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Thiago de Moraes Moreira: A magnitude da recessão

Se atuação anticíclica do governo fosse similar à da crise de 2009, queda no PIB ainda seria muito forte, de 4,6%

Além de umas piores tragédias humanitárias após a Segunda Guerra Mundial, a crise do coronavírus está produzindo impactos devastadores nas economias ao redor do mundo. No caso brasileiro, ainda há muita nebulosidade, com elevado grau de incerteza quanto à magnitude dos efeitos.

Um dos indicativos da atual dificuldade de mensuração dos impactos da pandemia está na dispersão das projeções de crescimento do PIB coletadas pela pesquisa Focus do Banco Central. Até o fim de fevereiro, a menor estimativa de crescimento para 2020 era de 0,5%, enquanto a maior era de 3,2%. A amplitude entre estes extremos aumentou de forma significativa no último mês. No início de abril, a máxima passou a ser de 2,45%, enquanto a mínima atingiu -5,07%.

Restam poucas dúvidas de que uma nova recessão está contratada. Entretanto, neste contexto de perplexidade e muitas dúvidas diante de algo inédito para a grande maioria da população, qualquer projeção se torna bastante perecível. De todo modo, é importante definirmos alguns balizadores ancorados em crises recentes (e vivas na memória de todos), os quais servem de guia para projetarmos o que pode estar por vir. A partir de um balizador externo e interno, a FGV divulgou um interessante trabalho no qual apresenta distintos cenários para a economia brasileira nos próximos anos1. Inspirei-me nas mesmas referências para simular novos impactos sobre o PIB brasileiro.

Diferentemente da FGV, apresento os efeitos estimados para cada um dos componentes do PIB, destacando em que medida a atuação do governo poderia amenizar os efeitos da crise em 2020.
No front externo, cujo efeitos recaem diretamente sobre os fluxos de comércio (exportações e importações), a referência está associada à última grande crise financeira internacional. Em 2009, o comércio internacional sofreu uma queda de 13,1%. Para termos uma ideia da magnitude desta contração, em 2019, ano em que houve um acirramento da guerra comercial entre China e EUA, a retração do comércio global foi de 0,4%.

No atual contexto de isolamento e fechamento de fronteiras, parece-me plausível esperar resultados no mínimo semelhantes ao de 2009 para o comércio global. Naquele ano, o volume de exportações brasileiras caiu 9,2%, enquanto das importações contraíram 7,6%, as quais repliquei na simulação do PIB de 2020.

Quanto à demanda doméstica, particularmente o consumo privado e o investimento, o balizador está ancorado nos impactos da última greve dos caminhoneiros, que paralisou a atividade econômica do país em maio de 2018. Embora de duração e motivações muito distintas, há uma similaridade interessante entre a atual crise e a referida greve.

Ambas combinam choques de demanda e oferta simultaneamente, na medida em que restringem a circulação de mercadorias e pessoas, afetando tanto as cadeias produtivas quanto a aquisição de bens e serviços finais. Segundo dados do Monitor do PIB, também divulgado pela FGV, a greve, que durou cerca de 10 dias, provocou uma retração de 1,3% no consumo das famílias e de 4% nos investimentos no mês de maio.

Na simulação de 2020, o impacto total dependerá da duração das medidas de isolamento. Utilizei como premissa que as medidas restritivas irão perdurar do fim de março ao fim de junho. Contudo, assumi como hipótese uma flexibilização das restrições à circulação, que seriam gradualmente arrefecidas a partir de maio, condições que podem ser consideradas como otimistas por muitos profissionais de saúde.

Sendo assim, já teríamos um primeiro choque ocorrido no fim de março, também com duração de cerca de 10 dias. Assumi que neste mês ocorreriam as mesmas variações negativas sobre o consumo privado e investimentos observados na última greve dos caminhoneiros.

Na medida em que os resultados do primeiro bimestre ainda não estavam “contaminados” pelo vírus, as taxas do primeiro trimestre deverão ser pouco impactadas. Com base em índices mensais até fevereiro e a referida estimativa para março, espera-se uma retração moderada do consumo e até mesmo algum crescimento do investimento no primeiro trimestre. Este último deve-se essencialmente à forte expansão no primeiro bimestre, conforme apontado pelo indicador mensal do investimento elaborado pelo IPEA.

Os impactos mais significativos serão sentidos no segundo trimestre, os quais serão oficialmente divulgados apenas em setembro. A simulação assume efeitos mais relevantes em abril, equivalentes a 3 greves de caminhoneiros, ou seja, 30 dias de paralisação. Com base na hipótese de flexibilização gradual das medidas restritivas, para maio simulou-se o efeito de 2 greves de caminhoneiros e, finalmente, para junho, uma contração na magnitude de mais 1 greve. Esta dinâmica derrubaria o investimento em 19,8% e o consumo privado em 6,5%, ambos no segundo trimestre, já descontado o efeito sazonal.

Teríamos então um impacto acumulado equivalente a 6 greves de caminhoneiros entre março e junho. Para as estimativas do terceiro e quarto trimestres, utilizei as taxas trimestrais observadas na recuperação pós-greve dos caminhoneiros. Em termos anuais, teríamos uma queda de 4,9% no consumo privado, e de 11,5% no investimento.

Resta apenas a hipótese para o consumo do governo para consolidarmos o desempenho esperado para o PIB. Sob a égide da PEC do teto dos gastos públicos, com a desaceleração inflacionária prevista para este ano, seria esperada uma variação real próxima de 1%. Neste caso, a contração anual do PIB chegaria a 4,9%. Contudo, dada a declaração de calamidade pública e a urgente necessidade de ampliação de gastos, em particular na área da saúde, espera-se que o consumo do governo possa apresentar um crescimento real mais expressivo. Assumindo uma atuação anticíclica do governo similar à verificada na crise de 2009, quando houve expansão de 2,9% em seu consumo, a queda no PIB seria ainda muito forte, de 4,6%.

Nestas condições, o consumo governamental precisaria crescer, em termos reais, 25,2% para evitar uma contração do PIB em 2020, algo pouco factível. A atuação governamental precisará ir muito além de seu próprio consumo, lançando mão de outros instrumentos de política pública. Somente uma ação coordenada entre os entes federativos liderada pelo governo federal e articulada com os demais poderes (Legislativo e Judiciário), visando a operacionalização das transferências amplas de renda, crédito e desonerações, além de agilidade caso seja necessário intensificar as medidas, poderá amenizar a contração já em curso na demanda privada.

1. Nota Cemap: “PIB em tempos de pandemia”

*Thiago de Moraes Moreira é mestre em Economia pela UFRJ, professor de Macroeconomia do Corecon-RJ e da pós-graduação do Ibmec.


Fernando Exman: Orçamento impositivo exige adaptação geral

Deputados querem blindar atual modelo contra críticas

A nova dinâmica de execução orçamentária, agora impositiva, tem tudo para ser uma das marcas de 2020 na política.

As relações entre o Executivo e o Parlamento passarão por um processo forçado de reformatação. Enquanto o Congresso precisará ser mais bem tratado pelo governo, deputados e senadores passarão a ser muito mais cobrados em relação à eficácia - e confiabilidade - no emprego das suas emendas impositivas ao Orçamento. O governo não conseguirá mais condicionar a liberação de emendas à aprovação de projetos de seu interesse. O Brasil passará por uma experiência inédita em sua história.

Parlamentares de todos os partidos sempre quiseram ter maior poder de influência em relação ao Orçamento. No ano passado, aproveitaram que o governo chegara carregando um estandarte com o slogan “Mais Brasil, Menos Brasília” para ocupar rapidamente o espaço que se abria. Transformaram o que poderia ser apenas uma palavra de ordem em um instrumento de fazer política em seus redutos eleitorais.

Ao longo do ano, reduziram a capacidade decisória e de manejo dos recursos públicos do Executivo, transferindo esse poder para suas próprias emendas.

Fizeram isso com prazer. Afinal, o presidente Jair Bolsonaro se aproveitou do desgaste da classe política tradicional para vencer as eleições de 2018 e, mesmo depois de chegar ao Palácio do Planalto, não deixou de achincalhar os partidos e seus dirigentes.

A nomeação de um general para comandar a Secretaria de Governo mostrava a intenção do presidente da República. Foi um claro sinal à classe política da rigidez que passaria a ser aplicada na liberação das emendas parlamentares e nas nomeações de indicados para cargos da máquina federal.

No entanto, logo no início do governo a área técnica do Palácio do Planalto foi percebendo que precisava se preparar para um novo momento político. O ex-ministro da Secretaria de Governo Carlos Alberto dos Santos Cruz escalou servidores com experiência na área orçamentária justamente com o objetivo de fortalecer a interlocução de seu gabinete com o Legislativo.

Quando Santos Cruz deixou o governo, também se foram alguns de seus auxiliares responsáveis pela montagem dessa estrutura. Mas não mudou a percepção, dentro da Secretaria de Governo da Presidência, de que o relacionamento entre o Executivo e os parlamentares seguiria uma nova lógica.

No fim do ano passado deputados e senadores já começaram a perceber uma adaptação no discurso de autoridades do Planalto. Auxiliares do presidente passaram a dizer que querem aproximar os autores das emendas impositivas dos órgãos executores do governo federal, além de construir agendas comuns de políticas públicas entre os Poderes e os diversos entes da federação. Ponderam que o governo federal deve ter um papel mais indutor.

A ideia no Palácio do Planalto é, por exemplo, apresentar aos parlamentares projetos estratégicos já estruturados e que precisam de “patrocinadores”. A Presidência terá que ajudar os ministérios na defesa das ações e dos programas que deveriam ter prioridade no Congresso, para que o Poder Executivo continue conseguindo influenciar a alocação dos recursos das emendas parlamentares ao Orçamento. Tentará também convencer deputados e senadores da necessidade de se discutir normas relativas à regulação de prazos e procedimentos para a execução dessas emendas.

Em outra frente, o governo federal pretende ajudar Estados e municípios com ferramentas de apoio à tomada de decisão. Quer debater padrões e regras de transparência, capacitar servidores locais para fiscalizar a execução das emendas. Esta última iniciativa causou desconforto no Congresso, onde ela é considerada uma forma de as autoridades federais sinalizarem às bases que existe desconfiança em relação ao trabalho feito a partir da capital do país.
Deputados e senadores sabem que precisam mostrar que o Orçamento impositivo é eficaz e não aumentará as brechas para a corrupção.

Líderes asseguram que trabalharão para que as emendas sejam majoritariamente direcionadas para obras estruturantes. Eles têm total consciência de que são esses empreendimentos que podem render mais votos para eles próprios e seus aliados, mas não estão nada dispostos a seguir de forma automática as orientações de seus interlocutores do Executivo. Tampouco aceitarão serem tratados com desdém ou como os suspeitos de sempre.

Uma história é contada por integrantes da cúpula do Congresso para ilustrar o que, se depender deles, não ocorrerá mais a partir deste ano.

Segundo eles, no início do ano passado um determinado deputado federal foi seguidamente ignorado por um ministro de uma área fundamental do governo. Semana após semana o parlamentar pedia para ser recebido por esse ministro, mas o pleito era negado ou a audiência era marcada e logo depois adiada.

Em abril, o jogo mudou. Emissários fizeram chegar ao ministério a informação de que o deputado acabara de se tornar relator do Orçamento de 2020. Como se pode imaginar, o ministro tentou amenizar o mal estar. Mas precisou entrar numa fila para ter acesso ao relator da peça orçamentária.

Os parlamentares acreditam que, depois de retornarem do recesso, nunca mais precisarão peregrinar pela Esplanada dos Ministérios pedindo atenção às suas bases eleitorais. Esperam que os ministros e seus secretários passem a disputar as salas de espera distribuídas pelos corredores e gabinetes do Congresso, em busca de verbas para os projetos de suas pastas.

Essa situação nunca ocorreria se um presidente com outro discurso e outra forma de se relacionar com o Parlamento tivesse sido eleito. Se algo sair errado, contudo, será inevitável que ocorra uma grande pressão sobre o Congresso para que as regras de execução do Orçamento sejam novamente alteradas. A partir de agora, finalmente o Parlamento passa a exercer uma das principais funções para o qual foi criado, que é definir as prioridades do Orçamento.