brasileiro já deu uma resposta a essa questão. Por isso, emergiram Boulos e algumas outras lideranças jovens de esquerda, com algum conteúdo novo. Mas não acho ainda inteiramente claro qual é o rumo que vão tomar.
A pergunta projeta para o futuro uma possibilidade que não sei se já temos suficientes elementos para responder com clareza. Será que é sólido? Penso que essa possibilidade está vinculada ao fato de que eleitores jovens e uma parte da classe média tem, digamos assim, uma atitude de rejeição em relação às políticas do PT, ao seu hegemonismo, à questão da corrupção e a todas as questões que ficaram sem resposta em tempos recentes, e que podem ter encontrado na liderança de Boulos em São Paulo, Manuela D'Ávila em Porto Alegre e, no caso de Recife, em nomes como de João Campos e da Marília Arraes, uma possibilidade alternativa em relação a esquerda representada pelo PT.
RPD: Após a polarização que se consolidou no país a partir de 2013, parece haver um reajuste do processo eleitoral e político que mostra certo esgotamento desta polarização, algo como um refluxo. Haveria, assim, uma crise dupla, tanto do bolsonarismo quanto da 'esquerda'?
JAM: Primeiro, acho sim que o bolsonarismo entrou em crise. O eleitor passou um recado que vai na direção oposta à polarização de 2018. Não quero entrar no mérito do impeachment da Dilma, mas creio que a polarização começou ali e que, de alguma maneira, se consolidou no resultado de 2018 com a ideia de que o Bolsonaro ocuparia um vazio que tinha sido deixado não só pela esquerda, mas também por todos os líderes democráticos. Vejo, assim, a adesão à candidatura de Boulos e à dos outros jovens líderes de esquerda que mencionei mais como resposta à ansiedade e ao espaço que uma parte da classe média e segmentos esclarecidos abriram em relação ao que aconteceu com o PT. Contudo, o processo eleitoral de 2020 não fez um debate sobre a natureza dessa nova esquerda; muitos aderiram a ela porque foi uma alternativa que pareceu se contrapor ao que está aí, ao bolsonarismo.
À luz dessas considerações, não consigo responder com segurança à pergunta. Quer dizer, não vejo com clareza o que esta nova esquerda vai projetar, ou mesmo até onde é possível falar de uma nova esquerda. Creio, no entanto, que ela não vai encarnar o contraponto que permitiria que o bolsonarismo se reconstituísse. Acho que o bolsonarismo entrou em crise porque não tem conteúdo, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, da tortura e de expressão de uma mentalidade autoritária, de uma visão radicalizada em relação à questão da segurança e tudo o mais que sabemos.
RPD: Neste novo arranjo, mais ao centro e produzido por um certo refluxo, quais seriam os principais temas e atores políticos que se destacam?
JAM: O bolsonarismo refluiu da posição de extrema direita para o centro porque teve muitas derrotas no Congresso e por causa da crescente rejeição de parte dos eleitores. Está tentando migrar para um centro-direita para se salvar.
Quanto as forças democráticas, também fomos, em certo sentido, mais para o centro. Os resultados da eleição apontaram nessa direção pelo lado das forças democráticas e progressistas. Agora, no caso do bolsonarismo - que está tentando ir para o centro - o problema consiste em saber onde ele vai encontrar um possível ponto de solidez ou de consolidação no conjunto dos partidos. A candidatura mais clara quanto a isso, como sabemos, são os partidos do Centrão, especialmente o Progressistas, o Republicanos e talvez o PSD.
Mas o grande risco que vejo nesse quadro é o de o setor democrático e progressista, incluindo a esquerda democrática, não perceber inteiramente a natureza desse jogo. Não podemos cometer o equívoco de eventualmente deixar que o DEM seja atraído para o lado de Bolsonaro, o DEM e algumas outras forças, como o PSD de Gilberto Kassab - um caso mais difícil -, mas no caso do DEM, a possibilidade de se reposicionar em torno do bolsonarismo seria péssimo para o objetivo de levar o governo a uma derrota em 2022.
Assim, não tenho dúvidas quanto ao refluxo do bolsonarismo na direção de um centro-direita. E, por isso, agir para trazer os liberais para o diálogo com o campo da perspectiva progressista é parte do objetivo de derrotar o bolsonarismo, um desafio seríssimo para os democratas.
Nesse sentido, temo que a nova esquerda não seja capaz de perceber a natureza desse desafio e tente, a reboque de uma alegada solidez ao se supor capaz de substituir a figura de Lula, constituir uma alternativa para disputar diretamente com Bolsonaro, o que não acredito que teria sucesso. Creio que a média do eleitor brasileiro não aceitaria uma solução desse tipo.
O ideal seria sermos capazes de compor uma frente democrática de setores liberais - a centro-direita liberal - com a centro-esquerda e, assim, construir uma solida alternativa capaz de enfrentar o bolsonarismo com sucesso. O bolsonarismo buscará sua solidez em torno do Centrão, vale dizer, do PP, Republicanos e talvez o PSD, mas seria bom que não fosse ajudado a ir além disso.
RPD: Qual espaço para partidos tradicionalmente do centro, principalmente da centro-esquerda - como o PSDB - neste novo centro político que parece se consolidar a partir de uma inclinação mais à centro-direita?
JAM: Acho que o papel do PSDB é exatamente o de construir essa alternativa. Quer dizer, alguém na centro-esquerda, que esteja fora da centro-direita, tem, de alguma maneira, de fazer isso, levantar a bandeira de que é importante trazer o DEM para esse campo. Aliás, como disse o Rodrigo Maia, o centro não é um ponto único, o centro são vários pontos, e se nós quisermos trabalhar esse campo teremos de buscar o que você chamou de um equilíbrio capaz de unificar esses pontos do centro. Esse é o grande desafio que está posto tanto para uma parte da esquerda democrática, como para o PSDB. O papel da esquerda progressista, nesse sentido, é levantar o tema da frente para enfrentar Bolsonaro, insistir no tema e chamar para o diálogo as outras forças, e mostrar o quanto isso é fundamental para vencermos o bolsonarismo. A meu ver, esse é o caminho que nós deveríamos propugnar para que a esquerda democrática e progressista desempenhe sua missão nessa conjuntura.
RPD: A construção de uma ampla frente democrática contra Bolsonaro continua na ordem do dia para as forças de oposição?
JAM: Minha premissa é que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria. Isso é uma presunção em relação a um governo que, em realidade, não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment. Mas se desmilinguir por conta própria seria como se eles abrissem mão de governar. Isso não vai acontecer. E é por isso que o projeto da frente democrática tem de ser mantido.
Algo que me surpreendeu nas eleições municipais deste ano foi o recado passado pelos eleitores. Rejeitaram as polarizações extremas e as perspectivas que preconizavam raciocinarmos politicamente com dois extremos. Além disso, também chamaram a atenção para a existência de um espaço de diálogo alternativo situado no centro. Deste ponto de vista, recolocaram o tema da frente na ordem do dia, como o revelam, de um lado, a sinalização de Ciro Gomes em relação ao DEM e, de outro, as conversações de Luciano Huck com algumas lideranças, inclusive com Sergio Moro. Um dos desafios dessas iniciativas é não qualificá-las de partida como sendo de esquerda ou de seu contrário, ainda que em política muito dependa da identidade dos atores que conduzirão as bandeiras.
Afora isso, a frente não poderá ser estritamente eleitoral. Terá de ser suficientemente abrangente para estabelecer as pontes que permitam construir uma alternativa de sentido positivo em torno de temas que os eleitores priorizam. Um deles é o enfrentamento da corrupção, o compromisso dos partidos com o seu combate. Outro é o enfrentamento das desigualdades, ou seja, quais desigualdades e como enfrenta-las? Será preciso buscar a maneira de mobilizar e interpelar o eleitor nessa direção. Desse ponto de vista, quem pode desempenhar esse papel são as forças democráticas progressistas. Esse é o desafio que teremos de enfrentar, e é preciso ter clareza de que esse é o problema fundamental da constituição da tão mencionada frente democrática.
RPD: Qual o papel do PSDB como operador da frente democrática, considerando seu movimento recente em direção à direita do espectro político?
JAM: Penso que a coalisão que se formou em torno da candidatura do Bruno Covas indica um caminho e teve sucesso porque apontou na direção de uma aliança possível, em face de um esforço de alguns dos partidos de se reformularem, não tanto no sentido de uma recuperação de suas práticas tradicionais, mas no sentido de uma reacomodação em relação ao sentimento critico dos eleitores, ainda que um ponto débil do processo tenha sido a escolha do vice. Mas Bruno fez uma campanha clara e a coalisão o projetou como uma nova liderança no PSDB.
Contudo, para se entender o papel que esse partido pode jogar em um plano mais amplo temos de pensar que há um problema aí. Qual é o problema? É que, por uma parte, o PSDB está sob algum efeito de hegemonia do governador João Dória, que não se caracteriza propriamente como uma opção progressista, está mais no campo de uma direita um pouco mais civilizada que Bolsonaro, mas que não tem preocupação, por exemplo, de manter a identidade social democrata do PSDB. Ao passo que, de seu lado, Bruno fez questão, na campanha, não só de fazer referência a lideranças históricas do PSDB, mas também a atores que precisamente representam esse conteúdo social-democrático. Não sabemos se isso levara a algum conflito, e tampouco se prosperarao as iniciativas de diálogo com o DEM com vistas a formação de uma frente democrática de conteúdo progressista. Nem mesmo sabemos, enfim, se o PSDB vai organizar-se para enfrentar Bolsonaro. Ainda é cedo para termos uma resposta em um sentido ou outro. Mas o importante é que as possibilidades estão abertas, quer dizer, inclusive a possibilidade de se constituir uma alternativa que vá na direção de uma aliança do PSDB com o DEM, incluindo, quem sabe, o MDB, como se fez no passado. A pergunta, portanto, é se em 2022 vai-se repetir o cenário de 2018, com candidaturas isoladas, ou se vai -se trabalhar na perspectiva de uma nova coalisão. Mas ainda não temos elementos suficientes para responder com segurança essas questões.
RPD: Até que ponto é possível supor que o debate ancorado em temas haverá de se sobrepor à tradicional “fulanização” das disputas eleitorais?
JAM: Eu não sei se estamos, digamos assim, colocando mais ênfase nos temas fundamentais e menos nos personagens, ou na chamada “fulanização”. Não sei se temos suficiente material para dar uma resposta certa sobre isso. Acho que ambos aspectos estão se misturando nesse momento. O grande tema segue sendo o da formação da frente capaz de derrotar Bolsonaro. Nesse sentido, a temática da fulanização indaga, de alguma maneira, se temos um fulano - ou um nome ou alguns nomes - que unifique as forças democráticas, mas não vejo isso colocado. Desse ponto de vista, um dos desafios mais importantes que teremos será selecionar e definir quem poderá oferecer a alternativa capaz de construir a frente democrática com as características que precisamos que ela tenha, ou seja, de enfrentamento de Bolsonaro e seu conteúdo e, ao mesmo tempo, de enfrentamento da questão central dos progressistas, relativa a questão das desigualdades abismais que caracterizam a sociedade brasileira.
No momento, ainda não temos os nomes que se encaixam nesse projeto. O que indica, portanto, que parte do nosso desafio, além de construir a frente, além de enfrentar os divisionismos tradicionais de nossas forças e as tentativas de hegemonismo, implica em definir os critérios necessários para permitir indicar quem será capaz de mobilizar a sociedade e oferecer suficiente credibilidade para que os eleitores digam: "Nesse contexto, com essa experiência, com as características da coalisão formada, podemos depositar confiança nessa pessoa". Mas nenhum movimento político cria uma liderança em um curto espaço de tempo. Em certo sentido, esse processo terá de se dar com as lideranças que estão se apresentando nessa fase em torno dos nossos desafios, mas ainda não está claro quem construirá o consenso necessário para conduzir a empreitada de enfrentar o bolsonarismo. É tarefa das forças democráticas encontrar essa pessoa.