vacinas

Alberto Aggio: O que mudou

A decisão de 08 de março do Ministro Edson Fachin, do STF, que, no fundamental, garante elegibilidade a Lula (PT) na corrida presidencial de 2022, gerou um verdadeiro terremoto nas relações de força entre os principais atores políticos.

Na forma como se deu, contestando a validade do fórum de Curitiba no qual protagonizava o ex-juiz Sérgio Moro, o fato equivale a uma profunda derrota do chamado “tenentismo de toga” (Werneck Vianna) expresso na operação Lava-Jato durante os últimos anos. Em função da visão messiânica que visava a regeneração da Nação, tal movimento colocou em suspensão toda a política brasileira e o resultado foi a identificação da política com corrupção. A Lava-Jato foi mais uma face da ideia de que o País necessita de uma ruptura histórica e, por essa razão, contribuiu para a emergência de fenômenos de antipolítica que grassam desde 2013.

Independente das suas intenções e aparentemente sem uma estratégia definida, a adesão de Sergio Moro ao governo Bolsonaro, a partir de 2018, implicou uma aposta de alto risco que, por fim, fracassou. Sua saída do governo não redundou em força para o movimento. A Lava-Jato restou parada no ar e se enfraqueceu. Agora, atingida no coração, seu destino parece estar selado. Em sentido profundo, mitigar ou tentar eliminar a política e sobrepô-la pela dimensão jurídica, concentrando suas ações num único ponto, a corrupção, apenas confirmou que este não pode ser o caminho da política democrática com vistas a resolver os principais problemas do País nem o orientar em direção ao futuro.

O retorno de Lula ao centro da cena tem inúmeras repercussões e guarda muitos significados. De um ponto de vista conjuntural representou um respiro frente a um governo como o de Bolsonaro. Diante dele, a sociedade parece atônita e vulnerável, acossada pela pandemia e a persistente elevação do número de infectados e mortos. Lula se apresentou e rapidamente foi identificado com a vitalidade que a oposição deve ter. Com isso, a musculatura do polo petista sai fortalecida não só em função da sua popularidade, mas também porque isso gera desestabilização em outras candidaturas por seu poder de atração. Além disso, antigos aliados serão desafiados e o próprio Centrão, até agora em deriva inercial rumo à candidatura de Bolsonaro, deverá repensar seus futuros passos.

Mas há um engodo nessa história. Claro está que a retomada dos direitos políticos de Lula não equivale a absolvição de todas as acusações que existem contra ele. Essa narrativa é falaciosa, Lula não foi absolvido. O ex-presidente retorna à politica, com todos os seus direitos, por uma tecnicalidade jurídica que tardou a ser admitida e não por sua absolvição.

O discurso de Lula no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo serviu para instituir o teatro de que ele é a única contraposição à estratégia destruidora da democracia de 1988 que Bolsonaro vem estabelecendo desde sua posse. O que é outra falácia. Há resistência a Bolsonaro desde a posse, fortemente demonstrada nas eleições municipais de 2020, especialmente nas capitais. No contexto da pandemia tal resistência se expressa na defesa do SUS e na contraposição dos governadores, especialmente o de São Paulo, no tocante à vacina. Os petistas querem fazer crer que somente eles se opõem a Bolsonaro e mantêm o estilo de sempre: mitificam Lula, despreocupados em ampliar o arco de alianças para enfrentar Bolsonaro desde o primeiro turno.

Há uma soberba nisso tudo. Lula permaneceu em silêncio até esse momento e as agressivas manifestações bolsonaristas não são contra ele, mas contra aqueles que estão na chuva e no sol criticando o atual presidente. O PT tem feito uma política errática no Parlamento que contém lances de ambiguidade em relação ao bolsonarismo, tal como se observou na votação para as presidências das  duas Mesas no Congresso bem como nas principais comissões.

Por outro lado, há questões a serem recuperadas na história do PT e de Lula. Ambos coquetearam com a antipolítica desde as primeiras lutas pela redemocratização e foram vigorosos representantes dela no processo que gerou a Constituição de 1988. Ambos são a expressão de uma esquerda que promete a nova sociedade aos “de baixo” mas apenas lhes dá inclusão via consumo. Enquanto aos “de cima” garante estabilidade e ampliação de ganhos. Lula é a esquerda antirreformista que estabiliza o capitalismo brasileiro na fase da globalização, depois da integração a ela promovida por FHC. É uma esquerda adaptada ao contexto histórico, o que é positivo, mas é uma esquerda sem conceito, que negocia tudo para garantir seu projeto de poder com o apoio de movimentos fragmentados nascidos da sociedade pós-industrial. É uma esquerda mais do “mundo da vida” do que do “mundo da produção”, apesar de daí ter nascido. Lula não precisa de esforço algum para definir seu inimigo na contenda eleitoral de 2022. Ele retomará a posição de ataque a quem está no poder, como sempre fez, de Sarney a FHC, e assumirá a dissimulação de ser um ator benfazejo a todos e a todas.

 As reações de Bolsonaro à volta de Lula são evidentes, embora demonstrem alguma desorientação. A adoção de uma atitude mais responsável frente à pandemia é apenas um dado superficial. Do ponto de vista discursivo, Bolsonaro poderá recuperar a narrativa antissistema, criticando a decisão judicial que favoreceu Lula e identificando o petismo com o status quo. Bolsonaro será seduzido por seus apoiadores a radicalizar essa posição e voltar à lógica da guerra. A palavra de ordem desse grupo é o golpe. Provavelmente Bolsonaro vai ceder espaço a isso, evitando muito envolvimento. Aqui também a estratégia é a da dissimulação: retomará o antipetismo, embora tenha perdido seu aliado fundamental, o ex-juiz Sérgio Moro. Nesse sentido, a campanha de 2022 não poderá se servir inteiramente desse ponto de força como foi em 2018. Outro elemento de fragilidade de Bolsonaro está, como todos sabem, na desastrosa condução frente à pandemia, deixando o País sem as vacinas de que necessita.

Portanto, a estratégia de destruição de Bolsonaro não pode lhe garantir, como antes, uma passagem lisa e tranquila para o terreno eleitoral. Reduzir-se apenas aos seus, àqueles que professam essa estratégia, pode ser uma aposta de alto risco para chegar ao segundo turno e depois perder. Por fim, a última alternativa seria, fragilizando-se ainda mais, se reduzir a um candidato do Centrão, retornando à expressão de um candidato do “baixo clero” – e isso se o Centrão não se movimentar pragmaticamente em direção a Lula.

O terremoto provocado pelo retorno de Lula afetou diretamente a todos postulantes à presidência em 2022. É inevitável que Ciro Gomes mantenha sua beligerância tanto contra Lula e o PT, quanto contra o ex-juiz Sergio Moro. No entanto, sua resiliência não encontra equivalente em sua capacidade de agregação. Envolvido diretamente, Moro será forçado a se pronunciar: ou contra-ataca, lançando-se definitivamente candidato ou se retira de uma vez da contenda eleitoral.

O fato é que se o centro político já encontrava dificuldades de unificação em torno de uma candidatura, com os partidos inteiramente divididos, o retorno de Lula veio carrear mais obstáculos. Independentemente dos nomes ou pela profusão deles, o centro permanece invertebrado. Em verdade, ainda não existe do ponto de vista eleitoral e a grande incógnita é se conseguirá se configurar como um fator de poder para atrair aliados e eleitores.

A premissa de que o centro deveria ser um ponto intermediário entre dois extremos perde força com o retorno de Lula, que, a partir da esquerda, se move com facilidade para o centro. De outro lado, o desastre que significa o governo Bolsonaro impõe uma condição: não há como o centro se apresentar a não ser em oposição a Bolsonaro. Mas terá que buscar um discurso e uma estratégia distinta do lulopetismo, sem ser antagônica a ele. Pensando na rearticulação e no futuro da Nação, o centro terá que se reinventar: sua única saída é ser um “centro excêntrico”, um novo polo de agregação, com programa próprio e alternativo. Uma operação dificílima, obviamente, e talvez já tardia, ainda mais se tiver que cuidar também para que sua candidatura consiga fazer frente a duas “potências de audiência”, como Bolsonaro e Lula.

Tudo mudou, mas infelizmente o nosso flagelo frente a pandemia se agravou. Mas com força e resiliência, mais as vacinas, o País pode superar o vírus e … Bolsonaro.

*Professor Titular de História da UNESP-Franca-SP


Luiz Carlos Azedo: Pior momento de Bolsonaro

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro, fracassou: 56% dos entrevistados o consideram incapaz de liderar

A pesquisa DataFolha de ontem confirmou o que mundo político já estava esperando: o governo Bolsonaro vive o seu pior momento, acumulando desgastes, principalmente em razão das suas atitudes negacionistas em relação à pandemia da covid-19, cujo descontrole assombra o mundo. Segundo o instituto, cresceu para 56% o número de brasileiros que consideram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) incapaz de liderar o país. Em janeiro, eram 50%. A pesquisa caiu como uma bomba no Palácio do Planalto, a jaula de cristal na qual a bolha dos partidários do presidente da República nas redes sociais tem mais influência nas decisões do que todos os demais interlocutores do governo juntos.

Segundo o levantamento, o percentual de brasileiros que consideravam Bolsonaro capaz de liderar caiu de 46% para 42% de janeiro para março, com oscilação negativa no limite da margem de erro. Em abril de 2020, ele era considerado capaz de liderar o país por 52% dos brasileiros, em detrimento de 42% que o julgavam incapaz. Entre os que hoje julgam o presidente mais incapaz estão os mais ricos, que ganham acima de 10 salários mínimos (62%), os que têm curso superior (também com 62%) e moradores da região Nordeste, dos quais 63% julgam o presidente incapaz de liderar o Brasil. A base de apoio de Bolsonaro mais resiliente é formada por moradores das regiões Sul (51%) e Norte/Centro-Oeste (49%) e evangélicos 52%.

O desempenho de Bolsonaro na pandemia é que puxa sua avaliação para baixo: 54% dos entrevistados avaliam como ruim ou péssimo. Na pesquisa anterior, realizada em janeiro, esse índice era de 48%. Segundo o levantamento, 22% consideram ótima ou boa a performance do presidente da República na condução do enfrentamento à pandemia. O índice anterior era de 26%. Esse desempenho fortalece os aliados do governo no Congresso, que pediram a cabeça do general Eduardo Pazuello, defenestrado do Ministério da Saúde, mas não conseguiram emplacar no cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), presidente da Comissão de Seguridade Social da Câmara. Bolsonaro nomeou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro duramente a crise sanitária, fracassou completamente: para 42% dos entrevistados, a responsabilidade é do presidente da República. Os demais responsáveis se- riam: governadores, 20%; e prefeitos: 17%. As atitudes de Bolsonaro contra o isolamento social e o uso de máscaras, e a falta de uma campanha publicitária nacional de mobilização contra a pandemia, fruto também do negacionismo, se refletem no grau de responsabilidade atribuída à própria população: 1%. No ranking dos mais empenhados na luta contra a covid-19, governadores (38%) e prefeitos (28%) deixam Bolsonaro (16%) na rabeira.

Resiliência
Mas que ninguém se iluda, mesmo assim, Bolsonaro tem uma base de apoio muito resiliente, o que ainda lhe assegura um piso confortável de aprovação para quem pretende disputar a reeleição. Por exemplo, em relação ao impeachment, o índice oscilou dentro da margem de erro: 53% eram contrários à abertura de impeachment em janeiro, ante 50% agora; 42% eram favoráveis àquela ocasião; agora, são 46%. A mesma coisa em relação à renúncia de Bolsonaro: 51% avaliam que não deveria renunciar, contra 45% favoráveis. São números desagradáveis, mas não são irreversíveis se o governo se reposicionar em relação à pandemia.

A aposta de Bolsonaro é de que a situação pode ser revertida com a vacinação em massa da população, que está muito atrasada, porém, o governo iniciou uma corrida para comprar imunizantes, todos os que forem possíveis. O atraso nas vacinas existe porque a prioridade era outra, o tratamento precoce com cloroquina. Em outra frente, o Ministério da Cidadania prepara a medida provisória do auxílio emergencial, que Bolsonaro pretendia levar pes- soalmente ao Congresso ainda ontem, mas não ficou pronta. Sua aposta é de que o auxílio mitigará os desgastes com a pandemia, ao possibilitar um alívio à chamada população de “invisíveis”, que perdeu as fontes de renda com a pandemia.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pior-momento-de-bolsonaro/

BBC Brasil: Se Lula chegar ao poder em 2022, Forças Armadas não criarão impedimento, diz Jungmann

Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública durante o governo Temer, Raul Jungmann conhece como poucos civis os meandros da elite das Forças Armadas brasileiras

Caio Quero, BBC News Brasil

Observador privilegiado de alguns dos principais episódios das recentes crises entre militares, civis e o Judiciário — desde o controverso tuíte do general Villas Bôas ao 'prende e solta' de Lula, em 2018 —, no final de fevereiro Jungmann publicou uma carta aberta aos ministros do STF onde enumera o que vê como riscos da política armamentista do presidente Jair Bolsonaro.

No documento, ele pede uma "intervenção" dos ministros do Supremo para suspender as portarias e decretos presidenciais de Bolsonaro que desburocratizam e ampliam o acesso a armas e de munição por cidadãos comuns e por aqueles que têm registro de CAC (colecionador, atirador e caçador).

Em entrevista à BBC News Brasil, Jungmann argumenta que tais políticas estão "erguendo o espectro horripilante de um choque, um conflito de brasileiros contra brasileiros e isso tem um nome na história: guerra civil".

"Quando você teve o armamento de populações, a História nos ensina, sempre vieram a reboque ou deixaram um rastro de genocídio, de massacre de etnias, de populações, de golpes, tirania e, inclusive, do ovo da serpente: do fascismo italiano e do nazismo alemão", disse à BBC News Brasil.

Na entrevista, Jungmann também afirma que, apesar dos pedidos de "intervenção militar" por parte de setores radicalizados da sociedade, "as Forças Armadas não darão suporte ou apoio a qualquer desvio constitucional, qualquer golpe ou qualquer interrupção da democracia".

Questionado sobre as eleições de 2022, Jungmann diz não antever qualquer tipo de interferência ou "maiores problemas" por parte dos militares, "seja com Lula... Mandetta, Moro, Huck... e, evidentemente a continuidade do Bolsonaro".

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Em fevereiro, o senhor escreveu uma carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal em que diz que a política do governo Bolsonaro de ampliar acesso às armas de fogo coloca em risco a democracia no Brasil. Como, em sua opinião, tais políticas podem ser uma ameaça às instituições?

Raul Jungmann - A questão do armamento ou não da população sempre foi um assunto de debate na área da segurança pública. Alguns achavam que isto reduziria a violência e outros, como nós, baseado em ampla literatura técnica, achávamos que não, pelo contrário: mais armas mais mortes, menos vida.

Acontece que o presidente da República fez um deslocamento do debate da área da segurança pública para a área político-ideológica quando ele diz que é preciso armar todo o povo para resistir a tiranias, para resistir a perda de liberdades. Ora, não pesa sobre o país nenhuma ameaça, seja real ou imaginária, de que você venha a ter uma tirania, pelo contrário, ainda que sob pressão nossas instituições estão funcionando até aqui. E, também, não existe nenhuma força política hoje de relevância ou mesmo de pouquíssima relevância que esteja fora do jogo democrático.

Então, isso nos leva a três questionamentos, a três graves problemas: em primeiro lugar, ao se propor o armamento da população, está se propondo a quebra do monopólio da violência legal, que é privativa ao Estado Nacional. Na verdade, o certificado do nascimento de um Estado Nacional é quando ele passa a deter o monopólio da violência legal. Em segundo lugar, ao quebrar o monopólio, você está desfazendo do papel constitucional das Forças Armadas, que são, digamos assim, a ultima ratio, o último suporte da integridade desse Estado Nacional e da nossa soberania, então isso também representa um ataque às Forças Armadas e é preciso defender o papel delas. Terceiro e último, ao propor o armamento da população, se nós não temos nenhum inimigo, nenhuma ameaça externa, então, ainda que não esteja visível no horizonte, você está erguendo o espectro horripilante de um choque, um conflito de brasileiros contra brasileiros e isso tem um nome na história: guerra civil.

Quando você teve o armamento de populações, a História nos ensina, sempre vieram a reboque ou deixaram um rastro de genocídio, de massacre de etnias, de populações, de golpes, tirania e, inclusive, do ovo da serpente: do fascismo italiano e do nazismo alemão.

Então, por isso que eu entendo que essa proposta de armar a população, pelo o que aqui narrei, representa um risco sério e precisa ser afastado, precisa ser devidamente evitado, de uma quebra de nossa estabilidade e por isso me dirigi ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam vários pedidos de suspensão dessa política armamentista do governo federal.

BBC News Brasil - O cenário que o senhor pinta é bastante preocupante. Na avaliação do senhor, qual o objetivo do governo Bolsonaro ao facilitar esse acesso a armas? O senhor acha que estas são consequências que o governo não está antevendo ou existe algo deliberado nesse sentido?

Jungmann - Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o presidente Bolsonaro sempre teve essa pauta. Eu fui colega dele durante 12 anos na Câmara dos Deputados, então ele está sendo absolutamente honesto quando faz a defesa dessa pauta. Em segundo lugar ele atende à base que o elegeu, que é uma base pró-armamentista, em larga medida. E, em terceiro lugar, aí eu acho que fazer uma interpretação literal não é possível, mas é possível dizer que este tipo de atitude conspira contra a estabilidade democrática. Basta lembrar o que aconteceu há pouco nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio, e nós temos eleição em 2022.

Então, independentemente das intenções, que não me cabe aqui avaliar, do senhor presidente da República, ele comete um enorme equívoco, que atenta contra o monopólio da violência legal pelo Estado Brasileiro, contra o papel da Forças Armadas e, evidentemente, contra a possibilidade de você ter conflitos entre brasileiros.

Imagine você que em 2022 nós temos um resultado eleitoral contestado — e aparentemente nós vamos ter uma reedição de polarização, igual a de 2018, aparentemente, apenas. Então tudo isso, evidentemente, agrava nossas preocupações e exige medidas imediatas para evitar que isso aconteça.

BBC News Brasil - O senhor foi ministro da Defesa e conhece como poucos civis as Forças Armadas. Na carta aberta, o senhor fala que essa política de facilitação do armamento atenta contra o papel das Forças Armadas. Mas, ao mesmo tempo, parte das Forças Armadas parece não estar tão incomodada com esse fato, pois temos um recorde de militares em cargos de ministérios e secretarias no governo Bolsonaro. Por que o senhor acha que isso ocorre, já que há um conflito entre o papel da Forças Armadas e essa política armamentista?

Jungmann - Em primeiro lugar é preciso dizer que o presidente Jair Bolsonaro, durante toda a sua carreira parlamentar, foi um parlamentar de nicho, ou seja, ele tinha duas clientelas específicas as quais ele se dedicava: primeira delas são os próprios militares e ele provém exatamente das Forças Armadas, mais especificamente do Exército Brasileiro e, em segundo lugar, os policiais.

No momento em que ele assume o governo, não tendo ele uma grande passagem junto às elites financeiras, empresariais, culturais, de mídia etc., etc. para compor o seu governo, ele volta-se para quem? Para os militares. Não se volta tanto para as polícias, porque as polícias são estaduais e não são nacionais, como são as Forças Armadas. Então onde é que ele vai buscar os quadros para governar com ele? Ele vai buscar isso exatamente com as Forças Armadas.

Do lado das Forças Armadas, além daqueles que evidentemente simpatizam com a agenda do presidente, existem outros que não simpatizam.

Mas aqui nós temos um problema que não é tanto das Forças Armadas e tampouco do presidente Jair Bolsonaro, que é o papel do Congresso Nacional.

Hoje se reclama muito da presença dos militares no governo, mas é preciso dizer que o Congresso Nacional tem prerrogativas constitucionais para estabelecer restrições sobre isso. Se o Congresso Nacional, se o poder político, se a elite civil e política não impõe travas a isso. Não seria necessariamente contra militares, mas exatamente para manter a separação que é fundamental institucionalmente entre governo e Forças Armadas, que têm uma missão constitucional voltada para o Estado e não para o governo. O Congresso falha ao não estabelecer isso.

Então, reclama-se por exemplo da presença (de militares no governo) — que eu acho, sobretudo em termos dos militares da ativa, excessiva —, mas não existe nenhuma trava. Em segundo lugar, sendo o presidente da República o comandante supremo das Forças Armadas, não havendo nenhuma trava legal, o que elas podem fazer?

Certa feita eu estava em um debate com o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, e ele disse: "As Forças armadas precisam se pronunciar." E eu disse: "Não, elas não devem se pronunciar. Elas devem permanecer exatamente onde estão", que é exatamente voltadas para as suas atividades profissionais, elas não têm que entrar na política. Elas não têm que falar, diferentemente de outras corporações, elas não devem falar. Porque se começam a falar, vão falar hoje, vão falar amanhã e vão falar depois.

A verdade é que aqui há uma grande confusão, que é preciso esclarecer... Quem tem falado são militares da reserva que estão em funções políticas, mas eles não falam pelas Forças Armadas.

Não se deve cobrar que os militares se pronunciem sobre política. Evidente que militar é cidadão e tem gente lá que apoia o governo e tem gente que é contrária ao governo, como aliás acontece mundo a fora — mas elas (as Forças Armadas) devem e estão permanecendo voltadas a suas atividades profissionais.

Eu não represento e não falo pelas Forças Armadas, apenas fui quase dois anos ministro da Defesa, mas posso lhe assegurar pelo que conheço e pelo que conheci, que as Forças Armadas não darão suporte ou apoio a qualquer desvio constitucional, qualquer golpe, qualquer interrupção da democracia do nosso país.

BBC News Brasil - No mês passado também voltou à tona aquele famoso tuite do general Villas Bôas, então comandante do Exército, que ele publicou as vésperas do julgamento do HC do ex-presidente Lula, em 2018. O senhor tinha acabado de assumir como Ministro da Segurança Pública, saindo da pasta da Defesa. O senhor ficou sabendo desse tuíte antes?Como foi essa história? O senhor ficou sabendo de que haveria algum posicionamento por parte do general Villas Boas?

Jungmann - Não soube e nem caberia. Eu deixei o Ministério da Defesa no dia 27 de fevereiro de 2018 e o tuíte, se eu não me engano, foi no dia 8 de abril ou alguma coisa assim (o tuite de Villas Bôas foi publicado em 3 de abril). Então a cadeia de comando já não passava por mim de forma alguma.

Eu sou um admirador e tenho uma grande amizade com o ex-comandante Villas-Bôas, um amigo que considero pessoal. Mas acho que o tuíte, embora eu entenda as razões que ele apresenta a esse respeito e acho que são ponderáveis, mas acho que não é a forma adequada.

Eu defendi aqui exatamente que as Forças Armadas permanecessem focadas em seus aspectos profissionais e em linha com a Constituição. Eu acho que, em que pese as preocupações, em que pese o clima que estava vivendo, em que pese eu reconhecer que o general Villas Bôas é um democrata, mas aquilo não é a forma mais adequada de se, digamos assim, de exercer o exercício de pressão sobre uma Suprema Corte, o que é, repito, é inadequado.

Se ele me consultasse, o que não ocorreu nem ocorreria, porque, dada nossa amizade, ele iria me preservar, eu teria procurado dissuadi-lo. Mas veja, tenho convicção que outro fosse o resultado do julgamento, ele seria integralmente respeitado.

BBC News Brasil - No livro onde o general conta sobre o tuíte, ele fala que houve participação do Alto Comando do Exército, não foi o general sozinho que tuitou. Na época, o senhor declarou que "a fala do general foi no sentido da serenidade e do respeito à Constituição e às regras, o que é correto". O senhor continua mantendo essa avaliação, sabendo que foi o Alto Comando que planejou esse tuíte?

Jungmann - Em primeiro lugar, é preciso entender o seguinte: a decisão é do comandante e ela é intransferível, porque foi ele que o publicou. Se ele chegou a ouvir, como está dentro do livro e não nos cabe duvidar, pode ter sido uma atitude, digamos, mais formal.

De todo o jeito, é uma atitude que considero que não é adequada para a necessária separação que tem que existir entre instituições. Nós estamos aqui falando de um outro poder, que é o Poder Judiciário, e ao mesmo tempo do não envolvimento do Exército e das Forças Armadas em questões tópicas, em questões de governos, na medida que são instituições do Estado.

BBC News Brasil - O senhor foi o último civil a ocupar o cargo de ministro da Defesa e, para muitos analistas, o controle civil das Forças Armadas é fundamental para a democracia. O senhor concorda com isso, acha que é melhor um civil controlar as Forças Armadas?

Jungmann - Olha, o grande controle a ser exercido pelas Forças Armadas se dá através dos órgãos de controle e, particularmente, através do Congresso Nacional e, no caso de conflito, pelo Judiciário.

Eu já fui adepto da tese de que o Ministério da Defesa deveria permanecer apenas nas mãos dos civis. Mas o controle deve sobretudo não prescindir de duas coisas: que o poder político civil tenha liderança e projeto para as Forças Armadas, e não existe isso, sobretudo na área da Defesa. Nosso poder político não exerce a sua liderança e tampouco tem demonstrado apetite por projetos para a defesa nacional.

No meu entendimento, é muito frágil você dizer "o controle depende de um civil". Você pode botar um civil lá, vamos supor uma situação absurda, que seja simplesmente uma marionete, que não tenha nenhum poder, não, não é isso.

O controle efetivo dos órgãos do Executivo está na mão do Congresso, só que o Congresso não exerce isso. No início, confesso a ti, eu entendia que deveria continuar a linhagem civil, mas depois melhor refletindo, eu vejo que nações democráticas colocam (militares no comando).

Eu estive, por exemplo, com o secretário de Defesa durante o governo Trump, o Jim Mattis, e ele é um ex-fuzileiro. Você teve mais até que Secretário de Defesa, você teve o secretário de Estado, o Colin Powell (ex-general que comandou o Departamento de Estado dos EUA entre 2001 e 2005). E alguém coloca em dúvida o controle civil sobre as Forças Armadas dos Estados Unidos? Ninguém coloca.

Então a questão não é tanto por aí. A questão, para mim, tem dois níveis: primeiro, o poder político civil não exerce suas prerrogativas na área de Defesa e também nas Forças Armadas. Em segundo lugar, um problema mais abaixo, que é o seguinte: o Brasil talvez tenha o único Ministério da Defesa do mundo em que você não tem um especialista civil, um gestor civil, de carreira, atuando.

Você não tem parlamentares que hoje dialogam e entendam sobre as Forças Armadas. Pode ter um ou outro perdido entre 513. Me lembro de ir, enquanto Ministro da Defesa, em audiências públicas e confesso, eu percebia no debate o desconhecimento ou distanciamento que existia. Como é que você quer liderar?

Então, essa é a minha visão: pode ter ministro civil, pode ter ministro militar, mas tem que ter uma grande base civil, com capacidade técnicas e científica lá dentro, participando desse processo e você precisa sobretudo que o Congresso Nacional assuma o seu papel, e ele não vem exercendo isso.

BBC News Brasil - Semana passada tivemos uma reviravolta política, o ministro do STF Edson Fachin acabou por anular as condenações do ex-presidente Lula. Na Folha de S. Paulo um reportagem afirmava que os militares viram com reserva o discurso do ex-presidente Lula depois da anulação. Eles teriam dito que podem ter dificuldade de relação com o presidente caso Lula venha a ser eleito em 2022. O senhor acha que pode ocorrer um problema nesse sentido?

Jungmann - Olha, se em 2022, o Mandetta, o Huck, o Doria, o Moro ou o próprio Lula, chegarem ao poder, eu posso lhe assegurar que da parte das Forças Armadas não terão qualquer impedimento ou dificuldade para governar.

Dentro das Forças Armadas existem, sim, aqueles que são antipetistas, como há aqueles que também tem a outra opção e são petistas, socialistas ou liberais, ou conservadores. Enfim, isso está tudo representado lá dentro.

Mas, eu posso dizer que hoje é consolidado o sentimento, até porque já viveram o governo Lula anteriormente.

O governo do PT durou 14 anos, infelizmente terminou como terminou, mas a verdade é que é no governo Lula que acontecem duas coisas importantes para as Forças Armadas. Em primeiro lugar, foi a edição de uma política e de uma estratégica nacional de Defesa.

E, além disso, é reconhecido que é desse período, que foi um período economicamente muito mais folgado, que houve um grande investimento na modernização e atualização das nossas Forças.

Então, eu digo isso como alguém que fez oposição ao governo do PT durante 14 anos, mas tem que reconhecer as coisas que de fato aconteceram e é isso que a gente tem a narrar.

Eu não vejo maiores problemas, seja com Lula, seja com quem for que chegue lá, o Mandetta, o Moro, o Huck e, evidentemente a continuidade do Bolsonaro. Serão recebidos da mesma forma, em linha com a Constituição.

BBC News Brasil - O general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva escreveu que "aproxima-se o ponto de ruptura" após a anulação das condenações de Lula. O senhor não vê isso como refletindo o que se pensa dentro das Forças Armadas ativas hoje?

Jungmann - Militares que estão na reserva usualmente têm uma visão em boa medida da Guerra Fria, do combate ao comunismo, da subversão e tudo mais, da política de segurança nacional e tal. São homens que deram e contribuíram pra nação e para pátria, mas permanecem ainda imersos em um clima que já não existe mais, que já não faz mais sentido.

De um modo geral, a reserva é assim. Ela fica numa posição, digamos assim, pré-queda do Muro de Berlim e às mudanças todas que o mundo teve, inclusive o próprio processo de redemocratização. Na reserva é comum, por exemplo, que não se aceite que as Forças Armadas não tenham um papel moderador, não tenham mais o papel de tutela e tudo mais que tinham no passado. Então eu acho que isso é a expressão de um pensamento que já não é o pensamento da Forças Armadas.

Não quero dizer que não existam lá dentro militares que pensem assim, mas a cúpula, as escolas de formação, esses oficiais superiores, já não são inclinados ou se deixam levar por esse tipo de percepção. Eles pensam muito mais na profissão e no respeito à democracia.

BBC News Brasil - Sobre seu período como ministro extraordinário da Segurança Pública (2018-2019), surgiu no contexto das mensagens vazadas entre o ex-juiz Sergio Moro e a Força Tarefa da Lava-Jato um diálogo do procurador Deltan Dallagnol em que ele diz que a ministra do STF Carmen Lúcia teria ligado para o senhor no episódio da guerra de liminares que quase libertou o presidente Lula, em 2018. Ele teria dito para o senhor que o Lula não deveria ser libertado. O senhor se envolveu de alguma forma nessa ação?

Jungmann - No dia que eu chamo de "prende-solta" do Lula, que teve duas ordens para soltar e duas ordem para prender, alternadamente, eu recebi ligações de todo mundo, de formadores de opinião, de pessoal de comunicação, de editor, de autoridade, ministro, o próprio presidente da República ligou e pediu que o mantivesse informado do que estava se passando.

Um dos telefonemas que eu recebi, foi exatamente da ministra Cármen Lúcia para pedir informações: "Jungmann, como é que tá isso? Como é que tá acontecendo?". Eu narrei tudo o que estava acontecendo, o conflito que estava se dando e, evidentemente, a dificuldade que tem a Polícia Federal, executora da ação judicial, de lidar com essa situação. E em seguida, ela me disse: "Eu vou soltar uma nota sobre isso. Eu estou preocupada", e eu disse: "Faça isso, senhora presidente". E nada mais trocamos.

Então, eu vou repetir o que eu disse quando me fizeram pela primeira vez essa pergunta: isso é uma mentira. Repito: é uma mentira. Não houve esse diálogo. A ministra é uma juíza e sabe que se ela assim procedesse, estaria incorrendo no crime de obstrução da Justiça. Se eu, porventura, recebesse - que não recebi - esse pedido, eu estaria incorrendo em obstrução de Justiça, o que obviamente não fiz.

Por isso mesmo, eu resolvi interpelar o senhor Deltan Dallagnol para que ele confirme e desminta isso, porque não faz nenhum sentido. Não houve nada disso de parte da ministra Cármen Lúcia, que então presidia o Supremo, e da minha parte.

Pelo amor de Deus, quando a Polícia Federal está trabalhando junto ao Judiciário, o ministro da Segurança Pública e da Justiça não tem poder nenhum, está se passando em outro poder. A Polícia Federal trabalha de mãos dadas com o Judiciário e quem poderia autorizar ou solicitar isso é exatamente o juiz da questão, o juiz do caso.

A mim não caberia e tampouco à senhora presidente do Supremo nenhuma ação, senão estaríamos cometendo um crime de obstrução de Justiça, o que nem ela e nem eu cometemos.


William Waack: Não ao mais do mesmo

A comoção nacional em torno da pandemia é o grande obstáculo à reeleição de Bolsonaro

Jair Bolsonaro ocupou a crista de duas ondas de grande amplitude política e social. A primeira o levou ao Planalto, num fenômeno que surpreendeu a ele mesmo. A segunda está muito próxima – se é que já não atingiu – do ponto de repetir em relação a Bolsonaro o que ocorreu na cabeça dos eleitores em 2018 diante de um candidato que representava Lula: a maioria não queria repetir mais do mesmo.

O “mais do mesmo” é a noção majoritária no público, e com alta probabilidade de se tornar irreversível, de que o governo Bolsonaro é incompetente para tratar da saúde e do bolso das pessoas. Em 2018 o presidente foi capaz de detectar as mudanças de sentimentos na política e como o “momento” se formava em seu favor. Agora, percebeu tarde, mas não entendeu a profundidade e a amplitude das emoções (e política é emoção) trazidas pela angústia, medo e insegurança ligados ao avanço da pandemia.

Uma boa parte da explicação para essa cegueira política está no próprio personagem Bolsonaro, refém de uma paranoica concepção segundo a qual tudo que lhe pareça adverso é resultado de conspirações de adversários reais ou imaginários para apeá-lo do poder e/ou impedir sua reeleição. Aliada a uma visão de mundo tosca e retrógrada, essa característica de personalidade – mais o fato de acreditar só na família – o levou a cometer grave erro político ao operar a troca do ministro da vez na Saúde.

Diante da pressão política e social causada pela percepção generalizada da incompetência governamental para combater a pandemia, Bolsonaro sentiu-se obrigado a sacrificar um peão, o general da Saúde que, involuntariamente, causou o maior dano recente à imagem da instituição à qual pertence, o Exército. Ocorre que essa percepção generalizada assume (corretamente) que os erros partem do próprio presidente, e que a troca de subordinados só teria efeito para inverter a narrativa dominante, fatal para quem quer se reeleger, se indicasse uma vigorosa correção de rumos.

Mas o que ficou no ar é a tediosa sensação de trocar seis por meia dúzia. Pior ainda, essa “mentalidade do bunker” à qual Bolsonaro está preso o levou a se isolar ainda mais na tentativa de aliviar a pressão política e social contra seu governo. Os que ele acusa, erroneamente, de tentar prejudicá-lo (governadores e prefeitos) são, na verdade, os que estão na primeira linha do combate ao vírus e mantêm uma relação direta com os parlamentares do Centrão, por exemplo. Que ficaram de fora.

No atual cada um por si é o Congresso que ocupa mal ou bem um papel central de coordenação de esforços e articulação num salve-se quem puder que está virando comoção nacional. Há forças políticas aliadas ao presidente dizendo a ele e ao público que essa comoção passa com a chegada em massa de vacinas e a esperada inversão das curvas de contaminação, hospitalização e mortes. E que a retomada da ajuda emergencial, mesmo mais tímida, permitiria a travessia do tempo necessário para que reformas como a administrativa (que corta despesas) e tributária (que reduz custos, ainda que não reduza a carga) sejam aprovadas e produzam efeitos.

É a tal janela de oportunidade da qual tanto fala o ministro Paulo Guedes. Em situação de tripla crise já seria uma aposta arriscadíssima, pois supõe que o tempo (e, de fato, falta muito até as próximas eleições) trabalharia a favor. Mas, no atual ambiente político no qual as opções de Bolsonaro estão se estreitando, a autoridade de seu governo se dissolvendo, seus adversários se organizando e a desmoralização da figura política do presidente atingindo avançado estágio de consolidação, virou uma aposta perigosíssima para ele.

Crises políticas e sociais da atual amplitude, abrangência e profundidade produzem em fases agudas respostas que a priori surgem como grandes surpresas, como foi a vitória de Bolsonaro em 2018. O cenário atual não indica que será a mesma resposta em 2022.


Maria Cristina Fernandes: Um carimbador na saúde e o mercado de vacinas

Ao indicar ministro da Saúde, filho do presidente demonstra que vai marcar de perto o avanço do Centrão no mercado de vacinas. Entre, um e outro está um presidente acossado pelo protagonismo de Lula no tema

Se um milésimo da esperteza usada pelo presidente Jair Bolsonaro para trocar o ministro sem mudar a política de saúde, fosse destinada a enxotar a covid-19, os brasileiros não teriam uma vala comum por horizonte. A astúcia presidencial é proporcional não à tragédia da pandemia, mas ao quinhão que está em jogo. Foi a arbitragem desta disputa, e não sua inépcia, que derrubou Eduardo Pazuello. De tão grande, a esperteza de Bolsonaro despertou o apetite do Centrão, demonstrado na derrubada dos vetos presidenciais. Antes de Bolsonaro, porém, é a saúde dos brasileiros que será engolida.

O roteiro é auto-explicativo. Primeiro o presidente driblou a pressão pelo deputado Luiz Antonio Teixeira (PP-RJ), presidente da comissão de acompanhamento da covid-19, que já era chamado de ministro na Câmara. Depois deixou na mão a fileira de padrinhos poderosos da cardiologista Ludhmila Hajjar, alguns dos quais recebeu no sábado, no Palácio do Alvorada.

Naquela manhã, Pazuello fez conferência virtual em que apalavrou o pagamento, pelo ministério, das 37 milhões de doses acertadas pelos governadores do Nordeste com um fundo russo que financia a Sputnik V, sob a condição de que seriam redistribuídas para todo o país. À tarde, recebeu o convite de Bolsonaro para participar da conversa com Ludhmila.

No dia seguinte, Bolsonaro montou o circo da audiência com a cardiologista, que, bombardeada, renunciou ao convite que o presidente jamais quis fazer. O deputado Arthur Lira (PP-AL), que, num primeiro momento, parecia resignado a negociar o segundo escalão do ministério, acabou com um tuíte de apoio a Ludhmila para não passar recibo do atropelamento. Desde o princípio, era Marcelo Queiroga o nome que Bolsonaro tinha na manga.

É o segundo ministro que o senador Flávio Bolsonaro emplaca em menos de seis meses. O primeiro, Kassio Nunes Marques, estava destinado a compor sua retaguarda no Supremo Tribunal Federal. Já a indicação de Marcelo Queiroga é uma jogada de quem se antecipa aos fatos, a compra de milhões de doses de vacinas cujo atraso empurrou o Brasil para a naturalização da barbárie.

A ofensiva do Centrão nesse mercado foi protagonizada pela desenvoltura do líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) na liberação da Sputnik por intermédio do lobby armado pelo bloco. É um mercado competitivo este em que 01 resolveu se posicionar. Com a compra da casa em Brasília, o filho do presidente mostrou, porém, que audácia não lhe falta. Até lei flexibilizando a compra o Congresso já aprovou. Agora resta saber quem vai avançar para ocupar esse terreno

O primeiro efeito da troca de ministros sobre o aquecido mercado de vacinas se dará na relação de Queiroga com os governadores. O documento assinado por 21 deles para a formação de um gabinete de crise para agilizar compra de vacinas e insumos até agora não foi respondido por nenhum dos Poderes. Mas na manhã desta quarta-feira, a maioria dos nove governadores do Nordeste assinaram contratos de compra da Sputnik V. A U$ 9,95 dólares a unidade, o lote total de vacinas ultrapassará os R$ 2 bilhões.

Um dos signatários, o governador do Maranhão, Flávio Dino, preferia que a vacina fosse encampada pelo Plano Nacional de Imunização para evitar o salve-se-quem-puder, mas está disposto até mesmo a bancar com recursos do tesouro estadual as 4,5 milhões de doses com as quais imunizaria 30% da população do Estado até julho. Fez um seguro para a eventualidade de a bateção de cabeça em Brasília não parar.

E não há sinais de que vá. O azedume com Queiroga é generalizado. Na definição de uma liderança do Centrão, ao negar a indicação ao bloco, Bolsonaro perdeu a oportunidade de dividir responsabilidades sobre seu desempenho. Se tiver sucesso, pegam carona. Se der errado, o insucesso é todo do presidente. A escolha ignorou os ritos mais pueris da política. Atropelou, por exemplo, o poderoso líder do PL na Câmara, Wellington Roberto (PB), que não foi consultado na escolha de um médico de seu Estado.

A primeira resposta concreta do Centrão veio na sessão do Congresso de ontem quando foram derrubados todos os vetos presidenciais à limitação das emendas parlamentares. Agora tanto as emendas de relator e de comissão, a exemplo do que acontece hoje com as individuais e de bancada, serão impositivas quanto a Caixa Econômica Federal deixou de fazer a intermediação das emendas.

Com isso, Queiroga, na definição de outra liderança do bloco, vira um despachante de emendas em tempo integral. A Secretaria de Governo envia aqueleas a serem contempladas com recursos da Saúde para o ministro e ele se limita a assinar e passar para a frente. Com a derrubada dos vetos, os parlamentares ampliam sua fatia na Saúde, queira ou não Queiroga. Mas emenda não compra vacina. Esta é a briga da hora. Entre 01 e o Centrão, tem um presidente da República acossado pela ofensiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O petista, que atuou na aproximação entre o consórcio dos governadores e os russos, fez ontem, em entrevista à CNN americana, um apelo ao presidente dos EUA, Joe Biden, “o suspiro da democracia mundial”, por vacinas.


João Gabriel de Lima: Um país com três desastres aéreos por dia

É fundamental que o Brasil da inteligência suplante o Brasil da ignorância

A tragédia brasileira na gestão da pandemia atingiu, nesta semana, um número macabro: 250 mil mortes. Enterramos o equivalente a três Maracanãs lotados. Tal cifra poderia ser evitada? Há meses a ciência diz que só há duas maneiras de controlar uma pandemia: vacinação em massa (que, infelizmente, vai demorar) ou isolamento social. Em Portugal, onde vivo, o auge do coronavírus foi em meados de janeiro. O país tinha os piores números da Europa – 300 mortes por dia e risco de colapso da saúde pública. O governo decretou quarentena. Na quinta-feira 25, foram registradas 49 mortes – a ciência funciona. Na mesma data, o Brasil contabilizou 1.582 óbitos, o equivalente às vítimas três desastres aéreos num único dia. 

A tragédia brasileira, no entanto, poderia ser ainda pior. Em artigo publicado no Estadão, o economista Pedro Nery lembrou que o México, governado por uma esquerda negacionista, apresenta uma taxa de 1.400 óbitos por covid por milhão de habitante, a maior da América Latina. Segundo estudos citados por Nery, uma das razões do desastre mexicano é a inexistência de algo equivalente a um auxílio emergencial. Os mexicanos vulneráveis foram obrigados a sair de casa para batalhar o sustento, expondo-se ao vírus mortal. 

O Executivo brasileiro também é negacionista, mas o Congresso, com o apoio de 163 organizações da sociedade civil – em movimento registrado nesta coluna – colocou de pé o auxílio emergencial. O benefício permitiu que vários cidadãos brasileiros se protegessem do vírus ficando em casa. 

A proeza mostra o impacto de curto prazo de uma política pública bem desenhada. No longo prazo, o impacto pode ser muito maior. O mesmo México que reagiu tão mal à pandemia foi, no passado, referência em transferência de renda. Estudos mostram que o programa Prospera gerou oportunidades para uma geração inteira, livrando-a da indigência. Criadas na mesma época, políticas brasileiras similares, implantadas nos governos Fernando Henrique e Lula, começam a despertar o interesse dos acadêmicos. 

Os novos estudos sobre programas de transferência de renda no Brasil miram justamente os efeitos de longo prazo. O economista Naercio Menezes, professor do Insper e personagem do mini-podcast da semana, defende uma reforma do Bolsa Família que privilegie famílias com crianças de zero a seis anos. Segundo suas contas, o uso de instrumentos já existentes – o cadastro e o aplicativo – permitirão otimizar os recursos do benefício. Sem rombo no orçamento público, famílias brasileiras poderão receber até R$ 800 por criança pequena, garantindo o desenvolvimento delas – e seu futuro – na fase mais crítica.

Os estudos de Naercio e outros especialistas já municiam congressistas brasileiros, como a senadora Eliziane Gama, do Cidadania. Os projetos de transferência de renda da deputada Tabata Amaral (PDT) e do senador Tasso Jereissati (PSDB) têm igualmente a virtude de olhar para o futuro.  

Confirma-se mais uma vez o clichê dos “dois brasis”. Um é o do populismo e do descaso, responsável pela tragédia da pandemia. O outro é o da universidade cheia de boas ideias e dos gestores capazes de implantá-las – a ponto de alguns de nossos programas sociais tornarem-se referência internacional. É fundamental que o Brasil da inteligência suplante o Brasil da ignorância. A alternativa é enterrar, todos os dias, o equivalente às vítimas de três desastres aéreos. 


Sérgio Augusto: Vacinas, valores e velórios

Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, mas atingimos a marca de 250 mil

Já estava me preparando para ser vacinado quando as vacinas acabaram. Foi aí que descobrimos que, na estupefaciente gestão do general Placebo no Ministério da Saúde, a vacinação é regida por dois calendários, como o tempo já foi em priscas eras. Pelo calendário juliano, quando há vacinas disponíveis, e pelo calendário gregoriano, quando elas acabam e ainda não têm data para chegar. Daí a máxima romana “sine vaccinus, sine die”, cunhada antes da invenção da primeira vacina. 

E assim as vacinações no Rio foram jogadas para as calendas. Ainda bem que para as calendas romanas, não para as gregas. Será que nas calendas de março saberemos quando, pelo calendário gregoriano, levaremos nossa redentora picada? 

Pior do que essa espera, possivelmente passageira, e as justificadas incertezas relativas à segunda dose foi tomar conhecimento das descaradas mentiras sobre a performance de Bolsonaro durante a pandemia que a ministra Damares e o chanceler Ernesto Araújo tentaram vender na ONU. Ficaram só na tentativa porque ninguém lá fora acredita mais em nada que diga, faça ou prometa fazer de bom o ogro que nos governa, exaspera, envergonha, e concentrou no extermínio seu mais eficaz programa de corte de gastos na Previdência. 

Não menos desalentadora foi a constatação de que a Bolsa de Valores se sensibiliza muito mais com uma troca no comando da Petrobrás pelo presidente da República que seus investidores ajudaram a eleger do que com as ininterruptas e recordistas altas na contagem de mortos e infectados pela covid, no País. Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, basofiou o capitão negacionista em abril do ano passado. Atingimos a marca de 250 mil mortos esta semana; 50 mil só nos últimos 48 dias – e vacinamos apenas 3% da população.

Se alguma coisa o presidente sabe fazer, e bem, é mentir e tirar o dele da reta. “Não sou coveiro”; “Não sou profeta”; “Não compro seringas”. Pilatos ao menos lavava as mãos. O capitão nem sequer usa máscara.

A fulminante queima de ações da BR também veio corroborar a teoria de que a matança em curso, se não faz parte de um maquiavélico projeto político e econômico do bolsonarismo, como a aniquilação da cultura e da educação, desmoralizou em definitivo o chavão de que “as nossas instituições estão funcionando”. Se estivessem, ou pelo menos o STF estivesse, a pleno vapor, o nosso Napoleão de hospício já estaria na ilha de Elba da nossa imaginação. 

Verdade que o ministro Alexandre de Moraes se tem comportado com o destemor que seu cargo exige, mas Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes, conforme salientou na terça-feira o comentarista político Bernardo de Mello e Franco, facilitaram o serviço para a chicana que culminou com a anulação das quebras de sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro, no inquérito das rachadinhas. Toffoli e Fux travaram a investigação por cinco meses, e Mendes abriu a gaiola para Fabrício Queiroz, o factótum da familícia. 

Comprado o Legislativo, cooptadas e neutralizadas as Forças Armadas mediante cargos, subsídios, promessas, leite condensado e claque em formaturas de cadetes, pergunto: quais instituições ainda funcionam normalmente nestas bandas? 

Por encarnar e afiançar a “ultima ratio” de qualquer país que as possua, as Forças Armadas (sim, mais de dez nações sobrevivem sem o seu concurso) deveriam preservar-se de aventuras como foram os golpes de que participaram desde a Proclamação da República. O que pretendia impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, foi só uma (ou a) exceção à regra justamente porque um oficial do Exército, o marechal Henrique Teixeira Lott, e sua excalibur da legalidade melaram a tempo a conjura udenista. 

Quando vejo, leio ou ouço alguém lamentar a escassez ou mesmo ausência, hoje, de políticos e outros figurões civis de alto nível, sempre me vem à lembrança a figura do marechal. Com ele, nenhum golpista tirava farofa. Que reação lhe provocaria um confesso autogolpista como Bolsonaro? Que atitude teria face à fascistoide ameaça do general Villas-Boas ao STF, em abril de 2018? 

O ator, humorista e cronista Gregório Duvivier desenvolveu uma tese que, em outras cabeças, inclusive na minha, já andou caraminholando. Ao contrário do que se pensa, o presidente não protege e prestigia além da conta os seus ex-colegas de farda, notadamente os da arma em que fez carreira, o Exército, mas, na verdade, os rebaixa e desmoraliza. Ao lhes dar emprego e funções que exigem especial capacitação, expõe-lhes a incompetência e engorda as desconfianças de que suas nomeações são menos frutos de uma ineludível promiscuidade corporativista do que das limitações sociais impostas pela vida em caserna. Azar nosso se o capitão só se dá com milicos. 

Para Duvivier, Bolsonaro está se vingando do coronel que o humilhou, reprovando-o por sua “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio”, de outro oficial que condenou sua “excessiva ambição em realizar-se financeiramente” e, acrescento eu, do general Ernesto Geisel, que o considerava “um mau militar”. 

Não sei se concordo com a hipótese de que nem décadas de propaganda antimilitar da esquerda causaram mais estrago na imagem do Exército do que a sanha empregatícia do presidente, mas é possível que sim. Já a suspeita de que só agora, com meio século de atraso, o capitão cumpre uma missão que lhe teria sido delegada pelo capitão Carlos Lamarca, não é, como toda blague, para ser levada a sério. É para rir.

Ria, enquanto o golpe não vem. 

*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’


El País: Bolsonaro busca patrocinadores para 63 milhões de hectares da Amazônia

Governo quer que empresas e pessoas físicas do Brasil e do exterior doem dinheiro para preservar reservas naturais. Ambientalistas consideram a iniciativa como meramente propagandística

Naiara Galarrafa Gortázar, El País

Governo brasileiro quer que empresas, fundos de investimento e pessoas físicas, tanto do Brasil como dos outros países, contribuam com dinheiro para preservar a Amazônia. Para isso, lançou na terça-feira uma iniciativa em busca de patrocinadores para as 120 reservas naturais criadas nas últimas décadas, abrangendo 15% da superfície da maior floresta tropical do mundo em território brasileiro. São 63 milhões de hectares. O programa Adote um Parque ―nome que subestima a exuberância, a extensão e o valor ecológico dessas áreas, que somadas têm o tamanho da França— foi apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro em Brasília. Os ambientalistas o consideram uma iniciativa meramente propagandística.

O Brasil sente cada vez mais a pressão política e comercial pela política de seu Governo para a Amazônia, pressão à qual os EUA de Joe Biden devem somar-se agora. A iniciativa está aberta a patrocinadores estrangeiros, embora, para Bolsonaro e boa parte dos brasileiros, o interesse externo no território amazônico esconda ameaças à sua soberania. O preço difere. Os brasileiros podem adotar uma reserva ecológica por 50 reais (8 euros, 9 dólares) por hectare; os estrangeiros, por 10 euros (65 reais).

Por enquanto, a primeira, e única empresa que aceitou participar é a rede francesa de supermercados Carrefour. O presidente francês, Emmanuel Macron, é precisamente o mandatário que criticou mais duramente nos últimos dois anos o Governo de Bolsonaro por seu desinteresse em preservar a Amazônia, pelo crescimento do desmatamento a níveis recordes e pelo aumento das queimadas. O ultradireitista, que em campanha criminalizou as ONGs e prometeu priorizar o desenvolvimento econômico da Amazônia sobre sua preservação, referiu-se à coincidência: “O que podemos falar para aqueles que nos criticam é o seguinte: ‘Olha, não temos condições, por questões econômicas, de atender nessa área. Venham nos ajudar. E uma empresa francesa foi a primeira que apareceu”.

O Carrefour precisa melhorar sua reputação no Brasil depois que, em novembro, dois de seus seguranças, brancos, espancaram até a morte um cliente negro às portas de um de seus supermercados. A multinacional planeja, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, formalizar a adoção da reserva de Lago do Cuniã, de 75.000 hectares, localizada em Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Esse território, do tamanho de Caracas, tem um estatuto legal que permite a extração controlada de madeira ou a agricultura de subsistência. Outras cinco empresas negociam patrocínios, disse o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, à agência Bloomberg.

A gestão das reservas ―denominadas unidades de conservação― continuará nas mãos de organismos ambientais governamentais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e o Instituto Chico Mendes (ICMBio, concentrado em preservar a biodiversidade). As ONGs e os ativistas ambientais sustentam que seria muito mais eficaz parar de erodir sistematicamente a capacidade dessas instituições. Em um comunicado, o Greenpeace acusou o Governo Bolsonaro de promover “uma nova ação midiática para limpar sua imagem” enquanto “continua destruindo os instrumentos que protegem as unidades de conservação, desmantelando o ICMBio, militarizando suas estruturas e impondo significativos cortes orçamentários”.

Ao Carrefour e a outras empresas que possam estar interessadas, a gestora florestal e ativista Cristiane Mazzeti pediu em um tuíte que parem de usar o meio ambiente para limpar sua reputação e “se apressem em cumprir suas promessas de desmatamento zero”.

As tensões internas no Gabinete de Bolsonaro ficaram expostas também na apresentação do Adote um Parque. O principal interlocutor de diplomatas e fundos de investimento preocupados com a política ambiental do Governo é, desde a crise das queimadas de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão, que não participou da cerimônia, à qual compareceu o ministro Salles. O titular do Meio Ambiente disse abertamente em uma reunião de ministros que iria aproveitar que a pandemia estava atraindo toda a atenção da mídia para aprovar leis que enfraquecessem a fiscalização ambiental e trouxessem facilidades para o agronegócio.

O Governo Bolsonaro verbalizou pela primeira vez a ideia de buscar patrocinadores para a preservação da Amazônia em plena discussão pública com o ator americano Leonardo DiCaprio em 2019, quando as queimadas devoraram milhares de hectares na Amazônia.


Alon Feuerwerker: As fichas vão caindo

E o governo federal vai continuar ajudando as prefeituras em 2021, o segundo ano da pandemia da Covid-19. Foi o que disse hoje o presidente da República (leia). Tem lógica. A doença leva todo o jeito de querer atravessar o ano. A vacina certamente vai ajudar a mitigar, mas é bom ir se habituando à convivência com o vírus até pelo menos 2022.

Outra ficha que já caiu foi a da necessidade de prorrogar o auxílio emergencial, tanto faz se com outro nome, e ainda que falte decidir o valor exato. Os fatos são teimosos. O comércio teve em dezembro a maior retração em duas décadas, mesmo que no acumulado do ano tenha mostrado um pequeno avanço sobre 2019 (leia). Mas o dezembro ruim é prenúncio de números complicados neste começo de 2021.

E chegamos às duas conclusões inescapáveis. A Covid-19 não irá embora tão cedo e o poder público precisará endividar-se para ajudar as pessoas, as famílias e as empresas. E tem uma terceira. Começa a balançar o teto de gastos, previsto para um período de normalidade (ainda que prever 20 anos de normalidade no Brasil tenha sido ousado) e agora confrontado com a vida real.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Adriana Fernandes: Depois do carnaval

Tempo que se perde rodando em círculos significa mais gente passando necessidade em todo País

O recuo de 6,1% das vendas do varejo de novembro para dezembro surpreendeu negativamente e mostrou que a segunda perna da retomada em V da economia está cambaleando. Um carimbo a mais para sinalizar a perspectiva pior para a economia no primeiro trimestre deste ano.

A razão do aumento da pressão pelo retorno auxílio emergencial deriva muito mais desse diagnóstico econômico do que uma preocupação genuína dos parlamentares com a situação de pobreza e dificuldade que passam milhões de brasileiros sem trabalho e renda nessa segunda onda da pandemia, com cepas mais perigosas do vírus, lentidão da vacinação e média móvel de mortes acima de mil pelo 21.º dia seguido.

Fosse o contrário, governo e parlamentares já teriam corrido para dar uma solução para o problema muito antes de o auxílio emergencial acabar. Era tudo previsível. Agora, a solução ficou para depois do carnaval, mesmo após dez dias do resultado das eleições do Congresso. Esse tempo que se perde rodando em círculos significa gente passando necessidade.

Boa parte da pressão a alimentar a movimentação dessa semana pró-auxílio vem de deputados, prefeitos e governadores aliados desesperados por uma injeção de estímulo para a economia. Isso fez o presidente Jair Bolsonaro tirar a fantasia antes mesmo de o carnaval começar e dizer que a medida é para ontem (até então ele se mostrava contrário à prorrogação). O dinheiro do auxílio que foi direto para o consumo sustentou a arrecadação e, agora, a sua redução, a partir do fim do ano, mostra forte impacto econômico.

Todos os políticos que correm agora para defender a urgência do auxílio (parlamentares e administradores públicos de todos os Poderes) deveriam estar preocupados também em reforçar o planejamento das restrições de isolamento para barrar o avanço da covid-19.

Até agora, infelizmente, toda a discussão em torno da prorrogação do auxílio está desconectada de medidas restritivas. Elas só acontecem nos locais quando a situação de colapso e caos se instalou. E mesmo assim meia-boca.

Sem essa conexão, o auxílio, mesmo que necessário e urgente, se revela tão somente como uma medida de transferência de renda aos pobres, que já podia ter sido desenhada desde o ano passado e aprovada pelo Congresso. 

Por que não aproveitar as negociações da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de orçamento de guerra, que o ministro Paulo Guedes exige para dar o auxílio, para cobrar dos prefeitos algum tipo de compromisso nessa direção? 

Se Bolsonaro é contra, o Congresso poderia assumir essa campanha e responsabilidade. A vacinação deu esperança, mas é lenta e tem servido para mais afrouxamento do já escasso isolamento social. Um plano desse tipo resultaria em menos mortes e, com certeza, em menor custo para o governo. Na Alemanha, o governo anunciou que prorrogará o lockdown em vigor até o dia 7 de março. Um acordo fechado entre a chanceler Angela Merkel e os governadores já prevendo de antemão flexibilizações. Aqui no Brasil, seguimos nesse rastro de insensatez. Até locais com restrições mais sérias, como Belo Horizonte, já flexibilizaram.

Por enquanto, é certo que muitos daqueles que nada fizeram para ampliar o nível de isolamento da população vão bater na porta do Tesouro para pedir mais estímulos. Não vai parar no auxílio. Estão sendo cobradas também a retomada do programa de estímulo ao emprego (BEm), mais crédito subsidiado, suspensão de pagamento de impostos...

O ministro Guedes tem tentado segurar a pressão com medidas de antecipação de recursos, com a antecipação do abono salarial, que injetam recursos na economia. É pouco, mas tenta ganhar tempo.

Depois do auxílio, que já está dado, a queda de braço de fato com o Congresso é que vai começar. O Centrão virá com tudo para cima de Guedes. A votação acachapante do projeto de autonomia do Banco Central mostrou força, mas tem seu preço.

A aprovação da PEC de orçamento de guerra para dar o auxílio é inescapável e vai abrir a porta para mais pedidos de estímulos. O que sabemos de antemão é que a PEC vai ficar só na liberação das regras fiscais para gastar mais fora do teto de gastos. As medidas compensatórias cobradas por Guedes e Roberto Campos Neto, do BC, não vão rolar.


José Serra: Haverá futuro sem o SUS?

O momento exige iniciativas que melhorem a qualidade e eficiência das políticas de saúde

Em agosto do ano passado o Estado publicou três editoriais sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), a única tábua de salvação ao alcance da maioria da população brasileira diante da ameaça da pandemia de covid-19. Mais recentemente, em 8 de dezembro, o jornal voltou à carga, citando uma pesquisa de orçamento familiar do IBGE segundo a qual quase dois terços dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS.

Não é nada trivial que um jornal de porte nacional e com o prestígio do Estado dedique sua principal plataforma de opinião a dar destaque ao mesmo tema. Tampouco é trivial um veículo com firme tradição de apoio às políticas de austeridade fiscal empenhar-se em defender o financiamento de uma rede estatal que compete com a rede privada. Pode-se constatar, nas opiniões defendidas nesses editoriais, um pragmatismo que lembra a frase de Deng Xiaoping sobre ideologia e vida real: não importa a cor do gato desde que ele cace o rato.

Até hoje o rato continua personificando a peste, mas o desafio sanitário enfrentado pelos brasileiros é de outra ordem, não se reduz ao vírus, pois afeta, além da saúde, a economia, a organização social e o desenvolvimento humano de toda uma Nação.

O SUS é “seguramente uma das maiores conquistas civilizatórias da sociedade (brasileira) no século passado”, porque retira o sistema de saúde do País da lógica de mercado e o torna direito fundamental. Um direito que em nenhum país do mundo o sistema privado foi capaz de garantir.

De que modo um país com dimensões continentais e em plena retração econômica, em meio a uma crise política de dimensões graves, poderia oferecer um sistema de saúde universal e gratuito que fosse também de qualidade?

Outras duas perguntas estão estampadas no título deste artigo: haveria futuro sem o SUS? O que resultará do teste de estresse a que o SUS está sendo submetido pelas demandas extraordinárias, para as quais teve de improvisar em grande parte, e pelas inseguranças de uma gestão submetida a seguidas mudanças de ministro, em plena crise de confiança e de visões opostas sobre o valor da vida, do conhecimento e da ação governamental?

Tomo a liberdade de tentar responder, escorado em minha experiência de atividade pública na área de saúde, em que me orgulho de ter contribuído para a consolidação do SUS, seja em termos regulatórios e financeiros, seja expandindo sua atuação em tratamentos de doenças específicas, acesso a medicamentos e equipamentos de alta complexidade. Vejo que há dois caminhos para isso, a via legislativa e a das políticas estratégicas.

O momento exige maior sensibilidade do Congresso para iniciativas que melhorem a qualidade e a eficiência das políticas de saúde. Há bons projetos de lei em pleno andamento, como o que autoriza a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a adotar termos de ajuste de conduta como alternativa a penalidades a serem aplicadas pela infringência de normas a responsáveis pela produção e comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária. Isso permitiria corrigir os problemas sem recorrer a custosos procedimentos legais, economizando tempo para a agência e incentivando a melhoria do serviço prestado em hospitais, comércio de medicamentos e outros.

Outro exemplo é o projeto de lei que impede a concessão de patentes sem anuência prévia da Anvisa, mediante comprovação de que os medicamentos não prejudicam a saúde pública nem comprometem a sustentabilidade das políticas de acesso a medicamentos estratégicos no âmbito do SUS.

Quanto às políticas estratégicas, o combate à pandemia de covid-19 é um caso exemplar de consolidação de qualidade, economicidade e eficiência do SUS. As autoridades brasileiras tinham de antemão condições favoráveis para combater a pandemia, destacando-se a de dispor de um sistema de saúde de alcance universal, gratuito, cobrindo desde o atendimento médico, do mais simples ao mais complexo, até o desenvolvimento de pesquisa e a distribuição gratuita de medicamentos essenciais. E que acumulou ao longo de décadas uma bem-sucedida experiência de campanhas nacionais de vacinação.

Porém essas vantagens de nossa gestão da saúde pública não se converteram automaticamente em mecanismo capaz de planejar e gerir uma máquina de guerra de combate a um desastre das proporções da pandemia de covid-19. A começar por planejamento estratégico, elaboração de políticas, implementação de gestão da crise provocada pela pandemia, que vai muito além de seus aspectos sanitários. Por falta de planejamento e de senso estratégico, o Ministério da Saúde deixou que a má condução da gestão orçamentária, em pleno novo surto de covid-19, levasse o SUS a reduzir drasticamente a disponibilidade de UTIs e de equipamentos de ventilação, alegando falta de verbas.

Enquanto isso, o governo federal, com a outra mão, promete renunciar a receita tributária para benefício de um grupo de seus aliados. Falta de planejamento, incompetência da gestão orçamentária ou prevaricação pura e simples?

*Senador (PSDB-SP)


O Estado de S. Paulo: 'Já sou contra privatizar Eletrobrás pelo custo ao governo, melhor vender a Caixa', diz Elena Landau

Economista critica a insistência do governo em atropelar o Congresso e propor uma Medida Provisória para vender as ações da companhia no mercado; segundo ela, privatização perdeu a importância e se tornou 'mero simbolismo'

Anne Warth, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O governo vai acabar tendo que pagar para privatizar a Eletrobrás, diz a economista Elena Landau. Ex-diretora da área de privatizações do BNDES durante o governo Fernando Henrique Cardoso e colunista do Estadão, Landau critica a insistência do governo em propor, mais uma vez, uma Medida Provisória para capitalizar (vender ações no mercado) a companhia. Para ela, será uma tentativa de atropelar o Congresso, já usada no passado sem sucesso, e que vai trazer mais insegurança jurídica ao processo, já que a tendência é que o texto caduque antes de ser aprovado.

Landau afirma ainda que a privatização da Eletrobrás perdeu relevância e se tornou mero simbolismo. “O setor elétrico anda bem sem a Eletrobrás, e o governo vai acabar pagando para privatizar. Eu já sou contra a privatização nesses termos. Isso não me mobiliza mais”, afirmou, ao Estadão/Broadcast. Confira os principais trechos.

O que a sra. achou da ideia do governo de enviar, novamente, uma Medida Provisória para privatizar a Eletrobrás?

Qualquer proposta dentro do programa de privatizações demanda enorme segurança jurídica e aceitação por parte dos investidores e do mundo político. Não pode ser feito por MP, que só tem força de lei enquanto não caducou, e depois que caduca, perde validade e cria uma enorme insegurança jurídica. Se for para simplesmente repetir o que já está no projeto de lei que enviaram ao Congresso, que respeitem e não atropelem o Congresso Nacional. Não podem mandar MP para cortar o caminho. E se for para autorizar a contratação de estudos para a privatização, cai no requisito da inconstitucionalidade, pois uma MP dessa natureza não teria nem urgência, nem relevância. Não tem sentido nenhum. Isso já foi tentado no governo Temer e a MP 814 caducou. Todo mundo viu que ia dar errado e mandaram um projeto de lei. Estão repetindo o erro. Ainda que fosse aprovado, daria uma rigidez muito grande ao processo todo. Se precisasse mudar qualquer item da lei, teria que voltar ao Congresso para ajustar. O projeto de lei deve ser votado apenas depois dos estudos e ter apenas aquilo que realmente precisa de lei, como a descotização. Mas aí dá pra fazer uma lei apenas sobre descotização.

O governo considera que precisa dar uma sinalização positiva ao mercado com a renúncia de Wilson Ferreira Jr. A sra. considera que a MP seria esse sinal?

Não sei como o mercado comprou, em algum momento, que a privatização da Eletrobras iria andar no governo Bolsonaro. No governo Temer até tudo bem, porque privatizaram sete distribuidoras e era uma gestão com agenda claramente liberal e reformista. Era crível acreditar na privatização da Eletrobrás no governo Temer, mas no governo Bolsonaro não tem abertura comercial, não tem reforma administrativa. Como vão acreditar na privatização da Eletrobrás? Por isso a saída de Ferreira Jr é tão significativa, porque era o único empenhado na privatização. A MP é uma resposta atabalhoada a isso.

Na sua opinião, qual seria a melhor alternativa para privatizar a Eletrobrás?

Recuar completamente e fazer um único pedido ao Congresso, que é a revogação do trecho do artigo 31 da Lei 10.848, do governo Lula, que excluiu a Eletrobrás e suas subsidiárias do Programa Nacional de Desestatização (PND). Sou a favor de retomar as privatizações como sempre foi feito. Nesse caso, a ordem dos fatores altera o produto. Definir a modelagem antes da autorização de venda é um erro. Entrega ao Congresso uma competência que é do Executivo, quando o Legislativo não tem estrutura técnica para isso. Politicamente é um erro, você precisa começar o jogo da negociação política com uma série de supostos ganhos, como redução das tarifas, dinheiro para o Norte e o São Francisco, e o Congresso sempre vai pedir mais. Não é mais fácil rever todos os encargos setoriais e subsídios para carvão, fontes renováveis, agronegócio, em vez de abater esse custo das tarifas com outorga? Quem definiu o valor que irá para o São Francisco? É preciso um estudo muito detalhado sobre o valor da outorga (quanto a União receberá na operação), incluindo a questão de Tucuruí. É uma questão técnica, não política.

Como a sra. vê a questão da capitalização?

A capitalização foi decidida em 2018, mas dentro das circunstâncias da Consulta Pública 33, para evitar que a Eletrobrás ficassem de fora e perdesse a oportunidade de descotizar a energia de suas usinas (ou seja, vender a energia a preço de mercado). A partir disso, aproveitando a capitalização, daria para diluir a participação da União na empresa. Veio o projeto de lei e o tempo foi passando. O bônus de outorga contribuiria para o resultado primário de 2018, mas essas circunstâncias fiscais hoje são muito diferentes. Em três anos, poderiam ter feito estudos paralelos de forma a maximizar o retorno ao Tesouro, para avaliar os modelos possíveis, as memórias de cálculo e a outorga. Falta transparência nesse processo, que é algo fundamental no programa de privatizações e no serviço público. E ainda tem a questão de Tucuruí (uma das maiores hidrelétricas da Eletronorte, cuja concessão vence em 2024), que era um futuro longínquo em 2018 e agora está próximo demais para ser ignorado.

Onde estão as resistências à privatização da Eletrobras?

Hoje, na área política, estão concentradas no presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), por causa de Furnas, e na bancada do Norte, nos senadores Eduardo Braga (MDB-AM) e Davi Alcolumbre (DEM-AP). Mas há as resistências de sempre, como os fornecedores, que sempre cobram sobrepreço para vender para a União e usam muitas vezes práticas não republicanas, dos empregados e das corporações.

Como vender a ideia da privatização e vencer a resistência da sociedade?

O discurso da privatização precisa mostrar os benefícios desse processo. A privatização da Gerasul, hoje Engie, mostra o potencial de uma empresa que sai da gestão pública, sem amarras de compras, crédito e recursos humanos. Ela era um pedaço da Eletrobrás e já chegou a valer mais do que a Eletrobrás. A melhor peça a favor da privatização desse governo foi o estudo sobre salários e privilégios das estatais. Vender estatal com o discurso fiscal é muito ruim, ainda mais depois do déficit por causa da covid-19. Os críticos vão fazer uma conta de padaria e dizer que entrará R$ 15 bilhões quando o buraco é muito maior. Além disso, depois da capitalização bilionária que fizeram na Emgepron (estatal militar), o discurso fiscal ficou muito fragilizado. 

Com tantas críticas ao processo, a senhora ainda é a favor da privatização da Eletrobrás?

Para mim, a privatização da Eletrobrás se tornou uma questão de simbolismo, porque não tem mais relevância. O setor elétrico anda bem sem a Eletrobrás. O governo vai acabar pagando para privatizar. Eu já sou contra. Não me mobiliza mais.  Em 2011, a Eletrobrás tinha 34% da geração, hoje tem 30% e em 2024 terá 24%; na transmissão, era 52% em 2011, hoje é 45% e em 2024 será 39%. A empresa não investe mais, está minguando, e os maiores interessados em reverter esse processo deveriam ser os funcionários, pois o investimento se tornou uma questão de sobrevivência para a empresa.

Se a Eletrobrás fica de fora, qual sua lista prioritária de privatizações?

Estou muito mais focada no simbolismo de vender ValecEBCTelebrás, fazer um pente-fino nas empresas dependentes do Tesouro Nacional, ver qual delas se justifica além da Embrapa. Cadê as escolas com banda larga da Telebrás? Para que serve a Valec? A EBC se tornou a TV Bolsonaro e agora compra novela do bispo Edir Macedo, que é um aliado. Se for para comprar novela, comprem da Globo porque é muito melhor. Estou muito mais interessada em vender a Caixa e acabar com o populismo do presidente Pedro Guimarães, que usou o banco para avançar no mercado das fintechs, abrindo agência quando todo mundo está fechando, um cara supostamente liberal fazendo o uso mais populista possível de um banco público. O estrago que a Caixa faz no setor bancário é muito maior que o da Eletrobrás no setor de energia. 

O governo diz que a mudança no comando da Câmara vai fazer a privatização andar. A sra. acredita nisso?

O próprio ministro Bento Albuquerque já falou que a privatização ficará para 2022. Fazer privatização no meio de uma campanha presidencial, com o presidente contra, eu nunca vi. Já vi em 1998, mas Fernando Henrique e todo o governo eram a favor. Alguém acha que Bolsonaro vai apoiar? Só se for em fevereiro, com o Congresso distraído e tudo aprovado em 2021. De qualquer forma, com a mudança no comando da Câmara, a desculpa de jogar a culpa no Rodrigo Maia (DEM-RJ) caiu. Perdemos uma Câmara reformista, Maia era um aliado da agenda liberal. Alguém acha que o PP de Arthur Lira (AL) é a favor? 

Mas as resistências à agenda de privatizações vão além do Congresso?

Não precisa atravessar a Esplanada dos Ministérios para encontrar inimigos da privatização. Eles estão na própria Esplanada. Valec, Ceitec, EBC, todas as estatais militares. Os ministros que comandam essas empresas são os inimigos. O governo se especializou em jogar a culpa nos outros. Bolsonaro ainda é o mais consciente deles, é um mentiroso contumaz, mitômano, que fala com uma seita que acredita em tudo que ele fala e para o resto distribui cargos. Já o ministro Paulo Guedes vive numa realidade paralela, cria e acredita. O mágico não pode acreditar na mágica. Bolsonaro não é maluco, maluco é quem acredita nele. Vai fazer o que quiser e pegou Guedes para ser seu fiador. Como já disse o ministro da SaúdeEduardo Pazuello, “é simples assim, um manda e outro obedece”. É um governo populista e vai dar muito trabalho para explicarmos, no futuro, esse interregno populista que nada tem a ver com liberalismo. Guedes prestou um grande desserviço à causa liberal ao participar desse governo e não implantar nada da pauta liberal. 

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